sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

1994 LAÍS PAIVA


[ DEZ POEMAS ]

DIA 6. VESTÍGIOS DA ESPINHEIRA

todo dia ruminando os revides
brotos de suco gástrico remexendo farpas de brinquedo
na cascata do banho quente
na pressão
os brotinhos trepadeiros
espaçosos                 cenográficos                         ciumentos
ocuparam e dão a letra de que nada passa se não
somar no seu terreno os revides em velhos
letreiros eleitores em vermelho

rugindo

com sede muitasede que não se abastece
do desejo em fome de carne rompida
do céu em trovejada
os caninos acesos
e a ferida brilhante
posta pra secar
no sal de fevereiro


DIA 15. O DESEJO CRESCE NAS FRESTAS

todo dia tramando o risco
desvios daquilo que continua igual
o expediente do relógio
a inspiração de urso
a intimidade em fagulhas de ano
novo pedindo mais etceteras das
crateras em ebulição

cílios inimigos lutam pra não repousar em:
amantes noturnos se friccionando em:
um piscar das vergonhas descobertas nasce:
um inseto de sua orelha
de vigília
   com antenas e calor carburando
                                                  o rastro
desce do lóbulo à nuca
da clavícula ao bico dos seios voraz
se embrenha nas matas inferiores
cava caverna
saída para dentro
talhando labirintos


DIA 28. FANTASMAGORIAS

todo dia traçando linhas imaginárias, territórios precipício, a divisa em km, perímetro dos nossos corpos, a linha-limite,
a passagem, a faixa-amarela, o sino, a sequência numérica das viagens, o bilhete, a projeção, frequências sintonizadas, (...) tua conversa até as portas fecharem, a passagem, os dedos na janela contando gotas
o quanto é possível estender um corpo antes de romper a casca
e se inundar dos fluídos?
quantas vezes nos encontramos vagando ultrapassando os limites das dimensões conhecidas desconhecidos mas enamorados buscando o ponto-desejo que faz o espiral girar
até a dissolução?


DIA 40. MINGUANTE

todo dia santo varrendo migalhas pra debaixo do tapete,
subtraindo aquilo que causa repulsa do menu,
seguindo a risca o desregramento,
coletando memórias nas mucosas vaginais - despejando memórias-sensações
no sangue do canteiro
no canto da arruda

o útero ferve o ovo oco

o dia da santa sangra cinco dias
a varredura do corpo inóspito
3 luas de cozimento
balizando
               operações de banimento
em vias de sentidos adversos
“reter aquilo que já não serve por medo do espaço não-preenchido”,
“guardar migalhas por medo de um dia ter fome”
romper o vínculo
se despedir do absolutamente não-bem vindo
cultivar sementes de desapego
reprogramar a varredura
anuviar os pixels em desalinho
fecundar raiz


DOIS FUROS N’ALMA DE BORRACHA É POR ONDE ESCAPA O AR
            
                Vertigem,
 (um palmo do estômago na dobradura do veludo)
os ossos murchos ao toque leve
subestimam os membros em deslize
das pétalas em decadência

(ela me pede eu te amo no cio da fruta madura -
aprendemos a amar
                     o pesar do sismo)


hoje 14°C em tópicos:
1. encontro Virgem aninhando Júpiter antes da primavera ceder o rasgo;
2. dou por vencida;
3. esqueci as palavras afiadas no bolso da jaqueta na cesta de roupa;
4. me apresento às terças como Silêncio Salutar;
5. sinto calor quando os bicos dos seios se encolhem;
96. a garganta coça um pelo;
7. amanhã faz 11 dias que penhorei meu nome;
8. ela me disse que o sabor favorito de açaí é terra molhada;
9. improvisou um esparadrapo na fissura para aprisionar o ar;
10. eu digo que nada me obriga a nadar
 (a lista é uma anaconda-escadaria entre tantas coisas).
33. a romã se abre ainda no pé flertando com a gravidade
12. o poema se destroça no ritmo das placas tectônicas em fricção
14. eu sigo perseguindo o que esquenta meu sangue e me causa erupção


APARTAMENTOS

I. apto. 21

o gato azumbradin no sofá pedindo
                                                                                  leite
     um tabaco mesmo que seja                           
                                     amassado                                                
                             quié o que tem
a ração do gato toda esparramada no chão
é o que sobrou desse outubro
de estiagem financeira
té que tenho um troco ou outro
pra comprar a comida do coitadin mas
ele não come dessas de seis reais apenas
essas marcas de gato rico
é tipo a dona pensando que pode
um capuccino na padaria da rua padilha
                                                    mariando um fumo
nas esquinas
cada hora uma chuva nova na cabeça
pra contradição da seca
              na geladeira de casa.
tô sabida que parar de fumar
somaria uma metade de salário mínimo
na minha conta
mas é que nessas condições que a gente
se encontra de não ter nem
meia-verdade por aí
ocupar a boca é uma urgência tanto maior
que o ronco do estômago
                         do gato e o meu
que se aquieta duas bitucas depois
mais barato que comida nesses tempos
de feijão doze reais.
pensar feijão pendurada na varanda
com essa chuva que não
vai embora desde segunda-feira
me dá uma saudade da minha vózinha
o tutuzin preto com farofa e ovo cozido
o frango queimado que só ela faz
daquele jeitin dela de gostar da gente
alimentando até a barriga ficar roxa
era bom ser menina
a barriga cheinha de doer
o cheiro de biscoito fresco vindo da fábrica
o jardim transbordando margaridas té pra fora do portão
gostava de botá-las na boca
minha vó me dava uns tapas
mandava eu cuspir “num come isso
té parece que num tem comida. cospe! cospe!”
e me dava mais uns tapas pra
garantir que tinha cuspido
tudo mesmo e pra não nascer
filhote de abelha no estômago
eu bebia leite com café
                               quentin
      & doce! mai doce!
hoje mal coloco uma colheirinha
tenho preferido os sabores amargos
apesar de vezinquando
anuviar uma nostalgia
dias chuvosos na serra
verdinha verdinha
que o verão trancava a olhar a rua
pela porta de vidro
eu me perguntava se nesse agueiro todo
as margaridas de tanto
tomar banho ficariam enrugadas
como a minha vó.
dá um sufoco no peito!
depois me perguntam
porque não paro
de fumar
a pergunta certa
é quando foi que o filme figurou preto e branco?
e as margaridas travestiram-se
pinheiros
as caras vizinhas esses
fascistinhas de merda
batendo panela
e o cheiro
do feijão do apartamento 22 que me bota
morta de fome e
vontade de chover
pela janela.

II. apto. 23

zázázázázá mais um disco arranhado girandoandoando
dessa vez um jazz despropositado — vem ela
(não a nomeio pois a amo)
os cachos descompromissados arrastar
os fios no vinil eu exijo alguém pra amar
ela me diz colocando iggy pop faiscando
apertando os olhos
ela exclama que odeia quando mudam
a embalagem das coisas que ela
gosta e que conhece (…)
uns discos são mais lisos outros tem
                      espinhos
                                   iggy

me faz correr um pouco mais
pra alcançar ela tagarelando sobre o restaurante
indiano e o lassi de banana com iogurte e água  de rosas
no celular postando uma foto do prato
de salada com amendoim porque se parece
com uma mandala
eu só posso ouvir os sabores palatando
a palavra porque nunca
tive língua pra provar
algo além das

(m): AINDA BEM QUE VOCÊS CHEGARAM

nem vi o interfone tocar
o baseado beijando as bocas
dos meninos cabeludos como
ela beijando as bocas
dos meninos cabeludos
ensopadíssimos os sapatos
quackquackquackquack no piso de taco
se misturando em raw power e outros
gritinhos selvagens fábio tira a roupa
toda na cozinha pendura no varal da lavanderia
um muxoxo que eu mal

(f): só chove nessa porra de cidade. eu não tinha UM guarda-chuva pra levar, ainda bem que eu encontrei o andré no terminal, mas no fim não adiantou nada, olha nosso estado…
(a): para de reclamar, ô

três peguinha já concentram o coração
num sopro é preciso ouvir algo
mais quente ela fala longe
sem enunciar som sequer
eu sei o que ela quer pela
repetição das suas vontades
umatrásdaoutra desde 2013
quando nos encontramos a primeira vez
me quis como um relicário que pudesse
levar a todo lugar
era relíquia da dona sandra
que revirava puccini e amália rodrigues
quando queria choramingar um pouquinho
de saudades ouvia chico buarque
não me faz falta
me apaixonei ao primeiro miles davis
me postou na sala de frente pro sofá
assistir as pernas deles orgiásticas
tardes de terça-feira molhada como essa
alguém sempre tira a roupa
e aí que me faço
voyeur das poesias de fumaça que
fábio expira tijuana moods
pra esquentar
os corpos contorcidos
entre as almofadas da frida kahlo andy warhol e aquela
bonitinha que andré trouxe da liberdade em
março quando foi pra são paulo dizendo
que ia deixar essa cidade de
carecas racistas
homofóbicos etc
é outubro ainda tá aqui acendendo mais um

é justo

todos concordam
os corpos molhados é terça-feira
as castanhetas fritando a agulha
a agulha trincando castanhetas
mariachi flamenco dizzy dizzy e afins
as mãos escorregadias de
andré costumam
promover o batuque caótico
das peles friccionadas
escorregando por entre as pernas
intencionalmente semi-abertas
ela ri um gemidinho
de quem sabe as brincadeiras
favoritas dos amantes
serpenteando a língua ela inicia pela orelha
descendo pelas curvas da clavícula
da cauda do dragão
até o pau já duro
de fábio o disco dizzyfucking
moods a agulha
mambo.


PREVISÕES CLIMÁTICAS

a ampulheta pede pra virar
           
                 gota
                        d’
                           água                    
na contorção do sentido                                              até
                                  a inanição do senso crítico
                       dizpara
a vermelhidão das unhas em frangalhos
da decocção do pesadelo em passatempos
bem alocados
           embaixo
do tapete       o corpo do poema
estala
   mordaça
entre o silêncio e o resmungo
                              
                                  reações
                                             /
                                        vazamento
                           
                  ruminando    ruminando    ruminando
                             no corpo-muco

sonhos providenciais em ondas theta
fardados engravatados empalhados empalados
empanados em festejos
                                        nas dunas da ampulheta
o orgasmo do levante da caboclagem
a presidenta portando o penacho
utopias fermentando na uterotopia do Planalto
cheiro de alho&óleo fritando vampiros no sol
da Praça da República
alimentam a fome
de insurreição


NA CONTRAMÃO O BREQUE

osso do asfalto remendado
choveu a semana toda na cidade meu pai ligou dizendo
que o tempo tava exausto da rotina do maquinário
no buraco da rua que me encontrei
parada olhando a profundidade
interditada do estrago
toda semana um fosso novo
avenida projetada em cima de rio
esqueceram de avisar o rio
que continua o trajeto aterrado ou não
tem seus dias de cheia nos dias
cheios de rios
descendo a ladeira
com a sombrinha fraquinha praguejando um raio que cantou
parece que longe mas colado o suficiente do prédio pra iluminar
as vidraças espelhadas de um azul tenebroso

dias em débito tormenta toma os postes piscando como quem
não dorme faz uns dias e tem tic nos olhos o poste ticticzzzzZZ
aquele som de mariposa se debatendo na eletricidade perigando cair

tem gente que dentro de carro vira peça de carro e não perdoa
passa levantando as saias das poças
me eleva ao patamar de estátua pública
púdica tingida de chuva
impressa no algodão cru
resvalada em pixe
e anemia


CRESCENTE DO NILO

  1.  

aquele corpo
            queria
morasse cem anos e duas
janelas               vestido
da minha pele vulvar
antesAgoradepois
na maré alta
         pacífico e desapegado
porém come bem, dorme cansado, aproveita ao máximo meus espaços, me lava
de seus orvalhos

     II. 

aquele corpo (neste)
          queria morasse
caseiro habituado
porém sempre eriçado
com o ranger das portas
abrindo&fechando

nas noites de lua cheia
os pisos uivam violonados
pelos pés da cama
profetizando o dia em que
vai ruir.

III.

corte seco:

          o Verbo destroçado
em tempo
         de insurreição

duma janela à outra
os pés para fora
o corpo-bituca
                                    inbrasa
sussurra previsões nubladas

acende a luz apaga a luz acende a lua apaga a luz
acende a luz
apaga a lua
<acendeapaga>

ascende

(fumaça)

núltimo andar acabaram
os créditos no
timing as palavras
           evaporaram a noite
em percevejos

nunca foi muito bom em pontos
nunca foi bom nem muito nem
foi nunca pressupunha ter sido
um dia jamais poderia ser lido

                 anverso

eulíricos sem orgãos tingidos de cao
      no topo da torre
calculam a gravidade
       dos sino os
fluídos inundando
o crânio prensado
      em notas apagadas & toda duração
cheirando molhado
desque fincou as rótulas
no asfalto fervendo vermelho
uma lista imensíssima de nomes
de alvejantes em outdoors
em um trago
amores em doze vezes
sem juros
etiquetados com prazo de validade

não cria romance
descartável fisgo no instante
                                  do furo

na seção de interditos
                 dedos agudos
sirenes
a tessitura das baleias
o ensejo de abismar


NASCIÓ Y MURIÓ

foi pensadíssimo!?
cova aberta domingo
paraísopurgatórioinfernolimbo tudo
na mesma receita
                 de caixinha
$4,50? duas xícaras de farinha
30 minutos: nem esperou
des)(nformar
            queimou a língua!
custou palavrear

daí pra frente – ondié que foi?
dizernadacomnada de toda forma
dizertudocomtutututudo
        do prato de onde come
a língua sensibilizada fala
só sabe mesmo quem sentiu
crescer a afta
      nem o doce tocou
 (só de longe) o cheiro
subindo o falo torto
             pro lado esquerdo
investiu na cobertura
        pra esconder
             buraco
pra abrir fenda na língua
         é fácil
basta falar!
fala da mordida que pode dar
  devaneando a mordida não dada
       no canto da boca
canta a boca machucada
   do bolo que quebrantou


[ TRÊS PERGUNTAS ]

FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

LP | Gosto de pensar na poesia como sensibilidade ao instante e como performance cujo corpo é o verbo. A função da arte, para mim, é ser um ponto em desalinho no maquinário do sistema e isso inclui criar mecanismos de não-encaixe, de fissura e de avaria. Romper com a arte de prateleira é não permitir que ela seja capturada e replicada a ponto do esvaziamento de um objeto descartável, é se propor ao anti-consumo. Tenho vivido então todo ato-instante como potência poética e isso liberta os eu-líricos que me vestem. Chamo isso de poesia fumaça, quando o ambiente é criado e a poesia é súbita como nata. Tenho vivido momentos assim desde 2016, repentes de poesia improvisada que flertam com a música, como uma trova. Conheci muitos poetas que também jogam assim, muitos poetas não-assumidos, gente que brinca com a palavra sem-vergonha. Sinto que a poesia vive aí, eclodindo e desaparecendo no ar e que o que ganha o papel é mumificado para renascer no arrebatamento dos artistas mortos revivificados. Estou pra encontrar o que me traga mais paixão do que quando sinto o corpo da palavra dançando com a vibração e se misturando com a ordinariedade do dia. Tenho encontrado muitas amizades irmãs nessa brincadeira e muitos devires minerais, vegetais, animais e astrais que eu celebro com o amor mais puro que é a capacidade de dar vida e observar a impermanência de sua forma.

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

LP | Meu grande amor é Gaston Bachelard, filósofo e poeta, que em seu trabalho noturno (como ele chamava seus estudos sobre a literatura) escreveu sobre a imaginação, as poéticas dos elementos e sobre o instante. Conheci ele num dia em que decidi andar pela biblioteca sem destino, deixando os livros me chamarem. Gosto muito porque o que Bachê faz é nos mostrar como a poesia é primordial e alquimista a partir da análise de diversos escritores, principalmente os simbolistas. Conheci Paul Valéry através de Bachelard. A psicanálise, principalmente Lacan, também tem me inspirado muito a escrita com os estudos da linguagem e do desejo.
Duas poetas que sempre retornam são Ana Cristina César e Hilda Hilst. Às vezes escuto a Ana Cristina declamando quando leio os poemas dela, vale escutar o sotaque carioca no YouTube. Me tocam as temáticas e a estética, do tipo de escrita que repercute imediatamente em mim. Me identifico com alguns poemas como se pudesse vestir o corpo deles e porque me encontram no instante em que preciso. Clarice Lispector também tem esse efeito, principalmente Um Sopro de Vida e Água-Viva.
Agora, fazia alguns meses que não sentia a pulsão procriativa dentro da literatura até que tive um encontro com o livro Bruxaria Apocalíptica, de Peter Grey, em que ele nos incita a poesia como feitiço e como insurgência dos marginalizados, como o rugir da selva no coração da cidade. Esse foi um livro que mudou completamente o rumo da minha escrita, principalmente porque não me sentia numa poesia social como conhecia, apesar de sentir um impulso de gritar meu descontentamento.
Dentre as pessoas que conheci por aí destaco os artistas visuais e poetas Thadeu Dias e Virginia di Lauro, que tem sido uma fonte de inspiração diária pela criatividade, sensibilidade e verdade de suas criações, além de Laís Efstathiadis, de descendência grega-espanhola, poeta daninha do Bixiga em São Paulo e que consegue misturar raiva, tesão e lirismo duma forma que só conheci na poesia dela.

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

LP | Eu vejo duas movimentações mais delineadas, que é a de uma poesia periférica, essencialmente insurgente e social, que se manifesta através da escrita em redes sociais e zines, mas que realmente ganha um corpo característico nos Slams. Existe um ritmo de composição dos versos e de declamação muito próprio do hip-hop e que está presente como característica dos poetas que competem no Slam, como a Luiza Romão, por exemplo. São poesias com muitos jogos de palavras e que te incitam a refletir sobre os corpos marginalizados e violentados na sociedade brasileira. Eu observo também uma proliferação que eu tenho chamado de “poesia gratiluz”, poemas-oração, poemas-feitiço, poemas auto-ajuda, que tem como característica elevar a autoestima de leitores e escritores ou mesmo trazer reflexões sobre espiritualidade e bem-viver. Esses caminhos poéticos tem sido muito replicados e trazem a sensação de que a poesia está em você e que todos temos potencial para poetizar. Sinto a poesia mais democrática, menos rebuscada, mais verdadeira, afinal, ninguém pode ditar o que é um verso e o que não é ou se as palavras estão ortodoxamente corretas, ela se forma e está ali, com ou sem título, é uma possibilidade dos corpos expressarem seus sentidos como sabem.
Ao mesmo tempo, tenho a sensação de que temos lido pouca literatura para além do que as que nos chegam às mãos (falo isso como juventude). Conhecemos Fernando Pessoa, Drummond, Sérgio Vaz, mas não ultrapassamos os cânones, best-sellers e nossas amizades poetas. Como resultado, a forma-poema estagna-se no que é possível postar em redes e as imagens (e o próprio verso) parecem se repetir em poetas diferentes.
Além disso, acho que a crise da informação que estamos vivendo é um fator para o qual precisamos olhar se quisermos ser lidos. Estamos produzindo muito e massificadamente, o que é maravilhoso, mas também excedente. Muito ou quase tudo se perde na montanha de produções, estamos num momento em que as possibilidades de exposição são inúmeras, mas há tantos autores e com tanta qualidade, tanto a ser lido o tempo inteiro, que há uma dificuldade em criar afetividade com as obras por mais que uma leitura, isso nos convoca a pensar na relação entre a perenidade do registro e na efemeridade do contato.
Em 2017, poetas anônimos se reuniram num documento online para um happening poético que acabou se chamando “Morte à Autoria” em que, por 72 horas, diversos poetas interviram e escreveram o mesmo mural. Acho que precisamos mais disso, poesia coletiva, transformar o modo como concebemos nossos processos criativos, encontrar outros caminhos de publicação e manifestação, desengessar o ato de escrever. Sexo entre eu-líricos, existe caminho mais fecundo para evolução do gênero poesia?


[ FOLHA DE VIDA ]

Laís Paiva (São Paulo, 1994). Poeta. Formada em Rádio e TV pela UNESP, transita entre as linguagens da literatura, da performance e das artes visuais. De sua arqueologia poética destaca-se Miocárdio, série de gemidos do coração e da vagina, iniciados em 2011 no tumblr. Em 2017, idealizou e integrou o acontecimento Morte À Autoria, happening online de poesia coletiva aberta à criação de poetas anônimos em um documento compartilhado. Publicou as zines Como Cultuar Uma Deusa, Até o inverno virar a esquina e 4 passos até o elevador e algumas crônicas verde-araucária. Atualmente, está finalizando o livro-objeto Densidade Reativa, primeiro da escritora. Outros escritos podem ser conferidos na página no Medium e no Instagram como @serpenser.


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Anna Höch (Alemanha, 1889-1978)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 128 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019




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