[ DEZ POEMAS ]
[O
HORROR É VOCÊ DIANTE DAS COISAS]
o horror é você diante das coisas
ele acordou beijando a mulher
ao seu lado – ontem completaram dez anos de casamento –
deu três beijinhos na testa
de cada um dos três filhos
como faz todos os dias
assistiu o telejornal da manhã
enquanto preparava cuscuz com manteiga e ovo
“cinco mil pessoas foram assassinadas
no ceará em dois mil e dezessete”, em sua conta rápida, de cabeça, encontrou a média
de dezessete mortos por dia:
“é uma guerra”, pensou
terminou o café e esperou todos
os gols da rodada
de estaduais do final de semana
para sair de casa
na altura da esquina percebeu
ter esquecido um texto
de baudelaire sobre a modernidade
– numa péssima tradução-
não saber francês era uma de
suas mágoas e não aprendeu
por conta do tempo que os filhos
despendiam
no íntimo sentia uma raiva dos
filhos
mas os amava com um amor profundo
voltou para casa, pegou o texto
e partiu novamente
não conseguia esperar no trânsito
parado – graças a ansiedade –
sem ler esse texto – sempre
o mesmo – ou qualquer poema de rimbaud, ou lautremont, ou nietzche, quase sempre
em traduções terríveis – o que aumentava sua mágoa –
então abria páginas de travestis
garotas de programa
e deliciava-se com o lirismo
dos comentários pornográficos
em cada uma das fotos – não
havia tradução possível para o “brasileiro pornográfico”, pensava saciando em vingança
suas
carências intelectuais e
de vez em quando encontrava-se
com algumas delas
– sempre pelo horário do almoço
–
e durante todo o programa apenas
as observava nuas
e, ao final, as presenteava
com algum livro de poesia
e esses sempre em uma ótima
tradução – a generosidade
o acompanhara desde a infância
–
todas as putas que o conhecerem
se apaixonaram – até hoje –
e depois vinha a culpa, vinham
os pensamentos na mulher
e nos filhos e era tudo tão
verdadeiro como era o amor pelas putas mas a catequese não ensinou esse amor a escola
não ensinou esse amor a universidade não ensinou esse amor
a universidade não ensinou nada
além de alguns bordões
que em nada mudam o curso da
civilização então
todas as quintas ele afogava
a culpa em cachaça – tinha nascido para a boemia assim como tinha nascido para o
amor
ou para alguma espécime de amor
se reconhecia um bicho, um animal,
um mamífero capaz de amar;
na sua mesa guardanapos e guardanapos
de mulheres apaixonadas, mas, bêbado, este só pensava no colo da sua mulher, no
sorriso dos filhos, na forma que os olhos de uma travesti brilham quando são cumprimentadas
em público e chamadas pelos nomes que elas escolheram
e pensava no fracasso de marat
e sua revolução francesa
e no fracasso de jefferson e
sua revolução democrática
e no fracasso de lenin e sua
revolução proletária no país
em que hoje as crianças se aquecem
em esgoto – mas vai sediar copa – que ele ia assistir e vibrar e chorar
então se sentia vazio, oco como
um bambu da china agrária
que é sempre mais oco que um
bambu encontrado em qualquer outro lugar, e se percebia de frente para si mesmo
e sabia
que não há nada que enfie no
esquecimento, porque o vazio é próprio aos elefantes e sua memória imensa como é
a memória dos poetas mas ele não era poeta, era um burocrata,
tinha tudo para ser poeta, mas
teve medo como os homens
costumam ter, teve medo de explodir
como tim maia explodiu,
teve medo de ser encontrado
inchado como elis regina foi encontrada em seu apartamento, teve medo de assassinar
a própria esposa como fez burroghs teve medo de enlouquecer
como kerouac, como artaud, como
sade, como sua mãe
e esse medo ele ainda tem e
é por isso que sai para passear com os cachorros pela madrugada porque assim esquece
os cachorros latindo em seus bolsos, esquece dos sonhos que largou na juventude,
esquece os abusos que sofreu do pai, esquece a infidelidade à mulher amada, esquece
que sua família inteira – mulher e três filhos – faleceu num acidente de carro ontem
esquece o horror que é estar diante das coisas como elas são e não como deveriam
ser.
CANÇÃO DA SERPENTE
você se lembra de quando sentiu
teu sexo pela primeira vez?
você se lembra da sensação?
foi no banho, não foi?
não?
foi embaixo das tuas cobertas
numa manhã de domingo?
não importa, criança
só peço que relembre o prazer
desse dia
vim para contar que aquela é
a sensação que tarsila sentia
quando pintava seus quadros
você sabia?
foi com aquele ardidinho que
oswald escreveu seu manifesto
e aquele medo do desconhecido
que vez hilda parar no mato
quando waly salomão leu montaigne
pela primeria vez
uma cobra coral picou seu tornozelo
deixando o veneno
do primeiro poema brasilis em
seu sangue
depois disso a bahia nunca mais
foi a mesma.
uma criança que descobre o orgasmo
é um um vilarejo em chamas
é um acasalamento de cobras
é um gole de vinho cortando
a noite escura
não sei se te contaram
mas é isso que os poetas tanto
buscam
essa memória da infância
esse passado perdido
e por aí se arrasta toda a história
da literatura
você já assistiu o acasalamento
entre cobras?
muito provavelmente não e o
retorno a infância
é tão difícil quanto porque
a partir da descoberta
orgásmica se inicia a contagem
da vida e a partir de então
a civilização trata de vestir
com panos pretos – como são o dos padres – as tuas retinas de contemplação
e é difícil a retomada tendo
consciência do haiti
é difícil a retomada tendo consciência
do iraque e afeganistão
é difícil a retomada após assistir
ao vivo o massacre em columbine ou na candelária
é difícil a retomada assistindo
a porra do programa da sônia abrão
é difícil a retomada vendo o
exército revistando lancheirinhas
de crianças pretas na favela
da rocinha
é difícil a retomada quando
tuas mãos estão sujas de sangue
(esse é o momento em que olha
as tuas mãos)
e não há por perto uma bica
sequer
VOCÊ É UMA NEGOCIAÇÃO
COM DEUS
eu sinto teus olhos brilhando
quando os meus se fecham
venho exercitando minha solidão
enquanto você aparece como uma
onça pintada
arranhando minhas costas e dizendo
“agora está tudo bem”
mesmo não estando
eu quero ser teu beato e teu
devasso
tudo é sagrado e você sabe
quero o meu corpo de quatro
quero o teu corpo de quatro
sua boca mordendo a nossa almofada
de nuvens
quero ser teu boato e tua certeza
nossas mãos entrelaçadas
você me trocando por um piloto
da fórmula 1
no dia do nosso casamento
nossos esqueletos enterrados
em alguma posição tântrica
minha boca sendo lambida por
alguma árvore
eu quero o cheiro das tuas axilas
enquanto você se masturba
teu ventre contorcido pela música
das esferas
gauguin beijando a nunca de
van gogh pela última vez.
PRA QUE EU LEMBRE DE NÃO ESQUECER
conheci o inferno da cocaína
apelidado de pânico
e o desemprego da minha mãe
tornei-me amigo das taquicardias
e dos ventos.
conheci poetas babosos.
gaivotas do céu azulado.
atirei em todos.
assim me tornei amigo dos pássaros.
conheci o amor e a fúria dos
anjos ciumentos
conheci a compaixão e seus desejos
espúrios
como a vontade de salvar o mundo
de nós mesmos.
conheci prostitutas que me ensinaram
mais que a universidade
conheci a solidão das prostitutas
e seus olhinhos margaridas negras de amizade
conheci seus pais suas mães
e fingi ser seu namorado para conservar
a moral que bombardeou hiroshima
fiz por amor.
conheci mulheres que me revelaram
verdades universais
com os dedinhos dos pés
conheci as estradas e suas flores
azuis
conheci a vertigem. conheci
a dádiva.
conheci a maldade pródiga da
indiferença.
conheci crianças que nunca sonharam
conheci menores infratores leitores
de nietzsche
com quatro tentativas de suicídio
eu evitei a quinta
conheci covardes e queria não
ter conhecido
desses não extendo nada mais
que esses versos.
conheci mestres & mestras
da vida cotidiana
conheci quase afogamentos e
quase overdoses
conheci leitores gaveta e leitores
incendiários
tenho simpatia pelos últimos
conheci figuras detestáveis
e simultaneamente admiráveis
jamais poupei palmas.
minhas preferências pessoais
nada interferem no sucesso alheio
conheci o primeiro e o último
conheci a venerada e a desprezada
a estéril e a que tem muitos
filhos
conheci omama e yoasi.
e a vida ainda nem começou
a vida
ainda nem começou.
LEIA APÓS O ORGASMO,
DEITADO NA CACHOEIRA COM AS PERNAS APONTADAS PARA O SOL
há 100 anos atrás
um rio corria as veias do teu
antebraço
o pôr do sol é belo enquanto
se despede e
assim mesmo é o meu amor, minha
musa
eu estava, vi e assino embaixo
a beleza dos primeiros mosquitos
desse planeta
eles eram amarelos-ouro e levavam
patinhas como pantufas negras de camurça
eu estava lá quando capturaram
a princesa da nigéria
e a venderam como escrava na
bahia
de todos os santos
quando orixás travessos tocam
seus tambores
na madrugada da chapada dos
veadeiros
milhares e milhares de casais
adolescentes
do litoral brasileiro transam
o bailado de seus corpos
corados e quentes após matar
aulas
e passar o dia inteiro no sol
ontem me ofereceram um projeto
de reforma universitária
mas eu sinceramente não sei
se reformas bastam
porque as universidades hoje
transformaram-se em conventos
e da última vez que reformaram
conventos surgiram
as igrejas neopentecostais
sim, eu ando capengando de amor
em amor
de flor em flor com a minha
comitiva
de passarinhos em fase de reintegração
às matas originárias então,
por favor,
não nos peçam coerência
pois a contradição se tornou
a moeda do dia.
EGOÍSMO NATURAL
DAS FLORES
ontem, enquanto escrevia uma
carta para você queimaram seis crianças numa creche em minas gerais,
enquanto eu almoçava um pai
vendia um filho para um estuprador numa cadeia de sergipe
enquanto eu respondia emails
do escritório pela tarde
trinta cabeças de índios yanomamis
foram arrancas de seu tronco
e com eles se foram seus gaviões
totêmicos
enquanto você e sua namorada
discutiam sobre o filme
mães de santo apanhavam e eram
obrigadas a quebrar suas guias
e destruírem seu fundamentos
por traficantes crentes
no subúrbio do rio de janeiro
xibé, o índio cubeu, contava-me
histórias de entidades habitantes
das nuvens amazônicas enquanto
dona iracy morria na fila
do hospital público de santa
efigênia com seu rosário na mão.
amanhã, após despertar, colherei
frutas silvestres no parque
e o mundo desabará sobre os
meus pés.
algo me diz que as amoras continuarão
docinhas.
DOIS MIL ANOS
ontem eu disse
eu preciso escrever um poema
para essa mulher
porque quando se fecham os olhos
no chuveiro
imaginando outros olhos e daí
explodem caleidoscópios lisérgicos é preciso escrever um poema
ontem eu vi o laranja do seu
vestido
incendiando uma casa da minha
vida
uma casa da minha rua
e o barulho das janelas trincando
tinha a sinfonia de um forró
tocado por um violino
um forró que ainda não dançamos
ontem eu senti vultos em minha
caminhada
e eles me perguntavam a todo
tempo quem é você
e de quem era aquele cheiro
de chuva no meio da seca
de quem era aquele sorriso que
fez curimba no meu peito
como grilos perguntam os nomes
das estrelas na escuridão da noite
ontem eu entendi & apoiei
os romanos expulsando cristo de roma
porque antesdeontem queimaram
o meu terreiro e quebraram minhas guias e há 2 mil anos
quando gritaram “esse não é
o meu reino” uma bomba atômica varreu tudo e eu pensei:
“caralho o que eles vão fazer
com o reino que não é o deles”
e num piscar de 2000 mil anos
eles produziram uma armadilha
chamada ciência e levantaram
fábricas
e soterraram deuses
e fumaram florestas inteiras
com suas chaminés
e quebraram
esculturas maravilhosas
e o que me garante que eles
não vão levar você de mim?
VIDÊNCIA
eu vejo um futuro de ministérios
esvoaçados
eu posso sentir o gosto do desregramento
dos sentidos
eu posso sentir suas mãos depilando
o meu corpo para sentir
o meu gosto mais e mais e mais
eu posso ver um líder pobre
e populista estampando as paredes do centro da cidade
eu posso ver comboios de percussão
e rapé
saindo dos quilombos e expulsando
alunos medíocres das universidades
eu posso ver a mão de vó procópia
no meu antebraço
eu posso me ver pingando mel
na boca de nossas filhas
porque ter sonhos doces nos
é um direito universal
eu posso ver nossas flores guerreando
por pernas bonitas e caminhadas
nos bosques
eu posso ver a falência dos
meus órgãos experimentais e o fracasso das instituições
eu posso tudo porque tudo me
é permitido
eu posso prever a ressurreição
de bach e seu espetáculo de banquetes coletivos no meio da cidade
eu posso ver maiakovski sendo
devorado pelas larvas stalinistas
eu posso ver bobos meninos brincando
de stalinismos
como quem brinca com bonecas
e carrinhos
eu posso ver orgias entre bichos
e homens em exposições patrocinadas
e posso ver o arrependimento
dos patrocinadores
eu posso ver mecenas abrigando
meu exílio em palácios vermelhos
eu posso ver a fúria da fidelidade
nas portas dos puteiros
eu posso ver eleições diretas
para o nada
eu posso ver presidiários em
rituais de ayahuasca e suas testas tatuadas
eu posso ver cada beijo que
dei na minha vida
eu posso lembrar do gosto da
minha primeira hóstia e da culpa dela também
eu posso tudo porque nos foi
dado o direito de duvidar de tudo
eu posso rever a minha alegria
quando você se importou em mudar seus passos
e me cumprimentar
eu posso ver minha dor quando
você resolveu ir embora e não me disse nada
aliás você disse
mas eu posso ver o momento da
minha vida em que decidi esquecer
o que deve ser esquecido
eu posso ver as crianças brincando
embaixo da minha cama
eu posso ouvir tudo isso
porque nos é dado o direito
de tudo
eu posso ver meus amigos em
putarias ritualísticas no parque da cidade
e eu posso ver o teu primeiro
contato com a pornografia
eu posso ver teu gado voando
com o furacão irma
eu posso ver a tua vontade de
salvar o mundo
destruindo pessoas
destruindo amigos
destruindo o segundo
eu posso ver o desespero do
tempo
e eu posso ver o desespero de
um político corrupto
que é o mesmo desespero de um
político honesto
porque é um desespero que não
teve o direito de nascer
eu posso ver seu filtro moral
condenando os tropeços dos outros
os outros sempre
o outro e os outros
os nossos inimigos profundos.
NOSSOS CORPOS
SÃO MONUMENTOS EM DECOMPOSIÇÃO
O omelete que nós fizemos no Domingo passado
tá até agora na geladeira. Eu vou comendo aos pouquinhos, pra sentir o gosto dela
o máximo de tempo possível. As bordas tão começando a bolorar, mas eu não me importo.
Já comi coisa pior quando as vacas estavam magras. Na Venezuela eu comi um frango
que tinha gosto de peixe, depois de esperar 7 horas na fila. E tô vivo, não tô?
O importante é sentir o gosto dela.
Acho que a literatura me levou mais um amor.
Ontem eu passei a noite inteira chorando e me perguntando porque diabos eu não consigo
ser feliz e ter uma família e lutar por um apartamento e um carro pra levar meus
filhos pro passeio aos sábados. Faz um tempo que resolvi que era hora de parar de
culpar meu pai pelo meu desespero. Ele partiu com minha torcida nas peladas da escola,
com o arranhar da barba e com os telefonemas no aniversário? Partiu. Mas e aí? Ele
não me batia. Nunca encostou um dedo em mim. Ele deve ter os motivos dele pra ter
ido embora.
Isso tem a ver com Baudelaire e aquela obsessão
dele por tudo que está em decomposição. Uma flor em decomposição é uma das paradas
mais poéticas que eu já vi na vida. Aquela beleza & aquele perfume virando podridão
e larvas. Morrendo e trazendo vida. Porra. Isso é lindo demais. É difícil, sabe.
Ninguém quer abandonar as flores, mas de vez em quando – ou quase sempre – é importante
estar do lado das larvas.
Eu resolvi que vou pra Amazônia. Assim que
terminar as pendências do meu emprego vou preparar minhas malas e me meter numa
missão antropológica dessas. Meu currículo é bom, eles vão pensar que vou ajudar.
Foda-se. Eu vou atrás do mais além que levou Artaud pro hospício. Desde a última
vez no Candomblé ando sonhando com cobras. Devo encontrar uma Jibóia nessa viagem
e é aí que minha vida vai mudar. Levarei mapas, livros, patuás de exu e xango, um
punhal que meu vô me deu quando eu era moleque e quase me tomou quando eu rasguei
a barriga do Carlinhos.
Amanhã mesmo começo a despedir-me dos amigos
e familiares. Vou excluir todas as redes sociais e jogar meu celular no rio na primeira
balsa rumo ao destino final, porque se ela me ligar eu volto e ainda trago um sapato
de pele de jiboia pra ela.
VIOLETA
a noite estrelada do pintor
holandês
despencando no meio da tarde
de terça
tua face recebendo a água d’uma
cachoeira
de 30m de altura
tua amada e suas pernas quentes
& abertas
no lugar dessa cachoeira
– e sua face no mesmo lugar
–
tua corrida vencida, tua glória,
teu joelho arregaçado na infância, a arnica sagrada
e o alívio
algo genial que pensaste ontem
no banho
mas agora esqueceu
andré breton emocionado na Lapa
seus filhos sendo presos pulando
o carnaval
fora de época no século passado
tua primeira namorada e suas
coxas
dançando coco
teu ciúme
sonhos de babás adolescentes
sob o efeito de sementes lisérgicas
dançando ao fundo
um menino cabeçudo & órfão
segurado pelo braço
seus pais mortos ventando o
capim
o horizonte violeta.
[ TRÊS PERGUNTAS ]
FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do
Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?
IV
| Engraçado. De certa forma
sou um homem tríplice. Fui criado por três mulheres, possuo três grandes amores
na vida, três entidades me acompanham pelas noites enquanto durmo e outras três
me acompanham em meu estado de vigília. Roberto Piva, Glauber Rocha e Oswald de
Andrade andam me visitando nos sonhos com seus conselhos irresponsáveis – que eu
sigo. A tríade surrealista se manifesta no meu cotidiano desde o momento em que
acordo. Levanto, bato três palmas para meu Exu, faço minhas orações ao Sol, nosso
Astro-Rei, realizo minhas leituras e saio para o dia como quem vai para o Selva.
Me imagino como um tupinambá indo para a caça. Me sinto uma criança sonhando com
a vida adulta. Desde que segui o conselho de um amigo e ando lendo menos Pasolini
e mais Oswald, me sinto um cara mais feliz. Paso, torno súbito com a política dos
3 pês: Pasolini, Panqueca e Paquera. Enfim. Trabalho com revitalização urbana por
meio de festas, atividades culturais, ecológicas e recuperação de moradores de rua.
É uma loucura. Minha vida tem se tornado uma aventura. Uma novela mexicana cheia
de apaixonamentos e dias ensolarados: “Meu coração e o sol são feitos da mesma substância”.
FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente
até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias
referir algumas afinidades tuas na criação artística?
IV
| Brinco que sou um discípulo
espiritual de Roberto Piva. Sua absorção do surrealismo francês, ao meu ver, é a
plena realização antropofágica sonhada por Oswald. O cara comeu todos aqueles gringos
sem nem pedir permissão, colocou na panela com dendê, vatapá, ostras e adolescentes
e fez questão de raspar o tacho. Seu compromisso Conservador- Nacionalista-Anárquico
(temos aqui outra tríade?) é uma benção de contradições maravilhosas. Como Câmara
Cascudo e Mishima, foi progressista em seus pensamentos “conservadores”. A verdade
é que pelo Piva conheci minhas outras influências. A começar por Murilo Mendes. Esse cara mudou minha
vida. Até hoje busco a minha Jandira. Tenho um poema cujo título é um verso de Mendes:
“Eu te ofereço minha aridez e o meu pecado”. Das leituras de Piva cheguei em Willer,
que conheci pessoalmente. Uma generosidade absurda. Anda sempre acompanhado por
um Caboclo. Acho que ainda não sabe. Ainda vou apresentá-lo ao Davi Kopenawa, com
quem conversei sobre Poesia e Xamanismo. O brasileiro, o latino-americano, o terceiro
mundista tem que ser isso: um cavalo de Breton, de Kopenawa, Dalí, Cícero Dias,
Gonzalo Arango, Waly Salomão. Etc., etc, etc. Tudo ao mesmo tempo. Uma zona. Glauber
Rocha com batendo uma olhando pra lua. Quizumba. Pega-pra-capá. Mais entusiasmo
que esperança. Se não a gente não funciona. Eu quero é a mistura. Hoje fiquei imaginando
se o Jim Morrison tivesse lido Oswald de Andrade pegando o Sol em Moreré. Vocês
já imaginaram algo assim?
FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos
a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade
da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade
explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este
respeito?
IV
| Há um movimento em curso
no país. Afirmo num poema de 2017. Já mudei de ideia. Com tristeza. Parece que nosso
teto está cada vez mais baixo. Pase lo que
pase, temos movimentações literárias de muita qualidade a todo vapor. Só precisamos
ter cuidado com os panfletos. Os poetas jovens, guiados por hermosos desejos de solidariedade, acabam
perdendo sua lírica na catequese e moralismo das militâncias. “Cinza é toda teoria,
mas verde é a árvore da vida”. Poeta tem que aprender a correr risco, a sujar as
mãos. Poeta brasileiro tem que fazer três vezes mais. Nem duas, nem quatro. Três
é o número ideal. É o número do burro no Jogo do Bicho, esse resquício maravilhoso
do folclore urbano. Esses dias li o Manifesto Regionalista do Freyre e me arrepiei
todo. Porra. Eu gosto das coisas sendo ditas. Tenho tesão. As pessoas não andam
dizendo. Fofocam. Dizer é outra coisa. Dizer parte da escuta. Poeta no Brasil tem
que saber ouvir as estrelas. É aquilo que o Cascudo fazia buscando o encantamento
do passado: escutando sobre “(...) a convivência dos humildes, sábios, analfabetos,
sabedores dos segredos do Mar das Estrelas, dos morros silenciosos. Assombrações.
Mistérios (...)”. Estamos longe disso. Sou pessimista com essa geração. E me sinto
muito sozinho por isso. Afago meu coração com meus amores e com os meus amigos da rua. Verdadeiros xamãs
urbanos. Também escrevo manifestos em busca de interlocutores. O Manifesto Vìbora
e o Manifesto Curupira são meus preferidos. Ambos publicados pelo Jornal Tranca Rua, aqui de Brasília.
[FOLHA DE VIDA ]
Ian Viana (Brasília, 1995). Ex-militante, ex-cafajeste, ex-búfalo galopante dos sonhos. Discípulo espiritual de Roberto Piva – por enquanto. Instiga-se pelo que seria (e o que pode ser) o surrealismo brasileiro queimando junto a labareda de nossas tradições culturais. Crente-fiel-e-leal a América Latina & seu Folclore cotidiano. Contato: ian.viana.s.r@gmail.com.
*****
EDIÇÃO
COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista
convidada: Anna Höch (Alemanha, 1889-1978)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 128 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
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