[ DEZ POEMAS ]
MISERERE
A
entonação das vozes todas elas cantam
teu
corpo imobilizado. Na outra noite há
luz,
aqui
não. A vida converte-se em pureza
como
uma sombra vasta, o choro dos
humildes
faz tremer toda a crueldade.
Despedaçados
através do caminho
rastejamos
até o último rio porém logo
afogamos
todas as bestas –
só
o reflexo do nosso berço
na
água. É tão vil alcançar o tempo
desse
nascimento, suportar a hora
para
a qual viemos de punhos cerrados,
vigiar
as marés e adormecer o sono
infantil,
cair enormemente, dar a face
o
consolo sempre inexistente de ainda
estar
aqui e consentir porque é real isto
agora
o momento da Terra e todos
estes
rostos ainda são reais. Povoamos
as ilhas de miríades, adiamos todos os
as ilhas de miríades, adiamos todos os
adeuses,
louvamos e blasfemamos
sempre
em nome do inexorável mas
não
há marca no mundo de nenhum
triunfo
e nem mesmo toda a ira impedirá
que
retornemos ao pó, famintos,
como
crianças em novelos de
fogo,
ajoelhadas.
[SUPORTAR
O INCONSOLÁVEL]
Suportar
o inconsolável, as premonições,
carregar
no colo os fragmentos de ossos
incandescentes,
testemunhar a grande
queda do homem sólido, avançamos
rumo ao desaparecimento?
O que resta é ilegível. Cada ferida basta,
nesta noite é tão suficientemente o que
peço. Doí esta água do rio, as pedras
queda do homem sólido, avançamos
rumo ao desaparecimento?
O que resta é ilegível. Cada ferida basta,
nesta noite é tão suficientemente o que
peço. Doí esta água do rio, as pedras
de
vento nas margens das estrelas, o
reflexo
de todas as cores ainda vivas
ao
redor do fogo [luz de âncora trêmula
e
cruel, a imagem do corpo sacrificado,
a
voz dos invisíveis ainda não ressuscitados
junto
aos barcos na névoa – a canção
de
flauta não lamenta todo o esquecimento.
É
contra o fim que se compartilha o exílio,
durar
calorosamente no centro das aflições,
aproximar-se
de um amor tão obscuro
quanto
frágil, arder nas têmporas lentamente
até
que a manhã seja enorme e as velas
estejam finalmente apagadas.
estejam finalmente apagadas.
[LÁ
ONDE AS ASAS SÃO INCANSÁVEIS]
Lá
onde as asas são incansáveis
junto
a todos os holocaustos tão frio
e
tão duro quanto os gestos que nunca
bastaram,
muralhas não aprendemos
a
construir tudo leva a crer nos corpos
desmoronando
eu não consigo escalar
não
consigo estremecer ninguém
constrói
uma fortaleza sob escombros
e
eu vi a tua casa de mármore eu vi os
anjos
ao redor do fogo e todos aqueles
que
testemunharam a fraqueza. CADA
CRIATURA
ANIQUILADA NÃO BUSCA
NENHUMA
REDENÇÃO NA PALAVRA,
estar
aqui perante o teu rosto em brasa
é
o meu álibi, sabemos,
tu
e eu, como são intocáveis tudo aquilo
que
terrivelmente se aproxima de nós,
ajuda-me
a dizer o invisível esta é a hora
do
fim do silêncio eu estou sem fôlego e
nenhuma
criança nos dá as mãos sem
temer
se despendurar do espaço ainda
sim
é real esta comunhão de segredos
extremidade
em ser atingido nunca
saber-se
nascido mas sempre em chamas.
Quem
cegou-te diante o túmulo não disse
adeus,
lembro-me de pensar é tão duro
unir
nas próprias mãos silêncio e fúria
inesperar
que o fracasso da língua seja
apenas
o que nos separa do mistério,
o
verbo dentro do canto não se quebra
algo
grandioso carrega o teu corpo
pela
amplidão do espaço, não é somente
a
carne um núcleo de som violentado,
tudo
o que cresce em tremor desaba e
ressuscita
fortemente para a morte, sob
o
risco de ser esmagado pelo invisível
consentimos
no padecimento e com brasa
e
sal, alimentamos todas as nossas memórias,
na
tua sombra cresce e afundam-se
navios,
há velas acesas na direção da noite,
mares
que nos distanciam e finalmente
nos
tornam indistinguíveis – abandonamos
tudo,
escrevemos salmos à espera do
fim do mundo, algumas palavras sempre
restam inacessíveis –
fim do mundo, algumas palavras sempre
restam inacessíveis –
exceto
entre nós.
[NADA
NOS TORNA SIMPLES O BASTANTE]
Nada
nos torna simples o bastante
para
o amor. Tão dura é a distância
entre a vela e o candeeiro, esse cheiro
entre a vela e o candeeiro, esse cheiro
do
incomunicável nos assombrando,
nunca
a hora certa de escrever uma
carta,
tudo resta ainda por nascer.
Todas
as mil e uma noites partem-se
guardadas,
as minhas mãos tecem
infrutíferas
para tocar aquilo que fomos.
Uma
mulher na alvorada cresce sobre
mim,
dá-me um nome. O pacto
que
fizemos conheceu a verdade
e
todos os nossos pecados, o mundo
também
nos perdoou embora os sinais
que
deixamos uma para outra tenham
sido
lidos em outra língua. Nada nos torna
simples
o bastante para a morte, tantos sóis
nos
separam mas ainda crescemos, etéreas,
fusionadas,
para dizer a palavra impossível,
para
recriar a fuga sempre adiada.
[OS
RAIOS DE LUZ E A TERRA AVERMELHADA]
Os
raios de luz e a terra avermelhada
se
recusam a perceber as flores
que
crescem por fora
da
casa,
o
temporal é imenso, cada criatura feroz
devora
os pássaros que restam feridos.
Tecer
e purificar –
bater
com a noite dentro do corte
e
sentir extinguir o anseio voraz
de
confundir-se com o
excesso
das ondas,
cavar
em silêncio esta cegueira
e
proteger os rebanhos contra a
arrebentação
da água, há sempre
algo
por iluminar dentro do relâmpago,
derramar
lágrimas ou colher sombras
celestes
nos pergaminhos antigos,
demolir
as estradas e finalmente
estar
como que consumido pelo
imprevisível.
O
incêndio te cresce no tremor e torna
toda
casa inabitável –
aquela
que atravessa o nevoeiro
sepulta
teus mortos cobre-os com areia,
abandona
toda margem e cobre-os
sem
recusa, vencida docemente pelos
sinais
de fogo toda a vida oculta dentro
de
seu corpo sacrificado a penetrar
a
última estrela e de repente silêncio
mais
uma vez as tuas mãos e o rio
se
fundem e nada está intacto,
toda
guerra necessita de um sol
que
se destina à queda, teu olho
de
Mulher tu sentes
tu
sentes a mim como
o
filho sente o sangue daquele
para
quem as crateras são grandes
demais,
teu voo de peixe branco
não
me consola – estou em prantos,
é
impossível impedir o curso
dos
trovões: luz dispersa,
ESPASMOS,
Tu-Absoluto,
o
magma e os ossos fraturados,
deitamo-nos
na verdade e
a
verdade nos despedaçou -
o
peso de um deus não suporta
morar
no Nada.
[QUEM
TE OFERECEU COM AS MÃOS]
Quem
te ofereceu com as mãos
o dom da morte no monte moriá?
Não há senão impactos,
o dom da morte no monte moriá?
Não há senão impactos,
ama
violentamente o naufrágio,
quando
os deuses todos gritam Mãe
sangue
e primavera não se rompem.
Todas as torres e pedras nos templos
construídas através dos teus filhos
esmagados como que diante de mil sóis.
O corpo abandonado em cinzas,
esquecido com safiras e corais imensos,
ali na colina rochosa não há nada
de visível apenas a voz dos desfalecidos
e incabíveis: é precioso teu rosto
Todas as torres e pedras nos templos
construídas através dos teus filhos
esmagados como que diante de mil sóis.
O corpo abandonado em cinzas,
esquecido com safiras e corais imensos,
ali na colina rochosa não há nada
de visível apenas a voz dos desfalecidos
e incabíveis: é precioso teu rosto
luminoso
e aceso dentro do meu
todo o horror e tu e eu, você para mim
de ti para dentro da noite flutuar sonolenta
e no escuro tocar teu nome.
todo o horror e tu e eu, você para mim
de ti para dentro da noite flutuar sonolenta
e no escuro tocar teu nome.
[A
VERDADE EM ESTAR CEGO]
A
verdade em estar cego é
poder
tocar as estrelas e sabê-las
eternas,
em miséria e paixão, colher
nos
lábios o enigma de um centauro
ser
cativeiro do imenso e desmoronar
para
dentro do escuro, oscilar junto
aos
veleiros, estar descalço sobre
as
ondas: ferir-se como quem
desdenha
de toda mácula,
tão
impuro e inocente, cravar
os
pés no chão, receber do
deserto
o dom do esquecimento,
perdoar
o próprio sangue e
estar
finalmente íntimo do silêncio.
[A
MÁGOA NÃO PERDOA AS MANHÃS]
A
mágoa não perdoa as manhãs de nascer
no
centro das folhas. Esta paisagem não
se
põe sobre o pomar, aérea dentro do
fruto
estico as mãos sobre o rosto, peço
a
doçura dos sítios alagados e entre os
ciprestes,
torno-me incolor na água. É
terrível
toda a beleza, dolorosamente
cair
no fundo de todo este sal e saber
que
por anos ficaremos vagando em
tremendo
exílio neste lugar. Cada ferida
aberta
é tão intocável entretanto não
há
medida para nenhum vale e todas
as
criaturas também estão esburacadas.
A
espera é este fogo absoluto, a caça
sem
fim no limite do impossível daquilo
que
não houve [nunca
há.
Pedras, cascalhos, incêndio,
inteiramente
carne-viva, flutuo tal
como
concha, perdida no mar.
[ TRÊS PERGUNTAS
]
FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do
Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?
CF | Tenho pra mim a poesia como este lugar que não
está compromissado com o sentido e que pode de certa maneira estar entregue à experiência
do vertiginoso, aquilo que nos arranca para além do interpretável e das representações
do mundo fixadas na lógica ou pautadas pela racionalidade. Os sons, as imagens,
as sensações, forças que atravessam e marcam a escrita, penso que tudo isso tenha
um ritmo próprio que não necessariamente se encaixa nas leis da linguagem e da compreensão.
Certas experiências só podem ser tangíveis para além do que se pode compreender
delas. Acredito que o surrealismo abra espaço para isso. A liberdade tenciona entre
as determinações de nossas referências e sentidos estabelecidos no mundo e a possibilidade
de que algo se extravie, reste para além das pontuações devidamente colocadas ou
das sentenças ordenadas que façam sentido. E o amor é certamente onde cresce o extravio.
FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente
até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias
referir algumas afinidades tuas na criação artística?
CF | Creio que a poesia portuguesa seja uma das minhas
grandes paixões, talvez seja pela presença do porto, a proximidade com certa grandiosidade
do mar e um ritmo de palavras [os sons dos poemas, o canto], tudo isso me comove
bastante. O Herberto Helder tem essa função de pólvora naquilo que sinto, penso,
escrevo, assim como também Sophia de Mello Breyner, Daniel Faria, Al Berto, todos
magnâmicos. Mas uma das grandes afinidades, como quando sentimos que nosso corpo
está tomado por algo que alguém escreveu, é com a obra da argentina Alejandra Pizarnik.
Todos os dias acordo e peço ajuda para “escrever palavras, nesta noite, neste mundo.”
FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos
a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade
da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade
explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este
respeito?
CF | Tenho presenciado um desejo de tornar a escrita
poética viva mesmo em tempos de ruína, ousar habitar ainda poeticamente o mundo,
“não ceder aos desastres” e por isso, certa solidariedade explícita entre os poetas,
escritores e amantes da literatura. Ainda
sim, percebo que às vezes se torna difícil alcançar outros espaços, fazer ressoar
o poema para fora dos nichos literários ou dos que já circulam neste meio. Não sei,
talvez seja uma dificuldade mais pessoal do que geral. Certamente há preciosos nomes
na poesia brasileira atualmente, não apenas os que estão nas grandes livrarias.
Fico contente com o convite do Floriano e dessa revista tornar possível a leitura,
o encontro e a publicação de jovens escritores no Brasil.
[ FOLHA DE VIDA ]
Cíntia Faria (Rio de Janeiro, 1997). Amante,
finda em 2019 a graduação de Psicologia na UFRJ.
*****
EDIÇÃO
COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista
convidada: Anna Höch (Alemanha, 1889-1978)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 128 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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