sábado, 14 de dezembro de 2019

Agulha Revista de Cultura # 148 | Dezembro de 2019


QUARTETO KOLAX, 2

Último trimestre de 2018 nos reunimos – Zuca Sardan, Pedro de Andrade Alvim, Ana Borges e eu – em torno do que chamamos de Quarteto Kolax – um grupo satírico, herdeiro do melhor Rabelais, saltimbancos patafísicos com toques de partitura de Frank Zappa e o teatrinho do absurdo – e montamos uma carroça virtual que começou a circular na edição de janeiro de 2019 da Agulha Revista de Cultura, abrindo a temporada de homenagem ao centenário do Surrealismo. A carroça percorreu galáxias e estrebarias, açudes e poços profundos, ao longo do ano, improvisando aquém e alhures, o que agora reunimos como segunda parte do espetáculo.
De sala em sala o Leitor Modierno… / E que é Modierno? / É uma Mistura de Moderno com Hodierno. / E que é Hodierno?/ Pressas preguntas d’algibeira, melhor consultares Doc Floyd, que além de outras 793 atividades… é o Diretor da Cyclopédia Labrosse.
Cavando bem fundo até onde a peneira alcance será sempre possível descobrir o modo de ser de certas coisas que antes jamais alguém houvera adivinhado ou pronunciado. Pois não é outra a história da caravana que atravessou todo o centenário do Surrealismo cavando por toda a parte da terra. E onde fomos dar é coisa que de nada adianta ficar a defender ou lastimar, xingar ou mitificar, pois a grande carroça de máscaras atropela sonhos e vigílias.
Teve de improvisar tanto o Quarteto que no final não se sabia mais qual fosse a linha mestra. Um portentoso Laribunto – ou Labyrintho? –, que nem o próprio Minotauro a saída saberia achar. Como não tinha o fio que sua irmã passou para seu Teseu, ou Tesão, um grego safado, nosso bom Minoto seguiu atrás do próprio rabo, e foi bater na sala de achados e perdidos.
E nessa escavação de arranjos do acaso a linha foi tecendo a si mesma como se fosse a própria embriaguez do horizonte, aquele alargamento de visão que nos permite ver bem fundo o que está mesmo bem fundo.
Mesmo porque… descobrir é… inventar. Mas o que se inventa, precisa ser qualquer coisa que ninguém antes havia pensado, e se houvesse não teria procurado saber o que era, e… jogaria fora, dizendo: Para que serve isso? / Ora, a Arte em si não serve pra nada… / Não é verdade?…
O mundo fica melhor sem respostas.
Nem chega a ser um bagaço esquecido, porque atende a outro chamado. Muito além do registro mercantil das ações humanas. Não se trata de esquecer ou lembrar, de domesticar o fogo criativo ou de expandir a colheita de tragédias, de onde quer que venha a arte ela tem um sentido em si que desafia toda a lógica.
Depois, ou mesmo antes, nunca está demais anotar: os Kolaxistas são escafandristas do Mar dos Mystérios. // Nós Quatro vivemos em um submarino Cyclame. Mas afinal, se alguém nos indagar sobre as razões desse Kolax no título, o que inventaremos na hora?
É preciso que a seriedade das nossas atividades editoriais encontre respaldo e prolongamento no setor de divulgação científica. Por uma moralização do trabalho no liceu, rádios e repartições!
O jornalista Toko Sugiro, do Ximbum Express, tão logo encontrou, revirando os guardados de Doc Floyd, a historieta abaixo, decidiu que a mesma havia sido escrita, sob encomenda do acaso, para as páginas de nosso editorial:

Salerno um belo dia resolveu tatuar no braço um relógio suíço. O grande mestre Siling, conhecido por suas imagens hiper-realistas, achou por bem tatuar no relógio o tempo, o que o levou a exaustivas jornadas. Logo percebeu que sendo o tempo infinito ele morreria sem que a tarefa se cumprisse. Tratou então de atrasar alguns minutos a cada hora tatuada.

Mas Saturno não achou graça nessa intromissão do jornalista do Braz em sua Máquina do Tempo e chamou-o às falas, brandindo sua foice… Sugiro, de amarelo passou a verde, dos pés à cabeça e sorrindo respondeu: Mestre venerave tem toda razão. Vamos kebrar esse relojo de merda.
Ao ser quebrado o relógio levou consigo, pelo submundo das imagens espatifadas, mão pulso antebraço de Salerno, que, para todo o sempre, ficou perdido naquele labirinto de puro espaço. Segundo Doc Floyd teria sido Salerno a lhe sugerir a criação de uma revista onde as inúmeras máscaras da realidade fossem representadas sem os grilhões de sua impiedosa temporalidade. 
Um labirinto de puro espaço, onde mora o tempo, que não suportaria viver em um labirinto de si mesmo. Mão, pulso e antebraço de Salerno se desfazem em grãozinhos cósmicos onde moram restos de lembranças de lugares onde ninguém nunca foi. Os restos flutuam no labirinto, às vezes se contaminam de Tempo e quando é assim, também às vezes se deixam capturar. Ali, onde existe só o rastro dos voos, mas não os pássaros, nos deixam entrar uma ou outra vez para ouvir mensagens cantadas em clara voz por esses rastros.
Assim avançamos destroncando os precários voos dos estados alterados de consciência. Livros, revistas, aventuras alquímicas. Jamais nos preocupamos com quem ficaria para contar a história, porque, afinal, a história não se preocupa em ser contada.
Esta é a lâmina reveladora do Quarteto Kolax.
E sua potencial irmandade com a Agulha Revista de Cultura.
Chegar até aqui é como despir o tempo de quaisquer hemorragias antecipatórias. Já não cabem mais profecias. Chegamos.
E trouxemos conosco a grande poeta e artista Leila Ferraz, a quem homenageamos com a entrega de nosso Tropheo Kolax.
Bem, há que lembrar ainda que esta é apenas a última edição de 2019 da Agulha Revista de Cultura, onde nos reunimos uma vez mais, o Quarteto Kolax, e desta vez trazemos conosco Victor Chab, magnífico surrealista argentino, que foi o artista convidado da primeira edição da revista, ao final de 1999. Apenas um marco.
A estrada, que não é nada boba, permanece aberta.

Quarteto Kolax | Os Editores


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• ÍNDICE


QUARTETO KOLAX, 2 | GRANDE SALÃO DOS BAGULHOS

QUARTETO KOLAX, 2 | DIÁRIO DOS TRÊS ANÕES

QUARTETO KOLAX, 2 | THEATRINHO DE BOSTA

QUARTETO KOLAX, 2 | COVIL DOS DOGMAS INCURÁVEIS

QUARTETO KOLAX, 2 | SALÃO DA GLÓRIA – PRÊMIOS & FUROS

QUARTETO KOLAX, 2 | RETRATO DE VESPINA

QUARTETO KOLAX, 2 | SETE SINETES DO IMPROVISO

QUARTETO KOLAX, 2 | PICADEIRO DO OITAVO CIRCO

QUARTETO KOLAX, 2 | REDAÇÃO DO PASCO BEXIGA

QUARTETO KOLAX, 2 | SIC TRANSIT GLORIA MUNDI


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: Víctor Chab (Argentina, 1930)
Desenho do Quarteto Kolax, por Zuca Sardan


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 148 | Dezembro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019


QUARTETO KOLAX, 2 | SIC TRANSIT GLORIA MUNDI


ZUCA SARDAN
Cirque de Soleil tornou-se realmente o maior do mundo… O velho circozinho intimista ao gosto do Fellini, parece que acabou…

DOC FLOYD
O circo sofreu muito com a proibição dos animais. Desde então a turminha do Soleil percebeu que teria que inventar algo bem ousado. Um mix de circo-teatro-ópera. Fez escola no mundo todo. Passou a ser referência e copiado a valer. Vi uma variante chinesa que dava mais destaque ao malabarismo. Mas até em palanques suburbanos se busca imitar o imaginário circense dos contorcionismos fabulosos.

ZUCA SARDAN
Não sei se os animais são mais bem tratados depois da proibição de participarem no circo. Houve há poucas semanas o julgamento de uma pendenga entre uma associação de defesa dos animais que queria retirar um chimpanzé do circo, onde ele nascera, trabalhara e vivera, sempre no carinho dos artistas, que adoravam suas habilidades cômicas… e… seu humor!!! nas traquinadas que exibia… Agora velhíssimo, já não trabalha mais, e segue vivendo na companhia de seus amigos artistas… Mas a associação de proteção aos animais queria, baseado na força da lei, desapropriá-lo do Circo para passá-lo para um zoo qualquer… Por um Acaso Divino, o julgamento coube a um Juiz inteligente e sensível, que deu ganho de causa ao Circo.

PAPISA
(sentada na Lua minguante e invisível) Nossos filhos e netos nos cobrarão nossa crueldade bíblica com os animais…

DOC FLOYD
Evidente que toda essa onda em torno dos animais não passa de reflexo de uma farra maior e da mais pura hipocrisia, ocaso de uma espécie debilitada como tal que transfere para os animais os cuidados que não consegue ter consigo mesma. A grande ciência humana é a da transferência, de valores e responsabilidades, e sempre que possível de modo anônimo.

ZUCA SARDAN
O assassino também é anônimo. Morre s’explodindo, para matar vítimas anônimas, e com isso ganhar o Paraíso, onde terá por recompensa uma dúzia, pelo menos, de maravilhosas Odaliscas.

DOC FLOYD
Exato. Toda a Humanidade é no fundo boazinha… Basta só um pouquito de autossugestão globalizada… e transformaremos o arsenal atômico em rosas e teremos sempre o Polo Sul preservado…

DOC FLOYD
Acho que puseram em minha boca a fala de outro. Logo vi por esse pouquito.

ZUCA SARDAN
Acho que tiveste uma recaída hippie. Quem sabe um chá de gengibre com hortelã… O movimento Flower Power não continuou, porque quando ia começando a pegar força… mataram o John Lennon à bala.

PAPISA
Tem um outro chá, anunciado pelo Griffo: Chá Zum, ervas chinesas com imitação de uísque escocês. Melhor que aspirina. Melhor que uísque escocês.

DOC FLOYD
A bala perdeu-se no anonimato. Ninguém falava nela e uma brutal depressão corroeu seu cartucho.
Tantas mortes se seguiram e as balas sempre esquecidas. Um dia elas reagiram e entraram na cena política depravando tudo. Agora é o morto que é anônimo.

ZUCA SARDAN
O anonimato do assassino depende muito do credo.

CORO DAS TRAÇAS
Pros do mesmo credo, o kamikaze é um santo.
Pros do mesmo credo, o exorcista é um santo.
Pros do mesmo credo, o pastor é um santo.

ZUCA SARDAN
Se não estiveres bem lembrado, plec-plec-plec!!!… dos dogmas do credo, melhor passar pela outra esquina… e tomar no boteco um café Tupy, com as bolachas Cabocla.

DOC FLOYD
a minha caboclinha foi pescar
um boto suculento pro jantar
voltou tão jururu minha ninfeta
o boto lhe deixou uma escaleta
a noite toda então soprei pra ela
as notas mais alegres da janela
a minha pequenina suspirava
o coração parou em uma oitava

PAPISA
Eu achava que o boto é que tinha jantado a moça… Ou foi o jacaré?

ZUCA SARDAN
Não se deve confiar num boto… Sobretudo se aparecer de terno branco e chapéu panamá.

DOC FLOYD
Menos ainda confiar na razão que se veste de vulgares apaixonices. Dentre todos os pecados da carne
jantar um boto pode ser o mais fatal, sobretudo quando o pangaré dos rios imita um viril contorcionista…

ZUCA SARDAN
O Prêmio Finel reconhece a obra de artista de que a obra é exemplo de resistência aos preconceitos e neoacademismos que moldam a opinião pública brasileira desde os tempos coloniais, havendo sempre a necessidade de bodes-espiatórios (tal o surrealismo) para satisfazer o perene desejo das massas de ter razão e conhecer a Verdade. E a Autoridade procura convencer a população de que ela gosta dos trabalhadores e apoia a classe-média; fascistas e comunistas são os dois espantalhos antagônicos que servem a uma ou a outra facção. Independente de qual seja a banda, este é o lado da boa, mas enérgica, e justa Autoridade que sabe a Verdade. A Parada Militar é a Procissão dos Grandes Poderes.

DOC FLOYD
Shh, ainda é cedo para espalhar a nova do Prêmio Finel. Tratemos de manter a surpresa. Quando muito umas pistas. O escolhido resgata das sombras a verdadeira história do surrealismo no Brasil envolvendo sua geração. Outra: sua obra recuperada prova a grandeza lírica que foi soterrada pelo descuido de seus pares. Etc., mas não muito.

PAPISA
Ué, tem uma história verdadeira do surrealismo?


BASTIDORES DO TROPHEO

DOC FLOYD
Guarda as ideias todas. Vamos arrasar com o novo Quarteto. Ah sim. Já passei o trofe para a Papisa.

ZUCA SARDAN
O que mandas direto para ela está garantido. Mas o que me passas, tal hoje aconteceu, por engano de endereço às vezes chega de volta pra ti, ou então vai pro cu-da-mãe-joana.

ANÍBAL TROMBETEIRO
O cu da mãe Juana é o triângulo das bermudas dos teletros desaparecidos…

ZUCA SARDAN
Exaaaaaaaaaaaato… e não há teletros que cheguem para limpar o da Mãe Joana… É um verdadeiro Black Hole…

PAPISA
Ah, os poetas contemporâneos! Solta uma quadrinha, Aníbal!

ANÍBAL TROMBETEIRO
No tabuleiro das ações fajutas
Mãe Juana dobra as apostas
Garante engolir com sanha voraz
tantos teletros quanto o cu suporte

ZUCA SARDAN
O número da magia do sumiço dos bilhetes se realizará em uma sessão extra do Circo Cyclame, sob o Patrocício do Paskim Porkoff.

ANÍBAL TROMBETEIRO
Venham todos
Venham todos
A última sessão já começou
E jamais se repetirá
Quem perder o assento
Pode apelar pra mãe Juana
Ela o engolirá com gosto

ZUCA SARDAN
Todos grudadíssimos no assento!…

DOC FLOYD
E que também não percam os acentos…

ZUCA SARDAN
Mãe-Preta, que é a lanterninha, está de olho… Cada espectador que entra no Auditório, ela pede para ver, leva o espectador até sua cadeira, e come o bilhete. E diz: Quem vai ao vento, perde o assento.

DOC FLOYD
Os acentos estão mais embaralhados que os bilhetes apócrifos reclamados pela Mãe Preta. À entrada do cu de sua filha a tabuleta informa que uma vez perdidas as pautas não podem mais renunciar. O mundo inspirado nelas não sabe mais em quem acreditar. Cai o pano e os assentos se estufam em seu acúmulo de bundas…

PAPISA
É grande a fixação dos dois meninos com todas as áreas da parte traseira. Quando eu descer daqui levo para eles um exemplar de Quevedo, Gracias y desgracias del ojo del culo.

ZUCA SARDAN
Leia o artigo de fundo completo, com instantâneos e closes, no Paskim Porkoff. Compre seu exemplar com Mãe Joana. EXTRA EXTRA EXTRAAAAAAAAAAAA…!!!

DOC FLOYD
Rara edição tipográfica que traz alguns artigos com os tipos trocados. Não são confusas as ideias. O tipógrafo ou estava de porre ou era um anarquista galhofeiro.

PAPISA
E por que uma coisa ou a outra?

ZUCA SARDAN
O tipógrafo Lambertim, acha-se um gênio incompreendido da typographia, e salpica no texto umas fotos pornôs, de artistas gostosonas da dúbia boate Gruta de Nero, semi-peladas, com colares, e, ou tetas de fora, ou mostrando o bundão ornado de penas de avestruz… e apronta uma balbúrdia completa com troca-troca dos tipos, e sempre coloca um retratinho seu com autógrapho no meio do caos completo. Naturalmente, o sucesso do Paskim Porkoff é colossal, embora sempre vendido por baixo do balcão. E a direção do tabloide, benevolente, paga as garrafas de cachaça para o Lambertim s’embebedar.

DOC FLOYD
Para completar os trocados mensais Lambertim fazia, por baixo dos panos, impressões de filipetas da tinturaria Jardim dos Sonhos e da Funerária Terra Nostra. Certa vez, talvez aturdido pela cachaça, meteu na chapa uma foto de loira peituda e nuazinha em lugar do Francisco de Assis. O folder do convite enterro causou imensa algazarra e por pouco Lambertim não é demitido do Paskim.

ZUCA SARDAN
Mas o diretor do Porkoff, probo personagem, se formalizou co’a esparrela do Lambertim, que, como sempre, garante as vendas do Paskim, de que a referida edição foi esgotada em poucos minutos, e as sucessivas três reedições no mesmo dia, todas se esgotaram, e, como sempre, por baixo do balcão. O diretor, cabisbaixo, bateu no peito comovente mea culpa e prometeu medidas enérgicas para que tal falha nefanda não voltasse a acontecer. Depois que os protestantes saíram, o Diretor furioso ordenou ao Lambertim que comparecesse imediatamente a seu gabinete. Lambertim entrou cabisbaixo. Diretor, enérgico, lhe disse:

DIRETOR
Seu safado!!! Tivemos um recorde de venda!!! Tenho aqui o uísque preparado. Vamos festejar!!! Tenho comigo novas ideias de imagens trocadas envolvendo tarôs tarados e o jogo navajo das cartas medicinais; calendários de oficinas mecânicas e retratos falados do Diabo… Basta remexer minhas gavetas…

GRIFFO
Contra tosse e espirros… tome… XÁÁÁ… ZUUUUMMMMMMM!!!…

ZUCA SARDAN
As gavetas começam no Purgatório e baixam às cafundas do Inferno… Não têm começo… nem fim.

DIRETOR
Esta é a verdadeira arte do ilusionismo. Fazer o branco entender que uma parte de si é pura escuridão. O homem precisa entender que a mulher que traz dentro de si não é a caricatura de um desejo sufocado.

MORCEGO
O Desejo Sufocado não é de se brincar… e a Mulher Escondida, muito menos. Salve-se lá quem passa, diz o Gato do Marquês de Carabossa…

DIRETOR
Salve a rainha Ratinga
Três pintinhos bem paridos
Percevejos lacrimosos
Na palma da minha mão
Será ela ou será eu
Quem comeu gato por lebre
Gira o breu a manivela
Cabe o rei no açude dela

PAPISA
Lindo, lindo!

MAESTRO
Diretor, sois um menestrel da modernidade!…

JOÃOZINHO GAIOLA
Diretor foi quem melhor soube usar minhas pianolas preparadas em seus concertos circulares. Com ele aprendi que o I Ching prevê o passado que nunca tivemos.

TIO XINA
Se o passado plevisto pelo I Ching fô melhó que o desastloso do consulente, bão selia adotá-lo.

I CHING
Não tente refazer o futuro
que ele corre o risco
de virar passado chamuscado

ZUCA SARDAN
Se não se tentar refazer o Futuro, o Passado chamuscado pode querer tomar seu lugar… O tempo se desloca em espiral, o que facilita a dúbia manobra do masoquista Passado.

DOC FLOYD
Se tudo volta sem passar por onde esteve onde espero me encontrar cada vez que recordo meus dias vividos? Retire a senha e aguarde ser chamado. Na Tenda do Espírito o passado vai lhe dizer quem será.

ZUCA SARDAN
O Passado é muito esperto e safado, e… tem suas escapatórias prontas…

DOC FLOYD
Conta sempre com um ovo no fiofó do futuro e leva no bico o presente que não sabe ficar. Ao entrar na tenda convém esquecer que qualquer que seja a saída jamais seremos quem nunca fomos.

ZUCA SARDAN
E esse Presente está tão bonzinho… Liberô totaaaalllllll!!!… Esqueçamos as Mazelas colaterais e vamos gozzaaarrrrrrrrrrrrrrrr um Eterno Carnaval Friforol!!!…

DIRETOR
Mas… e o Prêmio? Joãozinho Gaiola já estava aqui para compor a canção-tema.

ANÍBAL TROMBETEIRO
Frico fricote farimba tange
Leite de cobra e suores enfrascados
Qualquer que seja a saída
a Granja Daspérgio é a última a fechar
Aproveitem a madrugada ensopada
Antes que as luzes despenquem do céu


NA CADÊNCIA DO PRÊMIO

ZUCA SARDAN
Já chegaste? Ou estás falando do espaço intergaláctico, no teu jato rumo ao Brasil?…

DOC FLOYD
Estou na terra nada santa e pouco firme.

BOSQUE
No Brasil tem um bosque
na Ilha Marajó
o Paraíso Perdido…
onde tudo começou

DOC FLOYD
Terra de jacuzzi & pitombeiras…

BOSQUE
No Brasil tem samba,
tem jabuti, tem canjerê…
 faz que vai mas não vai
olê olê olelê

DOC FLOYD
Esse Jabuti tá contaminado, virou prêmio de péssima reputação…

ZUCA SARDAN
Precisa dum veterinário… Quem sabe dr. Osbaldo Cruz dá-lhe um jeito… Enquanto isso… um Prêmio Avestruz viria a calhar…

PAPISA
(dormindo) Zzzzzzzzzzzzzz

GRIFFO
(canta) Dorme a cidade, resta um coração

DOC FLOYD
Este sim, o prêmio sonhado, não para recebê-lo, mas sim para ver o premiado sem saber onde enterrar sua cabeça.

ZUCA SARDAN
O premiado escreveu um livro pornográfico ilustrado com fotos alusivas e foi condenado pelo clero, a marinha e o cabide das boas famílias. Já está na Rita Parada.

PAPISA
(acordando) Que tal um poeminha medieval? Com licença, Afonso Anes do Cotom!

Abadessa, escutei dizer
que vós erais mui sabedor
de todo bem; e por amor
de Deus, queirais-vos condoer
de mim, que há tão pouco casei
que bem lhe juro que não sei
mais do que um asno, de foder.

DOC FLOYD
O problema da Parada da Rita é a falta de critério, da qual todos se aproveitam. Os livros pornográficos, que um dia desbancaram os de autoajuda, agora se curvam diante do frisson ao redor
das biografias, não importa de quem…

PAPISA
Pois me fizeram sabedor
de que vós tendes sapiência
do foder e sua ciência:
preparai-me melhor, senhor,
para foder, pois não o sei
e por isso jamais gozei,
não passo nunca do tremor.

ZUCA SARDAN
A chave do sucesso total seria escrever um livro pornô com fotografias explicitando as várias posições, o que seria uma forma de autoajuda para os trepadores singelos se aperfeiçoarem, tudo isso incluído na biografia de um artista famoso da música popular. Besticela!!!
PAPISA
E se assim ensinado vou
por vós, senhor, deste mister
de foder e foder souber
a vós, por quem Deus me amparou
cada vez que foder direi
um Pai Nosso e encomendarei
a alma de quem tal me ensinou.

DOC FLOYD
A página 127 dessa decantada centúria revelava que a biografada a toda gente levava no bico, sem pagar seus direitos. Uma compositora mais famosa do que ela certa noite cobrou a dívida em pleno show.

ZUCA SARDAN
Os empresários caloteiros, sobretudo quando tratam com os inexperientes artistas, são piranhas de luxo.
DOC FLOYD
Não apenas os empresários, ou talvez eles aos poucos tenham aprendido com os artistas a manipular o saldo das propinas estéticas, expondo à venda o estoque de óleo de suas lanternas místicas. A plateia se retorce.

ZUCA SARDAN
E voam milhões e milhões de dólares, de Tóquio a Londres, de Londres a Nova York, de Nova York a Katar… E grandes gênios são hoje fabricantes de coelhos de ouro, totós de flores com oitenta metros de altura, e um quadro que se evaporou durante a venda em leilão na galeria de Londres. O comprador não reclamou, e levou os pregos que sobraram para colocar na sua pinacoteca.

PAPISA
Deste modo podeis ganhar,
minha dona, o reino de Deus,
por ensinar aos pobres seus
coisa melhor que jejuar;
e por ensinar a mulher
coitadinha, que a vós vier,
senhor, sem saber rebolar.

DOC FLOYD
O Sindicato Internacional dos Rábulas está desnorteado, seus associados não conseguem mais estabelecer as diferenças entre as obras falsificadas e aquelas que são frutos de uma inconclusiva diluição. Deste modo o roubo perde sentido, pois os copistas impuseram novos paradigmas, sobretudo aqueles especializados em reproduzir assinaturas, considerando régua e compasso desse novo terrorismo.

ZUCA SARDAN
Com as técnicas internéticas, o roubo e a falsificação são inevitáveis. Só escapam do assalto as obras complicadas, porque o mercado global favoriza os pastelões-fáceis, os purgativos-sangrentos e os pornô-sentimentais.
DOC FLOYD
Porém as obras complicadas não escaparam da sanha dos copistas, que as exibem com seus narizes empinados afeitos à perene descoberta do fogo. Das cabeças de bois cuspindo vitupérios às latinhas de sopa de cabeça de peixe, os copistas distribuem suas receitas de fetiches, sempre longe das artes complexas, doadas ao silêncio.

ZUCA SARDAN
Mas chega o Andy Warhol, copia essas cópias talquais e… faz um sucesso estrondoso, em Nova York, Tokyo, Londres e Europa…
DOC FLOYD
Facilmente se comprovou o que há muito remendava a colcha da história, quão fácil era burlar a plateia minando a imaginação.

ZUCA SARDAN
As pessoas querem ser enganadas a sabendas… Assim se sentem mais seguras.

DOC FLOYD
Fiquem todos sabendo: O verdadeiro engano está por vir.

BATUQUE
A pedra dos males gorjeia
no tablado das miçangas.
Quem quer bacorinho pra janta
ronque até o sol raiar…

Tropheo Kolax

PENÚLTIMA PAUSA

DIRETOR
Creio que agora sim, podemos começar a definir o cenário de nosso prêmio, o Tropheo Kolax, que foi possível graças ao patrocínio da Agulha Revista de Cultura e do Paskim Porkoff. A mídia cultural recupera seu prestígio estraçalhado e a credibilidade das artes. Cumprindo papel de escavacar as artérias entupidas da cultura brasileira, Kolax aparece em um momento em que já ninguém leva a sério o ofício da criação. Máquinas de copiar e agentes diluidores se tornaram as vedetes do grande salão das promiscuidades.

ANÍBAL TROMBETEIRO
Troca o sapo, Diretor! Deixa a lamúria lá fora!

MORCEGO
Vejam logo que maravilha de obra a estatueta preparada para agraciar a nova quimera das artes! Seu autor é um dos nossos, se assim me posso sentir entre vocês, Doc Floyd, do Quarteto Kolax.

[PAPISA SAI CORRENDO PARA O SALÃO DA GLÓRIA]


PAPISA
(descendo do mundo da Lua) E aí? Quem mesmo que eu tenho que entrevistar?

MORCEGO
Ah esses repórteres que não sabem nunca o que devem fazer! Corre lá em busca do furo, Papisa… Pocotó em disparada e ainda pegas o Doc Floyd, de quem deves arrancar o que de veras há por trás desse prêmio inesperado…


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: Víctor Chab (Argentina, 1930)
Tropheo Kolax, por Floriano Martins


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 148 | Dezembro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019