Todo o país foi dormir cedo, sonhando com um
amanhã renovado ou, ao menos, que viesse com um mínimo de fagulhas repetidas, dessas
que apenas chamuscam um cadinho da realidade que adora se repetir. Claro, não se
sabe se assim o foi, porque o amanhã raramente se deixa habitar. Temos que fazer
do futuro nosso teatro sem lacunas ou, ao menos, com as lacunas que se deixam entrever
como a possibilidade de buracos impiedosos que não serão preenchidos jamais. O teatro
de que nos alimentamos é a empírica satisfação de um mundo condenado a repetir-se.
Não é o teatro de Sade que tanto detestava a humanidade. Não é o teatro de Shakespeare
cujas trapaças instauravam o único paradoxo possível de libertar o homem. Não é
o teatro de Rabelais que embaralhava todas as medidas do humano estimulando novas
descobertas do ser. Trata-se de um drama de futricas, de um jogo de fanfarronices
e estripulias arbitrárias. Teatro de sombras do cotidiano. Um teatrinho de bosta…
UMA PASSADA NA
CATHEDRAL DO CORCUNDA
ZUCA SARDAN
O Marechal Hermes da Bonxeca, com suas barbas colossais,
veio visitar o Corcunda.
DOC FLOYD
O Marechal trouxe seu cavalo nas costas e quem potocava
era ele
ZUCA SARDAN
Marechal toma o poderoso ELIXIR FERROVIGOR…
DOC FLOYD
Desde quando começou a tomar o elixir seu pocotó é mais
garboso… E trota como uma carpa no aquário de um restô japonês…
ZUCA SARDAN
Segundo descobriu nosso repórter Pastinha, há um truque
sujo: Sargento dá um clyster de hydrogênio no cavalo que fica levíssimo… Semana
passada, Sargento exagerou na dose, e o Cavalo saiu voando com o Marechal pendurado.
Felizmente no seu louco voo, o cavalo passou por cima da catedral, e o Sineiro Corcunda,
trepando na torre, conseguiu enfiar um apito no cu do cavalo, e o hidrogênio foi
saindo e apitando, baixando suavemente e adernando na torre, o que permitiu ao Corcunda
resgatar o nosso Marechal.
MARECHAL
És um Herói, Corcunda!!! Salvaste o Pai da Pátria!!!
Ganharás uma medalha!!! E que prêmio desejas? Podes pedir o que quiser!!!
CORCUNDA
(modesto, rodando
a touca nas mãos) Ai!… meu Marexá… Eu quero uma ciganinha bem tetuda…
ZUCA SARDAN
Marialva dos Pandeiros chegou na torre conduzida pela
sombrinha voadora de Miss Toppy. O artefato chegou esbaforido por conta da avantajada
arquitetura peitoral da cigana que o Corcunda havia pedido. Aqui o que se pede melhor
não perder, disse o Marechal, com sua verve de máximas encardidas.
MARIALVA
É aqui que finalmente é aqui?
DOC FLOYD
A sombrinha após rápido descanso fugiu disparada pela
janela da torre.
CORCUNDA
Sagrado é o senhor que me atende. Vou batizar meu prêmio
e fazer dela meu único vício.
MARIALVA
É aqui, é aqui, corcunda cegueta…
CORCUNDA
(surdina)
Sossega, Marivalda, só estou bancando o cegueta, pra comover o Marechal…
MARECHAL
(saca da espada)
Avanti!!! Per la Patria Tutto!!!
MARIVALDA e CORCUNDA
(em coro)
VIVA LA PATRIA!!! VIVA IL MARECHALE!!!
DOC FLOYD
Dia seguinte os três corpos espalhados pelo chão entre
galinhas e corvos bicando e rasgando o cenário. Marialva resmunga:
— Por que será
que ainda estou aqui. Como livrar-se
de um pesadelo?
Marechal aguava as plantas com seu xixi enquanto
o Corcunda espremia uma galinha:
— Anda, meu querer, só um ovinho…
FALSO TORMENTO
DA REALIDADE
DOC FLOYD
Está concluída? Creio que sim. Tenho que reunir nossos
últimos escritos, por vezes penso que daria uma boa antologia a ser publicada, já
verei, já verei…
ZUCA SARDAN
Sim, sim, está bem concluída. Tangas e Zcrita-Cordel,
melhor curtas… A curtíssima tem a vantagem de ser mais apetecível para as novíssimas
gerações. E uma Antologia também é atrativa, justamente quando é constituída de
curtíssimas, argumentadas com cartuns.
DOC FLOYD
Navalha bem limpinha e pronta para descascar o olho
oculto do mais severo leitor de Pompéia.
ZUCA SARDAN
O Sentinela de Pompéia sempre alerta, usa monoklo e
patins para correr quando explodir o Vesúvio.
DOC FLOYD
O Sentinela de Pompéia deu nome a um planfletinho que
circulava pelas ruas em zombaria de tudo quanto era lei lacrimosa e títulos de nobreza…
ZUCA SARDAN
Enquanto o Sentinela Dirceu Vão Bestoide lia do Lenin
o tabloide, Vesúvio comeu Pompéia.
DOC FLOYD
Alheio à tragédia que causara
Vesúvio cantarolava uma trova
ao ritmo de seu cachimbo
que
dizia não crer em choro ou
vela.
ZUCA SARDAN
Não acabou a trova, o desditoso
sentinela trovador, cantando
arrastado em cruel torvelinho
pelas larvas incandescentes.
DOC FLOYD
Não acabou o trago, o sonâmbulo
metafísico de bengala, aos
cinco
ventos anunciou que uma vez
a cada
cem anos uma fênix seduz
o fogo.
ZUCA SARDAN
Não sei se ainda terei tempo de ver essa fênix duas
vezes. O Oscar Niemeyer poderá ter visto, mas da primeira vez ainda estava de fraldas,
e não lembrava mais…
DOC FLOYD
…e na segunda já não lembrava quem era… Sem falar naquela
parcela da população que finge que não vê a Fênix, ou a confunde com a ave negra
de Hollywood.
ZUCA SARDAN
Em matéria de não ver (com os próprios olhos) a Parcela
da população é quase maior que a população total… a Parcela não quer ver nada por
conta própria, só acredita no que os Locutores de Tevê lhes contam… Os Locutores
de Tevê são os Grandes Sacerdotes da Revelação do Mundo Quadrado… os grandes desastres
ecológicos, que estamos assistindo, são devidos aos esforços tectônicos do Globo,
em adquirir uma forma de hexaedro, para melhor se adaptar aos aparelhos receptores
de Tevê.
DOC FLOYD
A Grande Rebelião das Fibras Óticas começa a mostrar
um mundo bem distinto do real, embora já não caiba importância à realidade comprovada,
tendo ganho o pleito forjado a realidade condicional. Qualquer mestre de vigarices
facilmente convence sua plateia da forma que bem quiser dar ao globo e suas sombras.
THEATRINHO
DE BOSTA
DOC FLOYD
Anita e Pedro, queridos
Tenho sentido a ausência de vocês e isto me preocupa,
tanto pela amizade quanto pelo destino de nossa publicação. Caso tenha havido alguma
pedra no sapato de nossa aventura, digam-me.
PAPISA
No meu caso, nenhuma pedra, Doc, só encontro flores
que vez ou outra você deixa cair do seu bolso. Ainda estou em Berlim, viu? E já
tínhamos combinado que eu trabalharia para terminar tudo a finais de novembro, lembra?
Beijoooooooos
PEDRO K
Querido Floyd,
Nossos keds especiais de exploradores descartam automaticamente
as pedrinhas que por ventura despontem pelo caminho… E, picados pelo vírus da aventura,
pedimos licença poética para prosseguir na trilha do desconhecido, na iminência
do próximo mergulho nas salas submarinas do Kolax, assim que a Anita retornar de
Berlim, e o Zuca da Floresta Negra!
DOC FLOYD
Pedranka
Anita nos autoriza a retomarmos mais cedo pois ela só
regressa em novembro. Vamos deixar espaços para ela, eu mesmo penso em fazer algo
a quatro mãos com a Papisa. Como a boa cartilha garante que depois da tempestade
vem a ambulância, não esperemos pela bonança.
Abraxas
PAPISA
Não, querido, eu volto para o Brasil neste domingo,
chegando aí na segunda. Vai ser uma correria desde o começo por causa do concurso
que haverá no fim de outubro e cuja banca estou presidindo por razões muito fora
da minha vontade, por isso estou pedindo para entrar seriamente no jogo em novembro.
Mas estou terminando umas coisinhas para a sala das cartas, brincando um pouco com
as experiências aqui em Berlim.
DOC FLOYD
Magnífico, querida. Eu aqui pensando que ias ficar uns
meses fora do caos-tapuia. Que venham as cartas. Quanto à ambulância, que ninguém
se preocupe, porque será pilotada pelo Zuca.
ARAUTO
Zapata é piloto especialista de Ambulâncias. Uma velocidade
de foguete, fura todos os sinais, parando apenas para recolher as vítimas que atropela
no trajeto.
DOC FLOYD
Deixa a estrada salpicada dos desejos desancados de
tantos corpos atropelados.
PANCHO
Viva Zapata!!! Zum zig Zaaaaaaaaaffffff BANG BANG BANG!!
TORZIDA MEXICANA
Dale Dale!!! VIVA ZAPATA!!!!
MORENITA
(assustada)
Tiros!!! Um bandoleiro conduzindo a ambulância!!! SOCORRRRRROOOO!!!
PANCHO
Sossega Muchacha!…
Son los pneumáticos que s’esplotaron…
ZUCA SARDAN
Floyd, / eppure… Zuca só atua de autor. Deixemos esta
parte atlética para o Zapata.
DOC FLOYD
Pois é, Zapata e seus disparos de pneu, as balas ricocheteavam
no espaço e zuniam muito além do que podiam captar nossos ouvidos… Zwiiiiiiimmmmm,
zwuuuuuuft, zheeeeeeeeemmm. A estrada se contorcia agachada tentando escapar dos
tiros de pneu. As balas perdidas procuravam suas vítimas por sete margens da cena…
zwimmm…
ZUCA SARDAN
Enquanto dirige em adoidado frenesim, Zapata vai conversando
com o sanitarista Zé Batista.
ZAPATA
A técnica mecânica da nossa Ambulância, com sua precisão
de máquina alemã, aboliu os acasos campesinos, que dependem dos caprichos meteorológicos,
e mostrou sua superioridade sobre ovelhas, vacas, bois, galos, perus, galinhas e
avestruzes.
ZÉ BATISTA
E os bodes… Que você adrede tenta esquecer?
ZAPATA
Os bodes? Não são as mesmas antiqualhas semelhantes
aos demais bovinos e caprinos?
ZÉ BATISTA
O mapa confuso das semelhanças acabou tornando inviável
o maquinário da analogia. Onde tudo era igual já nada se compara aos anseios de
tempo e espaço. Os vírus sobrepostos não se reconhecem ou atuam na direção de sua
fábrica de ruínas. Quem sabe em quantos se disfarça a morte?
ZAPATA
Zé Batista, pareces o Arcanjo do Apocalixo, com esta
tua obsessão pela Morte… Vais ganhar de presente de Natal um trombone. E Dona Morte
dançará para ti a Danza das Sete Mortalhas,
que deixará ir caindo uma a uma, ao som do tambor de casca de jabuti tocado em transe
com dois bastões de fêmures, pelo Coveiro Derradeiro. Esta cena já vale uma ilustração,
que tal?… Morituri te salutant.
ZUCA SARDAN
O-Ro-Ro-Rooooooooooooooo
DOC FLOYD
Viva nosso humor infindo.
ZUCA SARDAN
Se não nos divertimos, não sobra nada. No Lyceo Pytanga,
todo mundo estuda muito e ninguém aprende nada.
DOC FLOYD
Por isto que só entramos no Liceu Pytanga pelos fundos
e fizemos uns furinhos ligando a sala dos professores ao banheiro feminino.
ZUCA SARDAN
Acho que estás confundindo o Lyceo Pytanga com a Universidade
de Friburg, na Alemanha, e o Professor safadão era o Martin Heidegger, e a mocita
seduzida foi a Hannah Arendt. O Lyceu Pytanga é a forja de criação dos Titãs e Caboclas
do Porvir do Brasil. Ainda não conseguiu produzir grande coisa, porque a juventude
só quer saber de se liberar e cai na fuzarca, e não vem às aulas.
Melhor nos concentrarmos no Zapata com sua ambulância e o fiel Sanitarista Zé Batista, que vai recolhendo as vítimas de atropelamento pelo atribulado trajeto da ambulância.
Melhor nos concentrarmos no Zapata com sua ambulância e o fiel Sanitarista Zé Batista, que vai recolhendo as vítimas de atropelamento pelo atribulado trajeto da ambulância.
DOC FLOYD
Ora, mas Liduína Malvada fazia estriptíase no
balcão da cantina. Os meninos se empanturravam de biscoitos achocolatados e as meninas
apaixonadas por germanistas domavam a fuzarca a noite inteira. Dia seguinte os olhos
mal se mantinham abertos nas aulas de anatomia com seus vetores indispostos. O busto
de Pytanga suava confundindo os horários das provas…
Continuas confundindo o Pytanga com a UNIFRIBURG… Fim
de papo, Floyd. Este rolim podes queimar.
DOC FLOYD
Zapata guardava no porta-luvas da ambulância uns folhetos
encardidos que traziam instruções de como uma coisa parecer outra. Tranqueiras de
quando foi espião. Minério de surdinas.
ZUCA SARDAN
Os desenhos do Zapata para despistar suas mensagens,
são extraordinários!… Assim, você mira o desenho, trata-se da Gioconda. Sorrisinho
de esguelha, farto bustão… Vira de cabeça-pra-baixo, aparece um careca de testa
bulbosa, óculos de lentes rosas, botocudas, e bochechões colossais, o velho explode
de saúúúúde, mas tem ar carrancudo, e densa barba preta, enorme. Que ele pendura
pro lado direito da estampa.
DOC FLOYD
No
ritmo em que vamos os meninos logo regressam de suas férias e retomamos a saga de
nossas indômitas maluquices. Coloquemos na porta uma tabuleta: QUARTETO KOLAX ensaia no escuro a sinfonia satírica
dos sete mundos. Aguardem a estreia de nosso coreto…
PEDRO K
Frida não criou escaras, mas calos nas sapatas… Calo-me
antes de envilecer a transfusão fleumática nas nervuras do prosaico tumor que se
formou nas ‘náguas com as devidas delongas de um trote-trótski violento jumento
enfurecido por ter sido… vilipendiado e assim… por diante.
DOC
FLOYD
Que nem Dante nos alcance…
ZUCA
SARDAN
Face à insistência de Doutor Floyd, nosso iluminado
Tyrano de Syracusa, em furar o muro do banheiro do Lyceo Pytanga, retiro-me deste
theatrinho de bosta. Passem bem e tirem o melhor proveito. Abrazzzzzzzzzi
per tutti…
O
CASO DA BENGALA ESQUARTEJADA
Quero a miiiinha bengala de volta!…
É do século XIX, e tem uma formosa
sereia de prata, esculpida no castão…
E duas iniciais: TL, de seu antigo dono.
O branco deu
no galo
O galo deu
na luz
Requebra o
castiçal
Nenhum vento
satisfaz
A bengala do
Sardan
Deu um salto
na lagoa
Dona Sapa desfalece
Tropeçando
no aguidar
Cai lentamente a cortina…
A cortina lentamente
Deu um curta
no cenário
Querubins pra
todo lado
Zonearam o chimarrão
Toque um fado,
toque um tango
Não importa a
dor que doa
Saltimbancos
no telhado
A cortina foi
pro brejo
GERENTE
PLATÉIA AGITADA!!! É isso que queremos!!!… MAIS!!! MAIS!!
MAIS!!!
JUVENTUDE REBELDE
MAIS!!! MAIS!!! MAIS!!!
GERTRUDE
(sottovoce)
Vamos sair de mansinho, Gaspar, ou essa juventude ensandecida nos trucida…
GASPAR
Não te preocupes, Gertrude, sou professor, sei como
acalmar meus alunos… (trepa na cadeira e bate
palmas) PLAFF-PLAFF… Atenção meus bravos jovens, Esperança derradeira de nosso
conturbado Brasil… Ouçai lá…
Minha terra tem
palmeiras
onde canta o
sabiá…
Piripi… Piripi…
Tatá…
Zé Fininho se
abastece
De esperanças
que falseiam
De um gole bebeu
todo
O sangue da gueixa
Sabiá
Vamos sair de
mansinho
Disse a turba
ao microfone
À nossa frente
as palmeiras
Disfarçarão a
debandada
GASPAR
(triunfante)
Está vendo só, Gertrude… Com minha retórica de veludo… acalmei a moçada…
GERTRUDE
Até aqui tudo bem, Gaspar, mas e a pobrezinha da Gueisha
Sabiá?…
GASPAR
Não te preocupes… telefonarei para Frei Feijão.
Ao sair da cabine
telefônica
De seu poleiro
confessional
Frei Feijão coçou
as partes
A batina em grande
amasso
Quem nunca viu
desconhece
Quem viu – dizem
– quer mais
Porém ninguém
ousaria falar
Da cor do pecado
filisteu
GERTRUDE
Gaspar, li hoje no jornal, um cronista religioso… que
se referia, sem mencionar qual fosse, ao pecado filisteu. Sabes lá qual seja?…
GASPAR
Enfim, Gertrude, nunca são convenientes, as leituras
sobre pecados… Bem melhor seria leres sobre as boas ações…
GERTRUDE
Tens razão, Gaspar… Melhor nos voltarmos a assuntos
científicos… Aliás, li hoje no jornal, com ilustração na primeira página, que os
astrônomos conseguiram fotografar o Black Hole!!!… Um buraco preto colossal!!!
Negra peçonha
do mundo
Estreita os laços
do pecado
Fosse uma vestal
revelaria
As suas sombras
interditas
O mundo inteiro
caberia
Na vastidão sagrada
da foto
Sentenciaria
então o big bang
A um acorde de
gazes do mistério
GERTRUDE
Que disseste lá, Gaspar??? Estavas de olhar esgazeado,
e voz cavernosa…
GASPAR
Eu não disse nada, Gertrude… estas tuas leituras de
pecados filisteus e buracos pretos estão a te embananar os miolos… melhor será a
sessão culinária.
GERTRUDE
Embalsamar?…
GASPAR
EM… BANANAR
Espólio de bananas
embalsamadas
E peixes ruminando
pérolas gastas
A noite lustrava
a prata das luas
Espelhando as
naturezas mortas
Melhor servir
na bandeja o zoo
de nossas visões
metamorfoseadas
O galo engasgado
com as manhãs
Pardais cuspindo
fora suas casas
GASPAR
Agora eu ouvi!!! És tu mesma!!! que falas essas tenebrosas
coisas com voz gutural!!!… Estás possessa, Gertrude!!!… Ai!!! Céus!!!… a voragem
do Inferno!!!
GERTRUDE
(olhos revirados,
sorriso satânico) Isso mesmo, meu gostoso enrustidão… Mas desta vez não escapas…
agora, debaixo desta árvore frondosa… vou tirar teu cabacinho, meu amor de perdição…
(dá um salto de onça)
GASPAR
(com Gertrude
grudada, por cima) Enlouqueceste, Gertrude?… Há décadas casadinhos felizes e
agora… ai!! que tu me esfolas!!! Ai!!! Vais me matar!!!
(chega, assustado)
Céus!! Dona Gertrude está possuída pelo Diabo!!! Vou exorcizá-la!!!…
GASPAR
(voz agônica)
Chegastes tarde, oh, Frei Feijâo!!!… Agora deixa ela me matar… Vai-te embora, sacão…
deixa eu morrer e… GOZZZARRRRRRRRRRRRRRR!!!
FREI FEIJÃO
(apavorado, sai
correndo) Ai, Socorro!!!…
PANO
(cai) PLAFFFFF!!!
(Ouve-se a 4a. Fuga de Bach)
Cai a anágua
do Feijão travestido
Cai o verbo desencarnando-se
Cai a pedra suspensa
por Magritte
Cai o último
espelho enrugado
E a prece dos
vigários saltimbancos
E o culto das
megeras parideiras
E a maçã na cabeça
oca da ciência
E o moto perpétuo
impresso no pano
Mas a cortina ah a cortina essa não cai…
GASPAR
(gemendo)
Ai… Fertrude… Ai… me mata mais um pouquinho… AAAiii…
GERTRUDE
Fertrude, não, Gaspar… Gertrude é o meu
nome!… estás endoidecendo…
GASPAR
Endoidecendo de gooozo, minha fera Fertrude…
me esfola… me mata mais um pouco…
GERTRUDE
Não posso fazer mais, porque a cortina
está levantada, a plateia começa a reclamar…
BOAS FAMÍLIAS
Ai, que horror!!! Peça do Gelson Bromires!!!
Telefonem pra polícia!!!
CORTINA
(discreta,
baixa um pouquinho) Fung-Fung-Fung…
GALERA PESADA
Qualé??? Quem é o basbaque que está baixando
a cortina? Pega!!!
TURMA GROSSA
Pega esse bedel de bosta!!! Vamos quebrar-lhe
a cara!!!
CORTINA
(assustada
sobe depressa) Fong-Fong-Fong…
GERTRUDE
(montada
no supliciado) Ai, Gaspar, a cortina subiu de novo!…
GASPAR
Dane-se a cortina, Fertrude, manda brasa,
me mata, me trucida, Ai.Ao.AAAUUUUUUU!!!
Um cavalo assustado
Uma pele azunhada
Um potinho de mel
A vida passa ligeiro
Quem vê lá de cima
Logo pensa em cair
Quem vê lá de baixo
Quer mais quer mais
Doramundo, um
saltério
Lhe puseram nas
mãos
Ficou cego e
azulado
Um improviso
atrás de outro
Quando veio para
casa
Recusou-se a
entrar
Até hoje o destino
Cantarola agachado
GASPAR
(tombado,
abre os olhos) Ai… Gertrude, que se passou.
GERTRUDE
Ai, meu bem,
você tropeçou, caiu, e ciscou a roncar.
GASPAR
(desconfiado)
Mas… porque não me acordaste?…
GERTRUDE
Você estava
com um ar tão feliz, que achei melhor deixar você dormindo.
GASPAR
Mas… e a peça,
Gertrude, já acabou…?
GERTRUDE
Esta peça nunca
jamais se acabará, Gaspar…
GASPAR
(preocupado)
Não se acabará? E por que??
GERTRUDE
Porque a cortina
cai e torna a subir, cai e torna a subir…
GASPAR
(estala
os dedos) Plec! plec! Já sei, vou telefonar pro João Batista.
GERTRUDE
O tocador de
gongo?
GASPAR
Exato, Gertrude…
Estou seguro que é ele que está escrevendo esta peça…
GERTRUDE
O… Armagedom?…
GASPAR
Esse mesmo,
Gertrude, vou telefonar e pedir-lhe que venha com seu gongo…
GERTRUDE
E se ele tocar
o gongo?…
GASPAR
Acaba-se o
Mundo, e acabando-se o mundo…
GERTRUDE
…acaba-se a
Peça?… Duvido!
GASPAR
Ouço seus passos…
Presto, Gertrude, vamos fugir antes que ele chegue e toque o gongo!… (saem Gapar
e Gertrude, entra João Batista de tanga e turbante, coloca o Gongo no palco, alça
o bastão e, solene, belíssimo gesto, gira o instrumento… e…) GOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOONNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNGGGGGGGGGG!!!
GALERA PESADA
Parece que agora puseram o enredo no saco…
TURMA GROSSA
E nunca se soube o paradeiro da bengala…
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: Víctor Chab (Argentina, 1930)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 148 | Dezembro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS
| MÁRCIO SIMÕES
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