sábado, 14 de dezembro de 2019

QUARTETO KOLAX, 2 | THEATRINHO DE BOSTA


Todo o país foi dormir cedo, sonhando com um amanhã renovado ou, ao menos, que viesse com um mínimo de fagulhas repetidas, dessas que apenas chamuscam um cadinho da realidade que adora se repetir. Claro, não se sabe se assim o foi, porque o amanhã raramente se deixa habitar. Temos que fazer do futuro nosso teatro sem lacunas ou, ao menos, com as lacunas que se deixam entrever como a possibilidade de buracos impiedosos que não serão preenchidos jamais. O teatro de que nos alimentamos é a empírica satisfação de um mundo condenado a repetir-se. Não é o teatro de Sade que tanto detestava a humanidade. Não é o teatro de Shakespeare cujas trapaças instauravam o único paradoxo possível de libertar o homem. Não é o teatro de Rabelais que embaralhava todas as medidas do humano estimulando novas descobertas do ser. Trata-se de um drama de futricas, de um jogo de fanfarronices e estripulias arbitrárias. Teatro de sombras do cotidiano. Um teatrinho de bosta…

UMA PASSADA NA CATHEDRAL DO CORCUNDA

ZUCA SARDAN
O Marechal Hermes da Bonxeca, com suas barbas colossais, veio visitar o Corcunda.

DOC FLOYD
O Marechal trouxe seu cavalo nas costas e quem potocava era ele

ZUCA SARDAN
Marechal toma o poderoso ELIXIR FERROVIGOR…

DOC FLOYD
Desde quando começou a tomar o elixir seu pocotó é mais garboso… E trota como uma carpa no aquário de um restô japonês…

ZUCA SARDAN
Segundo descobriu nosso repórter Pastinha, há um truque sujo: Sargento dá um clyster de hydrogênio no cavalo que fica levíssimo… Semana passada, Sargento exagerou na dose, e o Cavalo saiu voando com o Marechal pendurado. Felizmente no seu louco voo, o cavalo passou por cima da catedral, e o Sineiro Corcunda, trepando na torre, conseguiu enfiar um apito no cu do cavalo, e o hidrogênio foi saindo e apitando, baixando suavemente e adernando na torre, o que permitiu ao Corcunda resgatar o nosso Marechal.

MARECHAL
És um Herói, Corcunda!!! Salvaste o Pai da Pátria!!! Ganharás uma medalha!!! E que prêmio desejas? Podes pedir o que quiser!!!

CORCUNDA
(modesto, rodando a touca nas mãos) Ai!… meu Marexá… Eu quero uma ciganinha bem tetuda…

ZUCA SARDAN
Marialva dos Pandeiros chegou na torre conduzida pela sombrinha voadora de Miss Toppy. O artefato chegou esbaforido por conta da avantajada arquitetura peitoral da cigana que o Corcunda havia pedido. Aqui o que se pede melhor não perder, disse o Marechal, com sua verve de máximas encardidas.

MARIALVA
É aqui que finalmente é aqui?

DOC FLOYD
A sombrinha após rápido descanso fugiu disparada pela janela da torre.

CORCUNDA
Sagrado é o senhor que me atende. Vou batizar meu prêmio e fazer dela meu único vício.

MARIALVA
É aqui, é aqui, corcunda cegueta…

CORCUNDA
(surdina) Sossega, Marivalda, só estou bancando o cegueta, pra comover o Marechal…

MARECHAL
(saca da espada) Avanti!!! Per la Patria Tutto!!!

MARIVALDA e CORCUNDA
(em coro) VIVA LA PATRIA!!! VIVA IL MARECHALE!!!

DOC FLOYD
Dia seguinte os três corpos espalhados pelo chão entre galinhas e corvos bicando e rasgando o cenário. Marialva resmunga:
Por que será que ainda estou aqui. Como livrar-se de um pesadelo?
Marechal aguava as plantas com seu xixi enquanto o Corcunda espremia uma galinha:
Anda, meu querer, só um ovinho…

FALSO TORMENTO DA REALIDADE

DOC FLOYD
Está concluída? Creio que sim. Tenho que reunir nossos últimos escritos, por vezes penso que daria uma boa antologia a ser publicada, já verei, já verei…

ZUCA SARDAN
Sim, sim, está bem concluída. Tangas e Zcrita-Cordel, melhor curtas… A curtíssima tem a vantagem de ser mais apetecível para as novíssimas gerações. E uma Antologia também é atrativa, justamente quando é constituída de curtíssimas, argumentadas com cartuns.

DOC FLOYD
Navalha bem limpinha e pronta para descascar o olho oculto do mais severo leitor de Pompéia.

ZUCA SARDAN
O Sentinela de Pompéia sempre alerta, usa monoklo e patins para correr quando explodir o Vesúvio.

DOC FLOYD
O Sentinela de Pompéia deu nome a um planfletinho que circulava pelas ruas em zombaria de tudo quanto era lei lacrimosa e títulos de nobreza…

ZUCA SARDAN
Enquanto o Sentinela Dirceu Vão Bestoide lia do Lenin o tabloide, Vesúvio comeu Pompéia.

DOC FLOYD
Alheio à tragédia que causara
Vesúvio cantarolava uma trova
ao ritmo de seu cachimbo que
dizia não crer em choro ou vela.

ZUCA SARDAN
Não acabou a trova, o desditoso
sentinela trovador, cantando
arrastado em cruel torvelinho
pelas larvas incandescentes.

DOC FLOYD
Não acabou o trago, o sonâmbulo
metafísico de bengala, aos cinco
ventos anunciou que uma vez a cada
cem anos uma fênix seduz o fogo.

ZUCA SARDAN
Não sei se ainda terei tempo de ver essa fênix duas vezes. O Oscar Niemeyer poderá ter visto, mas da primeira vez ainda estava de fraldas, e não lembrava mais…

DOC FLOYD
…e na segunda já não lembrava quem era… Sem falar naquela parcela da população que finge que não vê a Fênix, ou a confunde com a ave negra de Hollywood.

ZUCA SARDAN
Em matéria de não ver (com os próprios olhos) a Parcela da população é quase maior que a população total… a Parcela não quer ver nada por conta própria, só acredita no que os Locutores de Tevê lhes contam… Os Locutores de Tevê são os Grandes Sacerdotes da Revelação do Mundo Quadrado… os grandes desastres ecológicos, que estamos assistindo, são devidos aos esforços tectônicos do Globo, em adquirir uma forma de hexaedro, para melhor se adaptar aos aparelhos receptores de Tevê.

DOC FLOYD
A Grande Rebelião das Fibras Óticas começa a mostrar um mundo bem distinto do real, embora já não caiba importância à realidade comprovada, tendo ganho o pleito forjado a realidade condicional. Qualquer mestre de vigarices facilmente convence sua plateia da forma que bem quiser dar ao globo e suas sombras.

THEATRINHO DE BOSTA

DOC FLOYD
Anita e Pedro, queridos
Tenho sentido a ausência de vocês e isto me preocupa, tanto pela amizade quanto pelo destino de nossa publicação. Caso tenha havido alguma pedra no sapato de nossa aventura, digam-me.

PAPISA
No meu caso, nenhuma pedra, Doc, só encontro flores que vez ou outra você deixa cair do seu bolso. Ainda estou em Berlim, viu? E já tínhamos combinado que eu trabalharia para terminar tudo a finais de novembro, lembra?
Beijoooooooos

PEDRO K
Querido Floyd,
Nossos keds especiais de exploradores descartam automaticamente as pedrinhas que por ventura despontem pelo caminho… E, picados pelo vírus da aventura, pedimos licença poética para prosseguir na trilha do desconhecido, na iminência do próximo mergulho nas salas submarinas do Kolax, assim que a Anita retornar de Berlim, e o Zuca da Floresta Negra!

DOC FLOYD
Pedranka
Anita nos autoriza a retomarmos mais cedo pois ela só regressa em novembro. Vamos deixar espaços para ela, eu mesmo penso em fazer algo a quatro mãos com a Papisa. Como a boa cartilha garante que depois da tempestade vem a ambulância, não esperemos pela bonança.
Abraxas

PAPISA
Não, querido, eu volto para o Brasil neste domingo, chegando aí na segunda. Vai ser uma correria desde o começo por causa do concurso que haverá no fim de outubro e cuja banca estou presidindo por razões muito fora da minha vontade, por isso estou pedindo para entrar seriamente no jogo em novembro. Mas estou terminando umas coisinhas para a sala das cartas, brincando um pouco com as experiências aqui em Berlim.

DOC FLOYD
Magnífico, querida. Eu aqui pensando que ias ficar uns meses fora do caos-tapuia. Que venham as cartas. Quanto à ambulância, que ninguém se preocupe, porque será pilotada pelo Zuca.

ARAUTO
Zapata é piloto especialista de Ambulâncias. Uma velocidade de foguete, fura todos os sinais, parando apenas para recolher as vítimas que atropela no trajeto.

DOC FLOYD
Deixa a estrada salpicada dos desejos desancados de tantos corpos atropelados.

PANCHO
Viva Zapata!!! Zum zig Zaaaaaaaaaffffff BANG BANG BANG!!

TORZIDA MEXICANA
Dale Dale!!! VIVA ZAPATA!!!!

MORENITA
(assustada) Tiros!!! Um bandoleiro conduzindo a ambulância!!! SOCORRRRRROOOO!!!

PANCHO
Sossega Muchacha!… Son los pneumáticos que s’esplotaron…

ZUCA SARDAN
Floyd, / eppure… Zuca só atua de autor. Deixemos esta parte atlética para o Zapata.

DOC FLOYD
Pois é, Zapata e seus disparos de pneu, as balas ricocheteavam no espaço e zuniam muito além do que podiam captar nossos ouvidos… Zwiiiiiiimmmmm, zwuuuuuuft, zheeeeeeeeemmm. A estrada se contorcia agachada tentando escapar dos tiros de pneu. As balas perdidas procuravam suas vítimas por sete margens da cena… zwimmm…

ZUCA SARDAN
Enquanto dirige em adoidado frenesim, Zapata vai conversando com o sanitarista Zé Batista.

ZAPATA
A técnica mecânica da nossa Ambulância, com sua precisão de máquina alemã, aboliu os acasos campesinos, que dependem dos caprichos meteorológicos, e mostrou sua superioridade sobre ovelhas, vacas, bois, galos, perus, galinhas e avestruzes.

ZÉ BATISTA
E os bodes… Que você adrede tenta esquecer?

ZAPATA
Os bodes? Não são as mesmas antiqualhas semelhantes aos demais bovinos e caprinos?

ZÉ BATISTA
O mapa confuso das semelhanças acabou tornando inviável o maquinário da analogia. Onde tudo era igual já nada se compara aos anseios de tempo e espaço. Os vírus sobrepostos não se reconhecem ou atuam na direção de sua fábrica de ruínas. Quem sabe em quantos se disfarça a morte?

ZAPATA
Zé Batista, pareces o Arcanjo do Apocalixo, com esta tua obsessão pela Morte… Vais ganhar de presente de Natal um trombone. E Dona Morte dançará para ti a Danza das Sete Mortalhas, que deixará ir caindo uma a uma, ao som do tambor de casca de jabuti tocado em transe com dois bastões de fêmures, pelo Coveiro Derradeiro. Esta cena já vale uma ilustração, que tal?… Morituri te salutant.

ZUCA SARDAN
O-Ro-Ro-Rooooooooooooooo

DOC FLOYD
Viva nosso humor infindo.

ZUCA SARDAN
Se não nos divertimos, não sobra nada. No Lyceo Pytanga, todo mundo estuda muito e ninguém aprende nada.

DOC FLOYD
Por isto que só entramos no Liceu Pytanga pelos fundos e fizemos uns furinhos ligando a sala dos professores ao banheiro feminino.

ZUCA SARDAN
Acho que estás confundindo o Lyceo Pytanga com a Universidade de Friburg, na Alemanha, e o Professor safadão era o Martin Heidegger, e a mocita seduzida foi a Hannah Arendt. O Lyceu Pytanga é a forja de criação dos Titãs e Caboclas do Porvir do Brasil. Ainda não conseguiu produzir grande coisa, porque a juventude só quer saber de se liberar e cai na fuzarca, e não vem às aulas.
Melhor nos concentrarmos no Zapata com sua ambulância e o fiel Sanitarista Zé Batista, que vai recolhendo as vítimas de atropelamento pelo atribulado trajeto da ambulância.

DOC FLOYD
Ora, mas Liduína Malvada fazia estriptíase no balcão da cantina. Os meninos se empanturravam de biscoitos achocolatados e as meninas apaixonadas por germanistas domavam a fuzarca a noite inteira. Dia seguinte os olhos mal se mantinham abertos nas aulas de anatomia com seus vetores indispostos. O busto de Pytanga suava confundindo os horários das provas…

ZUCA SARDAN
Continuas confundindo o Pytanga com a UNIFRIBURG… Fim de papo, Floyd. Este rolim podes queimar.

DOC FLOYD
Zapata guardava no porta-luvas da ambulância uns folhetos encardidos que traziam instruções de como uma coisa parecer outra. Tranqueiras de quando foi espião. Minério de surdinas.

ZUCA SARDAN
Os desenhos do Zapata para despistar suas mensagens, são extraordinários!… Assim, você mira o desenho, trata-se da Gioconda. Sorrisinho de esguelha, farto bustão… Vira de cabeça-pra-baixo, aparece um careca de testa bulbosa, óculos de lentes rosas, botocudas, e bochechões colossais, o velho explode de saúúúúde, mas tem ar carrancudo, e densa barba preta, enorme. Que ele pendura pro lado direito da estampa.

DOC FLOYD
No ritmo em que vamos os meninos logo regressam de suas férias e retomamos a saga de nossas indômitas maluquices. Coloquemos na porta uma tabuleta: QUARTETO KOLAX ensaia no escuro a sinfonia satírica dos sete mundos. Aguardem a estreia de nosso coreto…

PEDRO K
Frida não criou escaras, mas calos nas sapatas… Calo-me antes de envilecer a transfusão fleumática nas nervuras do prosaico tumor que se formou nas ‘náguas com as devidas delongas de um trote-trótski violento jumento enfurecido por ter sido… vilipendiado e assim… por diante.

DOC FLOYD
Que nem Dante nos alcance…

ZUCA SARDAN
Face à insistência de Doutor Floyd, nosso iluminado Tyrano de Syracusa, em furar o muro do banheiro do Lyceo Pytanga, retiro-me deste theatrinho de bosta. Passem bem e tirem o melhor proveito. Abrazzzzzzzzzi per tutti…

O CASO DA BENGALA ESQUARTEJADA

Quero a miiiinha bengala de volta!…
É do século XIX, e tem uma formosa
sereia de prata, esculpida no castão…
E duas iniciais: TL, de seu antigo dono.

O branco deu no galo
O galo deu na luz
Requebra o castiçal
Nenhum vento satisfaz
A bengala do Sardan
Deu um salto na lagoa
Dona Sapa desfalece
Tropeçando no aguidar

Cai lentamente a cortina…

A cortina lentamente
Deu um curta no cenário
Querubins pra todo lado
Zonearam o chimarrão
Toque um fado, toque um tango
Não importa a dor que doa
Saltimbancos no telhado
A cortina foi pro brejo

GERENTE
PLATÉIA AGITADA!!! É isso que queremos!!!… MAIS!!! MAIS!! MAIS!!!

JUVENTUDE REBELDE
MAIS!!! MAIS!!! MAIS!!!

GERTRUDE
(sottovoce) Vamos sair de mansinho, Gaspar, ou essa juventude ensandecida nos trucida…

GASPAR
Não te preocupes, Gertrude, sou professor, sei como acalmar meus alunos… (trepa na cadeira e bate palmas) PLAFF-PLAFF… Atenção meus bravos jovens, Esperança derradeira de nosso conturbado Brasil… Ouçai lá…
Minha terra tem palmeiras
onde canta o sabiá…
Piripi… Piripi… Tatá…

Zé Fininho se abastece
De esperanças que falseiam
De um gole bebeu todo
O sangue da gueixa Sabiá
Vamos sair de mansinho
Disse a turba ao microfone
À nossa frente as palmeiras
Disfarçarão a debandada

GASPAR
(triunfante) Está vendo só, Gertrude… Com minha retórica de veludo… acalmei a moçada…

GERTRUDE
Até aqui tudo bem, Gaspar, mas e a pobrezinha da Gueisha Sabiá?…

GASPAR
Não te preocupes… telefonarei para Frei Feijão.

Ao sair da cabine telefônica
De seu poleiro confessional
Frei Feijão coçou as partes
A batina em grande amasso
Quem nunca viu desconhece
Quem viu – dizem – quer mais
Porém ninguém ousaria falar
Da cor do pecado filisteu

GERTRUDE
Gaspar, li hoje no jornal, um cronista religioso… que se referia, sem mencionar qual fosse, ao pecado filisteu. Sabes lá qual seja?…

GASPAR
Enfim, Gertrude, nunca são convenientes, as leituras sobre pecados… Bem melhor seria leres sobre as boas ações…

GERTRUDE
Tens razão, Gaspar… Melhor nos voltarmos a assuntos científicos… Aliás, li hoje no jornal, com ilustração na primeira página, que os astrônomos conseguiram fotografar o Black Hole!!!… Um buraco preto colossal!!!

Negra peçonha do mundo
Estreita os laços do pecado
Fosse uma vestal revelaria
As suas sombras interditas
O mundo inteiro caberia
Na vastidão sagrada da foto
Sentenciaria então o big bang
A um acorde de gazes do mistério

GERTRUDE
Que disseste lá, Gaspar??? Estavas de olhar esgazeado, e voz cavernosa…

GASPAR
Eu não disse nada, Gertrude… estas tuas leituras de pecados filisteus e buracos pretos estão a te embananar os miolos… melhor será a sessão culinária.

GERTRUDE
Embalsamar?…

GASPAR
EM… BANANAR

Espólio de bananas embalsamadas
E peixes ruminando pérolas gastas
A noite lustrava a prata das luas
Espelhando as naturezas mortas
Melhor servir na bandeja o zoo
de nossas visões metamorfoseadas
O galo engasgado com as manhãs
Pardais cuspindo fora suas casas

GASPAR
Agora eu ouvi!!! És tu mesma!!! que falas essas tenebrosas coisas com voz gutural!!!… Estás possessa, Gertrude!!!… Ai!!! Céus!!!… a voragem do Inferno!!!

GERTRUDE
(olhos revirados, sorriso satânico) Isso mesmo, meu gostoso enrustidão… Mas desta vez não escapas… agora, debaixo desta árvore frondosa… vou tirar teu cabacinho, meu amor de perdição… (dá um salto de onça)

GASPAR
(com Gertrude grudada, por cima) Enlouqueceste, Gertrude?… Há décadas casadinhos felizes e agora… ai!! que tu me esfolas!!! Ai!!! Vais me matar!!!

FREI FEIJÃO
(chega, assustado) Céus!! Dona Gertrude está possuída pelo Diabo!!! Vou exorcizá-la!!!…

GASPAR
(voz agônica) Chegastes tarde, oh, Frei Feijâo!!!… Agora deixa ela me matar… Vai-te embora, sacão…
deixa eu morrer e… GOZZZARRRRRRRRRRRRRRR!!!

FREI FEIJÃO
(apavorado, sai correndo) Ai, Socorro!!!…

PANO
(cai) PLAFFFFF!!! (Ouve-se a 4a. Fuga de Bach)

Cai a anágua do Feijão travestido
Cai o verbo desencarnando-se
Cai a pedra suspensa por Magritte
Cai o último espelho enrugado
E a prece dos vigários saltimbancos
E o culto das megeras parideiras
E a maçã na cabeça oca da ciência
E o moto perpétuo impresso no pano

Mas a cortina ah a cortina essa não cai…

GASPAR
(gemendo) Ai… Fertrude… Ai… me mata mais um pouquinho… AAAiii…

GERTRUDE
Fertrude, não, Gaspar… Gertrude é o meu nome!… estás endoidecendo…

GASPAR
Endoidecendo de gooozo, minha fera Fertrude… me esfola… me mata mais um pouco…

GERTRUDE
Não posso fazer mais, porque a cortina está levantada, a plateia começa a reclamar…

BOAS FAMÍLIAS
Ai, que horror!!! Peça do Gelson Bromires!!! Telefonem pra polícia!!!

CORTINA
(discreta, baixa um pouquinho) Fung-Fung-Fung…

GALERA PESADA
Qualé??? Quem é o basbaque que está baixando a cortina? Pega!!!

TURMA GROSSA
Pega esse bedel de bosta!!! Vamos quebrar-lhe a cara!!!

CORTINA
(assustada sobe depressa) Fong-Fong-Fong…

GERTRUDE
(montada no supliciado) Ai, Gaspar, a cortina subiu de novo!…

GASPAR
Dane-se a cortina, Fertrude, manda brasa, me mata, me trucida, Ai.Ao.AAAUUUUUUU!!!

Um cavalo assustado
Uma pele azunhada
Um potinho de mel
A vida passa ligeiro
Quem vê lá de cima
Logo pensa em cair
Quem vê lá de baixo
Quer mais quer mais

Doramundo, um saltério
Lhe puseram nas mãos
Ficou cego e azulado
Um improviso atrás de outro
Quando veio para casa
Recusou-se a entrar
Até hoje o destino
Cantarola agachado

GASPAR
(tombado, abre os olhos) Ai… Gertrude, que se passou.

GERTRUDE
Ai, meu bem, você tropeçou, caiu, e ciscou a roncar.

GASPAR
(desconfiado) Mas… porque não me acordaste?…

GERTRUDE
Você estava com um ar tão feliz, que achei melhor deixar você dormindo.

GASPAR
Mas… e a peça, Gertrude, já acabou…?

GERTRUDE
Esta peça nunca jamais se acabará, Gaspar…

GASPAR
(preocupado) Não se acabará? E por que??

GERTRUDE
Porque a cortina cai e torna a subir, cai e torna a subir…

GASPAR
(estala os dedos) Plec! plec! Já sei, vou telefonar pro João Batista.

GERTRUDE
O tocador de gongo?

GASPAR
Exato, Gertrude… Estou seguro que é ele que está escrevendo esta peça…

GERTRUDE
O… Armagedom?…

GASPAR
Esse mesmo, Gertrude, vou telefonar e pedir-lhe que venha com seu gongo…

GERTRUDE
E se ele tocar o gongo?…

GASPAR
Acaba-se o Mundo, e acabando-se o mundo…

GERTRUDE
…acaba-se a Peça?… Duvido!

GASPAR
Ouço seus passos… Presto, Gertrude, vamos fugir antes que ele chegue e toque o gongo!… (saem Gapar e Gertrude, entra João Batista de tanga e turbante, coloca o Gongo no palco, alça o bastão e, solene, belíssimo gesto, gira o instrumento… e…) GOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOONNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNGGGGGGGGGG!!!

GALERA PESADA
Parece que agora puseram o enredo no saco…

TURMA GROSSA
E nunca se soube o paradeiro da bengala…


*****

EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: Víctor Chab (Argentina, 1930)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 148 | Dezembro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019



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