sábado, 14 de dezembro de 2019

QUARTETO KOLAX, 2 | GRANDE SALÃO DOS BAGULHOS


Passemos uma gazua de noite na porta do Pavilhão Kolax, encaixemos uns nacos de nossos preciosos bagulhos nalguma Sala mais vazia, e ninguém notará… Numa Sala que chamaremos de Grande Salão dos Bagulhos e que, por virtude de um manhoso novo título, foram transformados em Obras Primas da Arte Conceitual!… Que valem centenas de milhões de dólares, nos Leilões da Sotheby… Assim, aproveitando objetos ordinários, um Nictório [palavra que deriva do nome de Nikê, deusa da vitória, N. do R.] foi transformado em “Fonte”, uma roda de bicicleta em… em… plek-plek-plek, não me vem agora o título mágico à memória… Todavia… mais importante que a Arte Conceitual, e com mais de 500 anos de antecedência, temos a ainda não definida Arte do Bagulho!… Os Bagulhos se iniciaram na Renascença, quando na Itália começaram a valorizar os Bagulhos Gregos, que eram redescobertos e resgatados nas escavações de antigas cidades helênicas soterradas… Vênus Sem Braços, Apolo Sem Bagos, Baco Perneta, e outras peças deslumbrantes que foram admiradas pelos grandes artistas, e mecenas da Itália Quinhentista, e são hoje consideradas Obras Primas do Patrimônio da Humanidade!… E provocam a exultante admiração do público que invade os célebres museus do mundo, o Louvre, o Pergamon de Berlin, o Prado de Madri, e seus pares…

PEDRO K
Como a alegoria da caverna de Platão, a proposta interpretativa batizada de Grande Salão dos Bagulhos deságua num projeto de instalação que tem como palco virtual a presente edição do Kolax, edificando uma ponte conceitual fabulosa ligando os paradigmas da cultura renascentista aos da contemporaneidade, num portentoso arco histórico que se ergue e se dobra até quebrar no meio e desabar em estrondoso cataclismo, criando um fluxo de detritos que se esvai num padrão entrópico de aterro espiralado.

PAPISA
Poucos sabem que no Renascimento Leonardo da Vinci criou seu “Homem de Vitrúvio” para participar de um concurso de quem desenhava o homem mais bonito e proporcional de todos. Ele concorreu e ficou em segundo lugar, pois o júri estava composto em sua maior parte de gozadores e vanguardistas avant la lettre, além de uma pessoa que sinceramente achou as pernas do Homem muito curtas. Quem terminou ficando com o primeiro lugar foi a obra “Boneco de Palito”, pela sua insuperável elegância, indômito minimalismo e misteriosa adaptabilidade. Porém, ao saber do resultado, Giuliano de Medici se enfureceu, desfez o júri e julgou ele mesmo, dando o prêmio a seu protegido. Pouco depois começaram a surgir nos muros de Florença pichações que diziam: O prêmio Medici é marmelada! Foi então quando os capangas de Giuliano, achando que as pichações eram obra do Boneco de Palito, o sequestraram e jogaram em um grande salão, inaugurando assim nosso Salão dos Bagulhos, onde sempre haverá espaço para a dissidência renascentista. E por alguma razão, as pichações pararam.

PEDRO K
Inspirador, Papisa!
Segue a contraparte paisagística do “Boneco de Palito”, menos elegante e minimal, mas também injustamente relegada ao Grande Salão dos Bagulhos, pois se trata de uma tentativa válida de sintetizar a tradição europeia, com genuína e afogueada emoção, fazendo mesmo jus ao sublime e evanescente Claude Lorrain. Também se faz notar, em nossa peça nativa, um sentimento vívido de paranoia caipira, pelo modo como o tronco no qual se recosta o solitário matuto foi ali posto para dificultar a mira de malfeitores que rondam! Helas, eles conseguirão acertá-lo (o “Boneco do Palito”?), mas acabarão todos no Inferno, como pressagia a rubra inquietação atmosférica!

DOC FLOYD
Foi preciso descolar um grande bagulho prensado, para convencer o público de que a poesia deve ser feita por todos. Além de um placar de bagulhos paralelos que rondam as noites tornando os dias mais demorados de surgir no horizonte. Estercos ainda úmidos onde florescem os cogumelos. As moendas caseiras de delírios fornecendo desastres como um catecismo. Detritos reciclados, como aquelas bolinhas gelatinosas adotadas no silêncio cavernoso dos mosteiros. E seus dragões ressuscitados em cada orgasmo.

ZUCA SARDAN
Bagulhos para todo lado, não vá tropeçar, nem enfiar o pé na ratoeira. Evitemos acidentes, pois só dispomos de uma garrafa velha de mercúrio cromo. George se pendura no lustre, de cabeça para baixo. Eis que entra Dona Alétika, gorducha engajada, de tranças, camisa amarela, estrela bordô.

ALÉTIKA
Tuas barbas estão subindo para baixo, Georginho!… Aguenta mais um pouco, que Doutor Marx vai chegar.

GEORGE
(desconfiado) – Qual dos três, Lelé?… Quando alegre partiste, tu me deste uma sova…

ALÉTIKA
Sabe-se lá?… Os Marx, como os três Mosqueteiros, são quatro: três galhofeiros e um cu-de-ferro…

GEORGE
Pois!… Aposto virá o Carlinhos, que é o mais sério. Na certa vai me querer tirar do lustre… Lá se foi meu sossego… Traz rápido, Lelé, o mercúrio cromo…

PEDRO K



DOC FLOYD
Jano, Jano, jamais abandonaste o Vaticano.

ZUCA SARDAN
(AVISO DE CONVOCAÇÃO AOS INTEGRANTES DO KOLAX, 2) Doc Floyd, graças ao seu magnífico Niilismo Inesgotável, merece que inauguremos sulfurosa SALA NOVA que se chamará Sala do RABANETE da GLÓRIA (magníficos saldos do incêndio: tridentes e guilhotinas!!!). Começamos a instalá-la com seus dois teletros de hoje, “RABANETE” e a “GLÓRIA” com seus cães capados. Coloquemos mais sete dos seus por ele escolhidos mais terríveis textos… O-RO-ROOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO… Teríamos para tiradas fumegantes assim três para cada um dos Meninos e três para o Velho do Quarteto Kolax… E… abram as porteiras para a arena do Circo… A plateia vai urrraaarrrr de gooozooooooo… Vão arrebentar o guichet de entrada!!!… Dona Margot fugirá espavorida!!!… (Garantimos que haverá boas surpresas para nossa sulfurosa plateia)…

DOC FLOYD
Mas Zuca, como sabes, a Glória remói seus males na sela de um pocotó esbaforido, e minha salada de rabanetes da revolução já se encontra na Sala dos Dogmas Incuráveis. Mais ainda, a Sala Nova que propões já existe, é esta aqui, o Grande Salão dos Bagulhos, vala comum de todas as virtudes desmembradas e da memória inclemente de tudo quanto não foi possível realizar.

PAPISA
(EXPOSIÇÃO MUTANTE DE BAGULHOS DA MEMÓRIA FLUTUANTE) Uma boneca muito grande, um pedaço da apresentação do desenho animado O Poderoso Thor, títulos de nobreza pulando nos cachorros – um Duque, um Rex, uma Princesa –, sonhos sonhados num colo feito dos anos luz de uma margarida enquanto a televisão passa a novela, o rastro do pulo do gato no meu olho, o vento nas folhas da goiabeira, o vento nas folhas do cajuzeiro, um gesto impaciente, um vestido bordado por gestos aprisionados no tecido. É o que tem para hoje.

DOC FLOYD
A vitrine empoeirada confabulava com as imagens raspadas no papel parede. O gramofone desconjuntado impunha silêncio até mesmo à memória. No chão os rastros de baratas como marcas de um caranguejo ferido se arrastando pela praia. Apenas um velho manequim ainda se mantinha erguido envolto nos destroços de um vestido descorado. A foto foi encontrada no bolso do casaco de K. W., cadáver largado à entrada de Chernobyl. Atrás da foto, em letra quase apagada, ainda era possível ler: Algemas amarradas pela corrente mágica como se fossem casas assombradas.

SALDÃO DE OFERTAS

ARTE SACRA | Pintura a óleo sobre zinco de mestre anônimo da madona com o menino.

ASPIRADOR TAMANDUÁ | Réplica mecânica do Bandeira, excelente para aspirar formigas e baratas.

CAIXA DE CHARUTOS MOLOTOV | Explosivos. Indicados para sua segurança pessoal. Foram usados na Guerra Cisplatina. Aconselhamos comprar a caixa completa, estojo acetinado com proteção contra fungos e fungados.

COMICS RAROS | Almanaque do gibi sem capa e amarelado nas pontas com a reedição do Garra Cinzenta.

DENTADURA DE JOICE TETH | A escrava que amamentou George Washington e depois foi raptada como atração de um circo de horrores. Peça original com as cáries bem conservadas.

ESPANADOR VALENTINO | Com plumas de avestruz e cabo de celuloide elástico, pintado a caráter.

INGRESSOS AFTON DOWN | Coleção de ingressos para a apresentação de todos os dias da edição de 1970 do Festival da Ilha de Wright.

RESGATE HISTÓRICO | Anais do Congresso brasileiro de mineralogia dos anos de 1956 e 1957. O valor das vendas será inteiramente revertido para a goteira que pinga em cima da múmia do Pharó Throk.

SOFT LOVE | Kit de prazeres siliconados, versão 2002, praticamente sem uso, caixa original adornada com fios dourados. Segundo o revendedor a única peça com defeito é um cock rings sem presilha.

SOMBRA DE LUZIA | Filminho apócrifo que captou o desespero do primeiro fóssil humano brasileiro ante as chamas que devoraram o museu onde ela se encontrava.

SORRISOS DEFEITUOSOS | Em lotes de cinco.

VENTILADOR TROPICAL | Embalado com cascas de bananas e uma foto de Josephine Baker, com tanga das ditas.


ALPHORÃO BAGULHADO

DOC FLOYD
Enfim um bagulho de tirar o fôlego. Gravado em uma lua de Marte:





PAPISA
Mas a moça pós-muderna ficou presa na caixinha! E foi devorada pelas irmãzinhas do Mal!


BAGULHOS DA MEMÓRIA

• O AVESTRUZ E O CAMELO

DOC FLOYD
Enterrei a minha cabeça em busca de um avestruz que ousasse aprender a voar. Fui dar em um deserto árabe intrigado com a plumagem que mantinha a ave viva. A teogonia popular apropriou-se de seus dois últimos ovos e os distribuiu entre o bem e o mal. Sua descomunal estupidez fez com que a espécie fosse empalhada, dela restando apenas um exemplar, adquirido em leilão por João Batista Viana Drummond, cuja foto circula por todas as partes. Passado mais de um século, certamente a ave obtusa morreu, embora do espólio do velho João Batista conste que a mesma está bem viva e cuidada pela família, crente de que o avestruz é o principal ícone que mantém a bolsa de apostas ilegais no inconsciente coletivo.

PEDRO K
O camelo possui um karma pesado, acumulado em suas duas corcovas, ou mais pesado ainda caso se trate de um dromedário, ou vice-versa. Um bom psicólogo facilmente enxerga nos olhos do camelo uma disposição inata para comensal, que nunca se conformará ao papel de anfitrião do deserto, buscando sempre adentrar a tenda mais confortável, trazendo familiares e amigos a reboque, para nela instalar-se durante meses, e mesmo, em alguns casos, anos a fio.

• BICHINHOS DE ESTIMAÇÃO DA PAPISA

GALO
A porta passeava pelo jardim, sempre fechada para que ninguém vislumbrasse seus fantasmas. Por vezes a seu lado a janela se abria e recortava a paisagem, deixando-a no caminho. De cada foto saltava um lote de cigarras cujo destino era de todos desconhecido. As sardinhas deixaram a lata vazia atrás de uma touceira esverdeada. Quem sabe acerto no jogo e levo para morar comigo o tamanduá-bandeira. Na sala o galo aguardava o resultado, rindo de mim, pois no jogo não havia tamanduá. A porta desceu a escada até o sótão e lá se escondeu. A janela enfiou-se no fundo de uma gaveta. O tabuleiro lambe os beiços e cospe fora pedaços de cigarras. Quem sabe eu tenha acertado. O galo permanecia em cena, rindo, rindo.

GATO
Pangur Ban, leoa bonsai, dorme no calor obsceno da tarde, sonhando planícies africanas de há milhões de anos atrás. Pangur Ban, a morte na noite do jardim, pratica com libélulas e mariposas, no meio de uma escala que vai de formigas a lagartixas, chegando finalmente aos passarinhos. Pangur Ban sonha passarinhos numa noite africana.

JACARÉ
Jacaré é uma boca com rabo. Jacaré só come e dorme e às vezes nada. A boca cheia de dentes nunca sorri, só abre e fecha. Chega um bicho perto e o jacaré abre a boca e o bicho bobinho entra e o jacaré nhac! fecha. O bicho, nunca mais é bicho nem nada. Depois Jacaré vai nadar, mexendo o rabo de um lado pro outro, com a boca aberta só para não perder alguma oportunidade que se apresente. E depois do depois, cansado de tanta agitação, sai da água e vai dormir. Aí a boca fecha. Dormindo, jacaré é uma pedra, todo cinza, não abre o olho, não abre a boca, não mexe o rabo. Mas se aparecer outro bicho bobo, jacaré dormindo se faz de estátua, quieto, mas com o olho e a boca abertos. Jacaré então é pedra voraz.

DIÁLOGO VAZADO ENTRE O CORVO E O CARCARÁ

CORVO
Por alguma razão, esta tua fala não me havia chegado.

CARCARÁ
Certamente o Lênin não iria pagar o pato… Passou a conta para o busto do Tzar Nicolau.

CORVO
Lênin se apegou tanto a si mesmo que já não paga ou apaga mais nada.

CARCARÁ
Lênin é um busto de bronze… com boné… pros pombos não lhe bostejarem a careca.

CORVO
E os pica-paus desconfiam, com seus bicos insaciáveis, que o busto seja mesmo de bronze…

CARCARÁ
Os pombos não se aproximam muito, ou o busto-Lênin lhes faz um discurso interminável. O Busto tem por dentro um fonógrafo, com radar. Quando alguém chega perto, ele começa a discursar. Seu besticela é o Materialismo Dialético.

CORVO
O materialismo com o tempo se dissolveu, restando apenas o pó da dialética, que segue alimentando as traças da história.


BAGULHOS DA SÉTIMA ARTE

#1 OS MANUSCRITOS DE PANDORA [DF]

Duas caixas de fósforo dialogam como livrar a história de seus fogos mortos. Duas torrentes negras vão dissipando as dores que não representavam bem as aflições da memória. Fingimos nossa atenção e a corte dos pecados cumpridos ao olhar severo das navalhas. Éramos dois e as nossas sombras mergulhavam no espelho escuro das tempestades. Duas fibras encadernando a língua astuta dos livros. Um poço recolhido na gaveta de cada um dos criados-mudos. Duas noites para cada manuscrito. Duas páginas para cada eternidade contemplada. Seivas eliminadas pelas artérias do tempo. Lugares que não se reconhecem por mais que se repitam. Éramos o pigarro da matéria antes de se desfazer aos olhos empastados da sátira de nossos dias entalados. O que somos a bordo das navegações do desejo. O que ainda suplicamos para que uma vez mais seja pronunciado. Dois verbos destronados no vozerio de páginas arrancadas. Duas caixas que são uma só e um mesmo caos renomeado. Frontispício do inferno. Dois pianos mastigando uma última cascata até que os manuscritos saiam de cena.

#2 BREVIÁRIO DA LUXÚRIA [PK]

J & M resolvem abrir uma sex shop numa comercial da Asa Norte.
J: — Ó M, do que é preciso para abrir uma loja de sex shop?
M: — Ó J, é necessário primeiro tirar um brevê!
J: — Vamos pois fazer um curso no SENAC!
Ambos dirigem-se ao SENAC, onde são informados que devem primeiro escolher entre modalidades como “clássico, barroco e contemporâneo”; “massagens de gênero e costumes”; “relax e naturismo”… Depois de um momento de dúvida, resolvem inscrever-se em “clássico, barroco e contemporâneo”, e a partir deste ponto o desenrolar da narrativa toma um viés excessivamente escabroso, além de hermético (era de se esperar, tratando-se de um projeto do sulfuroso cineasta Miroslav Blavatsky!). Segundo a assessoria de produção, Breviário da Luxúria pode, entretanto, ser descrito como uma transposição direta do cantochão da monja Wanja, cujo percurso abjeto culmina na putrefação da carne, com inserção digital de lacraias…
— Ó J, achas que devemos prosseguir nesta modalidade?
— Ó pá, acho que é melhor passar para a de Luxo calma e volúpia no plein air…

#3 O HOMEM-VAPOR [ZS]

Há décadas, nos 40s ou 50s do século passado, no Cine Azteca, um sci-fi japonês, série C, colorido, O Homem-Vapor… sessão noturna, sala quase vazia, sete ou oito expectadores, versão original. O Homem-Vapor apronta assaltos em lojas e armazéns, vai s’arroxeando, se evaporando com a mercadoria, tudo em tom azulado, talvez dalguma velha película defeituosa de saldo, O Homem-Vapor segue se evaporando, num gás venenoso… meio roxo… azulado. Os cientistas tentam em vão inventar um contra-gás, para matá-lo… O cientista chefe, Doutor Toko, de óculos esfumados, fala um japonês intraduzível, não aparece subtítulo. Enquanto isso, O Homem-Vapor se apaixonou pela Ioko Miroka, uma modesta starlette contraparte de filmes classe C, tristinha, tímida, mas jeitosinha, bem jeitosinha… e o casal tenta sobreviver, gozar ainda um pouco, o seu precário e desesperado amor, sabem que estão sendo perseguidos, e agora… o filme já se vai acabando… e eles estão cercados pela polícia e dois cientistas carregando um aparelho que parece um aspirador de pó, mas certamente é um expirador de contra-vapor. Chefiado pelo Doutor Toko, muito excitado, soltando perdigotos e palavrões intraduzíveis, o grupo vai cercando o esmolambado edifício suburbano onde se encontra o modesto apartamentinho da starlette… Final de alta dramaticidade… O Homem-Vapor, para não matar a Ioko, evita se evaporar… e são os dois metralhados pela polícia. Doutor Toko gargalha triunfal, e solta, com perdigotos, um longo discurso, totalmente intraduzível.

FIM

As luzes se acendem, o escasso público vai lentamente saindo…


BAGULHO DAS RECENSÕES

#1 El ENTIERRO DEL CONDE DE ORGAZ [ZS]

Sobre el fresco cadáver del Conde, el cielo milagrosamente se abre, para que Ángeles y Santos reciban el alma del virtuoso difunto. Abajo, a la siniestra, muy discretamente, El Grieco y su hijo Jorge Manuel, fatigados por su duro labor, devoran un cerdo asado.

Dei uma revisão, pois se Santos entram de maiúscula, com mais razão os Anjos, que pertencem a uma categoria superior, conforme acaba de me informar o Padre Jardel, num gentil patrocínio das Bolachas Madalena. Padre Jardel tem uma série de Sermões que, segundo Reitor Fiffo, rivalizam os do Padre Vieira… Se Padre Vieira fala do Céu com os olhos postos na Terra, Padre Jardel fala de Terra com os olhos postos no Purga. Acaba de sair no Boletim do Lyceo, notícia de que os chins pousaram no outro lado da Lua. Para assegurar a autenticidade das fotos, os astutos filhos do Sol Vermelho aprontaram um belíssimo Cu-da-Lua, com bordinhas arredondadas.

#2 AS FREQUÊNCIAS MODAIS NA MOSTRA DO FILME LIVRE [PK]

Nas últimas semanas, nossa aprazível capital foi visitada pela Mostra Nacional do Filme Livre. Segundo os critérios curatoriais estabelecidos, a MNFL deve abranger obras financiadas apenas com os recursos de seus próprios autores, com metragem (duração) indeterminada e parâmetros narrativos que se demarcam de modelos estandartizados. Pudemos casualmente assistir no ano passado uma amostragem em 16mm de 72 min que nos surpreendeu da maneira mais favorável, apresentando um encadeamento simbolista de sequências em preto e branco, em que uma bela variedade de tipos humanos perambulava com misteriosa determinação por ambientes diuturnos de Juiz de Fora. A mostra deste ano foi, entretanto, invadida por filmes que contam com apoio financeiro de empresas e órgãos públicos, ciclos de homenagens e propostas documentais, o que a nosso ver deturpa a corajosa e bela proposição inicial da mostra. Mas o pior não é isso. Nos numerosos intervalos que pontuam as sessões vespertinas o público relativamente parco de aficionados do modelo livre do festival é submetido a uma vinheta cartoonica-musical de 2,5 min., alertando para a interdição de se acenderem cigarros, fotografarem imagens e conversarem pelos celulares, e desejando a todos uma boa sessão. De acordo com fontes seguras, a partir do segundo dia da mostra, foi constatado que vários espectadores passaram a acordar sistematicamente às 04:00 da manhã, reescutando as mensagens musicais acima mencionadas, atingidos por um fenômeno psico-acústico recorrente que parece provir do próprio crânio. Aproveitamos para divulgar o alerta feito nesses mesmos dias na nossa Super Rádio Capital, em entrevista dos integrantes do conjunto Protofonia à jornalista e teatróloga Sheila Campos, sobre as contraindicações e efeitos colaterais do uso de frequências modais hipnóticas, cada vez mais generalizado nos alarmes de celulares e gravações de secretárias eletrônicas, cuja pesquisa pioneira, na primeira metade do século passado, foi patrocinada pelo ministro alemão Joseph Goebbels e em seguida posta em prática pelo cientista Joseph Mengele. Segundo o baixista da Protofonia, se utilizadas com parcimônia e distribuídas entre camadas protetoras de dissonâncias e descontinuidades rítmicas, as frequências modais hipnóticas possuem os mesmos saudáveis efeitos que as suásticas indianas e micênicas proporcionavam ao nervo ótico. Para concluir essa recensão, lembramos outro resultado notável do domínio musical, a sequência de faixas do Long Play Led Zeppelin III, para cuja capa foi dispensada a contratação de um designer gráfico, uma vez que a ideia de inserir um crucifixo com ornamentação gótica no pescoço do vocalista James Joplin foi suficiente para desviar durante anos a atenção de todos os seguidores do Black Sabbath.

#3 NÃO HAVERÁ LUZ NO FIM DO TÚNEL ANTES QUE O MESMO SEJA CAVADO [DF]

Há instâncias em que a ficção desorienta a realidade. Temos verdadeira obsessão por provar um encadeamento lógico da criação artística, ao mesmo tempo em que muitos fatos históricos são aceitos demasiado facilmente e sem a menor exigência de comprovação. De algum modo o ambiente religioso pertence mais à ficção do que à realidade. No entanto, é plenamente aceito como real. Sem ter que justificar-se, como o fazem o cinema e o romance, firmando que foram ao menos baseados em fatos reais. Talvez o problema maior esteja no conceito de realidade, que se volatizou de tal forma que hoje quando pronunciamos a palavra já não sabemos ao certo do que estamos falando. O que deve importar em um objeto de arte, sua veracidade ou seu significado? Acaso um aspecto elimina o outro? A religião é fruto de uma ficção intencional. A ciência vem do pomar do mais puro acaso, em sua obsessão por aprender a lidar com o desconhecido. A religião não tem sede de conhecimento e sim de domínio. A arte é a soma de todas as hipóteses. Aquilo que entendemos como Civilização, e que juntamente consigo arrasta o conceito de Barbárie, seu duplo, é uma matriz defunta que vem se arrastando com insuportável fedor. A espécie humana, como é conhecida, já acabou. Ainda não sabemos o que virá, porém estamos em uma fase plena de catacumbas que bailam.

#4 ENSAIO DO CORO [ZS]

Se não há luz no fim do túnel, é porque esqueceram de fazer o buraco de saída. Será preciso chamar urgente os astronautas Chins que fizeram e fotografaram o Cu-da-Lua usando um saca-rolha a motor. A operação da abertura do Cu-do-Túnel deverá ser ultimada com a máxima urgência, antes que cheguem as mocinhas do Coral do Lyceo Pytanga, que cantarão o Hino da Palmeira, festejando o político Pompeu Celestino, vencedor das últimas eleições, antes que este tome a palavra. Os Chins abrem o buraco do túnel e botam uma bordinha tal qual a que aprontaram pro Cu-da-Lua, artística e ultimada com extrema velocidade: as mocinhas podem tirar a venda dos olhos, e começam o ensaio do Coro, com belas árias do Guarany, de Carlos Gomes, e do Tiradentes, de Eleazar de Carvalho… O sucesso foi estrondoso. Reitor Fiffo quis fazer um discurso, mas lhe subtraíram sub-repticiamente o microfone, e o passaram ao Pompeu Celestino.
POMPEU CELESTINO – Só Vitória!!! Vitória!!! Eu hei de cantar!!!…
SELIM (derrotado nas eleições) – Só Vingança!!! Vingança!!! Vingança!!! Eu hei de clamar!!!
PREFEITO – Venceu a Democracia Liberal!!!
SELIM – Venceu o Fascismo!!! Seu capitalista explorador!!! Seu borra-botas!!!
PREFEITO – Seu comuna ladrão de galinha!!! Seu carola do Rasputin!!!
LOCUTOR (ao microfone) – O teatro inteiro se levanta, e se formam as duas legiões que se empenham na mais fulminante batalha: socos, pontapés, mordidas, guarda-chuvadas…
PREFEITO – Telefonem para a Rádio-Patrulha!!!
MARFISA – Melhor também para a Ambulância…
BEATA – E chamem Frei Feijão, o puríssimo sacerdote, para nos trazer o consolo do Evangelho, e acalmar essas ovelhas desgarradas…

#5 VISLUMBRES DA IMAGINAÇÃO [DF]

Vermeer fascinado com a transferência da imagem, de um plano aberto para a escuridão fechada de uma caixa. Georges Méliès encantado com a narrativa de sombras em movimento, improvisada pelas próprias mãos. Confúcio diante das lentes que o aproximavam de suas palavras. Tudo o que vejo, desde sempre, vai além da própria visão, reflete uma origem que supera o visível. Ver é imaginar. As sombras por trás das letras, o movimento na ausência de vento, a metamorfose do desvio de olhar. As imagens distorcidas celebram um mundo que criamos em seu centro. As luzes nos banham com a intensidade dos desmaios. Um auge… e tudo volta ao princípio, como a cicatriz de um relâmpago. E o regresso é apenas a passagem para outros vultos, outras silhuetas, outras formas inesperadas. Olho o que fotografa Valdir Rocha e não o vejo, porque ele dali já se foi. Suas pistas dispersas em ângulos e cores distraem o mundo, até que uma nova forma convulsione a minha percepção. Ver é não caber mais em si.

#6 ONDE ESTÁ O BUFÃO? [DF]

A artista descreve o método de trabalho na criação de uma tela, mais parece uma tese, engendra infinitos dilemas que ela enfrentou até a descoberta da pincelada final (sim, ela chama assim mesmo). E quando vamos ver a complexidade da tela ela não passa de um labirinto ao modo daqueles antigos jogos de computador, Pacman. Sininho a entrevistou, borboleteando placidamente. – Sra. Artista, olhando bem a sua obra ela me parece de facílima fatura e identificação. Onde estaria a sua complexidade? – Ora, minha boa moça, eis onde radica a engrenagem do conflito, na aparente facilidade da tela. Pois justamente então nos deparamos com a incógnita: como se comunicar com o mundo usando a mais simples linguagem sem perder contato com a arte mais contemporânea e, ao mesmo tempo, clássica? Sininho contrapõe: – Sei, quer dizer então que a Sra. defende um simples complexo? – Alguma dúvida? Após esta série de labirintos eu penso em me dedicar a reproduzir na tela a linguagem das nuvens, quem sabe surja um sol após descascarmos o céu. – Também poderia chover, não? – Claro, claro, quem pode impedir a verdade de se revelar. Ao final da entrevista a artista deu um pincel de presente a Sininho, dizendo que ela mesma poderia buscar a verdade por sua conta e risco.

#7 ÚLTIMO TREM PARA MACAMBIRA [DF]

Os Estados Unidos inauguraram seu primeiro serviço ferroviário em 1830, cinco anos após a Inglaterra haver construído sua primeira rede de trens. A partir daí o sistema se desdobrou em inúmeras linhas, atingindo a marca de 400 mil quilômetros no início do século XX. Em 1850 teve início a construção da primeira rede ferroviária no Chile. Data de 1861 a do México. De 1865, da Colômbia. Em todo o continente, em seus países de grande extensão territorial, o serviço ferroviário tem sido constantemente ampliado, responsável maior pelo traslado da produção nacional. No Brasil, começando pela iniciativa do Barão de Mauá, que havia idealizado uma rede tanto ferroviária quanto fluvial, de 1852 a 1872 foram construídas seis delas e, até final do século XIX, as concessões permitiram a construção de mais nove linhas. Tudo isto somava então uma irrisória extensão de 10 mil quilômetros. Portanto, o escoamento da produção industrial sempre se deu de modo precário, em ambiente ferroviário. A ausência de uma sociedade organizada também foi permitindo toda sorte de desmando da administração pública. Alguém imagina que hoje fizesse parte da pauta de campanha de algum candidato à presidência da República a construção de uma extensa rede ferroviária ligando todo o país? O decantado pacto federativo acaso inclui tal proeza? Brasileiros adoram tripudiar sobre os efeitos, porém ninguém quer sequer conversar sobre as raízes de nossos problemas.

#8 DESISTÓRIA FERROVIÁRIA BRASILEIRA [ZS]

Floyd, merci pelo teu empenho, mas não deu para abrir o grampo. Em todo o caso as tuas tiradas são magistralmente informativas sobre tudo a… DESISTÓRIA DA ESTRADA DE FERRO NO BRASIL. O assunto é tão importante, que valoriza muito o Kolax 2. Como eu sou mais do Estylo Galhoffo, minha tirada seria para distrair um pouco leitoras e tores que, após as verdades de tua última tirada, merecem um pouco de refrigério, porque sabe-se lá se vem nova paulada dantesca… Coloque então esta tirada após a tua última. Pro intermeio, talvez algum de nossos parceiros se anime. Em último caso, irei galhofando do fim até o começo entre tuas tiradas. O problema é que eu preciso responder sem ver a tua tirada, porque o papel-grampo não aceita minhas tiradas (talvez tenha lá suas razões) e sou forçado a escrever sem reler a tua tirada, o que, para o Reitor do Lyceo, dada sua memória furada plek-plek, é meio difícil. Em todo o caso, tudo o que já escrevi agora, já vale por uma tirada final.

#9 A PEDRA INESPERADA [DF]

Na noite de autógrafos de sua poesia completa, o ainda jovem poeta, no frescor de seus 60 anos, apresenta o livro como sendo seu último, apoiando sua decisão no fato de não querer repetir-se, como muitos outros poetas em seu país. Após a apresentação da obra pelo crítico Pietro Salmón, do jornal Oblivion, o poeta resolve dar um relato de algo curioso ocorrido quando preparava os originais para a edição, uma vez que dos poemas eles próprios tratem de falar. Emocionado o poeta, resolvo aqui dar um resumo de seu relato: Ao desembarcar em Sidney, levando comigo uma impressão da obra para a revisão final, o outono me sugeriu maior atenção aos galhos caídos pelas ruas do bairro onde passei dois meses. Em minhas caminhadas matinais dei com um tipo de casulos de sementes e os fotografei à exaustão. Certa manhã, eu me deparei com uma pequena pedra branca ovalada, pousada sobre um graveto, e ambos sobre uma imensa pedra – o parque era repleto dessas pedras gigantescas cravadas no chão. Levei a foto comigo – assim como todas as outras, cuja montagem se definiu como a abertura dos capítulos do livro –, de volta ao Brasil. Uns dias depois eu dirigia e, de repente, ao olhar para o retrovisor encontrei uma senhora envelhecida no banco traseiro do carro. Antes que eu tivesse tempo de me assustar, ela esticou o braço por entre os bancos dianteiros e vi em sua mão aquela mesma pequena pedra branca ovalada que eu havia fotografado no parque australiano. Deu-me o objeto, fixei meu olhar nele e quando ergui a cabeça não havia mais ninguém no carro. Naquele exato instante eu decidi qual seria o título da obra e sua capa.


BAGULHOS MUSICAIS

#1 AS LINHAS CEGAS (CÓDIGO SECRETO) [PK]

Finalmente lançado o único LP da banda mais cultuada dos anos 1980, desfeita antes da mixagem do disco que finalmente pode girar nas radiolas das melhores lojas vintages, graças aos esforços do guitarrista e fã Hélio Zyndskt. A trágica história do grupo, ainda não completamente esclarecida, foi marcada pelos conflitos entre o guitarrista João e o vocalista Zé, que já divergiram na escolha do nome da banda e do primeiro disco. Alguém teve que ceder, mas depois estabeleceu-se um impasse em torno do cerne conceitual do trabalho, que, para um, deveria referir-se a fluidos orgânicos do corpo e, para o outro, às imensidões submersas dos oceanos. Esse dilaceramento interno marcou as apresentações live do conjunto, conferindo a elas um grau de ebulição que revolucionou a década e imprimiu novos standards às modalidades que evoluíram para uma sonoridade lounge. Infelizmente, as partes conflitantes não quiseram ouvir os argumentos conciliadores da empresária Wanja G., para quem o código secreto dos fluidos orgânicos poderia mapear, por linhas cegas, os oceanos submersos, e a história terminou como todos sabem…

#2 BAIÃO DE LÓTUS (A DANÇA DO SONÂMBULO) [DF]

Terceiro disco de um grupo que funde a música nordestina com mantras hindus, em notas prolongadas de uma rabeca acompanhada por alaúdes dobrados e repicados. Cândido Zimmer, autor das músicas e solista de sursringār e rabeca, faz ressoar de cada peça uma sensação envolvente que nos leva de uma parte a outra do planeta na mescla de cantos e ritmos. A peça que dá nome ao disco sugere viajar por um insólito encontro entre shehnai e pífano, tabla e pandeiro. Seus oito minutos atuam com uma sonoridade hipnótica das mais belas. Em entrevista à rádio Vistosa de Altamira, durante excursão que o grupo fez pela região norte do Brasil, Cândido Zimmer, indagado sobre o insight daquele fascinante encontro de instrumentos entrelaçando a música popular de dois povos, disse que tudo se deve ao mais pleno acaso, pois haviam ido a Jaipur em busca de alucinógenos para uma experiência com composições musicais, quando, caminhando pelas ruas, ouviram aquelas melodias e cantos misturados e por instante juraram que daquela algazarra voraz saltavam os acordes característicos do baião.

#3 CELEUMA ÍNTIMA (OS DIAS CONTADOS) [P]

Esta é a história da resenha de um disco que só ouvi a capa. E isso porque falei o nome em voz alta. O disco se chama Celeuma Íntima ou (Os dias contados), para mim não ficou claro, mas deve existir uma forte relação entre as duas coisas, porque uma vem escrita debaixo da outra. Provavelmente uma celeuma íntima levou a pessoa que fez o disco a ter seus dias contados. E perguntaremos, que tipo de celeuma íntima? Isso também não se manifesta direito na capa, a celeuma pode ser íntima no sentido psicológico, coisa só da cabeça da pessoa, ou íntima porque é dele(a) e da(o) namorada(o). Seja como for, nota-se pela garrafa, ocupando o centro da composição, que o problema foi a bebida. Um dos dois enchia a cara, ou os dois enchiam a cara, então o disco está cheio de música arranhada e bêbada, bem vanguardista. Ao redor da garrafa tem três bolas de tênis, com as quais o casal se agredia continuamente, introduzindo na música um plec-plec inesperado das bolas batendo no chão, depois de paf! terem golpeado o instrumento ou mesmo a cabeça de alguém. Observamos no canto inferior direito uns objetos redondos e planos. Falaria sobre eles, mas não tenho a menor ideia do que sejam.

#4 ABISMO PERFUMADO (ROTAS AVULSAS) [DF]

A imprensa deu esta semana a notícia da morte de Ramiro Freixo, criador da banda Abismo Perfumado. Morte súbita e violenta, Ramiro foi espancado e deixado largado em um beco. A polícia, como é comum em nosso tempo, não localizou pista alguma dos responsáveis pelo crime. Em última entrevista que nos deu, há poucos meses, Ramiro Freixo falou da impunidade injustificável do país, mas, sobretudo, nos contou um pouco do trabalho renovador que vinham preparando, a gravação do disco Rotas avulsas, cuja gravadora ARC Discos vem anunciando para as próximas semanas. Nossa reportagem teve acesso à capa do disco, que aqui reproduzimos. Abismo Perfumado é um quinteto que tem em sua base a balada, com uma insólita formação de instrumentos: fagote, oboé, tablas, bandolim e harmônica. A ausência de bateria alia-se à sutileza das vozes e as letras evocam uma complexidade de abordagens sobre a banalidade do ser, um desencanto que não se define ou conclui, daí a preciosidade do título: Rotas avulsas. Com a morte do bandolinista Ramiro Freixo, impossível prever a sequência de um dos trabalhos mais maduros em nossa música popular.


O BAGULHO DAS CARTAS

DOC FLOYD
A primeira delas veio remando e quando a encontraram parecia haver saboreado metade dos oceanos. As cartas d’água sempre chegam primeiro, não há ciência que compreenda o recado que elas enviam de outras eras. Águas paralelas, decerto. Um empório de almas afogadas. Deriva prosaica de elementos perdidos na superfície terrestre. Dejetos da memória e do sonho. Esgarçados manuais de sociologias que perderam o rumo da prosa. As letras molhadas ruborizam todas as ilusões. Os catecismos arrematados em um leilão de cinzas. Quem sabe um novo alfabeto surja por entre os dentes das ondas mais altas. Tsunami alegórico. Uma das páginas rasgada como a pele de um lagarto congelado. Mas ainda lemos:

Elas dançam nuas, endiabradas e translúcidas,
feiticeiras tecendo seus mágicos vestidos.
No paraíso opalino de corais, enfeitam cabelos,
quadris e seios, com algas carnívoras coloridas.
As sereias mergulham no coração dos adormecidos.
Esfaqueiam o firmamento onírico, crime deslumbrante:
o céu ferido sangra suas mais furiosas safiras.
Elas brincam, repletas de ritmo, com um perfume
que rapta serpentes, enlaça os cipós da estrada
e as veias que traçam o destino de cada mistério.
A beberagem de seus olhos desvela o frenesi
da paisagem seduzida por algas e rios turvos.
Seus feitiços flutuam sob as águas, dissolvidos
em melodias arquitetadas pelas correntezas.
Escuto o nome de cada uma delas cobiçando
as sombras com que singramos tempo e vertigem.


O título meio embaçado – AS SEREIAS DESFIAM O INFINITO CETIM DOS SONHOS –, porém ainda legível a dupla assinatura, manuscrito a quatro mãos por Floriano Martins e Anna Apolinário. As cartas d’água trazem consigo a quintessência dos mistérios náuticos. E doem em nós, quando pensamos que o mundo caminha para ser devorado pelo sol.

ZUCA SARDAN
A sombra do epistolista assombra o destinatário.

CARTA DA VIÚVA PIVOT
O gênio epistolar da Viúva Pivot vai-se evolando na literatura do fim do Século XIX em prestígio helicoidal, a partir de sua mesa Luiz XVII de pernocas finas e retorcidas, donde a espiral de cochichos da epistolina (ou epistoleira?) alça voo, qual borboleta inconsútil, sussurrando, atinge o teto e penetra no andar superior, onde habita um vidente, Dr. Xarkot, leitor de cartas de Tarot, que imantadas pelo balbuciar da Viúva, contam o infausto caso de seu marido, o egiptólogo Doutor Odilon, por Madame Pivot chamado de “meu Odilon”, e que sumiu no trágico naufrágio do Titanic, montado em sua mala de couro de crocodilo, tendo sido visto passar ao largo da Jangada da Medusa, que ele prudentemente evitou abordar, malgrado os veementes apelos da Medusa, gigantona de titânicas tetas, “vem meu amor, vem que tu me comes e eu também te como numa louca paixão”, Doutor Odilon porém, soube resistir ao lascivo antropofágico apelo, e se foi mar afora até que sumiu… no horizonte em chamas pelo Sol se afogando ao crepúsculo, o Sol que bradava não quero morrer, não quero morrer!


FRAGMENTOS DE UMA CORRESPONDÊNCIA

PAPISA
Doc Floyd, tudo indica que somos claramente incompatíveis. Quase nem nos gostamos. Por favor, não me escreva mais. No vulcão Poás tem um lago. Uma vez meu irmão Carlito entrou nele e saiu cheirando a enxofre. Foi a aventura vulcânica dele. A minha foi no Arenal, como você sabe, um vulcão ativo. Fomos subindo eu, meu namorado e dois amigos, enfim, quatro malucos sem-noção. Já tínhamos subido um bocado quando o Arenal começou a cuspir umas pedras e a falar rouco. Nos entreolhamos. Descemos correndo.

DOC FLOYD
Conheço os dois. Meu melhor lago vulcânico foi no Equador. Percorremos em uma canoa, remada por um índio. Quando uma amiga percebeu que era vulcânico (ah despistada, uma adorável poeta peruana) ficou assustadíssima. Eu até ia te contar mais algumas aventuras, mas como declaraste que não nos gostamos e pediste para não mais te escrever, então paro por aqui e nem um beijo eu te envio, para que não tenhas uma recaída e voltes atrás…

PAPISA
Não sei do que você está falando. Quando tiver vontade, me conta.

DOC FLOYD
Dada a nossa incompatibilidade, Papisa, melhor não falar do chá de coca que preparei para caminharmos à noite no Atacama. Ou da mesa que preparei no mirante do vulcão Baru, no Panamá. Uma cabra e um galo no corredor do tempo, um tentando adivinhar quais os cômodos distribuídos pelo acaso para cada um.

PAPISA
O universo dá uma janelinha para cada um. A gente só sabe de outras paisagens se perguntar ao ocupante de outras janelinhas. Afe, que estou profunda hoje!

DOC FLOYD
Deve ser a altura! O mundo visto das janelas mais altas parece ser bem profundo. No entanto, quando mergulhamos em sua sopa de letrinhas, ai ai ai, o balão murcha e ficamos sem palavras.

PAPISA
Ficamos sem palavras usando as letras da sopa como boia…

DOC FLOYD
O prato foi devorando as próprias bordas, o líquido se derramando na colcha do infinito, as boias perdendo a trilha de volta ao lar, o céu, o céu, quem dera uma hora dessas e caíssemos no céu…

PAPISA
Quem sabe qualquer hora a gente cai mesmo…!

BISPO SALVINO
Secondo il Xeratore Romano, xé venti di crise nel Vaticano, finita la fiducia, il Papa Poncho vacila, i dice a sotto voce attendo qualque sì. Eppure… il Capidoglio reduce di 13 millardi fiorini i fondi a rischio in cassa. Ecco dunque uno pasticchio nuoto a rischio. Aunque non confermata, sembra una notizia da vero.


PALÁCIO DOS PRAZERES LÍQUIDOS

Acima de nossas cabeças, por vezes visível, em outras nem tanto, mesmo quando apenas imaginadas, circula uma grande nuvem, velejando pelos hemisférios, como uma casa-móvel, conhecida de todos, confirmem ou não, como o Palácio dos Prazeres Líquidos. Logo no salão principal há um destacado cartaz de plasma cujo conteúdo transmitindo initerruptamente indica todos os serviços da casa. Variedade incalculável de perversões, difamações, trapaças, romances a preencher o gosto de toda a clientela. Dizem que um dos criadores, Bispo Salvino, após exaustivas discussões com o Concílio das Causas Digressivas, estabeleceu uma tabela de preços pensando nas classes menos favorecidas, que, segundo ele, também teriam direito a toda sorte de prevaricações estilizadas.

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Terminada a leitura do Salão dos Bagulhos (sustenido hum). Magistral! Destaque para o registro ferroviário do Floyd, a recensão do disco da garrafa com bola de pingue-pongue da Papisa e as imagens de multidões polarizadas do Zuca. Mas, existem falhas no comentário da pintura Incêndio na Mata: é preciso tirar as aspas de “Boneco de Palito”, e, deve-se ler, na sequência, Boneco de Palito e não do Palito. As letrinhas do desenho de Pedro K sobre o poema do Zuca “Nefreteta voltou pra gaveta” precisam ser suprimidas e refeitas em arial 11. E o tamanho do desenho, convertido para 250%.

Obs: as recomendações acima não precisam necessariamente ser seguidas. O presente texto destina-se a ser incorporado ao fim do Salão dos Bagulhos

Pedro K apócrifo fechando o Grande Salão com chave de ouro!


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: Víctor Chab (Argentina, 1930)
Ilustrações assinadas por Floriano Martins, Anita Borges, Zuca Sardan e Pedro Alvim


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 148 | Dezembro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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