sábado, 14 de dezembro de 2019

QUARTETO KOLAX, 2 | SALÃO DA GLÓRIA – PRÊMIOS & FUROS


As ideias vão encaracolando os cabelos da trupe diretiva na Fundação Quarteto Kolax. Um prêmio, diz Doc Floyd, o que seria melhor nesses tempos bicudos e corcundas do que um prêmio, e prêmio que pusesse em cheque a própria noção naufragada e corrupta dos prêmios? As vozes se mesclavam entre eles. Qual a natureza do prêmio? A quem dá-lo? Como buscar a atenção dos tarifeiros da corte e dos pasquineiros?

DOC FLOYD
Tudo muito simples. O prêmio teria o nome Kolax, como bem se faz em casos de vasos comunicantes. O escultor Severino Martulius, famoso por suas aranhas gigantes empalhadas, poderia cuidar da estatueta. Alguém falaria com o rábula Gelson Gautério que veria um modo de tirar da cadeia o explosivo repórter Belfrate, preso tolamente por conta de um apartamento roubado que usava para refinar seus minérios. A primeira entrevista sairia em um tabloide marrom, o Nanico Porkoff, seu diretor nos deve uns sacos que esqueceu de puxar. Paralelamente negociaríamos com a famosa modelo Vespina, que apresenta um talk show na televisão, uma segunda entrevista, para conter os ânimos da outra margem de eternos resmungões. E nada melhor do que o crítico de artes Pedro K, para dar seriedade plástica ao trabalho de Severino. Comecemos:

SENSACIONAL FURO DO NANICO PORKOFF – MYSTÉRIOS DO QUARTETO KOLAX

Graças a oportuno habeas-porcus do grande cara-de-pau advogado Gelson Gautério, eis que nosso manhoso repórter Belfrate, foi ontem liberado dos grilhões da tirania nevropata duma Justiça esclerosada numa inação apática para liberar inocentes úteis, e incapaz de aprisionar criminosos afranhudos e puxa-sacos dos áulicos do Poder. Tratou de sair rápido da Delegacia, o nosso atilado Belfrate, e partiu célere para entrevista com Doc Floyd, que ocupa, entre outras 416 funções em diversas empresas, mais umas 789, na direção do Quarteto Kolax.

GAUTÉRIO
Prezado Doc Floyd, o Tempo é curto e a Arte muito difícil… Mas Madame Bolonha acha que a Arte, com o desregramento de costumes neste Século 21, passou a cair na gandaia desenfreada. Até na Ópera, outrora tão distinta, agora aparece todo mundo nu em cena, em descarados pega-pegas de bailarinos e bailarinas seminuas, enquanto o público deixa-se ficar abestalhado em suas poltronas, assistindo de casaca e roupas de gala, o desbundado pega-pega que se desenrola no palco. Que acha, Doc Floyd, desta paradoxal situação. Que aconselharia o Senhor ao público?…

DOC FLOYD
Se algo realmente estranhamos na passagem do tempo é que ela vinha se dando mais ou menos de modo linear até o passamento do Século XX. O que houve, a partir daí, foi um golpe, certa noite fomos dormir a última noite de uma centúria e manhã cedinho acordamos em plena Idade Média. Como apontava a então amalucada profecia de um poema escrito há quase 30 anos, O Século XX jamais dará no XXI. Como regredimos no tempo, é natural que os juízos se embaralhem, o que acaba por gerar uma perene suspeição de hipocrisia de toda ordem. O público deverá aprender a lamber a lâmpada de novas visões. Buscar às tontas a representação de um tempo que teima em repetir um remotíssimo passado.

GAUTÉRIO
(olha para o lado, em grande excitação) Mas… Doc Fumex!… Eis que o surpreendo meio atrás do busto de coral de Dona Cespedes!… Aproxime-se, Doc Fumex, diga alguma coisa sobre o Quarteto Kolax, de quem temos aqui o insigne representante Doc Floyd. Talvez possas lançar um pouco de suas luzes metaplásticas e cataclísmicas, sobre nossa reportagem.

FUMEX
Sim, estava eu aqui em emotivo solilóquio dialogal com o busto de coral da celestial Dona Cespedes, e não ousava aproximar-me de vosso diálogo de Titans!… Por suposto, o busto de Cespedes é muito sensitivo, as pecitas de coral, ajustadas por engenhosa conformação, foram habilmente encaixadas de modo a terem uma vibração intensa à brisa, o que provoca ondas sonoras que repetem, exatamente, a voz de Cespedes, a quem tanto conheci em minha primeira mocidade, e por quem minha juvenil admiração transformou-se em uma paixão platônica, jamais confessada, embora intuída pela sensível Cespedes, coisa dos séculos passados, e que hoje parece, à juventude deste século, velharia romântica. O escultor Severino, então famoso, tinha, ele também uma paixão secreta por Cespedes, e fez este busto ciciante para ouvir a voz amada… Confessei-lhe: Eu também, Severino, tive uma paixão platônica por Cespedes… E ele me respondeu, com esfingético sorriso: sim, foi romântico o teu amor, meu jovem, mas o meu não!… O nosso foi um amor fulminante, que não conhecia limites, e ia nos arrastando em furiosa paixão… a família poderosa se interpôs entre nós, e dela fui afastado à força de ameaças sem limites… Cespedes era divinamente… cruel!… Era uma aranha em forma de gente… para amar, precisava devorar… escapei por pouco, à força, desta loucura… Mas sabia que Cespedes iria me devorar… na atroz voracidade erótica de sua louca libido… fiz dela uma outra escultura, mostrando seu lado destrutor… a escultura era uma aranha colossal, pendurada por um fio de aço no teto… uma aranha terrível… de seis pés. A fulminante paixão de minha vida.

SIRACUNA
(as lágrimas lambendo seu rosto) Ah como chega bem perto de mim essa lembrança do adorado Fumex! Como me sinto escavada por sua vastidão narrativa. Que pluma! Que vendaval! A grande aranha me faz lembrar os cipós de outra escultura, que tão bem espalhou pelo cenário a artista a quem queremos ofertar nossa homenagem a mais vultosa e sincera, a deusa dos mil fios encantados que são como viçosas corais que sibilam em volta de seu corpo, pescoço abaixo.

VÃO HODDISSEUS
A primazia que se abre diante de nós como um roseiral falante, essas lentes com que vemos o mundo regurgitando sonhos perdidos. Quantos de nós poderão dizer que esta noite será a verdadeira revelação de uma mulher que esteve marginalizada por 70 anos!

SIRACUNA
Cespedes?

VÃO HODDISSEUS
Não, eu me refiro a outra deusa e sua silhueta que contém mil portas que dão para tantos mundos quanto a nossa imaginação possa destampar.

SIRACUNA
Quem?

VÃO HODDISSEUS
Deixo que nos revele seu nome Doc Floyd, mas não sem que antes lhe indague Belfrate que, afinal, é o regente desse furo jornalístico…

SIRACUNA
E por que não posso eu indagar?

VÃO HODDISSEUS
Porque Doc Floyd é o último lírico de um século 21 atulhado de vãs obscenidades, e certamente não haveria de querer aparecer nas páginas dessa porcalhada do vil Nanico Porkoff. Não sei por que o Marechal insiste em deixar circular tão asqueroso pasquim… Afinal… a liberdade de imprensa deve ter seus limites, para preservar a família e a sociedade. Estamos em plena tragédia do Titanic, o infausto vapor foi um sombrio presságio do naufrágio do Ocidente, neste século tenebroso em que estamos condenados a viver, por nossa própria culpa.

SIRACUNA
(cara de poucos amigos) Humpf! Vamos ver que espécie de repórter será este Belfraco.

VÃO HODDISSEUS
Belfrate…

SIRACUNA
Tanto faz.

BELFRATE
(rabiscando algo em seu caderninho) Meu caro Doc Floyd, trago comigo a notícia de que esta nova edição do Quarteto Kolax está repleta de novidades as mais quiméricas, sendo uma delas a criação de um prêmio de anunciação de valores esquecidos, espécie de bolsa das intempéries ocultas, ou refinado baú de essências deixadas para trás. Poderia nos dizer algo a respeito?

DOC FLOYD
Se fôssemos evidenciar criadores defuntos certamente atuaríamos como descoveiros, reabrindo túmulos para trazer à glória nomes que em seu tempo a mereceram. A glória, no entanto, nos deu tarefa que me parece mais vital, a de alertar a todos para grandes criadores desprezados pelos bastiões da crítica enquanto eles ainda estão entre nós. Por isto bolamos o Prêmio Finel, que terá edição única, em nosso Quarteto Kolax 2.

BELFRATE
Poderia, prezado Mestre, adiantar-me o nome do premiado? Garanto-lhe notícia em manchete na primeira página do audaz Paskim Porkoff, que embora oculto nas bancas mais pudibundas, abunda de bundas das mais charmosas caboclas do nosso teatro rebolado, e destas ousadas fotos nosso mestre-typographo Agassis aproxima ao máximo as sanguinolentas fotos dos cadáveres dos bandidos mais tenebrosos, fotografados em close de boca aberta, e língua de fora… E procura artisticamente amalgamar as fotos de modo a que os cadáveres dos marginais com suas sedentas bocarras se aproximem ao máximo das apetitosas curvas das estarlettes… Mestre Agassis é um gênio!… Decidiu que o nosso rotativo seja impresso com letras vermelhas, e se espalhem algumas borradas que sejam exatamente iguais a manchas de sangue… Nosso Pasquim, embora oculto nas bancas, é o maior besticela de toda a América Latina, e recebemos milhões de cartas, do México, Bagdá, Rio de Janeiro, Cremona, Cochabamba e Bucareste.

DOC FLOYD
Certamente. A nossa premiada tem uma singularidade encantatória, pela magia com que maneja (ou se deixa manejar por) traços e pontos de luz e verbos. Seu nome é Leila Ferraz e desde já é bom não confundir com uma anônima atriz de filminhos pornôs. A nossa Leila é uma das mais férteis poetas deste país desagregado, com uma poética que mergulha nos labirintos subaquáticos do erotismo, seus verbos possuem guelras que identificam as características de cada mínimo fragmento do oceano que cria em seu íntimo. Sim, Leila Ferraz, também ela uma fotógrafa ousada, com imagens que escavam as miradas mais recônditas. É uma voraz paisagista da alma humana.

BELFRATE
Muy bien, Doc Floyd. Gravei e vou publicar tal qual a sua instigante revelação. Mais uma vez o Pasco Pornoff se coloca na vanguarda da imprensa de Nuestra América Latina, del Pol Sur, y pasando por el Lago Titicaca, hasta el Pol Norte, y, pasando por el estrecho de Bhering, hasta Rússia, Mongólia, China, Coreya y… Macau.

DOC FLOYD
Assim? Só isto? Não queres saber mais nada? Ah a imprensa repete os mesmos vícios e bordões, tudo papinha rala, sem tutano. E desgraçadamente a vida a todo instante imita a imprensa. Deixou de imitar a arte e passou a refletir o descalabro das rotatórias…

BELFRATE
Lá isso é verdade, Doc Floyd… mas a imprensa reflete a sociedade… e hoje em dia a sociedade só quer saber de sangue e sacanagem… Como é que o Senhor pode aguentar por mais de 40 anos seguir lutando pela Arte, enquanto um artista americano ganha a Bienal de Veneza, contratando carpinteiros-santeiros da Itália para fazer uns presépios tal qual os que fazem para as procissões, apenas trocando os santos por personagens em cenas de sacanagem?… O artista nem se deu ao trabalho de explicar as cenas, ordenou aos santeiros usassem suas próprias ideias, esculpindo quais sacanagens conhecem, e quais outras gostariam de conhecer… Naturalmente saíram sacanagenzinhas simplórias e caseiras…

FUMEX
(intervindo) Mas foi justamente isso o que convenceu os jurados a conceder-lhe o prêmio!… A trágica ingenuidade dos carpinteiros!… arrancou lágrimas dos jurados socialistas que deram o prêmio ao artista americano pela sua arte conceitual!… Naturalmente os carpinteiros ficaram felizes e resolveram fazer outros trabalhos de sacanagem. Mas estes, embora praticamente iguais aos encomendados para a Bienal de Veneza, não tiveram sucesso algum, e acabaram sendo vendidas a preço de banana a igrejinhas do interior, onde os campônios e campônias eram ledamente iludidos pelo padre, que lhes assegurava de que se tratavam de cenas de devoção doméstica…

BELFRATE
(irritado) É bom arrolhar por ora essa vã verborreia, Fumex, e parar de interromper minha entrevista com Doc Floyd. Eu tinha acabado de fazer-lhe uma pergunta percuciente, quando você imprudentemente me interrompeu.

FUMEX
Tão aguda que foi para o espaço a tua indagação! Por quanto não terás comprado um diploma!

GAUTÉRIO
Belfrate, não te assanhes. Melhor não dar ouvidos a este insolente provocador. Do contrário, acabarás violando algum parágrafo da soltura que tanto trabalho nos deu e para o xilindró terias que voltar e desta vez quem sabe qual novo acordo o Demo exigiria para te libertar. Anda, respira e refaz a pergunta. Ou faço eu, para dar nova sintonia à perguntação. Explique aos leitores, Doc Floyd, como se chegou à ideia de instituir um prêmio em total desacordo com as práticas de nossa cultura…

DOC FLOYD
Esta foi justamente a parte decisiva. Desautorizar a realidade a seguir seu curso de desvario. As estribeiras de nossa cultura engoliram a bússola já precária de seus valores. Ninguém se entende mais com ninguém quanto aos destinos das artes e seu grau de influência nas massas tornou-se uma tática voraz do bestial. Só existe a arte que sai na TV e a TV é a caixa mágica de imbecilidade. Uma fábrica de despovoamento cerebral. Quando a Fundação Quarteto Kolax começou a atingir um grande número de público, seus criadores decidiram que melhor oportunidade não poderia haver para tentar desandar um pouco a rotina de pusilanimidade. Um prêmio daria notoriedade, a imprensa se interessaria por ele, e assim começaríamos a praticar nosso plano. Nada melhor do que a acertada escolha da poeta Leila Ferraz, cuja poética toca em tantos furos na canoagem de nosso tempo, tantas pulgas cria nas orelhas de nossas parabólicas culturais, tantos sonhos recolhe entre os inúmeros derramados pelo chão… E o primor da estatueta que lhe dedicamos, obra maior de nosso artista, o escultor Severino Martulius.

BELFRATE
Que beleza, Doc Floyd !!!… Passe-me uma foto de Leila Ferraz e outra da estatueta do Prêmio Kolax que as coloco ocupando toda a parte de cima da primeira página, coroadas pelo sugestivo escudetto do Nanico Porkoff

FUMEX
QUAAAA-QUAAAAAAAAA-QUAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!!!

BELFRATE
Qual é a graça, seu merdalhão de bosta???


SIRACUNA
Que falta de compostura!… Que ultraje às letras nacionais!… Esse paparrato semianalfabeto, vão moleque apóstata da brasilidade, tenta ultrajar, com suas blasfêmias ignaras e brutais um dos últimos defensores da nossa última flor do Lácio…

FUMEX
(emocionado)… inculta e bela… A parte inculta, Dona Siracuna, em vez de tentar melhorar seus toscos conhecimentos, prefere o facilitário da putaria.

SIRACUNA
(em lágrimas) Oh, Professor Fumex, tu quoque, meu Cysne do Lago do Jardim Zoológico do Parque do Castelo Imperial, tu quoque, após o incêndio do Palácio, crime da displicência e descaso das autoridades incompetentes, tu quoque, cais neste fétido lamaçal da Porcalhada Pós-Moderna!… E usas o linguajar do Nanico Porkoff!…

FUMEX
(puxa um lenço colossal do colete) Oh! Dona Siracusa… sniff-sniff (abre a torneira do choro) chuááá… chuáááá… chúáááá…

SIRACUNA
(abre o guarda-chuva) Siracusa não, Fumex, Sira-CUUU-nnnaaa… O mesmo engano ortographico que o Senhor cometeu na sua dedicatória em meu exemplar do seu volumoso tratado O Declínio do Quinto-Império, no salão nobre do Lyceo Pytanga, 889 páginas de uma luxuriante cultura luso-tropical… sniff… sniff… sniff…

BELFRATE
(procurando uma reaproximação) Não chore, minha Dona Sinacuna, aqui o meu lenço de estimação, pras suas ressentidas lágrimas…

SIRACUNA
Mas… o que é isto?… Um lenço com a imagem duma porca safada sacudindo o rabo!!!

BELFRATE
(tosseteando) Sim, Sim… nossa mascotinha Porcolina, muito boazinha, apenas tem de mostrar o que tem, mesmo porque é grande demais pra esconder…e mostra no Scuuuuudetto de nosso glorioso Nanico Porkofffffff… pro gáudio triunfal de nossa fiel e robusta galera…

DOC FLOYD
Desse lodaçal choroso não sai mais uma piranha banguela…! Vou deixar aqui foto da Leila Ferraz e uma reprodução em tamanho natural de nosso Tropheo Kolax, que logo a ela será entregue. Está certo de que a imprensa não considera mais o conteúdo de suas matérias e sim o estardalhaço potencial de suas manchetes. E o que é pior, defendem que este é o sentimento geral do leitor, mais ainda, que esta é a reação mais natural da espécie humana. A Fundação Quarteto Kolax certamente não faz coro a esse jingle infamante em três compassos e repetição ad infinitum. Mas vamos seguir a sábia sentença milenar, amarraremos o jumento na orelha do dono.

FUMEX
Também achei essa choradeira indigna dum jornalista – ou jornaleiro – cujas funções estão muito além do que o que sonham seus mais pirados devaneios, que não chegam sequer ao mezanino do Templo das Musas… E Dona Siracuna, embora muito mais culta, e afeita a ler obras de importância, é uma torneira de água benta que não para de jorrar. E o pior do pior é que o pensamento da imprensa está certíssimo!… No século do smartphone, todo mundo manda seus bilhetinhos para o globo eletrônico cibernético que embrulha nosso planeta e as vãs patuscadas de simplórios são lidas por bilhões de pessoas que só sabem do mundo via fofocas que leem em seus zaparatos. Então, é só mesmo o estardalhaço o que conta, e não um eventual conteúdo dos telegramas. E este é o sentimento geral do leitor, e a reação mais natural da esmagadora maioria da espécie humana, que acredita que esse jingle ininterrupto é o advento da verdadeira Democracia Global, pelo qual os estudantes da Uni Hongkong estão ora dispostos a morrer.


DOC FLOYD
Fomos desapropriados de toda lógica, a ponto de que o símbolo de nossa era é apenas um urro seguido de um desmaio. Desistimos? Nem por sonhos. Seguiremos pisando em cacos de vidro envenenados. Nem cortina há neste cenário…

ANTES QUE TARDE A PEDRA VIRA CANTO

Entra Vespina muito séria, atravessa a sala e estende a mão para Doc Floyd. Durante toda a entrevista ela estará muito séria, exceto quando não esteja. Talvez o acento em seu humor seja decorrência de que sua entrevista foi posterior ao diálogo com Belfrate. De todos modos, ambas surtarão leitores e desafetos, e terão o impacto desejado.

VESPINA

Muito prazer, Mister Floyd. Como vai o senhor? Nomezinho maneiro este seu. Meus parabéns aos seus pais. Vamos direto ao assunto. É verdade que o senhor persegue mulheres o tempo todo? A homenageada de hoje é uma mulher? O senhor vai perseguir a homenageada o tempo todo? A quantos processos por assédio o senhor responde atualmente?

DOC FLOYD
A mocinha está de todo mal informada acerca de minha atenção em relação à mulher. Mais do que ela em si, o que me interessa é a presença do feminino em nossa vida, o modo como o homem foi garantindo ao mundo uma tamanha falta de sensibilidade que por vezes até mesmo a encontramos em mulheres, o que não espero seja o seu caso.

VESPINA
Como assim, não tem processo por assédio? Ah, não? Pôxa... Então tá, que se há de fazer? Aí, o que é esse nome na entrada da sala, “Fundação Katalox Kolax”?

DOC FLOYD
Não, esqueçamos isto, foi uma trapalhada em que me meti, quando descolei um bico em um sex shop como provador daquelas bonecas infláveis e uma sobrinha da proprietária com aquela cara de emplastro Lolita me fez soprar em duas pinups ao mesmo tempo e quando fomos ao carpete os quatro corpos a tia apareceu. Por pouco não fui preso, salvo por Frei Feijão, que era o confessor da família.

VESPINA
Mudemos de assunto. Que diabo de troféu é esse? Francamente… não sei como dizer isso… não sei se o senhor percebeu… ele é de lego. Este é um prêmio com sérios problemas orçamentais? Ou o prêmio de verdade foi deixado esquecido na mesa do quintal e um mico leão dourado pegou e saiu correndo com ele, foi perseguido por quatro gangsteres armados mas driblou todos e agora está usando para enfeitar sua casa na árvore, para alegria da esposa dele e das crianças, que neste exato momento estão brincando de desarmar? Aliás, isso é prêmio de quê, hein? Qual é a diferença entre “prêmio” e “prímula”? Como lhe veio a ideia de dar um troféu assim a alguém? O senhor tem problemas com a pessoa que vai receber esse negócio?

DOC FLOYD
Eis o que se passou com a recepção estética em nosso tempo: primeiramente foi o império do suporte, moldura, base, a arte não precisava de mais nada além do suporte e tanto é verdade que alguns criadores passaram a expor, assinar, documentar, apenas o suporte, como a arte em si. Em seguida, porque a moda, ao contrário da arte, só existe em face de sua condição perecível, começamos a criar uma hierarquia dos materiais utilizados, o bronze, o ipê roxo, o papel casca de ovo, passaram a definir os materiais orgânicos. Desta forma, nenhuma arte mais seria sequer aceita em couro, minérios e até mesmo o cérebro humano teve cogitada sua proibição. Quanto ao prêmio, com facilidade nos esquecemos que ele representa antes de tudo um símbolo, não tendo valor no objeto que é dado e sim na referência que se faz através dele. Que seja uma prímula, que aqui desqualificas como mero ornamento. Estás empanzinada de preconceitos, percebo isto desde quando adentraste o recinto.

VESPINA
Não estou empanzinada de coisa nenhuma nem tenho preconceitos e se o senhor também não tivesse aceitaria opiniões diferentes das suas em vez de ficar dizendo que qualquer coisa vale como símbolo de qualquer coisa como se a cabeça das pessoas fosse tábula rasa e elas devessem simplesmente aceitar e também não ficaria aí me insultando e eu perguntei com educação e sua falta de sentido de humor é horrível e o senhor não respondeu várias das minhas perguntas nem sequer de que é esse prêmio e o senhor se acha o ó do borogodó pensando que saca as pessoas só de elas entrarem e o senhor é chato pra caramba. Fala sério.

DOC FLOYD
Mas que coisa! Acho que vamos ter que rezar pela cartilha embolorada do bem maior.

VESPINA
Falemos agora por favor sobre a homenageada. Como era mesmo o nome dela? É verdade que ela é a rainha da cocada preta? Ela é tão maravilhosa quanto dizem? Por que ela vai ser a primeira a receber este prêmio? O que ela fez para merecer isto? Como, onde, quando e por que o senhor a conheceu? Cadê minha caneta? Foi por influência dela que o senhor se tornou surrealista? Aliás, o senhor sempre foi surrealista? Ela sempre foi surrealista, ou pulou de cantora country para o que faz hoje? O que o senhor acha que ela vai fazer com o prêmio? Por gentileza, insira umas fofocas na resposta.

DOC FLOYD
Se lhe digo agora o nome da homenageada e a sua caneta está conectada à rede, certamente encontrarás ali fotos e informações de uma xará dela, Leila Ferraz, atriz pornô, em que se destacam os 50 minutos de uma insossa película intitulada “Leila Ferraz na banheira”. A nossa Leila, no entanto, é poeta e fotógrafa, surrealista de berço, um dos organizadores, nos anos 1960, de uma Exposição Internacional do Surrealismo em São Paulo. Sempre me pareceu estranho – eu a conheci mais recentemente – que apenas um dos três organizadores tenha ganho notoriedade, e que seu nome, de Leila Ferraz, tenha sido apagado da historiografia do movimento escrita justamente por um de seus parceiros, com quem inclusive foi casada. Não sei se vais transformar tudo isto em fofoca, mas o fato é que a grandeza de sua obra plástica e poética é um imperativo que nos levou a destacar seu nome através do prêmio Kolax, que leva o mesmo nome de nossa entidade patafísica. Agora, sinceramente, espero que a sua caneta tenha algo relevante para fazer valer este nosso encontro.

VESPINA
Meu senhor, minha caneta terá a relevância das suas respostas e as únicas fofocas que escreverá serão as que o senhor me conte. Sobre isso, obrigada por não se fazer de rogado.

DOC FLOYD
Rogado ou regado? Deixemos um bote e um tequila guardados – a caminho de Acapulco – para qualquer ocasião relâmpago. Quase não resisto a passar adiante o bastão das fofocas, pois afinal o que seria deste país não fosse o Fofocódromo da Cubata Central… Porém a nossa homenageada nos merece total respeito, de modo que o melhor é lembrar que nosso Tropheo Kolax quer passar a borracha no cortinado de tolices das feiras literárias e no garimpo de ocasião dos prêmios literários. Nosso voto é de fazer brilhar as vozes que foram regurgitadas pela escavadeira de detritos da cultura nacional. E em nossa homenageada concentramos todas as vozes que lhe são similares em fortuna estética e moral em meio ao pastelão da cadeia nacional.

PEDRO K
Trabalhadores da Galera! Me desculpem pela ausência. A sombra do Bilhard anda inquieta demais. A primeira grande retrospectiva dele vai acontecer no ano que vem, e sabem onde?… No Museu do Victor Hugo!!! Recebi um convite do Museu, e aí aconteceu um fenômeno estranhíssimo. No lugar de Museu Victor Hugo eu li Museu Delacroix e mandei de volta incontinenti os parabéns pela escolha do local, que não podia ser melhor para o nosso herói – acolhido no ateliê do grande Eugène… O retorno do curador do Museu me obrigou a encarar a terrível verdade: o gigante Hugo continua a ter a guarda da posteridade do infeliz autor do “Beijo no gelo”. Arghhh! De modo que deixo escapar apenas algumas palavras enquanto arrumo a mala a caminho de corrigir pessoalmente essa confusão: o Tropheo Kolax é uma obra que preserva para a eternidade o brilho inocente de um olhar infantil, a ser ternamente conservado pela premiada Leila Ferraz. Trata-se de uma peça escultórica metapolarizada e descentrista, contendo ainda uma imprescindível sugestão hodierna de acessibilidade e multiculturalidade.

VESPINA
Mon Dieu, esse rapaz conhece o mestre Bilhard! Cadê ele, moço? Como assim, ele desgrudou da sombra? Puxa, como você é claro! Agora sim todos nós entendemos o troféu. O senhor sabe responder minhas perguntas que meu entrevistado não conseguiu responder?

DOC FLOYD
De novo não, não, a gente já estava até se entendendo. Bilhard está em outra sala, aqui mesmo no vapor Burutu. De onde sabemos se escafedeu o teu retrato tão logo pintado. O que não se sabe é a razão da fuga da imagem.


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: Víctor Chab (Argentina, 1930)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 148 | Dezembro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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