A claquete anuncia que as gravações correrão
por conta do mais propício improviso. Sete vezes tocarão o sinete, sete vezes sete
os convivas degustarão a frondosa pasmaceira de sua imaginação. O público não saberá
o que fazer com tamanha galhofaria, aturdido e profanado, de tanto não conter o
riso chegará a desconfiar das emendas trágicas feitas à constituição do espetáculo.
Sete tretas distraem o público no picadeiro enquanto o diabo no camarim ajusta as
últimas rugas de sua máscara. Já vai começar? Nunca se sabe. Nisto reside a galhofa
fatal da improvisação.
SALDÃO DAS GOELAS UNIVERSAIS
DOC FLOYD
Já estou em casa, após dois meses de maravilhosa ausência,
mas, sobretudo, após os dois dias de inferno na Nova Zelândia e no Chile. Confesso
que tive um cadinho de receio da situação. Bom, vou por as coisas em ordem (sempre
aparente) e então vamos cuidar de nós. Papisa, já podes me enviar tudo.
Beijos
ZUCA SARDAN
Bom te ouvir dando as boas novas de boa chegada. Após
esta Ulysséia, tu e Socorro, ufa ufa, descansem um pouquito… Mas qual… Bem sei que não sossegas.
DOC FLOYD
O dilema foi o Chile. Desde Aukland começamos o périplo,
ou melhor, já em Sidney tivemos voo cancelado. A partir de então foi um pinga-pinga
em cada país: Austrália, Nova Zelândia, Chile, Brasil. Ficamos 13 horas retidos
em Oakland e mais de 20 em Santiago, onde chegamos a dormir naquelas camas da ajuda
humanitária. Daí que nosso cansaço seja dos dois últimos dias e não dos dois meses
australianos, estes sim, um verdadeiro paraíso.
ZUCA SARDAN
Agora, tira uma semana de bom descanso… num ritmo de
funcionário público…
DOC FLOYD
Farei de tudo para conseguir a fórmula mágica desse
descanso. Hoje verei TV. Segundo o crítico Jacobius Klint o melhor recurso para
imobilizar o cérebro. Faz tempo que não vejo.
ZUCA SARDAN
Teu amigo é um sáááábiooooooo… Muito mais que o rádio,
a TV é a mais possante das drogas… Ao lado do Smartphone… são as Duas Bestas do
Apocalipse!… Terás uma paralização total do cérebro… A TV é a nova Igreja Universal.
Tevecus Vobiscum.
DOC FLOYD
Eu quase que inverteria a parada: a Igreja Universal
é a nova TV. Contar com a sabedoria de amigos é para poucos, o repouso foi franco
e agora recomeço a vida, trato de montar a próxima edição da Agulha.
ZUCA SARDAN
Invertendo a parada temos outra constatação ainda mais
inesperada e verdadeira: A Igreja Universal é a nova TV. Pois então… agora, bem
se vê, o Vulcão Furaca já começa a entrar de novo… em ebulição!…
DOC FLOYD
Não à toa a Igreja Universal tratou logo de ter a própria
TV, assim nos frita o cérebro de duas formas.
ZUCA SARDAN
A Torração Cerebral Universal. Seremos inteiramente
robotizados. Os aparelhos de televisão lançarão raios eletrônicos de robotização
cerebral.
DOC FLOYD
Nostradamus rasgou seus papiros todos. Abandonou o epíteto
de rufião da vida alheia. Mudou o nome para Pasqual d’Abrolhos, e dizem que mora
em Paquetá, vendendo bolinhos de arraia.
ZUCA SARDAN
Certamente teve um satori, comendo um pastel japonês.
DOC FLOYD
Uma alumiação, ainda que passageira, botou fogo nos
guardados e isolou uns fios da memória. Agora não mais prevê o passado, como os
doutos da história.
ZUCA SARDAN
Agora então… plec-plec-plec!… procura se lembrar do
futuro.
DOC FLOYD
Porém o futuro, escorregadio como luz, desfaz os sonhos
de qualquer pitonisa. E morde a própria cauda. E regurgita seus devaneios.
ZUCA SARDAN
O futuro é um dragão que morde a própria cauda, que
é o passado. E o passado… é um dragão que morde a própria cauda, que é o futuro.
DOC FLOYD
O presente é um fiapo místico…
ZUCA SARDAN
Dura um átimo de segundo, e some no passado.
DOC FLOYD
Devoto do futuro, o presente acaba espatifado no passado.
Afinal ninguém sabe ninguém viu tão rápido se foi.
ZUCA SARDAN
Os devotos do Futuro sempre acabam desmentidos pelo
próprio que, quando chega, é bem diferente do que eles sonharam. Só sobra o Nostradamus.
DOC FLOYD
E
de tanto sobrar apenas ele, se desfez de suas visões. Esqueceu o amanhã e o depois
de amanhã. Agora estamos com uma na frente e outra atrás. Ao gosto de Satanás. Sem
sabermos o que ser em qualquer dimensão.
ONDE FICARÁ
O ACRE?
DOC FLOYD
Soube agora que seremos convidados para gravar uma entrevista
para a TV Aurora. Certamente nos indagarão, logo de início, como passamos o dia.
ZUCA SARDAN
A TV Aurora sempre tem programas instigantes para nossa
saudável Juventude… e testes educativos, verbi
gratia: Quantas estrelas tem a Bandeira do Brasil?…
DOC FLOYD
Curiosamente a bandeira do Brasil tem 0 DF na parte
de cima e 25 estados na parte de baixo, ou melhor, são 26, porém um deles é tão
minúsculo (ou apagado) que quase não se nota. TV Aurora pergunta: Qual é o estado
que quase não se identifica na bandeira?
REITOR PANDARECOS
O Acre, de que a estrela é pretinha, em homenagem à
Marina, nossa caboclinha valente.
ZUCA SARDAN
Quantos acres de terra foram usados na invenção do Acre?
DOC FLOYD
Porém quando lá chegaram os cearenses, graças a seus
estudos naturais de miscigenação, todos foram para a cama e então surgiram os acreanos.
ZUCA SARDAN
Uma explicação freudiana da miscigenação racial luso-tropical
no Brasil. Mas em Portugal, só o Marquês de Pombal saberia explicar.
DOC FLOYD
Orixás e deuses tupis se misturaram na clareira onde
foi rezada a primeira missa. Oswald de Andrade fez disto uma piada, seguido pelo
cinema nacional, porém as verdades sempre se fizeram descascando o milharal das
mentiras.
ZUCA SARDAN
Sei de fonte segura, que havia sacis também na clareira,
fumando seus cachimbinhos. O quadro do Vitor Meirelles tem sabor, mas ele não ousou
pintar os espíritos da mata, porque em seu tempo a Inquisição, discreta embora,
seguia patrulhando. Cassiano Ricardo avançou, mas se limitou aos papagaios…
DOC FLOYD
Quem avançou mesmo foi o Bopp, em sua canoa de mil proas,
ao semear ímãs na floresta e animar a festança dos três reinos. Se a canoa não virou
foi porque nunca parou de remar. Nosso conquistador de maravilhas.
ZUCA SARDAN
Quanto mais o tempo passa, melhor o Bopp!… O Cobra Norato vai se destacando cada vez mais
como um dos maiores capolavoros da turna de 22. E vai ficando cada vez melhor.
DOC FLOYD
Desde as terras de dentro do Rosa que não se via um
acre poético tão ciente das origens e do que se pode fazer com elas. A essência
de nossa cultura está onde se insiste em não buscar. O Acre é um estado inexistente
do ser.
E ASSIM PASSAM
OS PANOS
DOC FLOYD
Fui ao México, de onde nunca sei se volto. Quando ali
estive pela primeira vez quase boto o fígado pela boca tentando chegar ao cume da
pirâmide do sol. Anos depois consegui subir uma pirâmide menor, em Monte Albán.
ZUCA SARDAN
Da próxima, melhor subires a Pyrâmide Xapaka que tem
elevador com corda na grande roda
com eixo de prata, puxada por campônios xiximecas.
com eixo de prata, puxada por campônios xiximecas.
DOC FLOYD
E subindo pelo centro da pirâmide pocotó-tepek o clima
é bem gostoso.
ZUCA SARDAN
Faraó Osiris Xapok, aproveitando os avanços da tecnologia,
instalou sete possantes ventiladores com trombetas dentro da Pyrâmide, que criam
um espantoso torvelinho musical, que faz os visitantes entrarem em êxtase mystico,
e pronunciarem oráculos indecifráveis.
DOC FLOYD
Com uma acústica tão refinada que na medida em que sobe
(a descida é por fora da Pyramide) o elevador gera um efeito distinto dos demais,
como uma espiral de sons, um mantra ondulado.
ZUCA SARDAN
Faraó Osiris Xapok, e sua Faroletta Dolores, são um
casal progressivo que incentiva as artes na região das Pyrâmides. Famosas são as
corridas de cavalos com tiroteios, para furar uma bola de futebol suspensa por cordel
num obelisco. Boleros de Agostín Lara na voz soluçada de Pancho Solis, ao som de
guarachas multi-seculares, ressoam nas cálidas noites mexicanas.
DOC FLOYD
(à sombra de um
bolero sem alça)
Osiris levava sempre o sol
dentro do bolso
e com ele mantinha sua Dolores
aquecida.
Ela lambia o sol como uma
fruta tropical,
e aos boleros de Lara entregava
a sua vida.
ZUCA SARDAN
E así pasan los anhos… chaca-chaca-chaca…
y yo que te pregunto, Dolores de mis amores, y tú que me respuendes… “ay que sí,
ay que no” y me arrastras y arrastras en ciega pasión…
DOC FLOYD
Osiris acabou cego de tudo, porém nada lhe entornou
a felicidade, passou a ver com os olhos de seu amor, Osiris passou a estar em tudo
que ela via, Dolores lhe revelou a senha da gravidade.
ZUCA SARDAN
Osiris chega de elevador ao último andar da Pyrâmide,
tateia a porta de seu gabinete. Entra, fecha a porta, tira o zoclos pretos, bota
no cabide a bengala branca e saúda a Secretária: “Bom dia, Dona Mazzoca… como vão
as coisas?…” “Sucesso absoluto, Dom Osíris!!! A fila dá sete voltas da pyrâmide
até chegar ao guichet!!!” “Muito bem, Dona Mazzoca… Temos de continuar a manter
o Mytho, com o mais absoluto segredo. Ocultismo total…”
DOC FLOYD
Dona Mazzoca arregalou os olhos ao ouvir falar em Ocultismo
Total, sorrateiramente saiu de sua boca uma língua volumosa e inspirada. Patranzinho,
não era o caso de se criar uma escola de ocultismo aqui no alto do morro Ocultepek?
ZUCA SARDAN
Sendo o Ocultismo uma prática oculta, talvez já exista,
mas ninguém sabe disso… Porque seus praticantes jamais diriam uma palavra sobre
isso, e muitos deles, por prudência, e despistamento, adotariam outras ideologias,
muitas delas, aliás, contra o Ocultismo.
DOC FLOYD
Soube agora, isto por um sobrinho, católico fervoroso
disfarçado de hare krishna, que demais ideologias e também suas religiões filiadas,
há muito utilizam igual estratégia, de modo que já não sabemos quem é quem, qualquer
que seja o fruto de sua presença entre nós, e assim é que o mundo, por mais que
fale, já não nos diz lé-com-cré…
ZUCA SARDAN
Talvez teu sobrinho, ao final, tenha se tornado um hare
krishna que usa o disfarce de católico fervoroso disfarçado de hare krishna…
DOC FLOYD
Uma manada de nuvens lhe acompanhou por todo o regresso,
a janela do avião lhe sussurrando que saltasse dali e fosse viver acabanado no coração
daquela salina celeste. Seria ele? Seria eu? Desperto dessa visão segurando o pacotinho
de sal, a ponto de colocá-lo no chá…
A DUAS QUADRAS
DA PURGA
REITOR
Bueno, el encuentro
sobre una mesa de billar,
de una máquina de coser
y una obrera paraguaya…
OBRERA PARAGUAYA
A Liana Quadrita no le gustaba
el billar,
sus noches mejor las pasaba
cosendo
los mejores hilos de su imaginación,
y despertaba siempre más
allá del mar.
REITOR
Magnífico, Floyd!… Sugiro
ponga siempre un título, que valoriza la quadrita… La Quadrita es una dama pequeñita,
aprazle portar un adorno para empalomarse…
OBRERA PARAGUAYA
Liana Quadrita sonha com títulos de nobreza,
saiu de casa bem cedo a conhecer muitas mesas,
desde então jurou a si mesma não cair em troça
de títulos sem elã, e sempre manter-se moça.
MÁQUINA DE COSER
Coisinha Difícil
OBRERA PARAGUAYA
Nem imaginas…
MÁQUINA DE COSER
Poizé…
OBRERA PARAGUAYA
Severino Poizé aprendeu nos Solimões
a pescar um peixe dentro de outro,
enrolava o rio como um ouroboros,
depois da pesca espremia uns limões.
MÁQUINA DE COSER
Isso também, pudera… ninguém é de ferro…
e temos Democracia, não estamos em Macau
e no Solimões os peixes são um colosso,
um lambari até parece um bacalhau…
OBRERA PARAGUAYA
Omar Bacalhau é um pescador local,
ele me garantiu haver no Solimões
um bar de nome Democracia que serve
a melhor sopa de piranhas da região.
MÁQUINA DE COSER
Bem posso imaginar…
Mas se não são bem assadas
as piranhas comem a língua
dos comensais. Melhor
então pararmos por aqui.
OBRERA PARAGUAYA
[ g a r g a l h a d a s ] (ao som do range-dentes das meninas)
QUANTA LARANJA MADURA,
QUANTO LIMÃO PELO CHÃO
Entra
em cena o Belchior:
Não cante vitória muito cedo,
não / Nem leve flores para a cova do inimigo. / As lágrimas dos jovens são fortes
como um segredo, / podem fazer renascer um mal antigo.
PLATEIA
(de pé) Bravoooo!!!
Viva o Belchior!!! Dá-lhe Belchior!!! Senta, macacada!!! Bravooo, Melchior!!!
FÃ DE BELCHIOR NA FILEIRA
DA FRENTE
Merchior, que sempre foi um carrancudo sem sentido algum
de humor, fez cara de ainda mais bravo e disse: a juventude é puro fogo de palha.
Somente a maturidade pode salvar o mundo… Ploft, alguém lhe deu com uma carabina
no meio do quengo.
PLATEIA
(em furor herculeano)
Bandido!, matou o Merchior!!! Pega!!! Pega Mata e Come!!!
GIVALDO, O PONTO DESEMPREGADO
Pandemônio generalizado, o Gerente do Teatro entra e
pede calma:
GERENTE
Podem se esmurrar!!! Nos cornos!!! Nos bagos!!! Mata!!!
Mas cuidado com as cadeiras do Teatro, e os archotes!!! Quebrem-se ossos, mas… não
quebrem o nosso Teatro Lux, que sempre lhes traz Comédias, Rastapés, Fandangos e
Rancheiras!!!
GIVALDO, O PONTO DESEMPREGADO
O estropício transcende o espaço de representação que
constitui o teatro. Dois palhaços recolhem as vísceras e a sombra estraçalhada do
morto. Um pouco de sátira e humor negro é o que precisamos para suportar os panfletos
lúgubres da realidade…
GERENTE
Um pouco de sangue sem transfusão, um Drácula velho
com dentadura de aço, uma piranha no aquário: “Dê-lhe um naco de pãozinho na boca,
Dolores…”
O FÃ
Um pouco de sal na panela, à espera da entrada em cena
da galinha-de-angola. Seus dentes nasceram há pouco, apesar da falta de fé de seus
perseguidores. Parte do mundo por vezes cai fora da cartilha, e o que se perde é
sempre o ganho maior.
GIVALDO, O PONTO DESEMPREGADO
Se cai fora da cartilha, será a do Colégio Malek Scolares,
o mais científico e vai-pra-frente educandário, preferido pelas famílias progressistas.
O FÃ
Mas ninguém quer ficar fora da panela. A partir daí
é que as cartilhas perderam um pouco a influência sobre os corpos terrestres. Essa
gente detesta Einstein, mas vive à sombra da relatividade.
GERENTE
Detestam nada… no máximo, fingem… Quando Einstein aparece
botando a língua, todos adoram… Até quando colocam a foto da Bomba Atômica ao lado,
ex-plo-din-dooooooo… em Giroshima… ou Sakazake… Sucesso garantido… em todas as revistas
e jornais.
O FÃ
Quem lucra com isto é João Borzeguim e sua banca de
revistas plantada no coração da Praça das Três Pistas… — Ô menina, abre logo
outro pacote…
GERENTE
Pois é… Sigamos nós pela sombra das mangueiras… e que
se vire lá como possa a Gorda de Saragossa.
GIVALDO, O PONTO DESEMPREGADO
Saindo
de cena o Belchior:
E a nossa esperança de jovens
não aconteceu…
AZULEJOS VERSUS GRAFITES
ZUCA
SARDAN
Confissões encontradas em baús de pau seco são mais
suspeitas que as enfiadas em garrafa lançada ao mar.
DOC
FLOYD
As garrafas se abrem para conter as notícias. Já o pau
seco as expulsa de si, como uma revelação caprichosa. Sempre o jogo do masculino/feminino.
ZUCA
SARDAN
Belíssima tirada, Doc Floyd… Confissões tem um quê de
religioso… Alerta!, que se Frei Feijão souber… virá correndo para te confessar!…
FREI
FEIJÃO
Ganharei uma ovelhinha negra para meu rebanho…
BEATA
BERENICE
Cuidado, Frei Feijão… poeta é mais perigoso que comunista…
DOC
FLOYD
Pois é, querer ser comunista é um pecado de infante
em se tratando de poeta. Dali saem uns para ser cafetões das letras e outros fumam
velhas árvores ansiosos por novas visões de mundo. Frei Feijão teria que pintar
de preto essas ovelhas sorrateiras e furta-cores. Berenice sabe bem, desde quando
lavava os lençóis do Marquês de Quatro. Ás de Copas…
FREI
FEIJÃO
Haja lata de tinta, para pintar de preto todas essas
ovelhas furta-cores…
BERENICE
Pois as pinte de vermelho, Frei Feijão…
FREI
FEIJÃO
Chega de doidice, Berenice…
DOC
FLOYD
Berenice foi a primeira a perceber que as quatro cores
eram uma só, e que o Marquês trotava a bel prazer nas pradarias de seu dorso suado.
Frei Feijão, tenho um pecadinho a contar… mas não fui
eu a culpada…
FREI
FEIJÃO
Pelo jeito de teu focinho, já sei qual pecadinho… Chega
de doidice, Berenice…
DOC
FLOYD
O Frei vivia dos pecados alheios. Berenice, por mais
que pecasse, não lhe satisfazia e ele estava sempre disposto a lhe julgar (até mesmo
a inventar) novos deslizes. O sapo não lava o pé, não lava porque não quer. Feijão
repudiava toda a sabedoria popular. Amém.
CORINGA
Pois é, mas sem pecado, Frei Feijão, estas vidas seriam
um saco.
FREI
FEIJÃO
És um porcalhão que te comprazes no teu chiqueiro…
CORINGA
Qual chiqueiro, Frei Feijão?…
FREI
FEIJÃO
A tua vida, vão desvairado…
DOC
FLOYD
O Coringa se refestelava de orgulho por ser a única
carta não marcada no Baralho Inquisitorial das Religiões. Era a carta inesperada,
com a qual os sacerdotes não sabiam lidar. Tal anarquia Frei Feijão considerava
uma apologia do chiqueiro primal.
FREI
FEIJÃO
Por mais que joguemos o Coringa da borda do precipício,
por mais que o condenemos às chamas da Inquisição… ele sempre volta!… com aquele
sorriso de louco, dando cambalhotas, e cantando suas obscuras molecagens…
DOC
FLOYD
Nem mesmo o Chapeleiro Louco podia com a carta que é
a soma de todas elas, o Coringa que libera seu gás tóxico do riso em meio aos desmandos
da glória canibal.
ZUCA
SARDAN
O Coringa sempre está à beira do abismo que ele não
vê, e, justamente por isso, não cai. O Rei e a Rainha ao balcão, o Ministro e o
Cardeal à janela, esperando o momento da queda… e o Coringa não cai.
DOC
FLOYD
Não cai, não cai, não cai
Por toda a vizinhança
Já em cochichos se previa
Que o Zeppelin era o Coringa
A carta que faltava aos céus
A última chance de provar
As confissões do baú primal
[FIM DO RECREIO]
O MITO DESCABELADO
ZUCA SARDAN
Bengala com asas é coisa para Hermes-Mercúrio… o famoso
caduceu, de múltipla utilidade… O deus dos comerciantes e ladrões, está cada vez
mais importante, com a Globalização…
DOC FLOYD
Também Netuno, envelhecido, mandou tatuar um par de
asas em cada ombro. A cada noite o mal percorria o convés, e os marujos bebiam seu
chá de assombro.
ZUCA SARDAN
Também Caronte frequenta os barcos, e vende aos marujos
estampas de voluptuosas sereias, coisa que Netuno jamais faria. Caronte traz também
uma série de artigos e quinquilharias, que lhes vende a preços razoáveis. Gostem
ou não gostem, além das estampas das sereias, compram-lhe os marujos alguns badulaques,
porque sabem que mais cedo ou mais tarde, estarão a bordo na barca do Velho Titan,
que se irrita fácil, e lasca terríveis remadas nos passageiros mais imprudentes.
DOC FLOYD
Os barcos foram atracados, o rio foi fechado. Caronte
se curva no balcão de uma taverna, completamente embriagado e ranzinza. Não lhe
encoste ninguém a puxar conversa, que de suas barbas saltam faíscas indóceis e um
rugido que faz tremer o mundo à sua volta.
ZUCA SARDAN
Caronte, no fundo, é dos raros sobreviventes do Mytho
Pagão, depois de superado pelo Cristão… “Venceste, oh pálido Galileu!…” “O Grande
Pan morreu!…” Só sobrou mesmo Plutão porque, havendo Paraíso, precisamos dum Inferno…
E dele, justamente, o soberano era Plutão, que habilmente guardou seu trono… e para
recolher as almas condenadas, já havia o velho e experiente Caronte, que guardou
assim seu posto. Mas sofre o velho Titan terríveis crises de depressão, que o levam,
nas estadias terrestres, a procurar tabernas, e cair na bebedeira…
DOC FLOYD
Hoje o pobre titã se sente regra três de um inferno
líquido, ressuscitando tangencialmente a cada amendoim mascado. Por vezes um vago
supetão, e o balcão da taverna estremece, espantando os novos fregueses, enquanto
os demais movimentam suas moedas em novas apostas…
ZUCA SARDAN
ZERPINA
(no Inferno)
— Veja só, Plutone, as infâmias
que este pérfido eletro-agulha está soltando… Está te chamando de pobre titã regra-três!
PLUTONE
(bocejão)
— Acho que o repórter está
se referindo ao Caronte… E lá então… ele tem razão… A-RA-RA-RAAAAAAAA!!!…
DOC FLOYD
Todos os deuses são pérfidos e com seus cajados engabelam
as aves do céu, os telhados da terra e as latas de sal que cruzam os mares. A humanidade
de joelhos ante dogmas reza a mais obsoleta das orações.
ZUCA SARDAN
Os deuses têm de ser cruéis. Se forem bonzinhos… acabam
mal.
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: Víctor Chab (Argentina, 1930)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 148 | Dezembro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS
| MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
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