quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

CONEXÃO HISPÂNICA | Enrique Verástegui

FLORIANO MARTINS | Enrique Verástegui e o motor do desejo

 


FM | Seu primeiro livro publicado, En los extramuros del mundo (1972), não foi o primeiro a ser escrito. Antes você havia escrito Praxis, asalto y destrucción del infierno, livro que somente seria publicado em 1980. Há alguma razão específica para esta inversão cronológica?

 

EV | Digamos que escrevi simultaneamente a En los extramuros del mundo meu poema Praxis… que, naquele momento, o maravilhoso verão de 1970, constituía uma espécie de texto primordial no qual eu colocava todas as minhas impressões; impressões, sobretudo, de um estudante que vagava solitário entre as aulas da universidade (eu estudava economia na Universidade de São Marcos, em Lima) e que, mais do que com os conteúdos dos discursos dos líderes estudantis – mais aulas, maiores rendas para a universidade, melhoria das bibliotecas, melhor serviço no restaurante universitário, estabilidade na paisagem universitária, derrogatório de uma lei universitária dada pelo governo militar daqueles anos etc. – se maravilhava com os significantes destes discursos e com o gesto teatral – esses punhos erguidos, esses rostos vociferantes – destes líderes. Me apaixonava exclusivamente a linguagem que eles empregavam e me atraíam seus comícios e marchas, pelas ruas de Lima, contra a ditadura militar. Às vezes entrava em uma sala repleta de estudantes, mas a vibração política a sentia quando, entre a multidão que se apertava na porta, me encontrava com uma jovem bastante bela, distante e núbil, os cabelos ruivos, o olhar azul céu perdido, que apertava seu corpo contra o meu enquanto a maré humana que nos envolvia nos fazia obter uma comunicação que, neste tipo de lubricidade liberada, era transcendente. Estas experiências (que não são experiências políticas, pois não fui militante, mas sim a que vive um universitário peruano que não pode evitar o ambiente politicamente movimentado de sua universidade) foram as que transcrevi para meu poema Praxis… que, ao longo de pelo menos dois anos, li diariamente em todo tipo de recitais que se organizavam no início dos anos 70: desde aulas universitárias, em praticamente todas as universidades de Lima, até bibliotecas, bares, institutos culturais e proscênios levantados nos parques de cidades situadas a centenas de quilômetros da capital da república. Praxis… era um poema que o público me pedia que lesse e, entre o público, especialmente as jovens. Então eu pegava o microfone e lia o poema. Quando em 1980 retorno da Europa, justamente para assistir à queda da ditadura militar do general Morales Bermúdez – que, diga-se de passagem, anteriormente me havia despedido de meu emprego, como a tantos jornalistas – e participar do renascimento da democracia peruana, um editor contatou comigo por telefone, nos encontramos em um bar situado a uma quadra da avenida Salaverry, e me pediu um livro para publicar. Tive nostalgia de meus vinte anos, da universidade, das jovens, e me decidi a publicar Praxis…, que saiu quase imediatamente, ainda quando se iniciava 1980 e, desse modo, participei na queda da ditadura de Morales Bermúdez.

 

FM | É certo descortinar ecos deste magnífico livro de Martín Adán que é Travesía de extramares (1951) em seu En los extramuros del mundo, como alude Ricardo González Vigil? Com quais outras vozes da poesia peruana tem dialogado a sua escritura poética?

 

EV | É certo que li Travesía de extramares, de Martín Adán, muito jovem, e que seus poemas me deslumbraram tanto que, quando César Lévano, o brilhante jornalista da revista Caretas, que havia decidido me fazer uma entrevista quando saiu meu En los extramuros del mundo, me perguntou sobre meus poetas preferidos, citei Martín Adán como o poeta que mais me interessava. Obviamente pertencemos a gerações diferentes e nossas experiências – sobretudo aquelas que têm a ver com minha formação pessoal indiscutivelmente ligada à revolução dos meios de comunicação de massas (revistas ilustradas, rádio, televisão etc.) que, no Peru, se produz desde aproximadamente os anos 50, com a introdução, sobretudo pelo rádio, do rock e do jazz, mas também da música erudita recente – são distintas. Martín Adán pertence a uma geração que se formou com uma cultura diferente, ligada a um conceito tradicional do nacional, e que praticamente não assistiu aos avanços tecnológicos do mundo moderno, ainda que sua geração tenha sido brilhante. Talvez a alusão à nossa afinidade, como fez Ricardo González Vigil, se deva a que, por um momento, coincidimos em nos situarmos à margem da sociedade que, no Peru, é asfixiante. Os métodos para se marginalizar são distintos e, em cada época, mudam. Mas tampouco sou eu que devo ser chamado a falar de meu livro En los extramuros del mundo, e sim exclusivamente os críticos literários, mesmo que possa dizer que seus temas situam paradoxalmente os poemas no espaço geográfico do centro da cidade de Lima, onde novamente aparece pelas ruas um estudante solitário que se senta nos parques para ler, fumar marijuana, que faz amor com jovens desoladas e que, sobretudo, busca uma identidade cultural para si – uma identidade que encontra nos concertos de folk andino, na música negra peruana, no jazz, em Joan Baez e em poemas tão clássicos da poesia peruana como o anônimo poema à morte de Atahualpa, esse último inca do Tahuantisuyu. Por sua vez, a primeira pessoa gramatical de meu primeiro livro – pois a poesia é também invenção, experiência e revelação – permite levar a passear pelos lugares infernais de Lima – falo de Tacora, um labirinto de ruas parecidas a uma Kasbah árabe ou, salvando as distâncias, ao Marché as puces de Paris, onde milhares de pessoas se amontoavam para comprar todo tipo de produtos que acabavam de ser roubados, e onde te podem assaltar – uma pessoa tão sossegada, tão proustiana como Lezama Lima, o escritor cubano por quem sinto uma enorme admiração e a quem certamente brindo todos os meus respeitos. É meu diálogo com o barroco de Lezama Lima – desde minha própria linguagem que alguns chamam preciosista e que outros leitores, como Miguel Ángel Zapata, querem vê-la relacionada a Rubén Darío, com quem aliás não me sinto ligado em nada, apesar de que o primeiro verso de meu poema Galax Deleuze, de meu livro Angelus Novus, alude a um conhecido verso de Darío: “Minha arte tem um estilo que não encontra sua forma” –, mas também é um passeio que realizo pelas paisagens do século de ouro espanhol. Assim, essa primeira pessoa gramatical, que às vezes pode assumir o eu de um mochileiro – esse primeiro livro o escrevi na época em que milhares de hippies, entre eles muitas belas jovens brasileiras, passavam por Lima em direção a Cuzco, que era um dos centros magnéticos da juventude dos 70 – que se senta frente ao mar para contemplar sua vida e se põe, por isto mesmo, a dialogar com Jorge Manrique, especialmente com suas Coplas à morte de seu pai. Mas desse diálogo pode participar também uma cantora de rock francesa, como Jane Birkin, e também o novelista Jack Kerouac. Certamente aparecem como formas de referências intertextuais alguns versos do Polifemo, de Góngora, porque essa é a forma, ao menos isto é o que aprendi de minhas leituras de Pound, de precisar as diversas situações que acontecem em um poema. Não somente as referências literárias clássicas operam como uma justaposição de enquadramentos cinematográficos, mas também, sobretudo, a meu modo de ver, como símbolos – um símbolo utilizado exclusivamente para a percepção do leitor culto, pois não concebo um leitor que não seja culto – para se delinear uma visão culta da experiência vivida que, por haver sido vivida recentemente, é fresca, pura e novíssima. En los extramuros del mundo é o livro de um poeta adolescente que namora jovens, escuta Mozart, contempla Chagall e lê Pound. Um bom exercício de piano que recordo com amor e que me serviu para escrever meus livros seguintes.

 

FM | Qual o balanço possível de sua participação em Hora Zero e que grau de importância credita a este movimento no âmbito da poesia peruana?

 

EV | No verão de 1970 surgiu em Lima um grupo de poetas que estudavam em diferentes universidades e que tinham uma mesma paixão: a poesia. Todos éramos muito jovens – eu andava ainda pelos 19 anos – e nos achávamos muito solitários em Lima. Eu havia rompido com minha família burguesa precisamente porque ansiava um tipo de liberdade que me permitisse escrever. Minha educação havia sido católica, tradicional e asfixiante até o ponto em que só fumei meu primeiro cigarro, e o fiz com bastante prazer, romanticamente, quando me senti livre ao ingressar na universidade. Ingressar na universidade significou para mim afastar-me da província – mesmo tendo nascido em Lima, boa parte de minha infância e de minha primeira adolescência transcorreu em um povoado tranqüilo, aprazível e solitário da costa peruana: San Vicente de Cañete – mas não ainda das estruturas mentais em que havia sido criado, sobretudo no colégio, até que me libertei dizendo adeus ao passado, porque queria viver a vida, queria fazer minhas coisas, queria escrever, queria sonhar no papel. De modo que meus dias transcorriam melhor, desde muito cedo até tarde da noite, nas diferentes salas da Biblioteca Nacional, onde me punha a ler todo tipo de livros, que era o que mais me agradava, pois ler é uma atividade que realizo desde minha infância. Um amigo universitário me encontrou uma noite lendo poesia na Biblioteca Nacional, maravilhando-se de que lesse também poesia, quando estudava economia, e me convidou a integrar Hora Zero praticamente no momento em que o grupo se formava. Foi assim que me uni à boêmia de um grupo de jovens poetas que lançavam manifestos, criticavam a totalidade da história poética peruana até esse momento e publicavam uma revista de poesia. Creio que o importante de Hora Zero constituiu em não ser a réplica consciente de outros movimentos literários – de tal forma que não houve gestos estereotipados como sessões nas praias, roupas extravagantes, poses histriônicas –, mas sim exclusivamente em expressar a necessidade que tínhamos os adolescentes de então: escrever poesia, reunirmo-nos, discutir poesia, ler poesia, passear pelas ruas, ir ao cinema, escutar música, assistir a exposições de pintura, namorar jovens e experimentar a vida. Agradava-nos a poesia e a ela nos havíamos entregue totalmente. Certamente, a princípio, no grupo também havia cineastas, pintores e músicos. Também se formaram uma série de núcleos de poetas, em diferentes cidades do país, que tomavam o nome de Hora Zero e que realizavam recitais, lançavam manifestos e publicavam revistas em suas próprias cidades. Os anos 70 foram um instante movimentado para a poesia peruana e, sobretudo, inédito. A gente buscava algo – ocorria uma série de coisas no país, o mundo estava totalmente movimentado, era a época do movimento hippie –, mas não sabia o que, e a nós só nos interessava a poesia. Em 1971, entre 26 de fevereiro e 26 de março, em pleno verão, organizamos na Biblioteca Nacional um ciclo de recitais do qual participaram não somente os poetas de Hora Zero como também todos os poetas que tinham nossa mesma idade e mostravam a mesma afinidade geracional nossa. Foi como a Semana de Arte Moderna que vocês tiveram, os brasileiros, na década de 20. Repartimos manifestos, distribuíamos plaquettes com textos dos poetas que participavam, propusemos novas coisas. E, sobretudo, o público – que sempre se havia mantido à margem das atividades literárias e, ao assistir a um recital tradicional, não passava de quinze pessoas – assistiu em grande quantidade e lotou o auditório da Biblioteca Nacional, para depois interessar-se pela vida pessoal dos poetas. Ali se produziu a mudança geracional e, dois anos depois, em 1973, José Miguel Oviedo, por encargo de uma editora limenha, publicou uma antologia que hoje é considerada histórica: Estos 13, que recolhia poemas, manifestos, declarações, entrevistas, artigos sobre nossos livros, e até nossos endereços para que as jovens nos escrevessem. E este foi o ponto de partida do que desde então se começou a denominar de Geração dos 70. Eu era muito jovem ainda, mas vivi essa época com intensidade. Creio que desde os anos 20 não havíamos tido um momento tão movimentado como o que se viveu a partir dos anos 70. A poesia a partir de nossa geração mudou decisivamente no Peru e o motor desta mudança foi Hora Zero. Agora se escreve uma poesia distinta, mais poética, se o queres, mas também mais ligada à vida, aos problemas cotidianos, uma poesia aberta ao mundo sem abandonar a própria interioridade. Enfim, isto fez Hora Zero nos anos 70.

 

FM | Vem de uma tela de Paul Klee o título deste seu livro máximo, totalizante: Angelus Novus. Para Klee, “a arte não restitui o visível, ela torna visível”. Esta seria também a idéia central que você mantém com relação à poesia?

 

EV | Efetivamente o título de meu livro Angelus Novus o extraí de uma pintura de Paul Klee que, segundo tenho entendido, tinha Walter Benjamin em seu poder. Certamente, enquanto escrevia meu livro (empreguei, para escrevê-lo, aproximadamente 10 anos, de 1975 a 1985, que transcorreram sem que eu me desse conta, e o escrevi sucessivamente em distintas cidades latino-americanas e europeias: Lima, Bogotá, México, Madri, Barcelona, Paris, Londres e novamente Lima, no tranquilo bairro de Lince) tinha presente a todos aqueles artistas que trabalharam em Bauhaus, especialmente Paul Klee. Sua concepção da arte é praticamente mística – “A arte é uma transmissão de fenômenos, uma projeção hiper-dimensional, uma metáfora para a procriação, a adivinhação, o mistério”, escreveu certa vez –, o mesmo que a etapa eminentemente prática da elaboração da pintura, pois ele partia de elementos básicos – linha, cor, forma, composição – que em si mesmos são abstratos através dos objetos surgidos. Assim, sua estética se sustentava em si mesma, ainda que permitindo uma liberdade interpretativa a quem se aproximava de seus quadros. Em certo momento de minha vida, depois de escrever milhares de páginas, cheguei praticamente à mesma concepção: os signos linguísticos me pareciam formas abstratas, apesar da enorme capacidade de representação sensual que possuem, e, por um momento, ao menos enquanto escrevia alguns poemas, minha consciência se distanciava de sua própria percepção sensual – uma frase na qual pudesse incluir os signos flores, peitos, mar, por exemplo, que para mim possuem significações fortíssimas – para conceber que os signos eram precisamente isto: formas abstratas – plano do significante, poderia dizer Barthes – para as quais o leitor poderia encontrar um significado de acordo com a própria organização que possuem os signos dentro de uma determinada estrutura sintática. Não é conveniente que o poeta cite a si mesmo, mas em algum lugar de Angelus Novus digo: “o alfabeto no reverso do espelho é estranho e incompreensível”, precisamente porque a interpretação dos signos corresponde ao leitor. Em alguns poemas de Angelus NovusBande desinée, Galax Deleuze, Concierto de flores para una muchacha angustiada etc. – medito sobre estes assuntos que têm a ver diretamente com meu trabalho literário, com minha experiência, e com minha vida, que não é outra coisa senão literatura. Em certo modo, sou absolutamente consciente de que meu trabalho consiste em transcrever os signos de tal maneira que eles produzam uma evocação no leitor, deixando-o em absoluta liberdade para que obtenha a interpretação que mais se aproxime de seu ser. Neste sentido estou bastante próximo de Paul Klee, como de outros pintores modernos, mesmo que eu deva aclarar que não faço espacialismo segundo o uso corrente, mas sim que, em determinada ocasião, posso utilizar o recurso que me permite a máquina de escrever para precisar uma determinada sequência verbal, como quem põe um acento. Assim, cheguei a conceber como desnecessário o uso de determinados recursos tipográficos (sobretudo as palavras ou frases em cursiva) para significar determinadas mudanças na estrutura de um poema, pois entendo que a estrutura deve expressar-se através de uma perfeita organização dos temas do poema. Uma estrutura que é, em minha poesia, sempre dramática, quer utilize a presença de vários personagens, e inclusive o poema dentro do poema – como em La educación formal, onde verás uma estrutura tão perfeitamente organizada como o Beaubourg de Paris, ainda que seus temas sejam a identidade cultural, a solidão da pessoa na história e a fruição estética da unidade entre metáfora, imagem e ritmo –, ou então se utilizo o monólogo de uma primeira pessoa encaixado na consciência de uma terceira ou segunda pessoa que, contudo, atua em um plano diferente para criar a possibilidade do absoluto distanciamento com o tema tratado, como em Estudios sobre flores con pájaros y amanheceres de primavera (os críticos dizem que meus poemas tratam da consciência e da própria reversão do pensamento). Estas mesmas formas poéticas, que no sentido interpretativo signifiquem talvez uma consciência do mundo contemporâneo, aparecem em muitos outros de meus poemas (Naturaleza de una composición de verano, Suite para J. L. Cuevas, Perpetuum Mobile, Giordano Bruno, Blas Pascal se refugia en Port Royal, Meditaciones de un ermitaño en cuarto de invierno etc.). Porém em minha escritura existe também um forte conteúdo místico – falo de uma mística que busca revelar o mistério do ser, que para mim está diretamente ligada ao erotismo –, expresso precisamente na evocação que o leitor pode fazer de meus poemas que buscam ser o amor, a beleza, a vida. Leonardo – onde retorno ao poema dentro do poema com um texto conformado por quatorze sonetos endecassílabos intitulados Cuaderno de Angelus Novus, para simbolizar a busca de classicismo de nosso século tecnológico –, Bel esprit – que utiliza igualmente o procedimento do poema dentro do poema, mesmo sem utilizar recursos tipográficos –, e Testamento para una suite de huesos – que está escrito em versos alexandrinos e que encerra o livro – são, além de outros, poemas que expressam minha adesão ao belíssimo mistério da vida. Assim pois, minha poesia é revelação e essa revelação, agora em pleno caos pós-moderno, comunica nossa necessidade de absoluto que não podemos encontrar senão através da arte, porque ela é perfeição.

 

FM | Poderia nos falar um pouco sobre isto que você define como orgasmóvil, proposição já antecipada em seu livro de ensaios: El motor del deseo?

 

EV | Escrevi El motor del deseo durante boa parte do ano de 1978, em uma choupana do distrito XVI de Paris, e o concluí no frio inverno de 1979, ao iniciar o ano. É um ensaio que, ao mesmo tempo que delineia a materialidade linguística do poema – essa máquina de signos da qual uma boa ilustração poderia ser A máquina de cantar, de Paul Klee –, apresenta uma filosofia do desejo nos mesmos termos em que o define Espinoza: “apetite com consciência de si”. Estabeleço uma dupla relação: a relação entre os próprios signos que configuram a matéria poética e o desejo, que considero, em termos platônicos, como o “primeiro motor”. Ao mesmo tempo delineio a diferença entre poesia e poema pois, para aceder à poesia, me parece adequado primeiro estudar a matéria do poema: “a poesia do corpo não há de produzir senão a máquina do poema, na mesma dupla proporção em que o corpo da poesia não pode existir sem destruir o poema da máquina” (cf. El motor del deseo). Afirmo isto porque entendo que o ser do humano é poesia, enquanto que o poema é uma máquina retórica onde, para que exista vida, se faz necessário integrar o signo corpo. Um corpo que, na época contemporânea, é um signo do acaso, dado que toda atualidade não é senão expressão da liberdade. Mas te descreverei melhor o conteúdo deste livro de ensaio, para chegar depois à tua pergunta. Defino a escritura e seu modo de produção como uma homologia social, ao mesmo tempo que acho que a produção literária é ilegal. Reivindico a fala como a prospecção do poema. A produção como prazer. A sexualidade na escritura. O desejo como expressão da consciência. Etc. E introduzo o conceito de orgasmóvil no seio da discussão literária, mas também no cenário de uma história que, devido talvez a motivações autoritárias, havia reprimido a consciência do signo corpo nos mecanismos sociais. Transcrevo um fragmento: “O desejo assim se objetiva como o desenvolvimento da sociabilidade […] através do trabalho. Aqui o decisivamente importante é que o desejo por si próprio não existe senão como unidade de prazer e trabalho: neste ponto – no trabalho poético – os termos são, pelo mesmo encadeamento do relativo e do absoluto, indistintos, mesmo que suas distinções possam ocorrer sempre de acordo com uma situação concreta surgida – como pode ser o caso de uma corrente literária (uma forma de trabalho: ferramentas, materiais, uma visão do mundo) – e de acordo com a mesma situação concreta porém problemática (a corrente em sua relação com o código acadêmico e em sua relação com a economia material do momento: em sua relação com o modo de produção de um país ou de um conjunto de países). Por isto, no campo literário a necessidade não é outra coisa que liberdade; contudo, essa liberdade é precisamente o que condiciona todo o desenvolvimento do movimento poético”. Porque somente o signo corpo, e somente sua essência espiritual, podem constituir a consciência do homem no mundo, e o conceito orgasmóvil (que significa o verdadeiro motor da história) expressa a metáfora do afazer humano.

 

FM | Acaso concorda com esta adjetivação de “utopista e catastrofista” que Julio Ortega empresta a “todo bom escritor hispânico”?

 

EV | Suponho que quando falas de escritor “hispânico” te refiras a hispano-americano. Comecemos por esta metonímia para entender o conjunto da produção literária em língua castelhana. Me parece que Julio Ortega – que em alguns livros teorizou brilhantemente sobre a função literária – acerta ao empregar a frase “utopista e catastrofista” porque isto, finalmente, foi a literatura do pós-guerra na América Hispânica. A obra de Juan Goytisolo, especialmente sua trilogia Señas de identidad, Don Julián e Juan sin tierra, da mesma forma que Paisajes después de la batalla, é uma permanente sedição, tanto na linguagem acadêmica – ele disse que na Espanha até os motoristas de taxi falam como Unamuno – como na apergaminhada tradição nacional. A obra de Juan Benet se refere também a um mundo trágico, gótico e misterioso. Se não houvesse sido impulsionado pelo afã utópico de relacionar todos os fonemas da fala de Julián Ríos não teria escrito Larva. Os poemas de José Angel Valente expressam o mundo dos hereges. A poesia de Pere Gimferrer é trágica sem deixar de ter paixão. La guerra del fin del mundo, essa obra-prima de Vargas Llosa, é “utopista e catastrofista”, mesmo que tenha uma percepção política conservadora. Praticamente todo o “boom” da narrativa latino-americana maneja com os conceitos empregados por Julio Ortega. A poesia também e, mesmo que Octavio Paz não seja catastrofista, expressa a utopia de uma regeneração da humanidade. José Emilio Pacheco é irônico, mas por isto mesmo catastrofista. Cobo Borda é cético, por isto também catastrofista. Se Julio Ortega tivesse que adjetivar-me me agradaria ser chamado de utopista formal, pois minha literatura se produz no âmbito de um rigor que não se permite abandonar-se à improvisação.

 

FM | Cada vez que leio a obra de poetas como o boliviano Jaime Sáenz, o peruano Javier Sologuren e o colombiano Alvaro Mutis – para citar apenas três nomes, por sinal definitivos, e de uma mesma geração – fico a pensar nisto que o argentino César Fernández Moreno chama de “americano complexo de inferioridade”, que supostamente os impediria – no caso, aos escritores de uma maneira geral – de ser como são. Também a leitura de sua poesia me faz pensar na radical negação deste “complexo de inferioridade”. O que pensa a este respeito?

 

EV | Ignorava a afirmação de Fernández Moreno sobre o “americano complexo de inferioridade”, mas me resulta óbvio que os peruanos, sim, tenhamos este complexo. Um complexo de inferioridade unido a um masoquismo bem peruano – me permite fazer uma única e brilhante exceção: Vargas Llosa – que tem impedido, sobretudo se está no estrangeiro, uma melhor relação com a sociedade que o acolhe. O peruano, esteja onde estiver, sempre vive isolado e lamentando-se de uma situação pela qual não faz nada para mudar. Dizem que é o “complexo dos incas”, segundo o qual nos oprime tanto um passado tão glorioso que por isto não nos movemos para mudar a péssima situação atual. Há pouco um importante semanário limenho publicou as fotos de um haloween celebrado por burgueses peruanos em Miami onde, certamente, não figura nenhum norte-americano e onde a festa celebra-se apenas entre peruanos que, além do mais, têm a necessidade de enviar uma foto para que a publiquem em um semanário limenho de grande circulação. Que nome dar a isto? Insegurança cultural, evidentemente, porque o peruano não somente não se sente bem no Peru como também em nenhuma parte. Mas então, em outras latitudes terceiro-mundistas, na Índia, China, Pérsia, deveria existir também um “complexo imperial” que, na certa, não existe simplesmente porque, a meu modo de ver, os peruanos não assumimos totalmente a autoconsciência de nossa identidade cultural ao ponto que seja desnecessário recordá-la, pois a identidade se expressaria no modo de ser do peruano. Não creio que exista o “complexo dos incas”, mas sim apenas o fato de que não chegamos a ser autoconscientes de nosso próprio ser, nossa função, e nosso destino no mundo. Mas nem por isto vou enfrentar-me com gerações anteriores à minha, que tiveram uma formação cultural diferente, se movimentaram em circunstâncias históricas distintas e trabalharam de acordo com o que consideraram correto – mesmo que, como Fernández Moreno, tivessem a consciência de que existia um limite a romper –, porque simplesmente nossa geração vive uma época histórica distinta, caracterizada sobretudo pelo auge de uma tecnologia que, de imediato, nos pôs em relação com todo o mundo. As épocas autárquicas passaram por um mundo onde é possível ser ubíquo, onde se vive simultaneamente diversas experiências, e onde a possibilidade de felicidade (finalmente não temos senão um terror desorbitado de sermos felizes, talvez porque nossa educação católica não estabeleceu devidamente a função terrenal) se encontra ao nosso alcance mesmo sem que saibamos nos libertar de uma estrutura mental conservadora que coloca o homem sob opções impertinentes, como o Estado. Até que me fizeste esta pergunta não era consciente de que meus poemas fossem, como afirmas, uma radical negação de “americano complexo de inferioridade”, simplesmente porque tomava (emprego o verbo no passado, como um sentido de que prefiro continuar conservando minha inocência) os conteúdos de minha poesia com naturalidade, porque, depois de tudo, não concebo de outra forma o mundo senão como queda, expressado nos diversos planos de minha poesia. Pertenço a outra geração, minhas experiências pessoais – que são exclusivamente as de um jovem solitário no pós-guerra, que ama apaixonadamente a literatura – são distintas das outras pessoas com mais idade que eu, e minha formação cultural se realizou em todos os códigos da arte. Contudo, meus gostos são bem mais clássicos, e o poema, entre outras coisas, deve ser perfeito. Agora mesmo, enquanto redijo estas linhas, escuto Carl Orff, mas penso que Garota de Ipanema, de Vinícius de Moraes, ou El cóndor pasa, de Alomías Robles, ou El monogramático, de Octavio Paz, constituem também uma radical negação do “americano complexo de inferioridade”. Acabo de citar Vinícius de Moraes e lembro que em 1972, em uma das mesas do limenho bar Palermo, em meu aniversário, pedi a Susana Baca, uma das melhores cantoras peruanas, e atualmente embaixatriz junto à UNICEF, que cantasse essa canção brasileira que diz “mas que nada” e que ela cantou como só ela sabe fazê-lo. Ali, naquelas noites em que os poetas adolescentes da época cantávamos canções brasileiras, começou esta entrevista, não é verdade? Ali, nesse diálogo de culturas, como queria Octavio Paz que se produzisse entre as línguas castelhana e portuguesa, começou minha amizade com o poeta Floriano Martins, não é certo? Suponho que sim. Somos ubíquos e a ubiquidade inclui também o tempo. Ergamos a taça e cantemos então a Maria Bethania, cantemos o “que será que será que cantam os poetas mais delirantes” de Chico Buarque de Holanda. Sejamos felizes porque este é o centro de toda literatura.

 

FM | Em entrevista concedida a Eduardo Espina, o peruano Xavier Abril emite algumas curiosas declarações a respeito de César Moro (“Moro era um poeta menor que imitava os poemas de Breton”) e Emilio Adolfo Westphalen (“Tem boas imagens, porém é formalmente frouxo”). Claro que me interessa saber sua opinião acerca destes três poetas aqui citados, mas sobretudo gostaria que me falasse acerca do surrealismo e seu feixe de influências na América Hispânica.

 

EV | Moro me fascinou sempre, especialmente sua Carta de amor, que Westphalen traduziu ao castelhano e que publicou, pela primeira vez, me parece, em Las Moradas, uma revista que o próprio Westphalen dirigia nos finais da década de 40, cuja coleção completa li há tempos na Biblioteca Nacional. Na realidade, a atividade destes poetas, que guardaram entre si uma enorme amizade até o fim, é impressionante. Ambos viveram sua época e vivê-la implicou, para eles, militar no movimento surrealista. Também a viveu Abril, só que Abril não militou no surrealismo, ainda que nos tenha deixado também excelentes poemas. Moro foi a Paris desde muito jovem e ali frequentou Breton. Escreveu seus poemas em francês e este francês, como o inglês de Nabokov, era perfeito. Certamente, deixou um livro em castelhano: La tortuga ecuestre, que consegui localizar em um sebo. Moro era um grande poeta que outorgou o sentido de uma imaginação deslumbrante às letras latino-americanas, e Westphalen delineou também um mundo detrás da realidade capaz de descrevê-lo como incriado, ou em plena gênese. Quando a república espanhola teve problemas lançaram El uso de la palabra, como oposição ao fascismo; e Moro, desde o México, assim como Westphalen, desde Lima, organizaram uma série de atividades culturais. Las Moradas se lê com prazer, mas também, ao passar lentamente suas páginas, ficamos admirados com a percepção do contemporâneo que teve Westphalen ao organizar o material que nos apresenta sua revista. Conservo também a primeira e lamentavelmente única edição de um livro de Coyné: César Moro, sobre a vida deste grande poeta surrealista. Em Paris, um amigo me emprestou certa vez Los anteojos de azufre, coleção de ensaios sobre arte e atualidade, de César Moro, nos quais se percebe o mesmo fluxo de suas imagens deslumbrantes. Agora me acaba de chegar EAW, de Stefan Baciu – este grande conhecedor do surrealismo latino-americano –, que dedica um par de ensaios à poesia de Westphalen, onde diz que nunca viu o exemplar de uma primeira edição de Westphalen. Por sorte, tenho em minha biblioteca o primeiro exemplar de Abolición de la muerte, de Westphalen. Antes de morrer, Breton disse que o surrealismo havia passado à clandestinidade para esperar o momento adequado de seu renascimento. Isto é certo, as atividades surrealistas se desenvolvem clandestinamente sem nunca haverem cessado. Uma vez em Paris, entre 1º, 2 e 3 de junho de 1979, me convidaram a um dos acontecimentos mais maravilhosos que já assisti: intervir em um recital do qual também participavam Allen Ginsberg, Joyce Mansour, Phillipe Solleurs, Jean Pierre Faye, Brion Gysin, Judith Malina, Julian Beck, Valere Novarina, Christian Pringet, Claude Miniere, Ted Joans e Peter Orlovsky, entre outros. Foram três longos dias eletrizantes: paz, amor e beleza. Ali vi Joyce Mansour, uma mulher ainda jovem, vestida com uma só peça negra do pescoço aos tornozelos, que se sentou ante uma espécie de alto reclinatório, situando-se de perfil para o público, com um violinista às suas costas, em penumbra. Leu maravilhosamente seus poemas ao entardecer daquele dia em que eu tinha meus olhos postos nela, a quem eu lia desde a adolescência. Imaginas a beleza que foi tudo aquilo, com todos aqueles deuses tão maravilhosos! Ginsberg é um grande poeta e uma pessoa humaníssima. Me emocionou ver Joyce Mansour porque isto demonstrava o enorme atrativo que tem o surrealismo sobre escritores de gerações e línguas diferentes. O surrealismo é um movimento complexo que tem várias escolas e todas atrativas. Através dos anos li escritura surrealista segundo fosse a experiência imediata que eu tivesse. Lia sobre Artaud, em Lima, ia às cinematecas ver Vivre sa vie, de Godard, no qual, por um fenômeno de montagem cinematográfica, aparecem sequências de uma velha película em que Artaud interpretava um padre. Li também muito Breton e, ao começar os anos 70 em Lima, as garotas me beijavam nos cafés depois de recitar a última frase de seu Nadja: “a beleza será convulsiva ou não será”. Michel Leiris me apaixona, o mesmo que Bataille, e também me encanta o Monte análogo, de Daumal. São escritores com os quais sinto uma enorme afinidade espiritual. Me encanta também a pintura surrealista, especialmente Hans Bellmer, cujo Auto-retrato com Unica me enlouquece. O surrealismo teve uma enorme influência para a América Latina e ali estão para prová-lo os trabalhos de Stefan Baciu. O italiano Vittorio Bodini tem um livro: Os poetas surrealistas espanhóis, sobre a influência do surrealismo na Geração de 27, na Espanha. É um livro maravilhoso, escrito com perfeição e cheio de um enorme conhecimento da influência surrealista na Espanha. Li também outro livro maravilhoso: Minha vida com os surrealistas, do norte-americano Mattew Jossephson, em que rememora suas aventuras de jovem yanqui no momento mesmo em que o surrealismo se funda, e o que ele fez pelos surrealistas na América do Norte. Facción española surrealista de Tenerife é outro livro, de Domingo Pérez Minik, um escritor tenerifenho que recorda as relações dos escritores insulares com Breton e a literatura surrealista que produziram os tenerfeños. Enfim, que o surrealismo é uma lição que há que saber aprender.

 

FM | Tenho lido – graças a seus envios – as matérias críticas publicadas em jornais peruanos a seu respeito, sendo todas elas unânimes nos altos elogios à sua poesia. Segundo Mirko Lauer, “a opinião sobre poesia é uma atividade constante neste país”. Quanto deve um poeta à crítica no Peru?

 

EV | Suponho que devo excluir-me de qualquer nota elogiosa sobre minha poesia, ainda que a agradeça. O que diz Lauer é certo até certo ponto: também é verdade que forma parte de uma não constância a excelente poesia, porém essa margem basta para se passar o dia lendo um bom livro de poesia. Contudo, abundamos em poetas mas temos demasiados críticos que possam ocupar-se, calma e exegeticamente, dos livros que se produz: a produção, sendo de qualquer forma incessante, terminará por abrir um espaço à crítica poética. Uma crítica que é necessário empreender porque ela, se a concebemos como o lugar de uma criação pessoal, contribuirá também para enriquecer a nação cultural: me refiro, certamente, à crítica criativa, que é a que me interessa e porque ela, em suas diferentes opções, contribui para formar umas relações literárias que, às vezes, podem defrontar-se com a tradição, mas que por isto mesmo se acha destinada a impulsionar a literatura em seu momento. Se abandonamos o chauvinismo, essa máscara detrás da qual só existe um horror ao vazio, seremos capazes de encontrarmo-nos a nós mesmos porque teremos o fundamental: liberdade para criar e, desde modo, postular um mundo no qual seja possível um enriquecimento de toda a humanidade. A crítica peruana se faz, como sua poesia, lentamente, opondo-se ao desinteresse generalizado, mas com a esperança de elevar o nível cultural de um público que até duas décadas atrás se interessava por tudo menos pela literatura.

 

FM | Diz um verso de Martín Adán, em Poemas Underwood: “O mundo está demasiado feio e não há maneira de embelezá-lo”. Contudo, a poesia de Adán é uma vibrante negação desta fealdade irredutível a que ele se refere. A poesia é certamente a única possibilidade de beleza que nos resta.

 

EV | Martín Adán fala da fealdade do mundo precisamente porque tem a consciência de operar uma mudança que permita a beleza: ele foi um cético durante toda sua vida e eu sou somente um homem dedicado à sua literatura que, como Arno Smith ou Hans Bellmer, vive afastado do mundo, em perpétua relação conflitante com um meio para o qual a literatura resulta incompreensível, isto porque efetivamente esse mundo perdeu a consciência de seu próprio ser e de sua própria necessidade no mundo: a literatura recorda aos homens um destino muito mais digno do que o que agora possuem e procura para eles a consciência da felicidade, para que a possam encontrar ali onde se faz necessária. O sentido de beleza é a poesia porque ela é revelação, experiência, invenção e perfeição. Sem poesia é impossível perceber um mundo que delineia seu sonho através de nós: somente vendo o mundo brotado de nosso afazer é que temos consciência de nossa existência, que deve ser poética diante de todo o caos contemporâneo. Tens razão: a poesia é a única possibilidade de beleza que nos resta. Só que haveria que se acrescentar algo mais: desde o Renascimento temos essa consciência e os românticos estabeleceram isto em que, por vivermos em um mesmo mundo desalmado, levaram a sua própria existência, como nós: viver poeticamente a vida. Por que a vida que se adora não é poética? Longe do mundano ruído, a beleza se transfigura no que somos: poesia.

 


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