terça-feira, 23 de novembro de 2021

JOSÉ MANUEL MARTINS | Patafísica (uma nota)

 


Mil vezes patafísico a metafísico. O patafísico encontra o seu lugar de aprendiz de feiticeiro nos alcatruzes eternos de Escher, no contexto de imanência, inescapável e ilusoriamente transiente. Dessa abissalidade faz parte (e é mesmo o gesto malevichiano de suspensão de tudo no nada) a autoficcionalização in re do evanescente, intermitente, inexistente Collège, e de todas as sua roupagens mitomaníacas. O mais sério lógico-ontológico libertado de si mesmo como fictício (‘insustentável leveza’), os princípio impossíveis da Patafísica regidos por um crocodilo fotografado no Níger, formam, como koan insuperável, uma operação de deposição da realidade que ultrapassa várias vezes em alta-voltagem filosófica as mais promissoras medium-ontologias tecnológicas da imaterialização, e reinstauram, como um rito e uma eucaristia implícita, o próprio gesto ontológico do adventus absolutus: o mundo, trama mayâvica, é a autoficcionalização de um ‘ser’ que, nem ‘saído do nada’ nem chegado a ser, se suspende como sonho de si próprio (autoficcionalização, declinado fichteanamente como Actus) que arrefece, coalha, se petrifica, se materializa, e adquire consistência. Mas a da realidade de um sonho, não a da realidade de uma realidade. Por isso Inception, eXistenZ, são cinema patafísico: tudo se suspende e tudo circula, ciranda, num sonho real, numa realidade onírica. A Caverna, Matrix, o sistema hegeliano, ainda lutam da illusio para fora; ilusão de que se saísse da ilusão, porque ilusão de que houvesse ilusão (por haver saída dela)!... O gag do totem, do ‘critério’ hegeliano como ‘autoconfecção’ do próprio critério enquanto decorre aquilo mesmo que ele deve criteriar imanentemente, ao mesmo tempo pertencendo ao processo mas processualmente descolando desde para se obter dele para fora como sua verdade (a vertigem correlacionalista da deiscência…), num ‘auto’ que se auto-julga, é o gag dessa figura clownesca da cambalhota absoluta, e Hegel deveria ser, a justo título, considerado, e não Jarry ou Lautréamont, o progenitor. Mas nisso viu bem a patafísica a agonia de toda a filosofia metafísica: esta estava a tentar enunciar a ontologia, mas a ontologia que a supera (cf Deleuze sobre Heidegger-Jarry) ainda se agarra desesperadamente à metafísica, e ainda trata a-lêtheia como re-velação (como sais-entras de Inception) como se houvesse verdade (veritas: como se houvesse afinal metafísica, ‘saída’ da física para cima, da caverna para o alto, do mito apolíneo) nessa re-velação (nessa ‘ontologia da diferença’).

Sem dúvida que a passagem da finidade à finitude (uma das melhores lições das Antinomias transcendentais) instala o filme inteiro em Inception, mas nem os filmes resolvem o sentido da imortalidade do sujeito da morte, ao adiarem a questão da morte como prova de realidade, o verdadeiro totem – e tabu – lutuoso escondido tanto em Inception como em eXistenZ. Na finitude, na fenoménica, se abolirmos a coisa-em-si (resíduo da pulsão de saída ou de despertar do velho platonismo da caverna), resta apenas a fantasmagoria absoluta. Contrastada com nada, é ela a realidade.

E pena é: a diferença ontológica deveria mostrar outrossim como ela própria estava (nos seus três termos) encriptada sob forma ontificada e obnubilada na expressão tomista do ipsum esse subsistens, como acto existencial (cf. a exegese de Gilson entre acto aristotélico e acto tomista), maneira de evitar a ôntica rocambolesca da causa sui, das regressões sem fim, das cambalhotas sacrais do truão. Assim, o bivalve ser-ente abre e fecha na sua diferença hiante e inconsútil. Os dois esforços desesperados da metafísica para escapar à armadilha da ontificação, na qual pressente a crítica kantiana da auto-irrisão das regressões infinitas (que, de resto, finitizariam um deus regredível ainda na sua própria infinidade), seriam o ipsum esse subsistens e o argumento ontológico. Ser e ente, ser e pensar, estes vértices formam um trapézio: e, à autoposicionalidade não-ôntica do ser que se ontifica a si mesmo (do ser que, na sua ‘diferença ipsa’, se converte em subsistência ôntica da sua própria ontologicidade, em ontificação (bivalve que se fecha) ‘da’ sua própria ontologicidade como tal – e é nesse ‘como tal’ que reside o carácter aberto do bivalve –), responde homóloga formalidade da parte do argumento ontológico: para que a representação que deus é não seja uma representação, é preciso que essa representação se represente a si mesma (analiticamente) como não sendo uma (sinteticamente). O princípio desta (dis)junção de forma analítica (identidade punctiforme) com forma sintética (diferencialidade desse ponto a si mesmo) assumirá, em Hegel, precisamente a forma dialéctica. Em Kant, se a


forma analítica é a de uma lógica formal do puro pensar, a forma sintética é a de uma lógica transcendental do objecto exterior a todo o puro pensar, mas na medida em que esse puro pensar se revela ser de natureza sintética e, sem deixar de ser puro – a priori – torna sintética a sua analiticidade e estende-a, e estende-se, à pura forma da exterioridade objectiva, o ‘objecto transcendental’, ou seja, a ‘todo o objecto empírico possível’. Em Hegel, a consciência é inerentemente consciência de objecto (a intencionalidade, pedra de toque de toda a fenoménica, desde a kantiana às fenomenológicas, é sempre transcendental: e não foi Brentano quem o viu – desde o idealismo alemão, ao superar o cartesianismo de Berkeley, que isso se havia tornado na forma mesma da filosofia). O que sucede é que essa síntese se apercebe como, não um adquirido (uma correlação petrificada, transcendental, constituinte a priori da própria aprioridade, e nomotética-universal num cosmos inamovível de tipo newtoniano), mas como um esforço: alcançar o objecto, desde a consciência, é sempre transpor uma alteridade fatal. Essa fatalidade assumirá o carácter do negativo operacional, do negativo que ‘trabalha’ o próprio nexo sintético de uma consciência analítica e auto-idêntica que nessa auto-identidade enclausurada se torna capax alii, capaz do outro, reeditando o velho paradoxo sofístico [e de.. Empédocles?] de como pode o semelhante conhecer o diferente, a não ser que seja ele próprio já diferente, mas como pode algo ser algo se não se mantiver na auto-semelhança desse algo que ele é? – e que será também o paradoxo sofístico a que só a teoria da anamnese responderá, em Platão, em termos não diferentes de todos estes, que são os da philosophia perennis a caminho da sua perecibilidade patafísica. Assim, por força da negatividade do ‘esforço sintético’ contido na sua própria distensão intencional, a consciência ex-stática adquirirá o carácter, já patafísico e teatral (ficcionalizante), de ‘figuras’ de si mesma e do seu mundo, figuras da realidade num drama ontológico que desfilam como falso atrás de falso, sem que nenhum seja verdadeiro excepto o todo. Mas o que é que temos nós estado a dizer? Inception, eXistenZ, são o desfile patafísico (anárquico, anhieráquico, ateu), de figuras de falsidade que atestam a falsidade de todas as figuras, sem saída para nenhuma última verdadeira que fosse o impossível conjunto gödeliano auto-contido como elemento de si próprio (é por isso que não há ‘positividade’ final nenhuma em Hegel, essa absoluta coincidência de consciência e consciência de si não se estabiliza numa soma total, e toma, sim, a forma interna, mise-en-abîme, dessa mesma sua processualidade, primeiro lógica, depois enciclopédica, depois tri-silogística, reenunciando sempre o especulativo, identidade de diferentes que se diferencia e ‘sai’ de si mesma, coincidência apenas com a sua própria incoincidência, sem ‘síntese’ possível, sem o tal ‘sintético acabado’ e estabilizado das certezas transcendentais). E, se o todo é o verdadeiro, o que essa verdade vem dizer é que não há senão falsos. (O cinema do falsário, consequência de uma ontologia do tempo – de um Sein und Zeit à francesa cozinhado entre Bergson e Deleuze – e Resnais e Robbe-Grillet – é onde se inscreve o sistema de Hegel, ‘inimigo da sociedade aberta’ [nota jocosa a Popper] não porque se tenha fechado numa, mas por se ter fechado em nenhuma. Não há senão os imponderáveis desdobramentos de ‘figuras’, ‘espectros digitais’, ‘sonhos’, indiscerníveis de outros tantos ‘espectros materiais’ ou saídas da caverna, e que reconduzem sempre, ‘escheriano-hegelianamente’ [cf artigo do Diogo], de uma maneira ou de outra, seja ‘circularmente’ seja oscilatoriamente, de umas às outras: guardando apenas, como derrisão suprema, essa formalidade a que o ‘haver uma realidade’, uma Ding an sich, aspira formalmente, formalidade que entretanto adquiriu, e que a move, e que é o impossível Real lacaniano, que porém não passa do buraco patafísico do ‘fundo branco sob buraco negro’ de Malevitch, duplo abismo um no outro. O estatuto da verdade e da actualidade tornou-se infernalmente residual, porque a sua garantia é a da sua intangibilidade: por mais que seja distinto do virtual, o efectivo deixou de se poder discernir dele, a sua condição – a da realidade – é agora a de um ‘cristal’: ipsum esse subsistens, cristalização ontoteológica da Diferença, a ‘realidade passou a ser constituída por uma efectividade virtualizada nessa sua efectividade, de uma virtualidade efectivada nessa sua virtualidade, algo que não chega a ser uma autoposição real, ‘realmente real’, óntôs ón. A verdade dos falsos é que são eles, e apenas eles, a totalidade, e que não há nenhuma verdade nem nenhum verdadeiro para além desse haver o não o haver.


No argumento ontológico, procura Anselmo antecipar prolepticamente a ‘reflexão transposta’ da razão humana para a divina, no ‘ideal transcendental’ (é a razão que não pode deixar de reflectir que Deus não pode deixar de reflectir assim: ‘e eu, o fundamento absoluto de tudo quanto existe – de onde ‘sou’ eu?’). O que nessa questão, resolvida pela fórmula do ipsum esse subsistens, queda esquecido, é que o problema não é o da regressão ôntica a um assentamento, o problema do ‘de onde’ ôntico, mas o problema do próprio sentido do ‘sou’, do ‘ser’: e é a esse problema que deus, ontificado, não responde nem pergunta. E a ponto de esse sentido ser o esquecido, o grande esquecido: e é por o saber esquecido por toda a metafísica, e irrespondível por toda a ontologia, que a patafísica ‘assenta’ num crocodilo, capaz de irresponder ao mesmo tempo a questão regressiva do ôntico e a questão diferencial do ontológico: desistência simultânea do fundamento e do sentido, sem perder nenhum dos dois, pois que lá está o crocodilo para os fornecer, e aqui estão todos os crocodilos do seu incessante, inesgotável fornecimento a que chamamos vida, Maya, eXistenZ. Sem, pois, esquecer que o problema e a ‘prova’ da ‘existência’ de deus é meramente o daquela ‘subsistência’ para-criatural, ontificada, macaca, o argumento ontológico procura sair do carácter analítico de uma proposição sobre o objecto exterior efectivo (existente), encontrando algo como um caso único e excepcional de ‘intencionalidade’, de ‘extensão sintética’, de exteriorização e auto-alteração dialéctica, dessa identidade analítica da mente e das suas proposições: o caso da formulação imbatível. Já é falível que ela funcione, não por negatividade ou equivalente (a ‘sinteticidade’), mas por critérios analíticos (isso mesmo falaria pela sua escrupulosidade formal): pelo princípio de não-contradição. Seria analiticamente contraditório a proposição-chave anselmiana não ser sintética: convenhamos que é um achado. Não examinaremos aqui a vexata quæstio do próprio argumento, apenas, meta-argumentativamente, a sua importância no trapézio referido. Se no lado oposto se queria garantir ‘deus’ (quer dizer: a consistência de realidade e de sentido, o absoluto ontológico de, ao menos esta existência que levamos, ser verdade, no mais desesperado e doloroso sentido desta expressão: e é essa a salvação, muito mais do que da alma e do tempo: a salvação ontológica, não teológica, da própria verdade da terra e da morte, como terra da verdade e da vida) hipostasiando a diferença ontológica sem cair na esparrela do mau-infinito do fundamento causal, que não poupa nada, nem deus; neste lado do trapézio quer-se garantir que ‘deus’ (que a consistência de realidade e de sentido, etc.) não é uma alucinação subjectiva, um açúcar do cérebro, um correlato relativizado da mera consciência. É preciso que o argumento não prove que a consciência não se pode desenvencilhar do seu correlato objectivo ‘deus’, mas que do que ela não se pode desenvencilhar é de verificar que esse seu correlato adquire a sua própria posição de si, não desde a consciência e pelo argumento, mas desde si mesmo e desde ele próprio, e que é isso que o argumento mostra, e apenas nisso que ele consiste: ele demonstra que deus não carece de demonstração (mesmo que só ele demonstre tal: o que não faz o demonstrado depender da demonstração e do demonstrante: apenas nós, não deus, dependemos destas). Por isso, e nesse sentido, sugere Anselmo que o seu argumento não é uma demonstração da existência de deus: não porque não conseguisse chegar a sê-lo, mas precisamente porque consegue chegar a demonstrar que não precisa de chegar a sê-lo: o argumento demonstra simultaneamente, pela mesma formalidade lógico-ontológica, que a prescindibilidade de si próprio é a imprescindibilidade deus, e vice-versa.

Ora, um tal trapézio adquire no entanto sempre a configuração de um triângulo, sua verdadeira forma. Em ambos os casos convém, ao pensarmos, levar as mãos à cabeça ou à lombar e certificarmo-nos de que não estamos a assar nuns fios eléctricos – ou se, mais radicalmente, não somos nós próprios uns: seres de fios eléctricos, como no ‘mundo nos fios condutores’, ou ‘mundo por um fio’, título supremamente patafísico, de jocoso, de Galouye/Fassbinder. Quer isso dizer que o problema de o mundo ser irrealidade realizada é também o problema de toda essa frase, e os verbos da sua ôntica, da sua ontológica, da sua física e da sua metafísica serem um imenso argumento ontológico das pequenas coisas e do cabaz todo, que incessantemente produzimos. Fé perceptiva, dizia Ponty, e a própria percepção é, desde Hegel um acto de fé. Reversamente, a consciência seria um dispositivo ingarantido produzido tardiamente nesta ôntico-ontologia do indecidível da realidade (mas, de novo, de indecidível por e para uma consciência, etc.). Na verdade, a figura que agora este engendramento suprematista delas reveste, é a do círculo: (a) um quadrângulo ‘realista ingénuo’ torna-se (b) matreira suspeição idealista triangular, mas (c) re-compõe-se com aquele quadrângulo, que mantinha separadas as esferas do ser e do saber que o triângulo submetia à suspeição unilateral do vértice que se observa na sua relação ao lado oposto e que observa a relação dos outros dois vértices entre eles, ‘objectiva(da)’ nesse mesmo lado-oposto, e percebe que o seu próprio vértice idealista privilegiado também ele é avistável desde o lado-oposto ‘realista’ e se inscreve perante esse realismo e mesmo dentro dele como fenómeno secundário engendrado (e nunca se auto-representou a consciência humana de outra maneira, senão como criada, inserida secundariamente numa realidade pré-existente – o que pode tomar todas as formas, inclusive a forma feuerbachiana da sua projecção como o deus aristotélico, cristão, hinduísta).


O círculo de idealismo e realismo (que ainda faz as delícias de transição pós-metafísica de Ser e Tempo) assume a figura de uma escadinha de Escher, em que o recíproco ascendente tomado pelo patamar do idealismo sobre o realismo e pelo patamar do realismo sobre o idealismo, são o mesmo ascendente, numa vertigem hegeliana de efeito-recíproco. Esse jogo absoluto e do absoluto, as regras alucinantes da sua lógica, a sua ontologia irrisoriamente e sumptuosamente borgesiana, é a da Patafísica como jogo do rei Ubu: vamos jogar ao real, e a realidade era um jogo (na encenação de Mário Viegas, pelo menos).

Beckett, Pirandelo, Borges – patafísicos?


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Agradecimentos à revista Ideia (Portugal), pela cessão deste ensaio.




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[A partir de janeiro de 2022]
 

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Número 188 | novembro de 2021

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