terça-feira, 23 de novembro de 2021

ELYS REGINA ZILS E ANDERSON DA COSTA | Entrevista com Claudio Willer

 


Afora as já conhecidas alusões sobre a influência do surrealismo na poesia de Murilo Mendes, o que foi estabelecido pela crítica é a ideia de que o surrealismo no Brasil é inexistente. Afrânio Coutinho, por exemplo, dizia que em nosso país o surrealismo “se mostra em superfície ou em impregnações dispersas”. Mas, talvez, emblemática mesmo seja a afirmação de José Paulo Paes de que o surrealismo literário no Brasil é como a batalha de Itararé: não houve. Contudo, sabemos que o surrealismo no Brasil se mostra além da percepção de Coutinho e da certeza de Paes. Você e muitos da sua geração possuem forte identificação com o surrealismo, participando inclusive do que alguns entendem como um grupo surrealista no Brasil. Nessa entrevista, gostaríamos de conversar sobre as suas impressões sobre aquele período dos anos 60 em um primeiro momento, já que você viveu tudo aquilo de muito perto. Em seguida, gostaríamos de colocar algumas questões sobre a presença do surrealismo no Brasil, o comportamento da crítica e também algumas questões mais específicas sobre o tema.

 

ERZ/AC | Talvez, pudéssemos começar por uma afirmação sua, naquele dossiê sobre o surrealismo na Revista Cult (2001), em que você se refere ao surrealismo no Brasil como uma história subterrânea. Após vinte anos, a sua percepção ainda é a mesma?

 

CW | Hoje surrealismo está mais presente. Vale para o século 20, para os autores nos quais a presença do surrealismo ou seu relacionamento com esse movimento não foi objeto de atenção. Houve, diria, um provincianismo brasileiro – em contraste com o cosmopolitismo dos modernismos e vanguardas hispano-americanas – que contribuiu para isso. É correta a observação de Valentim Faccioli, de que nossos modernistas estavam demasiado comprometidos com um projeto nacional para se envolverem com movimentos estrangeiros ou tidos como não-brasileiros ou não suficientemente brasileiros.

 

ERZ/AC | A virada dos anos 20 para os anos 30 do século passado foi o momento de internacionalização do surrealismo, com grupos surgindo em países da Europa e Américas. Isso não aconteceu no Brasil, embora se possa encontrar pontos de convergência entre a Antropofagia e o Surrealismo, além da presença de Benjamin Péret entre os modernistas. Contudo, há a severa oposição de Tristão de Athayde, que se referia ao surrealismo como uma “infecção” e que se fazia necessário barrar a sua entrada em nossas artes. Oposição essa também encontra em Mário de Andrade, que em carta a Prudente Neto, dizia que o surrealismo não adiantava nada porque não ajudava em nada, no caso de uma arte de “caráter interessado”, conforme ele defendia. Dito isso, poderíamos, talvez, falar em censura ao surrealismo da parte dos meios artísticos e intelectuais brasileiros da época?

 

CW | Sim. O Dr. Alceu pode ser o exemplo mais típico. Católico, inicialmente conservador e nacionalista: motivos para não suportar surrealismo. A observar também o que já chamei de caretice de Mário de Andrade: sem dúvida um personagem colossal, com uma contribuição decisiva – mas ele queria um vanguardismo bem-comportado, regrado. Exemplo, sua recriminação a Luís Aranha (entre outros) e sua objeção ao “delírio”.

 


ERZ/AC | Se por um lado a Revista de Antropofagia saúda a vinda de Péret, por outro temos a acusação de Carlos Drummond de Andrade de que a antropofagia “ainda não jantou o Benjamin Péret”. O diálogo com o grupo de Oswald de Andrade não foi frutífero, por assim dizer, e ambas passagens do surrealista pelo Brasil foram marcadas por detenção e expulsão. Dito isso, gostaríamos que você comentasse um pouco sobre esse isolamento intelectual que Péret encontra no Brasil, ainda que tenha estabelecido contato com grupos de intelectuais aqui, como com o movimento antropofágico e setores da esquerda trotskista. Até que ponto essa postura se dá por aspectos estéticos ou políticos.

 

CW | Até que Péret foi bem recebido. Viajou, escreveu, casou-se, fez amizades, mesmo sendo visto por muitos como um bicho exótico. Pedrosa e Pagu foram seus hóspedes em Paris, em 1935. O problema foi político, e não da parte dos intelectuais e artistas. Tratar de índios e seus mitos, investigar a Revolta da Chibata e os Palmares, tentar disseminar o pensamento de Trotsky, era intolerável para as autoridades. Além de ser expulso, houve esse acontecimento espantoso, queimarem seus originais.

 

ERZ/AC | Voltando a essa possibilidade de censura do meio intelectual e artístico, o mesmo poderia ser aplicado nos anos 60, cujos acontecimentos você vivenciou bem de perto, por parte sobretudo dos concretistas e da geração de 45? Por que há tanta má vontade da crítica com o surrealismo?

 

CW | Porque não estava no repertório. Mandarinato cultural. Beletrismo, inclusive nas variantes vanguardistas. Adotavam outras poéticas. Naquela sociedade conservadora dos anos 40 e 50, rebelião estava fora de questão. Construtivismo sim, surrealismo não. A não ser aquela sancionada pela militância, da qual não fizemos parte, ou pouco fizemos. Alguém como Piva, por exemplo, era intolerável para aquela militância (embora então se declarasse marxista).

 

ERZ/AC | No Brasil, admite-se apenas o surrealismo tardio com o surgimento do primeiro grupo nos inícios dos anos sessenta. Em “História subterrânea”, da Revista Cult#50 (2001), você afirmou que "hoje, deve-se deslocar o foco da militância por vezes episódica para uma configuração de obras pautadas pela riqueza imagética e pelo exercício da liberdade de imaginação, cuja recepção é prejudicada pelo filtro de uma espécie de cartesianismo poético brasileiro". Nesse sentido, até que ponto você considera que as obras Paranoia (1962), de Roberto Piva; Amore (1963) de Sergio Lima; e Anotações para um apocalipse (1964) de sua autoria podem ser consideradas obras surrealistas ou que dialogam com o surrealismo?

 

CW | Com certeza…! Piva, além da qualidade, tem importância histórica. Foi beat-surreal, ponte entre as duas rebeliões.

 

ERZ/AC | Aqueles anos entre 1962 a 1967 são identificados como o momento em que há um grupo surrealista no Brasil. Podemos dizer que esse grupo se organizou nos moldes do grupo surrealista de Paris ou da Bélgica? Você pode comentar sobre esse período e sua participação no grupo?

 

CW | Isso foi iniciativa do Sergio Lima, apresentado por Piva em maio de 1963 a um grupo de amigos já existente. Primeira reunião foi divertida, terminou em um porre colossal. Mas a ideia de um movimento nos moldes franceses não suscitou entusiasmo. Continuamos amigos, em contato, mas grupo, com reuniões regulares e algum projeto – Sergio queria um almanaque – não teve adesão. Isso de reuniões e examinar algum projeto dispersou-se naquele mesmo ano. Mas, como disse, continuamos amigos. Houve mais algumas reuniões em 1965 no ateliê de Wesley Duke Lee: Sergio, Piva e eu. Chegamos a participar de atividades, fizemos anarquia em Nova Friburgo convidados por integrantes de um movimento de Cataguazes, liderado por Paulo Bastos Martins. Fomos levados à delegacia local. Foi bem divertido. Voltei a Cataguazes em 1969.

 


ERZ/AC | A exposição surrealista na FAAP em 1967 é considerada a principal manifestação desse grupo. O que você poderia comentar sobre a exposição? Como foi a recepção? Sua abrangência foi apenas dentro de um grupo restrito ou se deu de forma mais ampla?

 

CW | Já era outro grupo. Leila Ferraz, Raul Fiker, Paulo Paranaguá. Almoçamos em um restaurante chinês na Praça da Liberdade em fevereiro de 1966 e fui convidado, mas não quis participar. Pelo seguinte: já estava tudo pronto, formatado e programado, sem a nossa participação, dos nossos amigos, a começar por Piva. Sergio não quis saber de discussão do que estava apesentando. Claro que foi uma boa exposição e merecia ter repercutido mais. A revista A Phala, lançada então, trouxe obras de Cesariny e Pellegrini, por exemplo.

 

ERZ/AC | Willer, gostaríamos de colocar algumas questões sobre a recepção das obras do surrealismo no Brasil. Até meados dos anos 80 do século passado não havia, ao que tudo indica, nenhuma tradução de autores surrealistas em nosso país. Deixo de fora a sua tradução do Lautréamont, feita ainda nos 70, em razão de nos referirmos aqui às obras do surrealismo enquanto movimento organizado. Pois bem, em 1985 tivemos a edição dos Manifestos, com prefácio seu, a coletânea do Péret, esses dois pela Brasiliense e ainda o Breton/Trotsky pela Paz e Terra. A Brasiliense ainda publicaria Os Arcanos da Poesia Surrealista em 1988. Nesse mesmo ano saiu uma coletânea do Éluard pela Guanabara, traduzida pelo Paulo Paes e no ano anterior, pela mesma editora, Nadja, com tradução do Barroso. São oito obras em três anos, bastante coisa se considerarmos que até então nada havia. Naquele ano de 1985 a Unicamp e a Aliança Francesa de São Paulo organizaram A Semana Surrealista, uma série de conferências e debates sobre o tema, com a presença do José Pierre e do Jean Schuster, salvo engano nosso. Pode-se afirmar que essas traduções todas possuem uma relação direta com esse evento? Até porque as edições da Brasiliense contam com o apoio da Aliança Francesa.

 

CW | Alguém – a Brasiliense? não sei – conseguiu uma subvenção da Aliança Francesa, que bancou isso. Sergio teve algo a ver. E uma associação de amigos de Benjamin Péret. Houve edições e as sessões de palestras e debates. Aqui, na FAAP, e na Unicamp. Jean-Pierre Schuster – legatário de Breton, uma espécie de sucessor – não agradou. Em 1969, encerraria o grupo surrealista francês. Estive em Paris, em fevereiro de 1968, em uma das reuniões desse grupo. Honestamente, deu-me a impressão de que estava em uma reunião do Depto. de Psicologia da USP, onde lecionava. Elisa Breton à cabeceira. Tinha pauta, resolveram fazer um cartaz do André Malraux se afogando. Não estavam percebendo a tempestade que se formava. Gente boa, mesmo naquela reunião, principalmente Joyce Mansour. Chegou vestida de preto, não abriu a boca, não moveu um músculo da face.

 

ERZ/AC | Ainda sobre essa semana, você participou? Poderia falar um pouco de como foi? Que tipo de recepção ela teve na época? Seria demais afirmar que teve um papel fundamental no crescente interesse pelo surrealismo no Brasil nos últimos quarenta anos, a julgar pelos estudos e traduções que têm surgido de lá para cá? Porque parece-nos que foi a primeira vez que o tema foi discutido com propriedade para um público aberto, que não necessariamente por conhecedores do surrealismo. Isso procede?

 

CW | Participei das mesas, aqui, na Aliança Francesa do Butantã, e na Unicamp. Junto com Maria Lúcia Dal Farra, poeta, professora de literatura. Falou (bem) sobre esoterismo no surrealismo. E eu, sobre acaso objetivo. Convergentes. Havia público.

 


ERZ/AC | Em “Estrela da manhã”, do Michael Lowy, há um artigo do Sérgio Lima no qual ele se refere a um terceiro momento do surrealismo no Brasil, organizado em torno do grupo surrealista de S. Paulo/Fortaleza (1985-1999). Pouco coisa se sabe sobre as atividades desse grupo, seria esse mais um indício de que o surrealismo no Brasil permanece uma história subterrânea? E há alguma relação desse grupo com a primeira fase da Agulha Revista de Cultura, já que o Floriano Martins que junto com você era um dos editores é citado como membro do grupo, e considerando que a Agulha nesse período publicou muita coisa sobre o surrealismo?

 

CW | Repare no seguinte: Sergio Lima sempre fala ou escreve sobre um movimento surrealista aqui. Mas os integrantes nunca são as mesmas pessoas. Em algum momento da década de 1980 ou em 1990, estive em uma reunião. Juan Hernandes e Floriano Martins participaram daquilo, mas tangencialmente, acho. Lançaram um manifesto, dizendo o que haveria para ser dito sobre o descobrimento da América. Por um tempo, Agulha, de Floriano, publicou artigos de Sergio Lima. Depois – bem, depois… Depois, o de sempre – Sergio foi organizar outros grupos, e publicou aqueles livros. A aventura surrealista. Tem bastante informação. Mas acho antiético Piva não ser citado uma única vez no volume sobre o Brasil. No artigo que está no livro do Löwy, tem um enredo sobre uma opção minha pela Beat, uma suposta disjuntiva entre surrealismo e beat. Bobagem, fantasia. Já publiquei a respeito.

 

ERZ/AC | Atualmente as pessoas tendem a associar todo tipo de absurdo ao surrealismo. Associação reforçada inclusive pelas mídias como na capa da revista que você comentou no seu blog em 2015. “Brasil como país surreal”. O que na verdade nada mais é do que a repetição de lugares-comuns, qualquer estranheza parece ser convertida em surrealismo. Não se dá mais importância para a máxima de mudar a vida pregada pelo surrealismo. Nesse sentido, no texto “surrealismo hoje: diálogo”, você afirma: “enfim, surrealismo não é capítulo encerrado, porém, antes, algo em aberto”. Dito isso, o surrealismo segue atual? Qual sua relevância nos nossos dias? E o que significaria o ser surrealista hoje em dia?

 

CW | Mudou tudo. Hoje, aqui, no Brasil, presença do surrealismo é ENORME. Breton desconfiava de tecnologias. Com Paul Éluard, chegou a assinar um texto contra o cinema falado, em 1930. Mas o meio digital mudou tudo – ou mudou muita coisa. Agulha, de Floriano Martins, é claro, mais as suas publicações em livro, editora ARC e uma quantidade de obras importantes; e suas parcerias. TriploV de Maria Estela Guedes, Materika da Costa Rica, e Sol Negro de Márcio Simões E não tem mais isso de ser no Brasil ou em Portugal. Os novos poetas locais – muitos, fui escrever a respeito e vi que daria um catálogo. Surreais, e leitores de Piva – em primeira instância, acho. Há a melhor circulação de poemas e principalmente de imagens no meio digital. Recebo todo dia algo de um Centro de Estudios Surrealistas. As imagens mais frequentes, de Leonora Carrington, que eu já apreciava desde os anos de 1960. Além de outras postagens, de outros lugares. Acho que a exposição de Maria Martins, em curso no MASP, deveria estar causando mais. Mas, enfim, de onde estou, considerando textos, imagens, pessoas, parece que surrealismo tomou conta. Dei cursos sobre surrealismo, concorridos. O último, no meio digital, no modo on line. Tenho um grupo de Facebook, Surrealismo Solúvel, cujo ponto de partida foi um curso que dei na Unicamp em algum 2014. E tem mais atividade. O pessoal da 100 Cabeças / Lop lop liderado por Alex Januário (publicaram / publicam René Crevel, Leonora Carrington, Flávio de Carvalho e outros). A consagração de Piva, mesmo tardia e póstuma, acho sensacional. Teatro Oficina vai reabrir com uma apresentação de Paranoia. E as Obras Reunidas de Piva, que haviam saído pela Globo, voltarão por outra grande editora.

Há um tema a examinar, no qual tenho insistido. Uma coisa, alguém “ser” surrealista ou identificar-se com esse movimento. Outra coisa, ler / examinar / estudar um autor sob um ponto de vista surrealista. Campos de Carvalho, por exemplo. Augusto Guimarães Cavalcanti tem trabalhado sobre ele, e por esses dias vou ser banca de algo sobre Campos de Carvalho e gnosticismo. Nossos alegóricos marginalizados, como Rosário Fusco (que vem sendo estudado por Marta Dantas) ou José J. Veiga (a esse, estão devendo). Aníbal Machado foi tema de uma dissertação de Diogo Cardoso, bom poeta. 

 

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Elys Regina Zils é tradutora e artista visual. Mestre em Estudos da Tradução pela PGET/Universidade Federal de Santa Catarina/Florianópolis, Brasil. Se dedica à Literatura Latino-Americana pesquisando principalmente Vanguardas Literárias e Artísticas com ênfase em Literatura Surrealista Latino-americana. | Anderson da Costa possui doutorado em Teoria Literária pela UFSC e tem se dedicado ao estudo do Surrealismo no Brasil, e da obra de André Breton.



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[A partir de janeiro de 2022]
 

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Número 188 | novembro de 2021

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