Assim
é que a música vibra, nasce, se desloca, voa e pousa: não formalizada através de
nomes ou substantivos, mas na forma invisível de verbos musicais repletos de significado
e de ação.
A
canção, com ou sem letra, é fruto da arte de preencher com palavras, poemas e versos
as ondas invisíveis da música, que, com melodias, harmonias e ritmos, cria aquilo
que nos move, apontando para um tempo que não pode ser medido em segundos, minutos
ou horas, mas sim em frases, compassos e pulsos, totalmente relativos entre si.
Para mim, uma das melhores definições da música é a de Victor Zuckerkandl: [1] um campo dinâmico de forças, onde
os músicos criam danças invisíveis. Embora notas musicais não tenham peso, forma
ou nada tangível, é inegável que as atrações e repulsões dos sons induzem a uma
contemplação profunda, na qual presenciamos mentalmente as ondas, contrastes,
coreografias, tensões e alívios criados pelas combinações de vibrações sonoras.
Esse
é um bom ponto para reflexão: há músicos que pensam a música como sendo feita de
notas musicais e outros há que a
sentem como feita de sons. A partir
daí, podemos ver como existe uma forma cíclica, assim como uma respiração, na qual
a música se expande, atravessa oceanos, desertos e matas, invade terras longínquas
e se infiltra como um vírus na psique e nos corpos que a ouvem. Como as batidas
dos tambores que vieram da África se difundiram em todo o mundo pan-atlântico e
daí para todo o planeta, melodias e escalas do Oriente Médio atravessaram literalmente
meio mundo para inspirar as cores musicais do Brasil.
Nosso
país pode ser comparado a um gigantesco funil musical, onde as linguagens poli-rítmicas
vindas da cultura bantu apimentaram as estruturas harmônicas e melódicas da Europa,
com matizes trazidos por eslavos, judeus e árabes. Esse caldo multicultural vem
cozinhando num fogo lento há mais de cinco séculos, criando um sabor unicamente
brasileiro, com o DNA de todo o mundo girando e se miscigenando em seu interior.
Daí vem nossa riqueza, diversidade e poder em gerar uma cultura musical que pode
sempre retornar e abrir as portas para o mundo, provando a universalidade da música
como uma Força Maior, assim como a Gravidade, mas muito mais potente, por ser relativa
e não absoluta.
Vejamos
as três dimensões da música: como diz Hermeto Pascoal, “A Harmonia é a Mãe, o Ritmo
é o Pai, e a Melodia é a Cria dos dois”. Isso faz sentido. Fazendo o caminho inverso
da genealogia, sentimos a Melodia como o sopro da Musa, uma reação humana aural
e biológica que usa nossa capacidade de vocalização monofônica para enfileirar sons
em sequências não aleatórias, alinhadas conforme sua disposição no campo dinâmico
de forças que Zuckerkandl menciona. Algumas notas agem como centros de gravidade
tonal, atraindo as outras para girar e se posicionar ao seu redor, como planetas
se comportam em relação ao Sol. Aqui vemos como essas relações de forças são temporárias,
pois as mesmas notas que se comportam como centros tonais podem se tornar satélites
de outras quando o campo harmônico de forças muda de direção.
O
Ritmo é a nossa conexão com a Terra, por isso tende a ser regional e mesmo tribal.
Ao pisarmos juntos no chão, os seres humanos podem se deslocar sobre a terra, como
exércitos ou peregrinos em marcha, mas também estabelecem a Roda, o grande círculo
onde a comunidade se reúne. Esses redemoinhos rítmicos propiciam o nascimento e
evolução de ritmos e levadas (também chamadas de grooves) que definem um
bairro, uma cidade ou um país.
Para
mim, o termo “música instrumental” soa como “água molhada”, porque na minha concepção,
música é tudo aquilo que vibra, e o que põe em movimento essa vibração é um instrumento,
seja ele a voz humana, um tubo, cordas ou membranas percutidas.
Existe
também a definição de música instrumental como aquela que não tem palavras, onde
a expressão musical acontece pela combinação de notas, timbres e ritmos. Mesmo assim,
a voz como fonte primária da expressão humana sempre segue como uma das primeiras
fontes de sons, com palavras ou sem.
Como
biólogo, também entendo a música como um fruto da experiência humana ao longo dos
milênios de evolução. Nossos antepassados mais distantes viviam numa existência
principalmente arbórea, onde o deslocamento se dava em múltiplos eixos, para a frente,
para trás, para cima ou para baixo. Imaginem um macaco aranha se movendo pela floresta,
desafiando a gravidade, quase flutuando entre ramos, troncos e copas das árvores.
Ao plantar seus pés no chão, os primeiros primatas bípedes que foram nossos antepassados
desenvolveram uma relação toda especial com o solo, o lugar onde batemos o pé, onde
plantamos nossos lares e cidades, e onde lutamos pelo território contra invasores,
quando não estamos ocupados invadindo outros territórios.
Por
esse prisma, o fazer e o ouvir da música conectam esses mundos diversos que habitam
em nós. Melodias e cores harmônicas levam nossa imaginação a viajar como macacos-aranha
a se pendurar pela copa das árvores, enquanto o pulsar rítmico nos traz ao chão,
o grande chão que atrai nossos pés, criando o rito tribal de adentrar juntos numa
sincronia de vibrações, onde a força se cria, cresce e a união entre os membros
da comunidade é estabelecida.
Interessante
é constatar, como faz Ted Gioia, [2]
que toda inovação musical nasce nas periferias dos centros urbanos, desde milênios
atrás. Os bárbaros, escravos, imigrantes, refugiados, náufragos, piratas, degredados
e abandonados, mesmo quando despidos de tudo o que seja material, trazem os temperos
e sotaques que acendem e mantêm acesa a chama da música, e com essa luz influenciam
as sucessivas ondas de modas e modos musicais.
A
cada onda musical inovadora, os governos, religiões e instituições mostram sua rejeição
ao que consideram uma invasão e um ataque a seus costumes e leis. Essa rejeição
acaba sempre sendo efêmera, pois logo essas mesmas entidades terminam por incorporar
essas mesmas influências em seus rituais, submetendo-as a várias formas de codificação,
criando teorias, leis, proibições e metodologias para preservar a nova tradição.
E
assim caminha a Humanidade…
Uma
descoberta recente [3] sobre a capacidade
humana de ouvir sons mostra que podemos distinguir mudanças acústicas de até meio
milésimo de segundo. Enquanto a acuidade visual humana é limitada a 30 imagens por
segundo (aproximadamente 30 milésimos de segundo), nossa acuidade auditiva é muito
maior – 60 vezes mais rápida - reagindo intuitivamente a sons harmônicos e timbres
que vão muito além da nossa capacidade de processar conscientemente frequências
muito altas. Esse fato ilustra como podemos diferenciar vozes de pessoas distintas,
sotaques regionais e além disso, sutilezas que nos dizem como um grupo musical soa
diferente de outro. O conceito de groove
ou de levada é tão delicado que não pode
ser definido em livros ou palavras, mas é sentido sem dúvida por todos que sabem
ouvir. Esses detalhes são pequenos, mas são importantes, porque mostram como o som
carrega dentro de si uma quantidade de informações muito maior do que as palavras
podem mostrar. Pensem como seria impossível compreender alguém que falasse rapidamente,
como locutores de corridas de cavalos acelerados. No entanto, no universo dos sons,
reagimos intuitivamente a mudanças e detalhes minúsculos no tempo, mas repletos
de significado melódico, harmônico e rítmico.
Aqui
temos a chave do segredo que mostra a diferença entre a música com palavras e aquela,
muito mais antiga, que transmite e traduz nosso mundo em sons. Não apenas em sons, porque dentro de uma nota
ou de um acorde existem camadas e mais camadas de significados tênues que contam
histórias, traçam linhas e linhagens que conectam seres humanos com seus antepassados,
como uma máquina do tempo que abre um portal entre nosso passado (histórico, biológico
e evolutivo) e nosso futuro. Sim, porque o tempo da música nunca será o tempo dos
relógios, mecanismos que medem segundos, minutos, horas, dias, semanas e anos. O
tempo da música é o tempo infinito do agora, refletido e repetido em ondas que nos
induzem a respirar, a nos mover, dançar, correr e mesmo a dormir e sonhar.
É
interessante ver como a música é tão importante para nossa sobrevivência. Sem dúvida
é tão essencial como o ar, a água e o alimento que nos nutre. É impossível e fútil
tentar imaginar um mundo sem música alguma. Mesmo na ausência de qualquer estímulo
externo, nossas mentes guardam as canções, melodias e acordes que ouvimos em nossa
infância, ou talvez aquele som que ouvimos semana passada e que não nos sai da cabeça.
Essa capacidade da mente humana em armazenar sons é impressionante, e ainda não
foi estudada a fundo como deve ser. Sabe-se com certeza que mesmo quando pacientes
com mal de Alzheimer, quando perdem toda a memória e não reconhecem mais ninguém,
ao ouvir certos tipos de música instantaneamente reconhecem e podem acompanhar os
movimentos criados pelo ritmo, melodia e harmonia. [4]
Os
mistérios da música são muitos e profundos. Sabe-se que os humanos têm uma capacidade
única entre os grandes primatas: podem sincronizar seus movimentos ao som de estímulos
sonoros sequentes e contínuos. Essa capacidade é chamada entrainment em
inglês, e significa “entrar no trem”, porque num comboio ferroviário todos os componentes
se movem com a mesma velocidade, da locomotiva ao último vagão. Assim como soldados
marchando juntos (“ordem unida”) ou as inúmeras rodas da nossa música: o
lundu, o samba o choro, o coco. Bater palmas ou dançar, tocar instrumentos ou cantar
em uníssono, em harmonia ou contraponto, responder com um refrão marcante; essas
são características unicamente humanas, e ao contrário de outras capacidades que
necessitam de muito tempo para serem aprendidas, surgem espontaneamente em todas
as culturas, e crianças com um mínimo de coordenação motora e auditiva podem “entrar
na roda”. Não existem humanos sem música.
Outro
mistério é a capacidade humana para a criação espontânea de música. O termo improviso
muitas vezes é associado ao idioma jazzístico, mas a verdade é que a música brota
de muitas fontes em todos os estilos, e para um musicista que tenha desenvolvido
e aperfeiçoado seus reflexos, toda performance inclui elementos de interpretação
criados na hora. O repente ou improviso é uma ferramenta musical que existe desde
que o ser humano se reconhece como tal. Os poetas e poetisas da Grécia antiga, os
trovadores medievais, os monges e monjas enclausurados, os músicos da era barroca,
todos sempre improvisaram e criaram sem preconceitos. Se pensarmos no improviso
como estratégia de vida, os melhores improvisadores seriam os prisioneiros, escravos,
refugiados de guerra, ladrões, exilados, náufragos e corsários – em suma, todos
aqueles que vivem fora das regras ditadas pelas instituições ditas “civilizadas”.
Isso porque, quando a sobrevivência está em jogo, o ser humano passa a atuar guiado
puramente pela intuição, aquele reflexo que acontece como uma centelha numa fração
de segundo, que separa a vida da morte. Essa capacidade de reagir intuitivamente
sem depender do raciocínio lógico é justamente a mesma que os músicos criativos
de hoje e de sempre aprimoram em seu desenvolvimento. É evidente que no caso da
música, essa faísca de criatividade tem que ser acompanhada de um tirocínio, a habilidade
para discernir, ou a capacidade de observar com cuidado situações, pessoas ou acontecimentos.
E na música, essa capacidade de observação pode ser traduzida por “aprender a ouvir”.
Esse aprendizado leva a vida inteira, porque como vimos anteriormente, o som carrega
dentro de si uma quantidade enorme de informações invisíveis, percebidas apenas
pela nossa audição, e processadas instantaneamente pelas nossas mentes. Basta uma
mudança repentina de uma nota em um acorde, ou uma acelerada sutil no andamento
para que a paisagem musical se transforme, e o músico que desenvolve sua atenção
sem criar tensão sabe como surfar as ondas sonoras, não importa quanto elas mudem
de direção e de velocidade.
Ao
tocar em conjunto, participando desde um duo até uma orquestra com dezenas de integrantes,
músicos entram num universo multidimensional, onde tudo se move em muitas direções.
A pulsação e a respiração rítmica compartilhadas criam uma rede de muitos “nós”.
A
capacidade humana de armazenar instruções musicais em sistemas de notação nos permite
uma conexão com nosso passado como espécie. Interessante notar como podemos usar
uma linguagem de notas, claves e pentagramas criada há mais de 300 anos para capturar
sons que estão sendo feitos hoje. Como tecnologia, a ferramenta da notação musical
não tem prazo de vencimento. Por outro lado, algumas das linguagens musicais mais
importantes do mundo não possuem nenhuma parte escrita, como os complexos desenhos
rítmicos de Gana e de outras culturas africanas. Em algumas culturas musicais como
na Índia e no Irã, a complexidade musical pode ser preservada nos desenhos e formas
geométricas de tapetes criados por grupos de tecelões cantando juntos. O tapete,
assim tecido de uma forma musical, passa a ser uma partitura, um meio de capturar
a música invisível em uma mídia que pode durar séculos.
Isso,
porém, não nega o fato que a música, especialmente aquela sem palavras, é uma das
maiores forças ao alcance da humanidade. Claro, quando palavras são sobrepostas
ou encaixadas nos sons musicais, é criada a ponte entre as nossas linguagens terrenas
e os sons que vibram acima de nós, harmonicamente, e as vibrações subterrâneas dos
ritmos geograficamente dispostos por baixo da terra. Por isso, a Música é uma força
universal, assim como a Luz e a Gravidade, sincronizando nossas vidas com a pulsação
do Universo. Os músicos, ao entrar em estado de fluxo através da Música, transmitem
essas vibrações harmonizadas aos ouvintes. Uma vez estabelecido, esse estado de
fluxo fica gravado na memória auditiva, emocional e corporal, fazendo com a música
bem-feita e bem-ouvida seja perpetuada por muito tempo.
E assim seja!
NOTAS
1.
Zuckelkandl, Victor, Sound and Symbol: Music and the Eternal World, Bollingen
Series XLIV, Princeton University Press, 1956. 2nd printing, 1973.
2.
Gioia, Ted: Music: A Subversive History. New York: Basic Books, 2019
3.
https://ieeexplore.ieee.org/document/9450008
4.
https://youtu.be/0VPguJHp-Lc
__________
O pianista, flautista, arranjador e compositor carioca Jovino Santos Neto, é reconhecidamente
um dos mais talentosos discípulos da escola de Hermeto Pascoal, com quem trabalhou
como músico e produtor por 15 anos. Vivendo desde 1993 em Seattle, tem desenvolvido
sua carreira de forma brilhante. Toca e compõe do jazz à música de câmara
e orquestral, mas sem nunca se afastar da essência brasileira em seus trabalhos.
Jovino já tem vários CDs lançados no mercado mundial. Recebeu 3 indicações para
o Grammy Latino pelos trabalhos Canto do Rio
(2004), Roda Carioca (2006) e Live at Caramoor (2009). Seu trabalho mais
recente é Luz, um álbum de piano solo onde Jovino interpreta suas composições
de uma forma livre e repleta de improvisos. O Jovino Santos Neto Quinteto foi eleito
o melhor grupo acústico de jazz de Seattle em 2011, 2012, 2015 e 2018 pelos leitores
da revista Earshot Jazz. As composições de Jovino unem o arrojo e a modernidade
harmônica com ritmos tradicionais brasileiros como o samba, o baião, o xote e o
maracatu, abrindo espaços para a expressão da sensibilidade artística dos músicos
com quem Jovino divide os palcos e os estúdios. Como pianista, Jovino exibe uma
técnica segura aliada a um toque delicado e energético ao mesmo tempo. Suas músicas
são executadas por orquestras, big bands e grupos do mundo todo. Website: www.jovisan.net | Outros links: https://linktr.ee/JovinoSantosNeto
*****
Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO
Número 186 | novembro de 2021
Curadoria: Floriano Martins (Brasil, 1957)
Artista convidado: Marcos Tedeschi (Brasil, 1982)
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