Saí
do CPT depois de poucos meses para focar em meu próprio trabalho. Saudada pela imprensa
como a coreógrafa que “faz o butoh crescer no Brasil”, passei a ministrar oficinas
no Teatro Vento Forte e no Teatro da Universidade Católica.
Naturalmente,
eu queria também mostrar minha obra e foi nesse momento que o Sérgio Mamberti me
abriu as portas do Teatro Crown Plaza onde apresentei pela primeira vez Absolutas,
um conjunto de solos composto por Subtração de Ophelia, Variação em Branco,
Variação em Negro, Himalaia e Estreito de Behring. Dividi o
camarim com a Cássia Eller, artista em ascensão e, como eu, vindo do Distrito Federal.
No
livro Em Branco e Preto, [1]
organizado por Arthur Nestrovski, o Sérgio afirma que “não dá para ganhar dinheiro”
no Crown Plaza, mas que sua intenção como programador do teatro “é que [o artista]
tenha visibilidade”. O livro registra que a sala “teve entre suas maiores bilheterias
Maura Baiocchi, Antônio Nóbrega, e os americanos do PS 122”. Uma publicação recente,
Sérgio Mamberti: Senhor do meu tempo, [2] de autoria do Dirceu Alves, confirma que “a coreógrafa Maura
Baiocchi movimentou a agenda de dança” do Teatro Crown Plaza.
As
apresentações de Absolutas me renderam reações excelentes da imprensa, entre
as quais uma crítica de Carlos von Schmidt, curador da Bienal Internacional de SP
e editor da extinta revista Artes/SP:
“O público que lotou a plateia (…) aplaudiu com entusiasmo e encontrou nos personagens
criados por Maura (…) momentos de intensa emoção, profundo lirismo, beleza, encantamento”.
[3] No mesmo número da revista, em entrevista
ao Sebastião Milaré, expus pela primeira vez as ideias básicas do taanteatro
ou teatro coreográfico de tensões, proposta contemplada no ano seguinte pelas
Bolsa Vitae de Artes para meu projeto Taanteatro: uma pesquisa para a transformação
da dança.
Entre os espectadores de Absolutas estava o José Celso Martinez Correa que me convidou a performar na primeira leitura pública de sua peça Cacilda. Após a temporada, o então produtor cultural Yakoff Sarcovas, passou a me apoiar durante os primeiros anos de minha atividade artística em São Paulo. Essa visibilidade inicial – junto a uma plateia formada por artistas, produtores culturais e jornalistas de renome e fundamental para meu estabelecimento artístico em São Paulo – devo ao Sérgio Mamberti.
Durante a primeira metade dos anos 1990, nossos caminhos se cruzaram ocasionalmente, sobretudo no antigo Gigetto, restaurante tradicional na Rua Avanhandava da Bela Vista, também chamado de “reduto da boemia e intelligentsia paulistana”. Voltamos a ter contato maior em 1995, ano em que idealizei e produzi a Mostra '95 Butoh e Teatro Pesquisa, [4] realizada no Centro Cultural São Paulo. Na época, o Sérgio era sócio de um restaurante ao lado do parque Trianon, o Domani, onde os participantes brasileiros e internacionais da mostra se reuniam diariamente para realizar suas refeições, graças ao apoio cultural dele.
*****
Um ano depois desse projeto, a Taanteatro
Companhia produziu a mostra Artaud 100 Anos idealizada pelo Wolfgang Pannek.
Para essa mostra internacional, criei meu primeiro trabalho em torno de Antonin
Artaud, intitulado Artaud – onde deus corre com olhos de uma mulher cega,
que estreou no auditório do Museu de Arte de São Paulo. Com minhas encenações de
Arará – histórias que os ossos cantam, que inaugurou em 1997 no Teatro Hilton
o festival ContraDança, com curadoria de Celso Curi, e Cantos de Maldoror
(1998/99), do Conde de Lautréamont, na tradução de Claudio Willer, realizei trabalhos
consecutivos em territórios cênicos avizinhados ao surrealismo.
Talvez
foi por este motivo que recebi do Guilherme Castello Branco o convite de participar
da primeira leitura pública da peça teatral As Quatro Meninas, escrita por Pablo Picasso em 1957, na
tradução de Ivo Barroso. A leitura fazia parte da mostra Surrealismo realizada
no CCBB Rio de Janeiro, em setembro de 2001. O elenco da leitura contava, além de
mim, com a participação das atrizes Suzana Kruger, Ângela Noal e Ludmila Breitman.
O Sérgio Mamberti contracenava conosco na figura do narrador.
O
Ivo Barroso registrou suas impressões da leitura na gaveta do ivo: [5]
Conforme o programa, tratava-se de uma
“leitura nos moldes estritamente surrealistas, respeitando as convicções mais marcantes
do movimento quanto ao teatro: indiferença com a verossimilhança e com os aspectos
formais, desprezo pelas regras de interpretação convencional, preferência pelo humor
e/ou inesperado”. As atrizes ora sentavam-se estáticas ora arrastavam as cadeiras
pelo palco, voltando a sentar-se às vezes até de costas para os espectadores, que,
um tanto estupefatos, se deixavam levar pelas fortes imagens cenográficas picassianas
que em nada ficavam a dever àquelas suas visões de olhos, narizes e artelhos destorcidos.
Um verdadeiro painel pintado com palavras que o público carioca só pôde contemplar
no dia 13 de setembro de 2001. Convívio inesquecível do tradutor com aquelas quatro
meninas francesas que não falavam coisa com coisa, mas que tudo o que diziam soava
genial. Eta Picasso!
A leitura da peça de Picasso foi a primeira e única oportunidade em que colaborei com o Sérgio Mamberti em cena. O fato dos ensaios ocorrerem à sombra do ataque aos Twintowers em 11 de setembro em Nova Iorque onde minha filha vivia à época, dava um tom particularmente surreal à nossa apresentação.
Foi
num período em que o ex-presidente Lula reiterava com frequência a dívida histórica
do Brasil com os países da África. Justamente naquela altura havíamos recebido um
convite da Vereação de Cultura, Desportos e Juventude da Cidade de Matola, município
vizinho da capital moçambicana Maputo propondo que fizéssemos um estágio de formação
artística para a Companhia Municipal de Canto e Dança da Matola.
Depois
de quase um ano de produção, e ainda sem dinheiro para o pagamento das passagens
aéreas de nossa equipe, nossos pedidos de apoio junto às instituições governamentais
brasileiras de cultura ficaram sem resposta. Estávamos a ponto de desistir do projeto
quando li num jornal que o Sérgio participaria da leitura pública de uma peça teatral
numa unidade do Sesc em São Paulo. Fui ao teatro, assisti à leitura na primeira
fila e subi ao palco após a leitura para parabenizar o ator e informar sobre as
dificuldades que estávamos enfrentando na produção do intercâmbio entre Brasil e
Moçambique.
Imediatamente
sensibilizado com o tema, o Sérgio encaminhou o projeto para os devidos trâmites
ministeriais e possibilitou dessa maneira nossa ida a Maputo. Na véspera da viagem
eclodiu o escândalo do mensalão. Recordo o Sérgio, petista de longa data, ligando
de madrugada, atônito e revoltado para expressar suas suspeitas de que a CIA estivesse
por trás das denúncias. Seja como for, o fato é que o Intercâmbio Cultural Matola-Brasil
somente saiu do papel em função da sensibilidade política do Sérgio Mamberti.
Em
Moçambique, o estágio de formação artística, com sete semanas de duração, incluiu
a criação de Xiphamanine: lugar do eterno originar da árvore mphama. Esse
espetáculo de teatro-dança musical e de grande elenco, permeado por projeções de
obras selecionadas do pintor da revolução moçambicana Malangatana Ngwenya Valente,
estreou sob minha direção e ovacionada por uma plateia lotada no Teatro Cine África
em Maputo. A documentação do espetáculo pela Televisão de Moçambique (TVM) foi reprisada
diariamente por mais de um mês em rede nacional.
Num momento oportuno, o Intercâmbio Cultural Matola-Brasil agregou à consciência da dívida histórica brasileira com a África a dimensão de colaboração intercultural.
Com frequência, a sobrevivência artística
no Brasil exige uma luta hercúlea, aparentemente interminável, e um grau extremo
de convicção da relevância do próprio empreendimento a ponto de se correr o perigo
de perder de vista o valor dos apoios e das colaborações nada naturais que recebemos.
Em retrospecto, fica cada vez mais claro que nossa trajetória nada seria sem a presença
e a confiança daqueles que em algum momento nos acompanharam.
Faço
coro com a multidão de colegas e amigos que saúdam no Sérgio Lamberti uma pessoa
amorosa e generosa, um artista de grande valor e aberto ao novo, e um homem dedicado
à árdua tarefa de dar um destino democrático ao Brasil. Ele nos faz muita falta.
NOTAS
1. NESTROVSKI, Arthur Rosenblat (Org.).
Em Branco e Preto. Artes Brasileiras na Folha 1990-2003. São
Paulo: Publifolha, 2004.
2. ALVES JR., Dirceu e MAMBERTI, Sérgio. Sérgio Mamberti: Senhor
do meu tempo. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2020.
3. Carlos von Schmidt. O butô de Maura Baiocchi. São Paulo: Revista Artes/SP,
1990.
4. Mostra 95 Butoh e Teatro Pesquisa, projeto performativo
internacional idealizado e produzido por Maura Baiocchi em São Paulo, Curitiba e
Brasília. Mais informações: www.taanteatro.com/projetos/mostra-95-butoh-e-teatro-pesqu.html.
5. https://gavetadoivo.wordpress.com/2016/07/25/as-quatro-meninas-de-picasso/
6. Página-web do Intercâmbio Cultural Matola-Brasil: www.taanteatro.com/projetos/taanteatro-em-mocambique.html.
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MAURA BAIOCCHI. Encenadora, coreógrafa, performer, atriz. Criadora da abordagem taanteatro (teatro coreográfico de tensões). Diretora-fundadora da Taanteatro Companhia. Mestre em comunicação e semiótica pela PUC São Paulo (2006). Autora de Taanteatro Caderno 1 (Editora Transcultura, São Paulo, 1997) e dos livros Butoh Dança Veredas D’Alma (Editora Palas Athena, São Paulo, 1995), Taanteatro: teatro coreográfico de tensões (Azougue Editorial, Rio de Janeiro, 2007), Taanteatro – rito de passagem (Transcultura, São Paulo, 2011), Taanteatro – MAE Mandala de Energia Corporal (Transcultura, São Paulo, 2013) e Taanteatro – [Des]Construção e Esquizopresença (Transcultura, São Paulo, 2016), bem como Taanteatro – Forças e Formas (Transcultura. 2018) e Taanteatro – Forces and Forms (Transcultura 2020).
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Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO
Número 186 | novembro de 2021
Curadoria: Floriano Martins (Brasil, 1957)
Artista convidado: Marcos Tedeschi (Brasil, 1982)
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