Kanela
Entre os índios do Nordeste brasileiro, é
preciso distinguir aqueles que habitam a pré-amazônia, principalmente o oeste e
sul do Maranhão, e os que moram no semi-árido. Entre os primeiros, quando se estuda
as máscaras, é indispensável citar os Kanela, que vivem no sul do Maranhão. Em suas
festas para os espíritos Kokrit, eles usam grandes máscaras de corpo inteiro, confeccionada
com fibras, palha, madeira, penas e cerâmica.
Os Kobrit são antropóides naturais, que vivem
no rio Tocantins. Conta-se que, num passado distante ocorreram conflitos entre os
Kokrit e os Kanela. Dizem os indígenas, que um velho índio esqueceu seu arco e sua
flecha na beira de um rio e depois, voltando para buscar-lhes, foi atacado por vários
Kobrit. No instante em que esses monstros estavam ao ponto de chifrá-lo, surgiu
o chefe dos Kobrit, Kenpéy, que impediu o ataque. Atuando como protetor, Kenpéy
levou o velho índio para a aldeia dos Kobrit e iniciou-lhe em sua cultura. O velho
índio, voltando à sua própria aldeia, ensinou as danças aos Kanela, que incluíam
o uso das máscaras e outros procedimentos cerimoniais dos Kobrit. Daí estabeleceu-se
um pacto entre eles e os indígenas, sendo as festas um meio para alegrar e controlar
os Kokrit.
A máscara Kokrit compõe-se de duas esteiras
trançadas com palha de buriti, longas franjas de fibras que se prolongam até o solo
e dois chifres feitos de madeira. É pintada com diferentes desenhos, indicativos
de qual dos personagens da sociedade Kokrit está nela incorporada. Os Kobrit se
comunicam por gestos, sons guturais e assobiam. Cantam com uma voz aguda, dialogando
com um coro de mulheres. No rito, eles pedem comida, mas as mulheres ordenam-lhes
que eles dancem. Desenvolve-se, durante este diálogo, toda uma performance cômica.
Importante é indicar, o elemento cômico sempre
presente nos rituais indígenas do Nordeste brasileiro, não só entre os Kanela. Em
muitos outros povos indígenas, como os Kraho, registram-se não só cenas cômicas,
como a presença de palhaços cerimoniais. Como muitas figuras alegres do teatro brincante
nordestino, a exemplo dos Mateus, Bastiões, Velhos e Velhas Caretas, os palhaços
indígenas identificam-se por trazerem dentro de si, de modo dilatado, uma veia cômica.
Sendo palhaços, em suas aldeias, eles também atuam e de maneira mais determinada,
nos rituais, sejam de iniciação ou fúnebres, assim como nos jogos e brincadeiras
tribais.
Pankararu
No interior do Nordeste brasileiro, mais
precisamente na localidade de Brejo dos Padres, município de Tacarutu, sertões de
Pernambuco, pode ser encontrado um exemplo notável do uso de máscaras rituais. Trata-se
das máscaras praiás dos índios Pankararu, pertencentes ao grupo cultural lingüístico
dos Kariri, originários de Curral dos Bois (hoje Santo Antônio da Glória), na Bahia,
depois aldeados pelos padres oratorianos no lugar onde habitam até hoje. São Tapuias,
pertencentes ao grupo cultural-linguístico dos cariris (Karirí, Kirirí, Cariri),
remanescentes dos Gê. Entre seus rituais estão a dança dos praiás, o ritual da corrida
e o toré. A palha era para os Gê o que as plumas (penas) eram para os Tupis.
Completando o traje ritual praiá, os Pankararu portam o maracá, feito
de coité e adornado com penas, o bordão de
compasso, igualmente enfeitado de penas, e a gaita de marcação.
Entre os Pankararu, as máscaras acima descritas
são de uso exclusivo dos dançarinos mascarados da tribo, os praiás, uma espécie
de sociedade secreta de caráter hereditário, formada pelos membros das velhas famílias
fundadoras da comunidade. Tem por função ocultar a identidade de seus portadores
e preservar o caráter secreto do grupo. Segundo testemunho dos mais antigos, [1] após suas danças cerimoniais, os praiás
recolhiam-se às suas choças e permaneciam nelas reclusos. Hoje, eles já aparecem
em feiras e romarias, embora se mostrem comumente arredios e procurem manter distância
de grandes aglomerados.
Durante seus rituais, e por via das máscaras,
os praiás incorporam espíritos ancestrais que acreditam encantados nas cachoeiras
de Itaparica e Paulo Afonso, situadas não muito distantes de Brejo dos Padres. Muitas
vezes são surpreendidos lançando longas baforadas de fumo em suas direções.
Os praiás participam e muitas vezes protagonizam
com exclusividade os principais ritos e cerimoniais Pankararu. O mais importante
desses rituais é a Dança dos Praiás. Sua execução é puxada por uma cantadeira que
entoa loas durante horas seguidas, em tom melancólico e lamentoso, acompanhada pelo
toque dos maracás sacudidos pelos praiás, que respondem ao canto soltando sons que
se assemelham a uivos guturais e longos gemidos.
Envergando seus trajes rituais e movidos
por esse ambiente sonoro, os praiás dançam em passos curtos e rápidos, às vezes
arrastados e presos ao solo, às vezes de modo brusco e aos pulos, batendo com força
no chão. Seguem mudando a direção, ora para um lado, ora para o outro, em fileiras
ou em pares, em roda ou formando ziguezagues e SS, inclinando-se ora para a esquerda,
ora para a direita, em um movimento contínuo e imprevisível, puxado pelos guias
de uma fila e de outra. Em certos momentos, os dançarinos dividem-se em grupos e,
de braços colados, adiantam-se em carreira até a cantadeira, freando repentinamente
junto a ela, conseguindo um forte efeito de suspense. [2] Com estes procedimentos procuram sintonizar os desejos e premonições
de seus antepassados.
A iniciação de novos membros no grupo desses
“protetores mágicos da aldeia” (PINTO, 1952) se dá por um rito que eles chamam de
“Festa do Menino no Rancho”, por meio do qual, as crianças não apenas são iniciadas
nos segredos dos praiás, como se tornam intermediários entre eles e o restante da
comunidade. Isto porque, quando os praiás estão reunidos em seu reduto sagrado,
que chamam rancho ou poró, não podem ser
vistos por pessoas fora do grupo. Sendo assim, fica a cargo da criança em iniciação
trazer-lhes o que necessitam: água, fogo, fumo etc., ficando a ela vedado revelar
qualquer fato ou detalhe do que se passa no rancho, sob ameaça de dormir em uma
cama coberta com urtigas.
Para a “Festa do Menino no Rancho”, levanta-se
primeiramente um rancho, e nele se faz entrar o pré-adolescente a ser iniciado.
O menino traz o corpo pintado de tauá branco, leva a tiracolo rolos de fumo e tem
na cabeça um capacete de ouricuri. Na entrada do rancho, se coloca a guarda do menino,
sentinelas e padrinhos armados de cacetes. Do outro lado, se postam os praiás, guerreiros
sagrados, igualmente armados, que buscam a posse do menino. O combate acontece do
modo ritual, mas com grande vigor. Termina com a destruição do rancho e com a conquista
do menino pelos praiás que, em meio a grande alegria, cantando e dançando, levam
o menino à presença de uma menina da mesma idade. [3]
Na Festa do Ajucá, como é chamada entre os
Pankararu o Culto da Jurema, se fazem presentes, além dos praiás, o tuxaua, os guerreiros
e as velhas cantadeiras. A cerimônia acontece em local afastado, dentro de um bosque
sombreado, em terreiro previamente forrado com esteiras de ouricuri. No centro do
terreiro se coloca uma laje, com numerosas raízes de jurema em cima.
Depois de raspadas e lavadas, as raízes de
jurema são colocadas dentro de uma grande vasilha de coité cheia d’água. A vasilha,
em seguida, é agitada até formar uma densa escuma, estando pronta para ser bebida.
Em meio a cantos e falas sagradas, o tuxaua, tirando baforadas de seu cachimbo,
inicia o ritual de sagração da bebida. Em seguida, seu cachimbo passa de mão em
mão, entre os presentes, que fazem o mesmo.
Terminada a benzedura do ajucá, o tuxaua
ajoelha-se e bebe o primeiro gole, no que é imitado pelos demais. Circunspectos
e concentrados, todos provam do filtro mágico que lhes proporcionará comunicar-se
com os encantados, em sonhos e visões.
O que restar do sumo da raiz da jurema é
colocado em um buraco profundo aberto no chão.
A máscara dos praiás, como foi dito, embora
com pequenas aberturas para os olhos (demasiadamente pequenas, por sinal), possui
todas as características das máscaras-vestimentas neutras, que procura criar o anonimato
e transportar seus portadores à dimensão do invisível, no caso a de seus ancestrais
“encantados”.
Lendo
os escritos de KIRBY sobre as máscaras da América do Sul, vê-se que os Pankararu
reproduzem em suas máscaras, um modelo recorrente entre os indígenas do continente,
constituindo uma espécie de matriz, que também aparece entre muitos povos africanos.
Trata-se de uma máscara neutra, sem ou quase sem aberturas de olhos, que se prolonga
sobre o restante do corpo, deixando de fora somente os braços e a parte inferior
das pernas de quem a porta. Máscaras semelhantes à dos Pankararu aparecem entre
os Carajá e os Tapire, para a incorporação de mortos e espíritos da floresta. Já
entre os Pankararu, como vimos, abrem espaço no corpo de seu portador para a manifestação
dos espíritos errantes dos ancestrais mortos, especialmente daqueles que ficaram
em sua primitiva morada. Criam anonimato não apenas para quem a porta, mas também
para o espírito incorporado, aparecendo distinções somente em detalhes quase imperceptíveis.
Os Pankararu de Brejo dos Padres podem ser
observados costumeiramente nas grandes romarias do Juazeiro do Norte, no Ceará,
e de Santa Brígida, na Bahia, ocasiões em que os encontramos repetidas vezes. Costumam
estabelecer sincretismos e correspondências entre seus encantados (entidades afro-brasileiras
e santos do catolicismo popular), como Padre Cícero, Conselheiro Pedro Batista e
Mãe Dodô. Daí, muitas vezes, realizarem peregrinações a santuários católicos junto
com irmandades cristãs, especialmente com as de Nossa Senhora da Boa Morte e de
São Gonçalo, que tem sedes tanto em Santa Brígida (BA), quanto na Estrada Velho
do Horto, em Juazeiro do Norte. Por sua organização de caráter secreto e por seus
rituais realizados em espaços ermos, assemelham-se em muito às irmandades de penitentes.
NOTAS
1. Ver PINTO, 1952.
2. As cantadeiras, entretanto, não usam máscaras,
geralmente estão trajadas com batas brancas de romeiras.
3. Os praiás, no caso, atuam como Babaus ou Papões de Reisado.
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OSWALD
BARROSO (Brasil, 1947). Poeta, jornalista, folclorista e teatrólogo. Foi diretor
do Departamento de Ativação Cultural da Secult/CE (1986-1988), do Teatro José
de Alencar (1989-1991), do Teatro da Boca Rica (1998-2004) e do Museu da Imagem
e do Som – Ceará (1998-2002).
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Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO
Número 186 | novembro de 2021
Curadoria: Floriano Martins (Brasil, 1957)
Artista convidado: Marcos Tedeschi (Brasil, 1982)
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