sexta-feira, 5 de novembro de 2021

OSWALD BARROSO | Máscaras rituais indígenas do nordeste brasileiro

 


Kanela

Entre os índios do Nordeste brasileiro, é preciso distinguir aqueles que habitam a pré-amazônia, principalmente o oeste e sul do Maranhão, e os que moram no semi-árido. Entre os primeiros, quando se estuda as máscaras, é indispensável citar os Kanela, que vivem no sul do Maranhão. Em suas festas para os espíritos Kokrit, eles usam grandes máscaras de corpo inteiro, confeccionada com fibras, palha, madeira, penas e cerâmica.

Os Kobrit são antropóides naturais, que vivem no rio Tocantins. Conta-se que, num passado distante ocorreram conflitos entre os Kokrit e os Kanela. Dizem os indígenas, que um velho índio esqueceu seu arco e sua flecha na beira de um rio e depois, voltando para buscar-lhes, foi atacado por vários Kobrit. No instante em que esses monstros estavam ao ponto de chifrá-lo, surgiu o chefe dos Kobrit, Kenpéy, que impediu o ataque. Atuando como protetor, Kenpéy levou o velho índio para a aldeia dos Kobrit e iniciou-lhe em sua cultura. O velho índio, voltando à sua própria aldeia, ensinou as danças aos Kanela, que incluíam o uso das máscaras e outros procedimentos cerimoniais dos Kobrit. Daí estabeleceu-se um pacto entre eles e os indígenas, sendo as festas um meio para alegrar e controlar os Kokrit.

A máscara Kokrit compõe-se de duas esteiras trançadas com palha de buriti, longas franjas de fibras que se prolongam até o solo e dois chifres feitos de madeira. É pintada com diferentes desenhos, indicativos de qual dos personagens da sociedade Kokrit está nela incorporada. Os Kobrit se comunicam por gestos, sons guturais e assobiam. Cantam com uma voz aguda, dialogando com um coro de mulheres. No rito, eles pedem comida, mas as mulheres ordenam-lhes que eles dancem. Desenvolve-se, durante este diálogo, toda uma performance cômica.

Importante é indicar, o elemento cômico sempre presente nos rituais indígenas do Nordeste brasileiro, não só entre os Kanela. Em muitos outros povos indígenas, como os Kraho, registram-se não só cenas cômicas, como a presença de palhaços cerimoniais. Como muitas figuras alegres do teatro brincante nordestino, a exemplo dos Mateus, Bastiões, Velhos e Velhas Caretas, os palhaços indígenas identificam-se por trazerem dentro de si, de modo dilatado, uma veia cômica. Sendo palhaços, em suas aldeias, eles também atuam e de maneira mais determinada, nos rituais, sejam de iniciação ou fúnebres, assim como nos jogos e brincadeiras tribais.

 

Pankararu

No interior do Nordeste brasileiro, mais precisamente na localidade de Brejo dos Padres, município de Tacarutu, sertões de Pernambuco, pode ser encontrado um exemplo notável do uso de máscaras rituais. Trata-se das máscaras praiás dos índios Pankararu, pertencentes ao grupo cultural lingüístico dos Kariri, originários de Curral dos Bois (hoje Santo Antônio da Glória), na Bahia, depois aldeados pelos padres oratorianos no lugar onde habitam até hoje. São Tapuias, pertencentes ao grupo cultural-linguístico dos cariris (Karirí, Kirirí, Cariri), remanescentes dos Gê. Entre seus rituais estão a dança dos praiás, o ritual da corrida e o toré. A palha era para os Gê o que as plumas (penas) eram para os Tupis.


As máscaras praiás são coberturas de corpo inteiro, confeccionadas de palha, fibras trançadas, tecidos vegetais de caroá e ouricuri, além de algodão. Compõem-se de cinco partes: 1) O tunã, tecida em fibra de caroá ou ouricuri, ocultando inteiramente o rosto e cobrindo a cabeça, contendo apenas dois pequenos furos no lugar dos olhos e com os fios soltos a partir do pescoço, caindo sobre os ombros até os joelhos. 2) O saiote, feito com a mesma fibra do tunã, preso na cintura e estendendo-se até as canelas. 3) O cocar de penas de peru, em forma esférica, como um grande sol, fixo no alto do tunã. 4) O penacho de plumas atado a uma pequena vara fixa no alto do tunã. 5) A cinta, uma pequena túnica de tecido, geralmente chita estampada ou pano bordado com uma cruz ou outro símbolo, que se coloca sobre as costas do tunã.

Completando o traje ritual praiá, os Pankararu portam o maracá, feito de coité e adornado com penas, o bordão de compasso, igualmente enfeitado de penas, e a gaita de marcação.

Entre os Pankararu, as máscaras acima descritas são de uso exclusivo dos dançarinos mascarados da tribo, os praiás, uma espécie de sociedade secreta de caráter hereditário, formada pelos membros das velhas famílias fundadoras da comunidade. Tem por função ocultar a identidade de seus portadores e preservar o caráter secreto do grupo. Segundo testemunho dos mais antigos, [1] após suas danças cerimoniais, os praiás recolhiam-se às suas choças e permaneciam nelas reclusos. Hoje, eles já aparecem em feiras e romarias, embora se mostrem comumente arredios e procurem manter distância de grandes aglomerados.

Durante seus rituais, e por via das máscaras, os praiás incorporam espíritos ancestrais que acreditam encantados nas cachoeiras de Itaparica e Paulo Afonso, situadas não muito distantes de Brejo dos Padres. Muitas vezes são surpreendidos lançando longas baforadas de fumo em suas direções.

Os praiás participam e muitas vezes protagonizam com exclusividade os principais ritos e cerimoniais Pankararu. O mais importante desses rituais é a Dança dos Praiás. Sua execução é puxada por uma cantadeira que entoa loas durante horas seguidas, em tom melancólico e lamentoso, acompanhada pelo toque dos maracás sacudidos pelos praiás, que respondem ao canto soltando sons que se assemelham a uivos guturais e longos gemidos.

Envergando seus trajes rituais e movidos por esse ambiente sonoro, os praiás dançam em passos curtos e rápidos, às vezes arrastados e presos ao solo, às vezes de modo brusco e aos pulos, batendo com força no chão. Seguem mudando a direção, ora para um lado, ora para o outro, em fileiras ou em pares, em roda ou formando ziguezagues e SS, inclinando-se ora para a esquerda, ora para a direita, em um movimento contínuo e imprevisível, puxado pelos guias de uma fila e de outra. Em certos momentos, os dançarinos dividem-se em grupos e, de braços colados, adiantam-se em carreira até a cantadeira, freando repentinamente junto a ela, conseguindo um forte efeito de suspense. [2] Com estes procedimentos procuram sintonizar os desejos e premonições de seus antepassados.

A iniciação de novos membros no grupo desses “protetores mágicos da aldeia” (PINTO, 1952) se dá por um rito que eles chamam de “Festa do Menino no Rancho”, por meio do qual, as crianças não apenas são iniciadas nos segredos dos praiás, como se tornam intermediários entre eles e o restante da comunidade. Isto porque, quando os praiás estão reunidos em seu reduto sagrado, que chamam rancho ou poró, não podem ser vistos por pessoas fora do grupo. Sendo assim, fica a cargo da criança em iniciação trazer-lhes o que necessitam: água, fogo, fumo etc., ficando a ela vedado revelar qualquer fato ou detalhe do que se passa no rancho, sob ameaça de dormir em uma cama coberta com urtigas.

Para a “Festa do Menino no Rancho”, levanta-se primeiramente um rancho, e nele se faz entrar o pré-adolescente a ser iniciado. O menino traz o corpo pintado de tauá branco, leva a tiracolo rolos de fumo e tem na cabeça um capacete de ouricuri. Na entrada do rancho, se coloca a guarda do menino, sentinelas e padrinhos armados de cacetes. Do outro lado, se postam os praiás, guerreiros sagrados, igualmente armados, que buscam a posse do menino. O combate acontece do modo ritual, mas com grande vigor. Termina com a destruição do rancho e com a conquista do menino pelos praiás que, em meio a grande alegria, cantando e dançando, levam o menino à presença de uma menina da mesma idade. [3]


Entre os Pankararu, o tuxaua é eleito democraticamente pela comunidade. Quando alcança a decrepitude, é substituído. Ainda assim, sua opinião é levada em conta, notadamente em questões relativas ao sagrado. O mesmo ocorre com as velhas cachimbeiras da tribo, espécies de pajés que, até atingirem idades muito avançadas, se encarregam da cura dos enfermos, e ainda de outros procedimentos mágicos, como “tirar o atraso” das pessoas e “atrair a chuva”. Nessas práticas, o fumo costumeiramente joga um papel importante, ajudando a exorcizar malefícios e imunizar espíritos.

Na Festa do Ajucá, como é chamada entre os Pankararu o Culto da Jurema, se fazem presentes, além dos praiás, o tuxaua, os guerreiros e as velhas cantadeiras. A cerimônia acontece em local afastado, dentro de um bosque sombreado, em terreiro previamente forrado com esteiras de ouricuri. No centro do terreiro se coloca uma laje, com numerosas raízes de jurema em cima.

Depois de raspadas e lavadas, as raízes de jurema são colocadas dentro de uma grande vasilha de coité cheia d’água. A vasilha, em seguida, é agitada até formar uma densa escuma, estando pronta para ser bebida. Em meio a cantos e falas sagradas, o tuxaua, tirando baforadas de seu cachimbo, inicia o ritual de sagração da bebida. Em seguida, seu cachimbo passa de mão em mão, entre os presentes, que fazem o mesmo.

Terminada a benzedura do ajucá, o tuxaua ajoelha-se e bebe o primeiro gole, no que é imitado pelos demais. Circunspectos e concentrados, todos provam do filtro mágico que lhes proporcionará comunicar-se com os encantados, em sonhos e visões.

O que restar do sumo da raiz da jurema é colocado em um buraco profundo aberto no chão.

A máscara dos praiás, como foi dito, embora com pequenas aberturas para os olhos (demasiadamente pequenas, por sinal), possui todas as características das máscaras-vestimentas neutras, que procura criar o anonimato e transportar seus portadores à dimensão do invisível, no caso a de seus ancestrais “encantados”.

Lendo os escritos de KIRBY sobre as máscaras da América do Sul, vê-se que os Pankararu reproduzem em suas máscaras, um modelo recorrente entre os indígenas do continente, constituindo uma espécie de matriz, que também aparece entre muitos povos africanos. Trata-se de uma máscara neutra, sem ou quase sem aberturas de olhos, que se prolonga sobre o restante do corpo, deixando de fora somente os braços e a parte inferior das pernas de quem a porta. Máscaras semelhantes à dos Pankararu aparecem entre os Carajá e os Tapire, para a incorporação de mortos e espíritos da floresta. Já entre os Pankararu, como vimos, abrem espaço no corpo de seu portador para a manifestação dos espíritos errantes dos ancestrais mortos, especialmente daqueles que ficaram em sua primitiva morada. Criam anonimato não apenas para quem a porta, mas também para o espírito incorporado, aparecendo distinções somente em detalhes quase imperceptíveis.


Os praiás são seres que pertencem à dimensão invisível do mundo. Eles não são propriamente a encarnação dos mortos, nem representam pessoas. Suas máscaras estão vazias, são portas para a manifestação dos espíritos que habitam o nada, são receptáculos de encantados, vias de comunicação entre eles e os vivos. Os praiás são invisíveis aos olhos dos mortais e também não os veem. Constituem-se numa espécie de ausência presente. Sobre suas máscaras instala-se um vazio, uma ligação, não uma imagem sobrenatural, Suas vozes não veem de parte alguma. Seu canto procede de um lugar indefinido. Falam como ventríloquos. Durante os rituais, o portador da máscara praiá está em estado de encantamento. Ela é uma promessa, o potencial de alguma coisa que vai ser criada, uma identidade que vai aparecer. Seu vazio é uma possibilidade de aparição do sobrenatural. Não um vazio insignificante. É metafísico, um espaço sagrado que vai ser preenchido, não é ausência, mas a presença de uma realidade essencial latente.

Os Pankararu de Brejo dos Padres podem ser observados costumeiramente nas grandes romarias do Juazeiro do Norte, no Ceará, e de Santa Brígida, na Bahia, ocasiões em que os encontramos repetidas vezes. Costumam estabelecer sincretismos e correspondências entre seus encantados (entidades afro-brasileiras e santos do catolicismo popular), como Padre Cícero, Conselheiro Pedro Batista e Mãe Dodô. Daí, muitas vezes, realizarem peregrinações a santuários católicos junto com irmandades cristãs, especialmente com as de Nossa Senhora da Boa Morte e de São Gonçalo, que tem sedes tanto em Santa Brígida (BA), quanto na Estrada Velho do Horto, em Juazeiro do Norte. Por sua organização de caráter secreto e por seus rituais realizados em espaços ermos, assemelham-se em muito às irmandades de penitentes.

 

NOTAS

1. Ver PINTO, 1952.

2. As cantadeiras, entretanto, não usam máscaras, geralmente estão trajadas com batas brancas de romeiras.

3. Os praiás, no caso, atuam como Babaus ou Papões de Reisado.

 

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OSWALD BARROSO (Brasil, 1947). Poeta, jornalista, folclorista e teatrólogo. Foi diretor do Departamento de Ativação Cultural da Secult/CE (1986-1988), do Teatro José de Alencar (1989-1991), do Teatro da Boca Rica (1998-2004) e do Museu da Imagem e do Som – Ceará (1998-2002).




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[A partir de janeiro de 2022]

 

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Número 186 | novembro de 2021

Curadoria: Floriano Martins (Brasil, 1957)

Artista convidado: Marcos Tedeschi (Brasil, 1982)

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