sexta-feira, 5 de novembro de 2021

ROGERIO DE CAMPOS | A história da literatura no século XX e XIX

 


As enciclopédias dizem que a FAM surgiu em 1882, quando Frank (Andrey) Munsey criou a revista Argosy. Para os fãs da empresa, conhecidos como famfans, o glorioso marco inicial é 1912, quando estreou a série Action Stories. Mas para a história da literatura mundial, o momento decisivo aconteceu em fevereiro de 1911, quando Trumbull White, um dos executivos da FAM, convenceu Munsey a seguir uma nova estratégia de negócios. White explicou a Munsey o verdadeiro potencial da empresa que este havia fundado, mostrou que o coração dos negócios não eram as revistas e livros, nem os textos que elas publicavam, mas os personagens. Nem escritores, nem o resto da equipe editorial: a pessoa mais importante dentro da empresa era o personagem. O herói.

A ideia básica não tinha nada de nova. Já naquela época, o menino Tom Sawyer havia adquirido vida própria e estrelava vários livros escritos por autores contratados pela Mark Twain Company. Se hoje Munsey e White são considerados os grandes gênios da literatura do século XX é porque deram outra dimensão para o formato de negócios iniciado por Mark Twain.

White criou a linha de montagem de livros, com profissionais que criavam os plots, outros que elaboravam os personagens e os especialistas em descrições de cenários ou cenas de ação. White também impôs um padrão de como deveriam ser os personagens e as histórias. A partir daquele momento, todo o livro passou a ter heróis e vilões. Em paralelo, Munsey montou um grande lobby de advogados que modificou as leis de direito autoral para torná-la mais adequada ao novo formato de negócios.

Para entender a importância de Munsey e White, é preciso saber como era antes, na chamada pré-história do mercado literário. Era um mercado extremamente disperso, com milhões de escritores autônomos e também milhões de editoras pequenas e independentes. Basicamente o negócio “funcionava” assim: um escritor, que na época era também considerado o autor, escrevia seu livro sozinho e depois o apresentava a um editor, que decidia ou não publicá-lo. O editor poderia eventualmente fazer as modificações no texto que achasse necessárias, mas nenhuma que escritor considerasse indevida, porque o escritor, e não o editor, era o dono da obra. O escritor tinha inclusive o direito de mudar de editora levando consigo os personagens! Os problemas desse sistema primitivo são óbvios: para começar havia um absurdo desperdício de tempo e energia de escritores produzindo sem saber se seu produto iria ser impresso, se iria de fato tornar-se um produto. Era um sistema profundamente elitista, que ignorava as preferências dos clientes, que eram obrigados a escolher livros de personagens que não conheciam, com histórias que não se sabia como iriam terminar. Muitos romances não tinham sequer uma cena de ação, nem heróis! Não havia pesquisa de mercado antes de se decidir escrever um livro! Era tudo improvisado.

Havia inclusive livros com textos completamente hostis à compreensão. Eram chamados de poesia.

É de se imaginar quantos profissionais do texto, com boa técnica, não se perderam nesse caos que era o mercado editorial. Quando hoje vemos os escritores produzindo nas linhas de montagem, todos recebendo seu salário regularmente, devemos agradecer a Munsey e White.

A primeira grande criação dos dois foi Tarzan, lançado em 1912. A ideia inicial foi comprada de um vendedor de material de escritório e escritor amador (existia isso na época), chamado Edgar Burroughs. Além de comprar a ideia de Burroughs, Munsey o contratou como gerente da equipe encarregada de desenvolver o personagem e suas histórias. O sucesso de Tarzan é conhecido de todos. No ano passado, por exemplo, foi responsável por quase cinco por cento de todos os livros vendidos no Brasil.


Burroughs ainda continuou na FAM por alguns anos e deu ideias para outros personagens de sucesso, como o viajante espacial John Carter. Mas ainda carregava vícios de escritor à moda antiga. Entrou em choque com a FAM a respeito de direitos que acreditava ter sobre o Tarzan. Foi demitido e acabou morrendo na miséria nos anos 1930.

A grande concorrente da FAM não surgiu nos Estados Unidos, mas na Inglaterra. A SAX rapidamente percebeu o sucesso da FAM e lançou sua linha de livros em 1913, com aquele que é um de seus maiores sucessos: Fu Manchu. Mas o grande lance da SAX foi, naquele início do século XX, comprar os direitos e registrar como sua propriedade personagens já conhecidos como Sherlock Holmes, Drácula e Frankenstein. A FAM viu o movimento da SAX e agiu rapidamente: não apenas comprou a Mark Twain Company, mas também registrou como seus personagens antigos de obras já esquecidas como a Letra Escarlate e Moby Dick (de onde surgiu o Capitão Ahab, hoje um astro de livros infantis). As duas empresas então invadiram o mundo comprando ou simplesmente registrando personagens com potencial. Antes que os franceses percebessem, os Mosqueteiros e Vautrin eram já marcas registradas da SAX. O megassucesso Maldoror, cujo novo parque temático é já a maior atração turística de Miami, surgiu em um obscuro livro de um conde francês do século XVIII ou XIX.

A SAX foi comprada em 1921 pela Hearst Corporation. A FAM absorveu a Pulitzer em 1956. E ambas as empresas dividiram Hollywood entre si. A sinergia com Hollywood, com a indústria dos quadrinhos e brinquedos e, depois, com a TV e a indústria de games, mais o ganho de escala, fez com que os produtos da FAM e da Sax rapidamente conquistassem o mundo, passando a dominar totalmente o mercado literário de todo o Ocidente.

Nestes últimos cem anos, várias editoras tentaram entrar nesse mercado, mas nenhuma conseguiu mais que pequenos nichos. Na França a defesa xenofóbica de uma suposta literatura nacional provocou inclusive grandes crises diplomáticas com o governo norte-americano. E mesmo nos Estados Unidos tem havido, de tempos em tempos alguma resistência. Já nos anos 1930, dois sindicalistas, John dos Passos e William Faulkner, ressentidos por não serem aceitos nas editoras, defenderam a volta da autonomia dos escritores. Mas, além de não terem a solidariedade da categoria dos escritores a qual supostamente pretendiam defender, foram acusados de comunismo e obscenidade. Nunca mais se ouviu falar deles. Foi nessa época que a FAM e a SAX aprovaram o chamado Literary Code, um conjunto de regras que os editores deveriam seguir se quisessem ter seus livros distribuídos. Eis algumas cláusulas do Literary Code:

  

Policiais, juízes, membros do governo e de instituições respeitadas nunca deverão ser apresentados de maneira que se possa colocar em suspeita autoridades estabelecidas.

Deve ser especialmente evitada a inclusão de mulheres nas estórias. Mulheres, quando usadas em um roteiro, devem ter importância secundária (...) retratadas sem exageros nas qualidades físicas femininas.

Expressões que façam referência à Divindade estão proibidas. Heróis e outras pessoas boas devem falar um inglês básico correto, ainda que uma ou outra gíria ou coloquialismo sejam eventualmente permitidos, se usados judiciosamente. Apenas vilões e criminosos podem cometer erros de linguagem, mas, mesmo eles, com alguma parcimônia.

Qualquer crime deve ser sempre descrito como sórdido e desagradável. Nunca se deve glamourizar o crime ou os criminosos. Todas as histórias devem ser escritas e representadas do ponto de vista da lei, nunca ao contrário. A justiça deve triunfar em todos os casos.

O Literary Code conseguiu eliminar quase todas as pequenas editoras da época, moralizando o mercado. E, foi replicado por todos os países do Ocidente.

Apesar da rivalidade dos nerds famfans e dos geeks saxonians, a FAM e a SAX têm feito várias joint ventures. No Brasil, por exemplo, a empresa Crostini, que representa tanto a FAM quanto a SAX, tem mais de 70% do mercado de livros de ficção. As aventuras do Tarzan, Doc Savage, Maldoror, Peri (cujos direitos pertencem à FAM) e outros personagens da Crostini têm não apenas a quase totalidade das prateleiras das livrarias, mas estão também na maior parte das telas de cinema.


Algumas editoras e mesmo escritores têm tentado sobreviver de maneira independente neste mercado. Mas a participação da soma de todos eles não chega a 10% do mercado. No início dos anos 1960, houve um movimento no Brasil para que fosse obrigatório que as editoras aqui fossem obrigadas a publicar pelo menos 50% de escritores brasileiros. Uma lei neste sentido chegou a ser aprovada, mas acabou revogada assim que aconteceu a vitória da Revolução em 1964. Venceu a democracia, o poder do consumidor e a literatura sadia.

 

Obs.:

Essa distopia, na qual nunca existiu, por exemplo, James Joyce ou Guimarães Rosa, assemelha-se muito à realidade do mercado de quadrinhos. O trecho do fictício Literary Code na verdade é parte do real Editorial Policy for Superman DC Publications e do Comics Code, que, em 1954, a DC e a Marvel impuseram a todas as outras editoras de gibis dos Estados Unidos. A versão brasileira do Comics Code chamou-se Código de Ética, e foi uma criação das quatro maiores editoras brasileiras de quadrinhos na época: Ebal, Abril, RGE (Globo) e O Cruzeiro. As quatro publicavam basicamente material norte-americano e o Código de Ética serviu para elas se livrarem da crescente concorrência dos gibis publicados por editoras menores e produzidos por artistas brasileiros.

Os quadrinhos, hoje, se dividem basicamente em dois campos antagônicos: os industriais (cujos personagens pertencem a empresas, que contratam desenhistas, roteiristas, arte-finalistas e outros para fazer o trabalho) e os autorais. No Brasil a porção dos quadrinhos autorais, sejam brasileiros ou não, dos experimentais aos mais conservadores, é responsável por menos de 20% das vendas. A maior parte do espaço de quadrinhos nas livrarias e a quase totalidade do espaço nas bancas é dominado por gibis e livros de personagens criados há 60, 70 e até mais de 80 anos e produzidos por profissionais contratados pelas grandes empresas.


Por outro lado, um movimento de resistência que surgiu nos Estados Unidos nos anos 1960, liderado por Robert Crumb, e que tomou mais corpo nos anos 80 (com Maus, Love & Rockets, Fantagraphics etc), as resistências nacionais (na Argentina, França, Itália, Espanha e até Brasil) e combinada com a crise dos comic books, abriram espaço para que hoje os quadrinhos autorais, ainda que minoritários, vivam um momento como nunca viveram antes. A produção é a mais variada em temas, modos narrativos e desenhos. E é uma explosão mundial: da Coréia ao Chile, do Irã à Nigéria, hoje se produz quadrinhos como nunca antes. Não só as fronteiras de países são ultrapassadas. Antes, o mundo dos quadrinhos era o Clube do Bolinha, da produção ao consumo, e as quadrinistas até se disfarçavam sob pseudônimos masculinos (caso, por exemplo, da pioneira Marie Duval, e talvez também do misterioso “Francisco Armond”, criador, com Renato Silva, do Garra Cinzenta, nos anos 1930). Autoras fundamentais para a história dos quadrinhos, como Chantal Montellier, Kuniko Tsurita e Aline Kominsky-Crumb tiveram que lutar duramente contra a hostilidade de nerds e colegas de trabalho. Dizer que o machismo acabou no mundo dos quadrinhos seria uma óbvia estupidez, basta ver a luta histérica que bandos de nerds reacionários fazem contra a presença de mulheres (e gays, negros...) nos seus gibis de super-heróis. Mas na área dos quadrinhos autorais a presença feminina é cada vez maior. Isso se vê pelo número de autoras nas listas de quadrinhos mais vendidos (Persépolis, Fun Home, Maitena...) das últimas décadas, mas nos próprios corpos das editoras, livrarias especializadas, grupos de estudo etc.

Tudo isso afeta o tipo de história que se conta. Ainda que de maneira muito variada, existe a ânsia de usar os quadrinhos para retratar a realidade. O gênero autobiografia é dos mais fortes, mas também o quadrinho-reportagem.

Ao longo do século XX, o quadrinho brasileiro frequentemente tentou se passar por americano, com seus tantos heroicos detetives particulares brancos chamados Dick ou Peter e paisagens em que até as latas de lixo eram desenhadas conforme o que se via nos comic books. Essa paisagem mudou ao ponto de que os três gibis brasileiros premiados internacionalmente nos últimos anos são protagonizados por pessoas negras: Tungstênio, de Marcello Quintanilha, ganhou um Angoulême, Cumbe, de Marcelo D’Salete ganhou o Eisner, e Carolina, de Sirlene Barbosa e João Pinheiro, também premiado em Angoulême. Os quadrinhos brasileiros mapeiam o Brasil.

Se é possível dizer que o auge criativo do cinema ou do romance aconteceu décadas ou séculos atrás, é também possível dizer que os quadrinhos rumam hoje para seu ponto culminante.

 

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ROGÉRIO DE CAMPOS (Brasil). Editor e tradutor. É também autor dos livros Imageria, Revanchismo, Super-Homem e o Romantismo de Aço, Dicionário do Vinho (prêmio Jabuti) e Uma História dos Quadrinhos para Uso das Novas Gerações.




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[A partir de janeiro de 2022]

 

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Número 186 | novembro de 2021

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