A ideia básica não tinha
nada de nova. Já naquela época, o menino Tom Sawyer havia adquirido vida própria
e estrelava vários livros escritos por autores contratados pela Mark Twain Company.
Se hoje Munsey e White são considerados os grandes gênios da literatura do século
XX é porque deram outra dimensão para o formato de negócios iniciado por Mark Twain.
White criou a linha de montagem
de livros, com profissionais que criavam os plots, outros que elaboravam os personagens
e os especialistas em descrições de cenários ou cenas de ação. White também impôs
um padrão de como deveriam ser os personagens e as histórias. A partir daquele momento,
todo o livro passou a ter heróis e vilões. Em paralelo, Munsey montou um grande
lobby de advogados que modificou as leis de direito autoral para torná-la mais adequada
ao novo formato de negócios.
Para entender a importância
de Munsey e White, é preciso saber como era antes, na chamada pré-história do mercado
literário. Era um mercado extremamente disperso, com milhões de escritores autônomos
e também milhões de editoras pequenas e independentes. Basicamente o negócio “funcionava”
assim: um escritor, que na época era também considerado o autor, escrevia seu livro
sozinho e depois o apresentava a um editor, que decidia ou não publicá-lo. O editor
poderia eventualmente fazer as modificações no texto que achasse necessárias, mas
nenhuma que escritor considerasse indevida, porque o escritor, e não o editor, era
o dono da obra. O escritor tinha inclusive o direito de mudar de editora levando
consigo os personagens! Os problemas desse sistema primitivo são óbvios: para começar
havia um absurdo desperdício de tempo e energia de escritores produzindo sem saber
se seu produto iria ser impresso, se iria de fato tornar-se um produto. Era um sistema
profundamente elitista, que ignorava as preferências dos clientes, que eram obrigados
a escolher livros de personagens que não conheciam, com histórias que não se sabia
como iriam terminar. Muitos romances não tinham sequer uma cena de ação, nem heróis!
Não havia pesquisa de mercado antes de se decidir escrever um livro! Era tudo improvisado.
Havia inclusive livros com
textos completamente hostis à compreensão. Eram chamados de poesia.
É de se imaginar quantos
profissionais do texto, com boa técnica, não se perderam nesse caos que era o mercado
editorial. Quando hoje vemos os escritores produzindo nas linhas de montagem, todos
recebendo seu salário regularmente, devemos agradecer a Munsey e White.
A primeira grande criação
dos dois foi Tarzan, lançado em 1912. A ideia inicial foi comprada de um vendedor
de material de escritório e escritor amador (existia isso na época), chamado Edgar
Burroughs. Além de comprar a ideia de Burroughs, Munsey o contratou como gerente
da equipe encarregada de desenvolver o personagem e suas histórias. O sucesso de
Tarzan é conhecido de todos. No ano passado, por exemplo, foi responsável por quase
cinco por cento de todos os livros vendidos no Brasil.
A grande concorrente da
FAM não surgiu nos Estados Unidos, mas na Inglaterra. A SAX rapidamente percebeu
o sucesso da FAM e lançou sua linha de livros em 1913, com aquele que é um de seus
maiores sucessos: Fu Manchu. Mas o grande lance da SAX foi, naquele início do século
XX, comprar os direitos e registrar como sua propriedade personagens já conhecidos
como Sherlock Holmes, Drácula e Frankenstein. A FAM viu o movimento da SAX e agiu
rapidamente: não apenas comprou a Mark Twain Company, mas também registrou como
seus personagens antigos de obras já esquecidas como a Letra Escarlate e Moby Dick
(de onde surgiu o Capitão Ahab, hoje um astro de livros infantis). As duas empresas
então invadiram o mundo comprando ou simplesmente registrando personagens com potencial.
Antes que os franceses percebessem, os Mosqueteiros e Vautrin eram já marcas registradas
da SAX. O megassucesso Maldoror, cujo novo parque temático é já a maior atração
turística de Miami, surgiu em um obscuro livro de um conde francês do século XVIII
ou XIX.
A SAX foi comprada em 1921
pela Hearst Corporation. A FAM absorveu a Pulitzer em 1956. E ambas as empresas
dividiram Hollywood entre si. A sinergia com Hollywood, com a indústria dos quadrinhos
e brinquedos e, depois, com a TV e a indústria de games, mais o ganho de escala,
fez com que os produtos da FAM e da Sax rapidamente conquistassem o mundo, passando
a dominar totalmente o mercado literário de todo o Ocidente.
Nestes últimos cem anos,
várias editoras tentaram entrar nesse mercado, mas nenhuma conseguiu mais que pequenos
nichos. Na França a defesa xenofóbica de uma suposta literatura nacional provocou
inclusive grandes crises diplomáticas com o governo norte-americano. E mesmo nos
Estados Unidos tem havido, de tempos em tempos alguma resistência. Já nos anos 1930,
dois sindicalistas, John dos Passos e William Faulkner, ressentidos por não serem
aceitos nas editoras, defenderam a volta da autonomia dos escritores. Mas, além
de não terem a solidariedade da categoria dos escritores a qual supostamente pretendiam
defender, foram acusados de comunismo e obscenidade. Nunca mais se ouviu falar deles.
Foi nessa época que a FAM e a SAX aprovaram o chamado Literary Code, um conjunto
de regras que os editores deveriam seguir se quisessem ter seus livros distribuídos.
Eis algumas cláusulas do Literary Code:
Policiais, juízes, membros do governo
e de instituições respeitadas nunca deverão ser apresentados de maneira que se possa
colocar em suspeita autoridades estabelecidas.
Deve ser especialmente evitada a inclusão
de mulheres nas estórias. Mulheres, quando usadas em um roteiro, devem ter importância
secundária (...) retratadas sem exageros nas qualidades físicas femininas.
Expressões que façam referência à
Divindade estão proibidas. Heróis e outras pessoas boas devem falar um inglês básico
correto, ainda que uma ou outra gíria ou coloquialismo sejam eventualmente permitidos,
se usados judiciosamente. Apenas vilões e criminosos podem cometer erros de linguagem,
mas, mesmo eles, com alguma parcimônia.
Qualquer crime deve ser sempre descrito
como sórdido e desagradável. Nunca se deve glamourizar o crime ou os criminosos.
Todas as histórias devem ser escritas e representadas do ponto de vista da lei,
nunca ao contrário. A justiça deve triunfar em todos os casos.
O Literary Code conseguiu eliminar quase todas as pequenas editoras da época,
moralizando o mercado. E, foi replicado por todos os países do Ocidente.
Apesar da rivalidade dos
nerds famfans e dos geeks saxonians, a FAM e a SAX têm feito várias joint ventures.
No Brasil, por exemplo, a empresa Crostini, que representa tanto a FAM quanto a
SAX, tem mais de 70% do mercado de livros de ficção. As aventuras do Tarzan, Doc
Savage, Maldoror, Peri (cujos direitos pertencem à FAM) e outros personagens da
Crostini têm não apenas a quase totalidade das prateleiras das livrarias, mas estão
também na maior parte das telas de cinema.
Obs.:
Essa distopia, na qual nunca existiu, por exemplo,
James Joyce ou Guimarães Rosa, assemelha-se muito à realidade do mercado de quadrinhos.
O trecho do fictício Literary Code na verdade é parte do real Editorial Policy for
Superman DC Publications e do Comics Code, que, em 1954, a DC e a Marvel impuseram
a todas as outras editoras de gibis dos Estados Unidos. A versão brasileira do Comics
Code chamou-se Código de Ética, e foi uma criação das quatro maiores editoras brasileiras
de quadrinhos na época: Ebal, Abril, RGE (Globo) e O Cruzeiro. As quatro publicavam
basicamente material norte-americano e o Código de Ética serviu para elas se livrarem
da crescente concorrência dos gibis publicados por editoras menores e produzidos
por artistas brasileiros.
Os quadrinhos, hoje, se
dividem basicamente em dois campos antagônicos: os industriais (cujos personagens
pertencem a empresas, que contratam desenhistas, roteiristas, arte-finalistas e
outros para fazer o trabalho) e os autorais. No Brasil a porção dos quadrinhos autorais,
sejam brasileiros ou não, dos experimentais aos mais conservadores, é responsável
por menos de 20% das vendas. A maior parte do espaço de quadrinhos nas livrarias
e a quase totalidade do espaço nas bancas é dominado por gibis e livros de personagens
criados há 60, 70 e até mais de 80 anos e produzidos por profissionais contratados
pelas grandes empresas.
Tudo isso afeta o tipo de
história que se conta. Ainda que de maneira muito variada, existe a ânsia de usar
os quadrinhos para retratar a realidade. O gênero autobiografia é dos mais fortes,
mas também o quadrinho-reportagem.
Ao longo do século XX, o
quadrinho brasileiro frequentemente tentou se passar por americano, com seus tantos
heroicos detetives particulares brancos chamados Dick ou Peter e paisagens em que
até as latas de lixo eram desenhadas conforme o que se via nos comic books. Essa
paisagem mudou ao ponto de que os três gibis brasileiros premiados internacionalmente
nos últimos anos são protagonizados por pessoas negras: Tungstênio, de Marcello
Quintanilha, ganhou um Angoulême, Cumbe, de Marcelo D’Salete ganhou o Eisner,
e Carolina, de Sirlene Barbosa e João Pinheiro, também premiado em Angoulême.
Os quadrinhos brasileiros mapeiam o Brasil.
Se é possível dizer que
o auge criativo do cinema ou do romance aconteceu décadas ou séculos atrás, é também
possível dizer que os quadrinhos rumam hoje para seu ponto culminante.
__________
ROGÉRIO DE
CAMPOS
(Brasil). Editor e tradutor. É também autor dos livros Imageria, Revanchismo, Super-Homem e o Romantismo de Aço, Dicionário do Vinho (prêmio Jabuti) e Uma História dos Quadrinhos para Uso das Novas
Gerações.
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UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO
Número 186 | novembro de 2021
Curadoria: Floriano Martins (Brasil, 1957)
Artista convidado: Marcos Tedeschi (Brasil, 1982)
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