Já na primeira coreografia
de grupo, concebida em 1995, que foi chamada de “A Última Tentação de Santo Antão”,
inspirada nas pinturas de Hieronymus Bosch, em especial nos trípticos “As Tentações
de Santo Antão” e o tríptico “O Jardim das Delícias”, além das versões sobre o tema
realizadas por Salvador Dalí e Max Ernest. Neste caso o fato detonador da escolha
do tema, foi ter visto uma replica do quadro central do tríptico no MASP (Museu
de Arte Moderna de São Paulo), que contém em sua composição elementos de junção
de sensações, no que se refere ao próprio corpo e a possibilidade de transformação
e narrativa ao expor situações do cotidiano, que o artista captou e de forma alucinante,
fez disso uma projeção de imagens semelhantes as que surgem em sonhos, essas fortes
imagens descritas no quadro foram lapidando o desejo de criar uma coreografia, onde
poderia ser experimentado as transformações e as junções corporais fantásticas que
a pintura exibia, que por si só, são muito instigadoras à criação de cenas coreográficas,
criando um interessante conflito para construção dramatúrgica corporal do espetáculo
e de onde iniciam as conexões com o Surrealismo, visto na forma como tratar o processo
criativo, que envolvia a escuta intensa que nascia dos ensaios e em todo o processo
que envolvia o corpo do intérprete na sala de ensaio e além dela, no caso, no que
se refere ao processo de descanso, nos sonhos, seguiam os ensaios e experimentos,
durante o processo e também nos relatos dos sonhos dos intérpretes/artistas envolvidos.
Mantendo sempre uma certa
conexão, com o modo, a maneira, no que se refere às sensações repartidas, interrompidas
e misturadas, presentes nos sonhos. Despertando a fusão dos sentidos, através da
sobreposição de texturas e símbolos, de onde se constroem camadas, que se misturam
entre si, onde a coreografia surge e se confunde com os elementos de cena, o cenário,
o figurino, as projeções de vídeo, os instrumentos musicais, é dessa mistura, que
normalmente brota a dramaturgia no corpo do intérprete, que escorre pelo espaço,
pulsante e viva, no que nomeio de “coreodramaturgrafia” [2] e galopa para lamber os olhos, os ouvidos do espectador, todos os
sentidos do espectador, é claro , os que estejam abertos para isso.
Muitas das vezes, as provocações
para uma nova criação vieram da literatura, como foi o caso do “Hotel Lautréamont-
Os Bruscos Buracos do Silêncio”, espetáculo concebido em 2009, inspirado no livro
“Os Cantos de Maldoror”, de Isidore Ducasse (Conde de Lautréamont), [3] tradução brasileira de Claudio Willer,
[4] que foi o provocador desta montagem.
Neste encontro tanto com Lautréamont como com Willer, ficou bastante evidente esta
relação do meu trabalho com o Surrealismo, mesmo na montagem do ano anterior, de
2008, no espetáculo “O Barulho Indiscreto da Chuva”, que foi o primeiro espetáculo,
criado por mim, que Willer assistiu, já haviam fortes nuances surrealista, uma estranheza
inquietante no trato do espaço e do tempo de todas as coisas e corpos de todas as
cenas. O mesmo aconteceu no espetáculo “Algum Lugar Fora do Mundo” estreado em 2005,
um acampamento performático, onde o público era convidado a entrar nas tendas, normalmente
de cinco a seis tendas, e em cada tenda, havia uma inspiração em um poeta/escritor
e uma digladiação: Luís Buñuel (sonho x
realidade), Baudelaire (Temporal x Atemporal),
Rimbaud (Lucides x Alucinação), Artaud
(Loucura x Sanidade) e Jean Cocteau (Verdade
x Mentira). Conexões como estas também
podem ser vistas nos espetáculos: “Édipos Rex – A Máquina Desejante” - 2009; “Espectros
de Shakespeare – do Outro Lado do Vento” -2010; “Na Infinita Solidão dessa hora
e desse Lugar” -2012; “Uma Sinfonia entre o piscar dos olhos e a medula óssea” -
2013; “O Especulador de Olhos Invisíveis” - 2016 e O Eterno Voo de Dr. Faustroll
na Clareza Obscura do AR” - 2017; “Desmontando Desdêmona” - 2018 e “Desmembrando
Otelo”- 2019 e a novela patafísica para um mundo pandêmico, em cinco capítulos:
O Eterno Voo de Dr. Faustroll na Clareza Obscura da Internet” - 2020 e 2021.
Pois então, a escolha do
tema para a montagem, o livro “Os Cantos de Maldoror”, se deu muito pela quantidade
de imagens e fusões de seres numa forte projeção de corpos zoomórficos e relatos
de zoofilia, como aquele entre o anti-herói que protagoniza os cantos, com uma tubarão
fêmea, que é descrito em um dos sete cantos, concebidos por Isidore Ducasse, estas
sessões estavam guardadas em minha memória, desde o primeiro momento que tive acesso
aos Cantos de Maldoror, em meados dos anos de 1980, ficaram guardadas estas projeções
poéticas por +- 25 anos, até que em 2009 resolvi me arriscar em criar um espetáculo
inspirado no Conde de Lautréamont. Então, aconteceu um resgate das sensações sentidas
na lembrança e nos sonhos, nessa releitura dos Cantos, após duas décadas e meia,
outras imagens foram projetadas, destacando a crueldade, o sarcasmo, o animalesco
e o poder dessas imagens ao gerar uma sensação de delírio, de pesadelo e que indagavam
e provocavam a construção coreodramaturgráfica. Optou-se em criar um cenário de
um quarto de hotel, onde coisas/movimentos escorriam das mobílias, e de diferentes
corpos, todos com um rabo de cavalo saindo da região sacral, se unificavam, eram
náufragos que buscavam um suspiro final.
Em um dos primeiros ensaios
na sala Norte do espaço Cênico O LUGAR, após a minha aula técnica preparando o corpo
do intérprete, passei uma sequência coreográfica inspirada nos movimentos de um
tubarão, um rinoceronte, de um cachalote macrocéfalo e em seguida fizemos a leitura
de um dos Cantos de Maldoror, na sequência solicitei a cada intérprete que subissem
as escadas que davam acesso a sala, como se estivessem adentrando em seu quarto
de Hotel, portando um objeto e vestindo um sobretudo/casaco, já no espaço cênico
havia um guarda-roupas, uma cama de solteiro com três gavetas e uma máquina de costura.
Os cinco intérpretes que estavam no ensaio, portavam uma balança portátil de peso,
além de carregar objetos, como se houvessem achado na rua, uma poltrona, um móvel
de cabeceira (“Criado-Mudo”), um relógio de bater o ponto, um guarda-chuvas antigo
com cabo de marfim, uma mala antiga de couro e ferro e uma cadeira de madeira, todas
peças de antiquário. O ponto de partida era chegar no seu quarto, portando os objetos
e sentirem os relinchos da alma saírem pelos poros, agregar o objeto ao cenário,
subir na balança, tirar o casaco e checar seu peso e anuncia-lo ao mundo. Em seguida
partia para a sequência coreográfica, que através da improvisação como processo
cênico, exploravam os objetos de cena, agregando-os à coreografia, assim como trechos
dos textos que eram mastigados, desenvolvendo à vocalidade característica dessa
obra. Aos ensaios sequenciais eram acrescentados, mais textos, mais coreografias,
e sensações, que em algumas ocasiões, os performers mastigavam alga marinha ou sardinha,
para assim provocar a sensação de sargaço, estímulos para despertar no performer
um estado no corpo, de um naufrago, que chega às encostas de um continente, com
um rabo de cavalo saindo de seu cóccix. Somados a esses estados e cenários, foram
incluídos sons e objetos, como um piano, um tapete, um quadro antigo de uma caravela
numa tempestade e micro câmeras, que faziam as captações das imagens de dentro das
mobílias, que se fundiam aos corpos dos intérpretes e no cenário através das projeções.
Logo na entrada do espaço
cênico, como em uma recepção de um Hotel, de cinco em cinco pessoas do público,
eram recepcionados, por três intérpretes e um pianista, que, enquanto um dos intérpretes
tirava a pesagem dos espectadores, fazia perguntas, tais como: Você tem barbatanas
de Tubarão nos calcanhares? Você Possui relinchos na alma? Você possui chifre de
rinoceronte no peito? ..., o outro intérprete cantava uma das músicas da trilha
sonora, enquanto somava os pesos das pessoas, que era anunciado pelo intérprete
que pesava, juntamente com o pianista tocando, e em oposição ao pianista, um outro
intérprete ficava em pé sobre uma balança de peso antiga, daquelas de farmácia com
luz de neon verde, vestindo um samba canção branca e totalmente encharcado, com
algas marinhas espalhadas no corpo e saindo da boca, o próprio Maldoror-naufrago
delirante.
NOTAS
1. Cia. Corpos
Nômades, Companhia de dança e Teatro concebida por João Andreazzi, desde 1995, com
o espetáculo “As Últimas Tentações de Santo Antão” – inspirado em Hyeronimus Bosch.
Mais detalhes: www.ciacorposnomades.art.br Facebook: @ciacorposnomades Canal do Youtube: Cia. Corpos Nômades.
2. Termo utilizado
por Andreazzi, para se referir ao seu processo de criação que envolve a fusão da
coreografia com a cenografia, a dramaturgia, a música, os objetos de cena, o figurino,
vídeo arte. Este sampleamento de movimentos, imagens e sons.
3. Isidore
Ducasse – pseudônimo Conde de Lautréamont – Escritor uruguaio, com pais franceses,
nascido em 04/04/1846 Morte em Paris - 24/11/1870.
4. Claudio
Willer – escritor paulistano, poeta e tradutor, nascido na cidade de São Paulo em
02/12/1940. Uma referência na literatura, principalmente na que envolve os escritores
franceses malditos, os artistas do movimento surrealista e os escritores beatnicks
– norte americanos e brasileiros.
5. Espaço
Cênico O LUGAR, sede da Cia. Corpos Nômades, localizada na Rua Augusta, 325, na
cidade de São Paulo. Existiu e resistiu de 26/12/2006 a 22/08/2019. Espaço onde
aconteceram diversas Mostras, Temporadas, Workshops, Palestras, envolvendo dança,
teatro, música e literatura.
6. Somente
para enfatizar: significado da palavra Escrotidão: Palavra-ônibus que denota más
qualidades ou pensamentos e ações moralmente repulsivas como: torpeza, vileza, crueldade,
feiura, desonestidade, covardia etc.; escrotice.
__________
JOÃO ANDREAZZI (Brasil, 1966). Bailarino
e coreografo paulistano, diretor da Cia. Corpos Nômades, nascido em 24/08/1966.
Iniciou sua carreira como bailarino em 1987 com Maurice Vaneau e Célia Gouvêa e
como coreógrafo em 1989, no Movimentos de Dança do SESC Anchieta-SP. Recebeu diversos
prêmios e aportes em sua trajetória, tais como: Movimentos de Dança SESC-SP – 1989,
1991 e 1993, Prêmio Estímulo da Secretaria do Estado da Cultura SP– 1994, APCAs
(Associação Paulista de Críticos de Arte-2000, 2005 e 2010), Rumos Itaú Cultural
2003, Prêmio Braços e Pernas pela Cidade de São Paulo-2004, Prêmio Funarte 2008,
Petrobras Cultural de 2014 a 2016, O Boticário na Dança 2016, Prêmio PROAC LAB expresso
48 por Histórico Artístico-2020, entre outros.
*****
Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO
Número 186 | novembro de 2021
Curadoria: Floriano Martins (Brasil, 1957)
Artista convidado: Marcos Tedeschi (Brasil, 1982)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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Gostaria de parabenizar este artigo e artista,pensador, provocador e amigo incrível João Andreazzi! Participei de alguns espetáculos, workshops, oficinas sempre carregadas de curiosidade,estudo e incentivo ao artista criador. E também lembrar que meu espetáculo de 2007: De quê são feitos os dias? Foi feita a preparação corporal e coreografado por João Andreazzi. Sem mais um dos artistas mais criativos e importante para a dança contemporânea da cidade de São Paulo! Meu abraço carinhoso e sucesso sempre,querido João Andreazzi!!!!
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