sexta-feira, 5 de novembro de 2021

JOÃO ANDREAZZI | Sobre a Cia. Corpos Nômades

 


Foram muitas as vezes, que ao longo dessas últimas décadas, os processos criativos coreográficos realizados por mim, junto à Cia. Corpos Nômades, [1] tiveram como inspirações, os ditos, benditos artistas malditos, os que questionavam intensamente a existência humana e suas estranhezas e suas inquietações que perpassavam pelos seus corpos e pelas suas almas. Impressões deixadas por estes artistas em suas poesias, pinturas, filmes, enfim em seus registros de passagem por este planeta. Tais como os inquietos artistas: Artaud, Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, Lautréamont, Bosch, Jarry, Duchamp, Andre Breton, Max Ernest, Buñuel, Beckett, Leminski, Manoel de Barros, entre outros. Essas fortes contaminações e influencias, se transformaram em elementos provocadores e detonadores de diversas obras criadas desde meados da década de 1990, junto à Cia. Corpos Nômades.

Já na primeira coreografia de grupo, concebida em 1995, que foi chamada de “A Última Tentação de Santo Antão”, inspirada nas pinturas de Hieronymus Bosch, em especial nos trípticos “As Tentações de Santo Antão” e o tríptico “O Jardim das Delícias”, além das versões sobre o tema realizadas por Salvador Dalí e Max Ernest. Neste caso o fato detonador da escolha do tema, foi ter visto uma replica do quadro central do tríptico no MASP (Museu de Arte Moderna de São Paulo), que contém em sua composição elementos de junção de sensações, no que se refere ao próprio corpo e a possibilidade de transformação e narrativa ao expor situações do cotidiano, que o artista captou e de forma alucinante, fez disso uma projeção de imagens semelhantes as que surgem em sonhos, essas fortes imagens descritas no quadro foram lapidando o desejo de criar uma coreografia, onde poderia ser experimentado as transformações e as junções corporais fantásticas que a pintura exibia, que por si só, são muito instigadoras à criação de cenas coreográficas, criando um interessante conflito para construção dramatúrgica corporal do espetáculo e de onde iniciam as conexões com o Surrealismo, visto na forma como tratar o processo criativo, que envolvia a escuta intensa que nascia dos ensaios e em todo o processo que envolvia o corpo do intérprete na sala de ensaio e além dela, no caso, no que se refere ao processo de descanso, nos sonhos, seguiam os ensaios e experimentos, durante o processo e também nos relatos dos sonhos dos intérpretes/artistas envolvidos.

Mantendo sempre uma certa conexão, com o modo, a maneira, no que se refere às sensações repartidas, interrompidas e misturadas, presentes nos sonhos. Despertando a fusão dos sentidos, através da sobreposição de texturas e símbolos, de onde se constroem camadas, que se misturam entre si, onde a coreografia surge e se confunde com os elementos de cena, o cenário, o figurino, as projeções de vídeo, os instrumentos musicais, é dessa mistura, que normalmente brota a dramaturgia no corpo do intérprete, que escorre pelo espaço, pulsante e viva, no que nomeio de “coreodramaturgrafia” [2] e galopa para lamber os olhos, os ouvidos do espectador, todos os sentidos do espectador, é claro , os que estejam abertos para isso.

Muitas das vezes, as provocações para uma nova criação vieram da literatura, como foi o caso do “Hotel Lautréamont- Os Bruscos Buracos do Silêncio”, espetáculo concebido em 2009, inspirado no livro “Os Cantos de Maldoror”, de Isidore Ducasse (Conde de Lautréamont), [3] tradução brasileira de Claudio Willer, [4] que foi o provocador desta montagem. Neste encontro tanto com Lautréamont como com Willer, ficou bastante evidente esta relação do meu trabalho com o Surrealismo, mesmo na montagem do ano anterior, de 2008, no espetáculo “O Barulho Indiscreto da Chuva”, que foi o primeiro espetáculo, criado por mim, que Willer assistiu, já haviam fortes nuances surrealista, uma estranheza inquietante no trato do espaço e do tempo de todas as coisas e corpos de todas as cenas. O mesmo aconteceu no espetáculo “Algum Lugar Fora do Mundo” estreado em 2005, um acampamento performático, onde o público era convidado a entrar nas tendas, normalmente de cinco a seis tendas, e em cada tenda, havia uma inspiração em um poeta/escritor e uma digladiação: Luís Buñuel (sonho x realidade), Baudelaire (Temporal x Atemporal), Rimbaud (Lucides x Alucinação), Artaud (Loucura x Sanidade) e Jean Cocteau (Verdade x Mentira). Conexões como estas também podem ser vistas nos espetáculos: “Édipos Rex – A Máquina Desejante” - 2009; “Espectros de Shakespeare – do Outro Lado do Vento” -2010; “Na Infinita Solidão dessa hora e desse Lugar” -2012; “Uma Sinfonia entre o piscar dos olhos e a medula óssea” - 2013; “O Especulador de Olhos Invisíveis” - 2016 e O Eterno Voo de Dr. Faustroll na Clareza Obscura do AR” - 2017; “Desmontando Desdêmona” - 2018 e “Desmembrando Otelo”- 2019 e a novela patafísica para um mundo pandêmico, em cinco capítulos: O Eterno Voo de Dr. Faustroll na Clareza Obscura da Internet” - 2020 e 2021.


Vou sobrevoar um pouco mais os vestígios deixados do processo criativo do espetáculo “Hotel Lautréamont - Os Bruscos Buracos do Silêncio”, de 2009. O qual marca o início da parceria com o poeta, escritor e tradutor Claudio Willer. Aconteceram diversas temporadas com o espetáculo Hotel Lautréamont, sendo que a última foi em 2017, lá no extinto Espaço Cênico O LUGAR, [5] sede da Cia. Corpos Nômades, por quase 13 anos, na Rua Augusta na cidade de São Paulo. Durante a temporada do ano de 2014, aconteceu o curso sobre Surrealismo com Willer, de onde surgiu o grupo no Facebook “Surrealismo Solúvel”, destinados à pessoas com interesse no assunto.

Pois então, a escolha do tema para a montagem, o livro “Os Cantos de Maldoror”, se deu muito pela quantidade de imagens e fusões de seres numa forte projeção de corpos zoomórficos e relatos de zoofilia, como aquele entre o anti-herói que protagoniza os cantos, com uma tubarão fêmea, que é descrito em um dos sete cantos, concebidos por Isidore Ducasse, estas sessões estavam guardadas em minha memória, desde o primeiro momento que tive acesso aos Cantos de Maldoror, em meados dos anos de 1980, ficaram guardadas estas projeções poéticas por +- 25 anos, até que em 2009 resolvi me arriscar em criar um espetáculo inspirado no Conde de Lautréamont. Então, aconteceu um resgate das sensações sentidas na lembrança e nos sonhos, nessa releitura dos Cantos, após duas décadas e meia, outras imagens foram projetadas, destacando a crueldade, o sarcasmo, o animalesco e o poder dessas imagens ao gerar uma sensação de delírio, de pesadelo e que indagavam e provocavam a construção coreodramaturgráfica. Optou-se em criar um cenário de um quarto de hotel, onde coisas/movimentos escorriam das mobílias, e de diferentes corpos, todos com um rabo de cavalo saindo da região sacral, se unificavam, eram náufragos que buscavam um suspiro final.

Em um dos primeiros ensaios na sala Norte do espaço Cênico O LUGAR, após a minha aula técnica preparando o corpo do intérprete, passei uma sequência coreográfica inspirada nos movimentos de um tubarão, um rinoceronte, de um cachalote macrocéfalo e em seguida fizemos a leitura de um dos Cantos de Maldoror, na sequência solicitei a cada intérprete que subissem as escadas que davam acesso a sala, como se estivessem adentrando em seu quarto de Hotel, portando um objeto e vestindo um sobretudo/casaco, já no espaço cênico havia um guarda-roupas, uma cama de solteiro com três gavetas e uma máquina de costura. Os cinco intérpretes que estavam no ensaio, portavam uma balança portátil de peso, além de carregar objetos, como se houvessem achado na rua, uma poltrona, um móvel de cabeceira (“Criado-Mudo”), um relógio de bater o ponto, um guarda-chuvas antigo com cabo de marfim, uma mala antiga de couro e ferro e uma cadeira de madeira, todas peças de antiquário. O ponto de partida era chegar no seu quarto, portando os objetos e sentirem os relinchos da alma saírem pelos poros, agregar o objeto ao cenário, subir na balança, tirar o casaco e checar seu peso e anuncia-lo ao mundo. Em seguida partia para a sequência coreográfica, que através da improvisação como processo cênico, exploravam os objetos de cena, agregando-os à coreografia, assim como trechos dos textos que eram mastigados, desenvolvendo à vocalidade característica dessa obra. Aos ensaios sequenciais eram acrescentados, mais textos, mais coreografias, e sensações, que em algumas ocasiões, os performers mastigavam alga marinha ou sardinha, para assim provocar a sensação de sargaço, estímulos para despertar no performer um estado no corpo, de um naufrago, que chega às encostas de um continente, com um rabo de cavalo saindo de seu cóccix. Somados a esses estados e cenários, foram incluídos sons e objetos, como um piano, um tapete, um quadro antigo de uma caravela numa tempestade e micro câmeras, que faziam as captações das imagens de dentro das mobílias, que se fundiam aos corpos dos intérpretes e no cenário através das projeções.

Logo na entrada do espaço cênico, como em uma recepção de um Hotel, de cinco em cinco pessoas do público, eram recepcionados, por três intérpretes e um pianista, que, enquanto um dos intérpretes tirava a pesagem dos espectadores, fazia perguntas, tais como: Você tem barbatanas de Tubarão nos calcanhares? Você Possui relinchos na alma? Você possui chifre de rinoceronte no peito? ..., o outro intérprete cantava uma das músicas da trilha sonora, enquanto somava os pesos das pessoas, que era anunciado pelo intérprete que pesava, juntamente com o pianista tocando, e em oposição ao pianista, um outro intérprete ficava em pé sobre uma balança de peso antiga, daquelas de farmácia com luz de neon verde, vestindo um samba canção branca e totalmente encharcado, com algas marinhas espalhadas no corpo e saindo da boca, o próprio Maldoror-naufrago delirante.


Um detalhe de fundamental importância é o dialogo e a escuta dos sonhos, que sou acometido em cada processo criativo, no caso do Hotel Lautréamont, para efeito e ilustração, sempre dei preferência para os ensaios das 18h às 23h, pois logo após o ensaio a tendência é por o corpo para dormir e sonhar, pois então este é um prolongamento do processo criativo, onde as várias situações que estão sendo lapidadas para se transformarem em coreodramaturgrafias, se resolvem ou se confundem, provocando as mudanças nos próximos ensaio e vão assim, se definindo, e sendo feitas as escolhas dos trajetos percorridos no enredo e para as decisões e as conclusões das cenas, como foi o caso do rabo de cavalo saindo da região sacral dos intérpretes, esta imagem vem de um dos sonhos. Habitualmente os ensaios continuam nos meus sonhos, e lá o corpo do coreógrafo ganha outras dimensões poéticas, que fundem os sentidos, pelas sobreposições de sensações, e que provocam um manancial de inspiratórias, tanto para o criador cênico, como para o performer. Inicialmente experimento em meu corpo os movimentos e cenas, antes de transmitir para o elenco, seja uma sequencia solo ou algum duo ou coreografia com o grupo, é também frequente que um solo se transforme em um duo, trio ou quarteto, onde os outros corpos vão ocupando, se infiltrando nos vãos poéticos que o solo/sequencia/matriz proporciona, esses desenvolvimentos das composições em grupo, também continuam nos “ensaios em sonhos”, que se infiltram e são absorvidos pelos ensaios presenciais, ou seja durante um processo criativo de quatro a seis horas, se estende por mais duas ou três horas durante os sonhos. Assim as coreodramaturgrafias são compostas, entre essa orquestração da realidade e da ficção, me refiro àquela que esta próxima, à ficção do intérprete que mergulha na obra e aciona suas lembrança intimas, àquelas conectadas com a sua essência, a sua memória, a sua história, aos seus registros e suas sensações corporais, desde as mais antigas, como àquelas que brotam e arrepiam os poros, como àquelas que registram as descobertas corporais, do andar, do falar, do cantar, do dançar, que eu chamo de “os nossos pôneis” que considero como àquelas lembranças marcantes que habitam a nossa memória corporal, tanto àquelas tatuadas à flor da pele, como às registradas fortemente no cérebro, associadas aos sistemas dos sentidos corporais, a Visão, a Audição, o Olfato, o Tato e o Paladar.


Em suma, creio que o Surrealismo habita minhas criações, é presença marcante no meu modo de entender as coisas encontradas no corpo e na alma. Semelhante àquelas repartições perdidas nos sonhos, que muitas vezes nos acompanham desde a infância, que preenchem os espaços da nossa intimidade úmida e solitária, com cores e contrastantes sentimentos. As ditas “coreodramaturgrafias” são borradas de estranhas e inquietantes subjetividades, a fim de levar a objetividade do espectador e do intérprete à lugares não explorados, confundindo-os como se fossem dezenas de objetos soltos em um “caminhão de mudança”, que no final do trajeto viram a própria composição. Assim como, as provocações contidas nos pensamentos de Gilles Deleuze e Félix Guattari, através das suas reflexões sobre este sistema econômico – o Capitalismo, falido e esquizofrênico, que nas obras Anti-Édipo – Capitalismo e Esquizofrenia 1 e Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia 2, foram degustados e vomitados de varias maneiras e modos, utilizando muitas citações e imagens, de diversos artistas e pensadores em torno desta máquina desejante corpo, catalizador de modos corporais esquizofrênicos, paranoicos e masoquistas. Mesmo no meio de tudo isto, de tanta “escrotidão” [6] seguimos na labuta – Pior, Avante, Marche! Adelante!

 

NOTAS

1. Cia. Corpos Nômades, Companhia de dança e Teatro concebida por João Andreazzi, desde 1995, com o espetáculo “As Últimas Tentações de Santo Antão” – inspirado em Hyeronimus Bosch. Mais detalhes: www.ciacorposnomades.art.br Facebook: @ciacorposnomades Canal do Youtube: Cia. Corpos Nômades.

2. Termo utilizado por Andreazzi, para se referir ao seu processo de criação que envolve a fusão da coreografia com a cenografia, a dramaturgia, a música, os objetos de cena, o figurino, vídeo arte. Este sampleamento de movimentos, imagens e sons.

3. Isidore Ducasse – pseudônimo Conde de Lautréamont – Escritor uruguaio, com pais franceses, nascido em 04/04/1846 Morte em Paris - 24/11/1870.

4. Claudio Willer – escritor paulistano, poeta e tradutor, nascido na cidade de São Paulo em 02/12/1940. Uma referência na literatura, principalmente na que envolve os escritores franceses malditos, os artistas do movimento surrealista e os escritores beatnicks – norte americanos e brasileiros.

5. Espaço Cênico O LUGAR, sede da Cia. Corpos Nômades, localizada na Rua Augusta, 325, na cidade de São Paulo. Existiu e resistiu de 26/12/2006 a 22/08/2019. Espaço onde aconteceram diversas Mostras, Temporadas, Workshops, Palestras, envolvendo dança, teatro, música e literatura.

6. Somente para enfatizar: significado da palavra Escrotidão: Palavra-ônibus que denota más qualidades ou pensamentos e ações moralmente repulsivas como: torpeza, vileza, crueldade, feiura, desonestidade, covardia etc.; escrotice.

 

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JOÃO ANDREAZZI (Brasil, 1966). Bailarino e coreografo paulistano, diretor da Cia. Corpos Nômades, nascido em 24/08/1966. Iniciou sua carreira como bailarino em 1987 com Maurice Vaneau e Célia Gouvêa e como coreógrafo em 1989, no Movimentos de Dança do SESC Anchieta-SP. Recebeu diversos prêmios e aportes em sua trajetória, tais como: Movimentos de Dança SESC-SP – 1989, 1991 e 1993, Prêmio Estímulo da Secretaria do Estado da Cultura SP– 1994, APCAs (Associação Paulista de Críticos de Arte-2000, 2005 e 2010), Rumos Itaú Cultural 2003, Prêmio Braços e Pernas pela Cidade de São Paulo-2004, Prêmio Funarte 2008, Petrobras Cultural de 2014 a 2016, O Boticário na Dança 2016, Prêmio PROAC LAB expresso 48 por Histórico Artístico-2020, entre outros.




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[A partir de janeiro de 2022]

 

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UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO

Número 186 | novembro de 2021

Curadoria: Floriano Martins (Brasil, 1957)

Artista convidado: Marcos Tedeschi (Brasil, 1982)

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Um comentário:

  1. Gostaria de parabenizar este artigo e artista,pensador, provocador e amigo incrível João Andreazzi! Participei de alguns espetáculos, workshops, oficinas sempre carregadas de curiosidade,estudo e incentivo ao artista criador. E também lembrar que meu espetáculo de 2007: De quê são feitos os dias? Foi feita a preparação corporal e coreografado por João Andreazzi. Sem mais um dos artistas mais criativos e importante para a dança contemporânea da cidade de São Paulo! Meu abraço carinhoso e sucesso sempre,querido João Andreazzi!!!!

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