sexta-feira, 5 de novembro de 2021

FLORIANO MARTINS | Um primeiro encontro com Jacob Klintowitz

 


O diálogo com Jacob Klintowitz (Porto Alegre, 1941) é uma peça mágica, tear infinito compartilhado com este crítico brasileiro que possui obra dotada de espantosa singularidade, seja pela extensão como pela luz que incide sobre o objeto de todos os seus estudos. De meados dos anos 60 a princípios da década seguinte, Jacob residiu no Rio de Janeiro, ali mantendo, por sete anos, uma coluna diária de crítica de arte na Tribuna da Imprensa. Ao transferir-se para São Paulo passou a escrever para o jornal O Estado de S. Paulo e o Jornal da Tarde, tendo sido redator e crítico de arte da TV Globo e crítico de arte da revista Isto É. Com uma bibliografia que chega à casa de 200 títulos publicados, escreveu sobre artistas e temas os mais variados e consistentes de nossa cultura. Em 2010, saiu pelas Edições Nephelibata, de Santa Catarina, seu primeiro volume de contos, O portão dourado. A harmonia que alcançamos no diálogo a seguir – realizado em fevereiro de 2011 – é reflexo da sinceridade desprendida ou, como ele próprio chegou a me dizer, reflexo da honradez com que conduzimos esse esforço comum.

 

FM | Direto ao princípio das coisas: o que o teria levado à crítica das artes?

 

JK | O lugar onde eu me sinto perfeitamente à vontade é entre imagens, textos, palavras, diálogos. Desde sempre eu fui assim. Aos 10 anos li e fiz uma imediata análise de parte da obra de Fiodor Dostoievski e Honoré de Balzac. Acho que intuí elementos essenciais, inclusive sobre as diferenças entre os dois e seu processo de criação. Aos 14 anos fiz uma redação escolar de assunto livre e escolhi como tema “o medo”, na qual eu amalgamava tudo: a bíblia, especialmente Eclesiastes, Omar Khayyam, Freud, Marx, Darwin. Era uma bela salada mista, mas o professor, Luis Emilio Léo, era um verdadeiro mestre e me gratificou com um “10” por todo o ano, desde que eu entregasse duas redações por mês. Foi o meu começo e o meu primeiro público, um só indivíduo. E não parei mais. Curioso é que, por tantas vezes, à procura de ser mecenas comigo mesmo, eu tenha me desviado do caminho literário e enveredado na aridez executiva.

Em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, onde nasci, ainda adolescente e já amigo de artistas, seguidamente eu respondia às entrevistas por eles. Deduzia por sua obra o que eles deveriam pensar sobre as coisas do mundo. Eu nem me dava conta que isto já era crítica de arte. E comecei a escrever no maior jornal da terra, o Correio do Povo. Naturalmente eu escrevi sobre temas que estavam além da minha possibilidade, como Franz Kafka, Cervantes e Gil Vicente.

Quando me senti asfixiado pela vida pequena da, na época, província, e perseguido pelo autoritarismo político, mudei para o Rio de Janeiro, repetiu-se o fenômeno. Fui procurado por um artista chamado Aloysio Zaluar. Ele e seu grupo queriam falar, dar opiniões, mas não sabiam como fazer. Eu escrevi os depoimentos em forma de reportagem. E foi publicado em página inteira no jornal A Tribuna da Imprensa. Eles tiveram a gentileza de colocar também o meu nome como coautor. A segunda matéria, à falta de máquina, fui escrever na redação. Um senhor elegante e de olho brilhante chamado Hélio Fernandes, dono do jornal, perguntou quem eu era, identificou o nome com a matéria, declarou o meu “talento” e, para encurtar, me deu uma coluna diária no seu jornal a partir daquele momento. Eu me tornei publicamente crítico de arte.

Parecem acasos e talvez sejam. Mas este acaso estava de acordo com o meu destino. E, agora, retornei os comentários sobre literatura e estou publicando a minha ficção. Estou em casa.

 

FM | Como chegam ao Brasil os Klintowitz e de que maneira a origem familiar influenciaria a tua vida?

 

JK | A família da minha mãe, Knijnik e Beckerman, russos, vieram para o interior do Rio Grande do Sul numa leva chamada de pioneiros, imigração promovida por Rotschild, que previa a segunda guerra mundial, o assassinato de judeus, e deslocava os mais pobres para o cultivo da terra em lugares distantes. O meu pai, lituano, estava ameaçado de morte em sua terra por lutar pelo comunismo. Era imberbe, poeta, articulista, político. Jovem, sem profissão, numa terra estranha, em outra língua, parte de seu destino não foi cumprida. E a sua família, mãe, irmãos, primos, foi assassinada num único dia pelos nazistas. Tenho a sensação de que nunca saiu do estado de choque.

O meu pai me influenciou por seu amor à verdade, a sua fidelidade aos conceitos éticos, o seu respeito mítico à cultura e à produção cultural. E o Balzac e o Dostoievski que li aos 10 anos foram presentes dele…

 

FM | Quais artistas foram aqueles que primeiro te despertaram a atenção para um diálogo mais sistemático com a criação?

 

JK | No campo da literatura, não tenho dúvida de que foi o Eclesiastes, bíblico, atribuído a Salomão; Shakespeare, Franz Kafka, e os poetas e escritores árabes antigos. Nas artes visuais, acho que fui imediatamente capturado e encantado por Piranesi, Leonardo da Vinci, Paul Klee, Pablo Picasso, Constantin Brancusi.

 

FM | Mark Rothko, em sua última conferência, observou a impossibilidade de descrever o que ele então chamou de “a noção trágica da imagem”. A força com que este novo componente – a imagem – passa a definir a arte no século XX, como modificaria a visão da crítica? Como diferenciar as duas estações dessa atividade intelectual?

 

JK | Penso que o mundo se modificou. A derrota do assunto em favor do tema faz parte da rejeição ao anedótico em troca de uma visão do mundo e da intermitência da realidade. O que mudou foi o conceito do que seja o real. Alargou-se e perdeu as nítidas fronteiras. O que era considerado real, não é mais, do ponto de vista da ciência.

Do ponto de vista da vida humana, cresceu a importância da intuição, da sensibilidade, da subjetividade. O homem é maior, depois de Freud. O oculto faz parte da totalidade do homem. A arte busca a arte e não o registro de fatos históricos. Ela é a própria história, é o próprio fato, não é a repórter do mundo, senão a biografia de si mesmo. Certamente a imagem, ainda mais a de Rothko, tem o sentido trágico da biografia profunda (não tópica), da narração da vida e, no caso, da narração da própria morte. E por que ele conseguiria expressar o que é esta imagem? Ele já o havia feito na linguagem certa, a sua.

Não vejo dificuldade em falar da imagem. Eu nunca a descrevo, eu nunca quero substituí-la. O que faço é criar equivalências poéticas em outra linguagem, a da palavra. Pretender substituir uma linguagem por outra é amar o fracasso.

A respeito da crítica de arte devo dizer que não sabemos bem o que seja, tantos são os críticos, tantas são as maneiras de fazer crítica. Há o comunicador, o que escreve em veículos de massa. Há o universitário, o que leva a vida no campus, faz parte de departamentos e participa de associações científicas de crítica. E os há como eu, para quem a ideia de uma crítica de arte científica é uma ideia de pesadelo, um mau sonho, e que se guiam pela sensibilidade, pelo amor da linguagem, pelo prazer supremo de descobrir na obra de arte aquilo que eles são, a sua identidade, a sua biografia profunda. A arte que eu gosto narra a minha biografia.

 

FM | A entrada na modernidade essencialmente se caracteriza por uma visão cosmopolita e a rejeição a toda forma de nacionalismo. O que vimos no Brasil, no entanto, foi justamente uma busca ou afirmação do caráter nacional. Como recorda o mexicano Octavio Paz, a ideia dos estilos nacionais, típica do século XIX, era fruto de países que desconheceram o Renascimento ou o Barroco. Qual o teu entendimento a este respeito? Haveria aí uma singularidade de nossa leitura da modernidade ou simplesmente o que chamamos de modernismo ainda é reflexo de uma cultura subdesenvolvida?

 


JK | Nós amamos, no Brasil, a hipocrisia do nacionalismo. É ele que justifica os nossos atrasos, que nos faz levantar o nariz e dizer que somos insensíveis, egoístas, destruidores, mas que isto é um jeito tipicamente nosso. O nosso nacionalismo esteve ligado ao fascismo, ao totalitarismo militar, ao atraso. No Brasil, lamentavelmente, toda pessoa terrível e prejudicial levanta a bandeira do amor acendrado e separatista da pátria. A pátria apenas para eles. Um horror.

No caso do modernismo, custa a crer que seja entendido como um estilo, quando é uma postura científica e filosófica. Vingou por muitos séculos, teve a sua glória profana e superficial, e nos conduziu ao caos sem ética e a essa quase hecatombe final da humanidade. Está prestes a se encerrar, derrotado pela ciência quântica, pela psicologia, pela alta literatura, pela arte mais sensível. O mundo se torna mais completo e complexo.

No Brasil, houve muitos equívocos. E como é comum no nosso país, os equívocos tornam-se dogmas. Tornam-se verdades religiosas. Há de tudo no nosso modernismo, até mesmo um pouco de modernismo. E nunca podemos esquecer que os resultados, as obras, são de nível bem mediano.

 

FM | Em que momento nasce a crítica de arte no Brasil?

 

JK | Esta pergunta me confunde. Você quer uma descrição histórica, tipo Gonzaga Duque etc. Ou é ideológico?

 

FM | Eu me refiro àquele momento em que se percebe a perspectiva de convívio enriquecedor entre a criação e sua leitura crítica. Um crítico espanhol, crítico de literatura, hoje afastado da atividade por decepção com o mundo literário – em face do que agradece que não se faça aqui menção a seu nome – certa vez me disse que a função gratificante que a crítica teria a cumprir seria a de iluminação de certos pontos obscuros da criação. Mas que esse exercício de iluminação jamais deveria ser entendido como a afirmação de uma nova verdade estética.

 

JK | Há muitas manifestações críticas, diversos formatos, biografias, entrevistas, comentários, e a própria atitude de alguns artistas tem caráter crítico, como a recusa da luz artificial do ateliê, numa cópia do ambiente aconchegante, imaginário e nostálgico de Paris, e a busca da luz da paisagem brasileira na própria paisagem brasileira. É o nascimento da nossa pintura de paisagem.

E eu, para responder a esta pergunta, devo ser absolutamente restritivo e injusto, pois deverei eleger um momento, iluminar este momento e obscurecer tempos anteriores e diversas formas de crítica. Entretanto, do ponto de vista do símbolo, é possível fazer esta eleição. Eu tenho para mim que o momento chave foi a crítica do escritor Monteiro Lobato à exposição de Anita Malfatti, em 20 de dezembro de 1917. O título da matéria, publicada no jornal O Estado de S. Paulo, era “Paranóia ou mistificação? A propósito da exposição Malfatti.”

Anita Malfatti fez uma mostra na cidade de São Paulo, espécie de apresentação após o seu período de aprendizado nos Estados Unidos. A exposição tinha uma atmosfera expressionista e era delicadamente lírica. Monteiro Lobato, escritor de alta relevância e, hoje, um mito literário nacional, investe violentamente contra o que chama de arte moderna, misturando impressionismo, futurismo e cubismo e extravagâncias à moda de Picasso & Cia. [sic] Na sua matéria, Malfatti parece um pretexto. Apresenta, como referência da verdadeira arte, Praxiteles, Rafael, Reynolds, Rodin.

Foi esta crítica que transformou a pintora em uma espécie de mártir do modernismo brasileiro e que serviu de alvo, de inimigo ideal, para a Semana de Arte Moderna, em 1922, uma tardia manifestação. Deve-se notar que a Semana de 1922 só se tornou possível porque o escultor Victor Brecheret, então um quase desconhecido, tinha um conjunto magnífico de esculturas. Anita teve um papel mais limitado na Semana.

Esta crítica foi um divisor de águas e serviu como paradigma pró e contra as inovações artísticas. Foi utilizada politicamente, manipulada, transformada em manifestação emblemática. E muito pouco analisada. Apesar de seu conteúdo conservador, da tolice e da incompreensão do que seja arte, do distanciamento do pensamento expressivo e do novo conhecimento científico e cultural, é importante a hipótese levantada por Monteiro Lobato das questões relativas à paranoia e à mistificação. A aparência libertária, o foco romântico no artista e não na obra, a simplificação das análises culturais, a contaminação da arte pela publicidade e pelo marketing, atualizam estas questões colocadas por Monteiro Lobato.

Monteiro Lobato é um escritor seminal no Brasil. Ele não sucumbiu na mediocridade. O que ele confusamente chamou de arte moderna é hoje a única arte que se pratica, em suas múltiplas e infinitas facetas. E a nossa época, doente de narcisismo, corrupta e egocêntrica, uma época patológica, fez aflorar o deboche como método. Às vezes, por guerras na vida cultural, alguém perde o senso de medida, como foi este momento de Lobato, atira no que vê e acerta em outro alvo. É o caso. De qualquer maneira, não conheço nada no Brasil que tenha causado tanto impacto. É uma crítica injusta, desproporcional, abrangente e excessiva. E facilitou a causa que condenava. E foi o marco inaugural da nossa crítica de arte.

 

FM | Seria possível, cronologicamente, saltar daí para a última crítica, ou seja, há um exemplo de igual teor explosivo atualmente que, independente do sentido de justiça, possa ser destacado como marco na crítica de arte que (ainda) se faz no Brasil?

 

JK | Não haverá mais, imagino eu, este teor explosivo. Nada mais choca em nosso mundo. A antiga ideia, ainda hoje adotada por muitos artistas autodenominados de “vanguarda”, de chocar o burguês, é um arcaísmo tolo. As imagens da destruição, das guerras, dos mortos, ou das vítimas da incúria governamental, com barracos destruídos por deslizamentos dos morros, ou vítimas de enchentes em razão da destruição ambiental, tribos aniquiladas por tribos rivais no poder, as epidemias de novas doenças como a AIDS, convivem com notícias fúteis do ambiente da moda e do comportamento. Morte, destruição, genocídio, convivem no mesmo espaço, dividem o mesmo tempo, nos noticiários. De que maneira uma pintura, ou automutilação física e estética, ou sacos ensanguentados, ou um espaço artístico saturado de materiais de embalagens, podem chocar? Também um texto crítico não será explosivo. Hoje as novas ideias se remetem à inteligência e têm um fatal tempo de amadurecimento.

Em três ocasiões específicas, eu acho que contribuí para o desenvolvimento da crítica, ou para o seu aprofundamento, para a sua diferenciação. Mas fico constrangido de relatar estes fatos históricos, pois pareceria relato em causa própria ou missa de corpo presente.

 


FM | Mesmo assim terás que relatá-los, menos como satisfação pessoal do que pela ilustração que tais ocasiões representam no cenário geral de nossas artes.

 

JK | Na década de 60, numa votação no Museu da Imagem e do Som, no Rio de Janeiro, discutia-se um prêmio de destaque, na época de grande repercussão midiática. Eu votei em aberto, publiquei o meu voto na Tribuna da Imprensa. Votei em Israel Pedrosa, afirmei saber que ele teria um só voto. Ficou registrado que a grande conquista da pintura brasileira, o domínio da refração cromática com a qual Israel Pedrosa pintava, era um marco e que havia este reconhecimento. Eu estava desligado da festa das premiações. Aquele voto solitário e o seu registro jornalístico ficaram ressoando.

Nas décadas de 70 e 80 eu sistematicamente desmistifiquei as falsas teorias da morte da arte, analisei exposições que se pretendiam hegemônicas, defendi artistas relegados à obscuridade por não serem moda e, finalmente, esta série culminou com uma análise fonética da exposição de um artista, Antonio Dias, cujo mérito principal, nesta mostra, seria o seu suporte, um papel artesanal feito no Tibet. A minha análise tinha um caráter irônico e brincava foneticamente com os sons das palavras. Hoje certamente eu não utilizaria a ironia, mas nada tenho contra o maravilhoso Jonathan Swift… Simplesmente eu mudei e utilizo a forma poética para defender as minhas ideias e não mais a ironia. Hoje se multiplicam livros sobre a autodenominada vanguarda e sobre certas teorias oportunistas sobre comunicação e arte. Curiosamente não citam este meu trabalho que durou cerca de 20 anos.

O terceiro momento foi um livro e uma exposição com o título de “A ressacralização da arte”, inaugurada, no SESC Pompéia, no belíssimo prédio reconstruído por Lina Bo Bardi, em 10 de março de 1999. A gestão iluminada da Federação do Comércio, onde o SESC está incluído, era de Abram Szajman. Este livro e esta exposição inauguram, talvez em nível mundial, uma nova era da arte, demonstrando o seu aspecto espiritual, a sua porção de divino, a sua capacidade de perceber o universo, a sua abertura para reconhecer o raio de luz, para ter em mãos e nos apresentar o maravilhoso.

A ideia da dessacralização da arte, repetida à exaustão, não é senão uma pálida repetição do modernismo a partir da Renascença. Qual o sentido de continuar com este conceito, como se ainda tivéssemos que combater a igreja católica? E como ignorar o caráter espiritual que a ciência contemporânea nos deu? E que a arte produz, há mais de um século, e que ninguém quer ver e só deseja repetir um slogan anticatólico e louvar um paradigma científico newtoniano?
Estes três momentos, selecionados com a visão de hoje, deste momento atual, apresentam um novo percurso da crítica de arte no Brasil.

 

FM | Voltemos ao ponto do modernismo. O nível mediano que defines como sendo característico das obras de nosso modernismo – aspecto este que está longe de restringir-se apenas a esta referida etapa – acaso teria algo a ver com a ausência de diálogo do artista brasileiro com as demais tradições estrangeiras? Historicamente criamos aqui uma espécie de ilha de presunção que nos aliena em relação ao resto do mundo. Qual a extensão desse prejuízo e até onde crês que o mesmo possa algum dia ser remediado?

 

JK | Eu falava do nível mediano em condições específicas dos atos políticos geradores da bandeira do modernismo. Em regra, as manifestações culturais são medíocres, na acepção do termo, ou seja, medianas. A humanidade parece ter um percentual para produzir gênios. No Brasil, território continental e população de cerca de 200 milhões, não se produz mais gênios do que se produziu na pequena Florença renascentista.

Nós temos, apesar de tudo, grandes artistas e obras significativas. Cândido Portinari, Maria Martins, Vicente do Rego Monteiro, Alberto da Veiga Guignard, Victor Brecheret, Ismael Nery, Lasar Segall, Antonio Bandeira, Israel Pedrosa, Mario Cravo Jr., Marcello Grassmann, Aldemir Martins, Norberto Nicola, Iberê Camargo, Fayga Ostrower, Maria Bonomi, Yukio Suzuki, Roberto Magalhães, Henrique Leo Fuhro, Megumi Yuasa, Antonio Hélio Cabral, Liana Timm, Shoko Suzuki, Sérgio de Camargo, Manabu Mabe. É uma listagem de várias gerações e injusta, pois feita de improviso, e sei que me magoará observar mais tarde nomes que esqueci no momento.

Os nossos artistas estão muito a par do que se faz no mundo. Às vezes, este saber do mundo é até excessivo, pois se transforma em submissão. Os autistas são os sucessivos governos brasileiros, como se pode observar na miséria inamovível da nossa população, sem acesso real à saúde, habitação e educação. E no discurso demagógico e salvacionista que, tristemente, encontra eco na população despreparada. É o pesadelo vivo da América Latina. A nossa arte está à par, e, em alguns casos, sabe criar as suas trilhas ou estar em terreno nunca antes pisado por pés humanos. Estou pensando em gente como Israel Pedrosa, Guignard e Volpi.

 

FM | O grande enriquecimento da crítica, não somente a crítica de arte, mas da criação artística de uma maneira geral, se deu justamente com a busca de um caráter literário para a mesma, sem restringir-se à linguagem cientificista. Escritores como Octavio Paz e Milan Kundera, por exemplo – pensando aqui nas duas áreas, da poesia e da narrativa –, deram um novo brilho à crítica literária. Como observas o tema? Quais outros nomes na crítica de arte no Brasil situarias ao teu lado?

 

JK | Existe no Brasil, uma tentativa de restringir a crítica de arte a um instrumento técnico ou científico. É o mecanicismo, aliado ao oportunismo burocrático que se instalou nas nossas universidades. Nada pode ser mais contrário ao meu ser do que isto. Aceito que existam muitos tipos de crítica, é claro. Mas o meu espírito pertence à aventura da descoberta sensível e intuitiva. Eu nunca abandonei a ideia de que a crítica de arte é um aspecto da literatura.

Em defesa do meu ponto de vista, recolhi no mundo mais de 50 escritores que fizeram crítica de arte. Alguns de maneira constante, outros mais eventuais. Mas não é a persistência ou o número que caracteriza o crítico de arte… Eu considero o Honoré de Balzac, com o seu conto “A obra prima desconhecida”, um crítico de arte fundamental. Quem pode determinar que a crítica deva ser escrita de maneira cartesiana? Você me pergunta sobre o Brasil, mas citou autores não brasileiros… Eu gosto da qualidade literária de alguns críticos que tivemos e, em alguns casos, talvez a crítica não tenha sido a sua atividade literária principal, mas isto não importa: Walmir Ayala, Geraldo Ferraz, Haroldo de Campos, Clarival do Prado Valladares Antonio Callado, Jayme Mauricio, Antonio Bento, José Geraldo Vieira, Mario Garcia-Guillén, Lélia Coelho Frota.

 

FM | Quando me referi a outros não o fiz em relação a Paz e Kundera e sim em relação à tua presença, que é bem destacada, embora fragmentada por conta da própria condição de textos esparsos situados como estudos introdutórios de um número surpreendente de livros (não me refiro à tua lista de críticos, pois a considero demasiado irregular). Talvez fosse o caso de hoje se recolher em alguns volumes os teus textos críticos. Já pensaste nisto?

 


JK | Tenho pensado nisto, mas ainda não pude me concentrar o suficiente. É importante como registro histórico do país. É importante, para mim, como registro histórico meu. Penso em fazer isto em três ou quatro volumes. Pensei nos últimos anos, e em coisas antigas. Achei que um bom título seria “Ensaios mínimos”. Um outro volume só de ensaios longos. Penso nisto, mas acabo sempre envolvido em projetos atuais. Tenho que considerar que este trabalho de criar antologias de mim mesmo pode ser uma coisa atual…

 

FM | Como observas a relação entre dois mundos originalmente incomunicáveis como o são o ambiente das galerias e a arte de rua? Penso aqui, ilustrativamente, em uma conexão curiosa entre Bansky, Mr. Brainwash (Thierry Guetta) e Vik Muniz, no sentido de uma arte espontânea que nasce nas ruas e, no caso do inglês Bansky, caracteriza-se como interferência de conteúdo e não apenas de método ou manipulação de conceitos sociais. Paralelamente o francês naturalizado estadunidense promove uma espécie de diluição elevada à enésima potência, que acaba por inspirar o brasileiro. John Cage, ainda nos anos 60 do século passado, falava no fim da arte de conteúdo, mas me parece que hoje exageramos na dose, não?

 

JK | Escrevi um artigo certa vez, reproduzido para a minha glória em um livro de Samir Curi Mezerani, sobre a rua. Arte da rua para mim é a própria rua. Não sou um fetichista que idolatra o suporte. Tela, papel, azulejo, cimento, muro velho, parede cega, computador, vídeo, cinema, aço, mármore, não é tão significativo para mim. Acho que este movimento a favor do que chamam de arte da rua é puramente mercadológico. Neste caso, nada mais próximo das galerias de arte do que os grafites. Basta ver onde este pessoal está expondo e vendendo. É apenas uma contradição verbal, discurso para mistificar. Nada contra, de qualquer maneira, pois o mercado não me diz respeito. Existem, naturalmente, bons artistas desenhando em galerias públicas, muros, túneis. E péssimos artistas. Na tela também encontramos bons e maus pintores. Mas, convenhamos, é muito difícil um grande artista obstinado em desenhar numa parede velha que será demolida…

Também não acredito em artista ingênuo, no sentido filosófico. Existem artistas ignorantes de seu ofício. Existem artistas ignorantes em relação aos conhecimentos atualizados de ciência, arte e cultura. Mas todos têm uma formação social e são habitantes da linguagem. O que Cage quis dizer com esta frase que você cita? Fora do contexto não sei o que responder. Aparentemente ele pensa que uma arte formal não tem conteúdo. Será isto? Ele estará dissociando forma e conteúdo? O que houve foi o deslocamento do assunto para outros gêneros de expressão, e a arte ficou com o tema. Se se trata disto, ainda que mal formulado, está certo em princípio, mesmo que eu não goste de dogmas em arte. A cada artista que nasce, existe a possibilidade de reformulação. E isto vale para a técnica, para o suporte, para o próprio conceito de arte. A arte se escreve a cada novo artista.

 

FM | Como sabes a obra de Cage está baseada na fragmentação (ele próprio a considerava resultado de seu “envolvimento com o acaso e a indeterminação”), havendo certa dificuldade em contextualizar suas assertivas ou mosaico de ideias. Intuo que à altura da citação, em 1966, época em que considerava a beleza como um princípio a ser evitado e o jazz como a utilização da música como discurso, entendesse que a arte estava sendo esfacelada pela separação entre forma e conteúdo. Evidente que na plástica a forma pode ser o conteúdo. Porém a sua expressão será sempre mais rica quando, digamos, o todo exigir a presença de cada uma das partes.

 

JK | A arte pode nascer a cada novo artista. Veja que ato falho, o meu. No lugar de “…pode nascer a cada novo artista” eu digitei “a arte Poe nascer a cada…”. É o exemplo vivo do que falo: Edgard Allan Poe inventou a literatura policial, a literatura de horror. E, se formos mais a fundo, em Poe há tantos indícios do novo, coisas que vemos em outros artistas atuais e que estavam indicadas nos seus textos. Eu, às vezes, fico cansado de tantas regras. Aliás, não se cumprem. As técnicas ressurgem, os valores se modificam. E se eu disser, e demonstrar, que o principal na obra de Jackson Pollock é o seu lado mágico? Não está fora dos ditames? E quando o apresentam como um expressionista é escamotear o principal. De repente, estamos teóricos demais. Eu, ao menos, estou no limite com tantas teorias... Talvez você esteja mais preparado do que eu para seguir adiante neste terreno… Como crítico, eu primeiro observo as obras, depois faço a teoria… É o meu gênero de crítico.

 

FM | Como entendes o papel que possa representar o desenho em uma era digital como a que vivemos? Acaso seria saudosista a ideia de que é prejudicial para a arte e, em especial, para o homem, o ostracismo que é dado, sob certo aspecto, ao chamado mundo manual?

 

JK | O desenho é o que designa, o que estabelece o contorno, o que diz dos limites, é o que discrimina. Sem desenho não há vida inteligente na arte. Eu não o considero manual, mas inteiramente mental. Rima, mas são coisas diferentes. Também na utilização de novas técnicas o artista terá que estabelecer uma espécie de desenho. Na percepção do artista o desenho já está prefigurado. Acho o desenho fundamental. Ele é tão arcaico quanto o homem. E não consigo imaginar um mundo artístico sem o desenho.

 

FM | O quanto a arte pode mudar a vida de uma pessoa ou do mundo?

 

JK | A arte muda o mundo. Eu acredito na força do espiritual. Mas leva o tempo que for. A medida da vida humana é curta. Para mim, a arte é o espelho que mostrou e demonstrou a minha identidade. Eu pouco seria sem ela. É o que me alimenta. Uma época eu tive uma doença que parecia grave e que não era diagnosticada corretamente pelo médico, de resto uma escolha errada minha. Insone e com dores terríveis, eu lia Borges e tudo entrava em harmonia: o mundo parecia ter sentido.

 

FM | Recordo então uma observação sagaz do Borges de que “a imprecisão é tolerável ou verossímil na literatura porque sempre tendemos a ela na realidade”. Como lidar com essa fatia valiosa da imprecisão ao ler criticamente uma obra de arte?

 

JK | Na obra de Jorge Luis Borges fica clara a sua concepção do infinito e da nossa incapacidade de não só abarcarmos o infinito, como até mesmo de imaginá-lo. Somos todos tecnicamente ignorantes por só percebermos parte do todo. As concepções religiosas mais profundas insistem no fato de que o nosso mundo é uma forma de ilusão. A ciência, em certa medida, também nos indica que o que vemos não é a realidade, mas uma visão subjetiva e utilitária do mundo.

Eu aceito a imprecisão, não só da arte, mas de tudo em que estamos e somos. Também o que escrevemos sobre o que percebemos está envolvido nas brumas, nas sombras, e, tantas vezes, a sombra nos assombra. O que existe é infinito e a nossa percepção é finita. O que sabemos é parte, não o todo. Nem mesmo sabemos tudo de nós. O mundo é uma ilusão, segundo alguns iniciados, e nós trabalhamos sobre estas ilusões e, no meu caso, comento organizações de linguagem sobre o mundo. Pretender um excesso de originalidade é tolo. Não se manifestar, não contar a nossa intuição é mais tolo ainda.

Também o que faço é impreciso. Sombra de sombras. É o mundo dos homens. Eu não escondo esta área de sombra e de imprecisão, antes até, eu a aponto, eu a indicio e deixo claro, para o leitor, e para mim mesmo, que estou tratando de contar a minha percepção. Por acaso, ou nem tanto é um acaso, o que eu escrevo encontra muitos leitores. Partilhamos das mesmas dúvidas, comungamos no mesmo desejo de sabermos o que somos. A arte é naturalmente imprecisa, de limites não claros e definidos. Ainda bem, eu não gostaria de trabalhar com um modelo, um padrão científico à maneira de Newton. Eu prefiro este reino de claro-escuro da sensibilidade.

 

FM | Esquecemos algo?

 

JK | Esquecemos de reafirmar que o princípio que rege a arte, em qualquer gênero, é o do prazer. Não só na concepção, mas como entendimento do mundo. Eu estou neste universo das imagens e das palavras porque sinto prazer. A alegria da descoberta, do encontro, da identificação com determinadas formas. Este universo da arte – não o circuito da arte – é de encantamento.




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[A partir de janeiro de 2022]

 

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Agulha Revista de Cultura

UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO

Número 186 | novembro de 2021

Curadoria: Floriano Martins (Brasil, 1957)

Artista convidado: Marcos Tedeschi (Brasil, 1982)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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