terça-feira, 23 de novembro de 2021

RODRIGO PETRONIO | Pantagruelismo à brasileira

 


François Rabelais (1483?-1553) é um monumento da literatura mundial, comparado a Dante, Shakespeare e Cervantes. Entretanto, é chocante a defasagem de traduções de sua obra em comparação a estes outros autores canônicos. Haja vista a inexistência de uma tradução completa de sua obra (que não é extensa) para a língua portuguesa. Isso começa a ser corrigido no Brasil.

Depois de anos de trabalho meticuloso, o tradutor, poeta e pesquisador Guilherme Gontijo Flores traz a público a primeira versão integral das Obras Completas de François Rabelais. A Editora 34 a dividiu em três volumes. E todo trabalho ocorreu no âmbito do Programa de Apoio à Publicação Carlos Drummond de Andrade (PAP-CDA) da Embaixada da França no Brasil e com o apoio do Ministério da Europa e das Relações Exteriores. Além da organização, tradução, apresentação e notas de Flores, a edição conta com mais de 120 ilustrações de Gustave Doré (1832-1883).

Professor de língua e literatura latinas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Flores é conhecido do leitor brasileiro como poeta e como premiado tradutor do latim, do grego e de línguas modernas, como o francês e o inglês. Os quatro volumes do seminal A anatomia da melancolia, de Robert Burton (UFPR, 2011-2013), renderam-lhe os prêmios APCA e Jabuti. As Elegias do poeta latino Sexto Propércio (Autêntica, 2014) obteve o Prêmio Paulo Rónai da Fundação Biblioteca Nacional. E pelos Fragmentos completos de Safo (Editora 34, 2017) ganhou pela segunda vez o APCA. Confirmando o que se esperava, a tradução de Rabelais é um trabalho simplesmente excepcional.

A edição começa com os clássicos Gargântua (1534) e Pantagruel (1532). Consistem em dois livros dedicados aos personagens homônimos, mais três livros de aventuras apenas de Pantagruel. As edições anteriores dispõem primeiro Gargântua e depois Pantagruel. Flores inverteu a sequência. Optou por seguir a ordem das publicações e não a gênese das personagens.

O projeto se dispõe assim: Volume 1: Pantagruel (Livro 1) e Gargântua (Livro 2). Volume 2: Pantagruel (Livros 3, 4 e 5), além de capítulos manuscritos que não aparecem nas edições do quinto livro (cuja autoria ainda hoje é duvidosa). Volume 3: obra sortida e diversa, a maioria nunca traduzida em língua portuguesa. Flores seguiu o exemplo de M. A. Screech e Gabriel Hormaechea em suas respectivas traduções para o inglês e o espanhol. Em vez de notas de rodapé extensas, criou introduções explicativas pequenas e eruditas para cada capítulo.

Nascido em Chinon, vila medieval francesas, Rabelais foi (quase) tudo: monge franciscano, depois beneditino; quase expulso da Igreja por ter tido três filhos; secretário na corte de Francisco I; tradutor de gregos e latinos; médico pela Universidade de Montpellier e professor de medicina no Hospital de Lyon. Como era comum no Renascimento, sua curiosidade era infinita. Versado em línguas antigas e modernas, foi um legítimo polímata, alguém que transita em diversos saberes e ciências, da filosofia, magia, geomancia e astrologia à anatomia, filologia, numismática, cabala e hermetismo.

Pantagruel é um gigante, filho de Gargântua. A mãe morrera sufocada no parto pelo peso do bebê. Ambos descendem de uma longa dinastia de gigantes que remonta a mitos medievais e cuja principal fonte são As grandes e inestimáveis crônicas do grande e enorme gigante Gargântua. Como Shakespeare, Rabelais imprime uma fisionomia singular a narrativas anônimas. A primeira edição de Pantagruel teria surgido entre 1531 e 1532, resta apenas um exemplar sem data. É assinada pelo mestre Alcofribas Nasier (anagrama de François Rabelais), destilador de quinta-essência (referência à alquimia).


Os cinco livros narram as bufonarias dos protagonistas nos limites da gargalhada. Some-se a isso a criação de neologismos e jogos semânticos, mesclas de latim, grego, árabe, hebraico e linguagem de feira, gírias, jargões e baixo calão. Um de seus equivalentes seria o poeta italiano Teofilo Folengo (1491-1544) e seu plurilíngue, macarrônico e divertido poema narrativo Baldo (1517). Não por acaso, ambos foram fontes de James Joyce para a escrita de Ulysses (1922).

A obra de Rabelais é de dificílimo enquadramento. Uma primeira abordagem se refere ao chamado “gênero misto”. Este se consolida com a tragicomédia La Celestina de Fernando de Rojas (c. 1470-1541) e é bastante teorizado nos séculos XVI e XVII. Rabelais se encaixa tanto na comédia quanto na sátira, respectivamente definidas pelos risos “sem dor” e “com dor”, segundo Aristóteles. A primeira implica festividade coletiva. A segunda pressupõe admoestação e vitupério. Ou seja: corrosão do caráter alheio. Pode-se entender Pantagruel como mais cômico e Gargântua como mais satírico. Outros aspectos recorrentes na fortuna crítica rabelaisiana é a utilização de recursos antigos e medievais. Estes podem ser divididos em cinco grupos: a carnavalização, a paródia, o fantástico, o grotesco e o cinismo.

Dentre as fontes populares medievais, o célebre estudo do teórico russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) destaca a carnavalização: inversão de papeis sociais e subversão das hierarquias alto-baixo. Para Bakhtin, o “baixo materialismo” é uma das definições essenciais desse tipo de moral invertida. Já a paródia é um “canto paralelo” (para odès). Trata-se de um modo pelo quais um autor imita e emula uma obra alheia, deslocando-a para um registro ou um gênero “inferiores”.

Quanto ao fantástico (representação de seres gerados pela fantasia), foi identificado pelo historiador de arte lituano Jurgis Baltrušaitis (1903-1988) como uma das bases de toda Idade Média, em contraposição ao icástico (representação de seres empíricos). Ou seja: fantásticas são todas as imagens que imitam modelos mentais mais do que objetos extensos.

Um longo debate entre proporção e desproporção vem desde os tratados gregos e latinos. Qual seria a melhor régua para medir a arte? Os limites variariam conforme as prescrições de cada gênero. Os adeptos do grotesco apostam em uma aplicação deliberada de desproporcionalidades. O intuito seria ampliar os limites de um determinado gênero. Corroer a beleza. Deformar a forma.

Por fim, o cinismo (kyen, cão) é um movimento da filosofia grega. Tornou-se icônico na figura do filósofo-cão Diógenes de Sínope (404/412? a.C.-c. 323 a.C.). Adeptos fervorosos da natureza, os cínicos defendiam os instintos contra a hipocrisia da civilização. Como protoanarquistas e performers, a ação cínica vai da masturbação em praça pública ao nudismo, do culto à pobreza à crítica a todos os deuses, costumes, valores e virtudes de Atenas, incluindo a filosofia.

Seguindo estudos de Marie-Odile Goulet-Cazé, Bracht Branham, Peter Sloterdijk e Niehus-Pröbsting, o cinismo migrou da filosofia para a literatura e as artes. E teve uma explosão no Renascimento. Um de seus expoentes é Hieronymus Bosch (1450-1516), o Rabelais da pintura. O cinismo também fora assimilado por Lutero e por movimentos cristãos de combate ao catolicismo. Além disso, do boca do inferno Gregorio de Matos à obscena e genial senhora Hilda Hilst, o cinismo é uma das matrizes de toda literatura moderna.


Uma inspiração de Rabelais é o poeta François Villon (1431-1463), um dos primeiros a incorporar a fala das ruas e o argot, linguagem popular e cifrada de artesãos medievais. Outras duas são obras que relativizam a loucura: a Nau dos Loucos de Sebastian Brant (1457-1521) e o Elogio da Loucura (1509) de Erasmo de Rotterdam, referência da erudição e do humanismo que, não por acaso, foi seu amigo.

A obra rabelaisiana une excesso, glutonice e nonsense em doses excepcionais contra inimigos. Um dos seus alvos favoritos é a pedanteria e o pernosticismo dos acadêmicos (nos dias de hoje não faltaria material para sua diversão). São os “escumadores de latim”, intelectuais pseudoprofundos que latinizam tudo. São chamados de sorbonistas: sofistas da Sorbonne.

Um traço formal importante diz respeito ao narrador. Este se diz “discípulo do mestre Pantagruel”. E o picareta Panurgo, parceiro constante de Pantagruel, refere-se a este como seu “mestre e senhor”. Isso gera uma interessante equivalência entre narrador e Panurgo, entre escritor e trapaceiro. Há também reiterados diálogos com o leitor. E, ao apontar fontes externas à obra, o narrador sugere narradores implícitos, como mais tarde Cervantes fará no Quixote.

Panurgo é uma personagem-tipo impressionante. Vindo da Turquia, interpela Pantagruel e seus amigos e lhes fala em alemão, italiano, escocês, basco, holandês, espanhol, dinamarquês, hebraico, grego, latim e outras línguas fictícias. Segundo o narrador, “conhecia sessenta e três jeitos de encontrar”... dinheiro. Malfeitor, trapaceiro, beberrão, treteiro, patife e com vários processos em Paris. Por fim, compara-se a Odisseu.


Os juristas não escapam à pena ferina de Rabelais (nesse quesito ele também poderia se fartar hoje em dia com nossos heroizinhos nacionais). As contendas judiciais são ridicularizadas nas figuras de Beijacu e Chuparrabo. As narrativas de conquista do Novo Mundo são parodiadas no saboroso capítulo em que Pantagruel engole um exército, incluindo o narrador. Este descreve um país inteiro dentro de suas tripas.

Diante disso tudo, qual seria a religião de Rabelais? O historiador Lucien Febvre dedicou um livro seminal a este problema. Entre o ateísmo desbragado e uma divinização do corpo, entre o combate anticlerical interno à Igreja e o panteísmo renascentista, entre a secularização e o revolução protestante em relação à fé, o enigma continua em aberto.

A plasticidade e a riqueza lexicais de Flores são espetaculares. Xingamentos: cu de frango, xepas, banguelas, sararás, nós cegos, bundas moles, lambe-sacos, pançudos, matracas, chumbregas, xibungos, lerdezas, jacus, metidinhos, dingos, vaqueiros de bosta, pastores de merda, limpacu, bexiguentos. Brincadeiras: pinocle, bisca, passa-dez, mexe-mexe, tapão, zanga, fedor, resta-um, uíste, mancala, ganizes, civete, pique-pega, pitorra, muçunga. E um dos pontos altos são os brasileirismos: pica, xota, olho do cu, mortinho da silva, bicuda, mirréis, jeca, pé-d’água, manguaceiros, prequela, tomatodas, cacarecos, monta-garupa, babaca, zé-ruela.

Falando em Brasil, o leitor deve imaginar o quanto a podridão atual do país seria produtiva. Se Rabelais estivesse vivo, não lhe faltariam parasitas, rachadeiros, negacionistas, juizecos, fascistas, genocidas, ladrões, picaretas, fisiologistas, quadrilheiros, terraplanistas, milicianos e toda uma escumalha para banquetear Pantagruel, em um vilipêndio sem fim. Por outro lado, enquanto o puritanismo emporcalha tudo, à direita e à esquerda, o cinismo sujo e a linguagem exuberante de Rabelais talvez sejam um dos poucos recantos de resistência para a vida. Uma esfera onde a dor se converte em alegria e a fraqueza vira força – pelo riso.

 

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RODRIGO PETRONIO é escritor e filósofo. Professor titular da FAAP e pesquisador associado no Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD/PUC-SP), onde desenvolveu Pós-Doutorado.



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[A partir de janeiro de 2022]
 

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