Depois de anos de trabalho meticuloso,
o tradutor, poeta e pesquisador Guilherme Gontijo Flores traz a público a primeira
versão integral das Obras Completas de François
Rabelais. A Editora 34 a dividiu em três volumes. E todo trabalho ocorreu no
âmbito do Programa de Apoio à Publicação Carlos Drummond de Andrade (PAP-CDA) da
Embaixada da França no Brasil e com o apoio do Ministério da Europa e das Relações
Exteriores. Além da organização, tradução, apresentação e notas de Flores, a edição
conta com mais de 120 ilustrações de Gustave Doré (1832-1883).
Professor de língua e literatura
latinas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Flores é conhecido do leitor brasileiro
como poeta e como premiado tradutor do latim, do grego e de línguas modernas, como
o francês e o inglês. Os quatro volumes do seminal A anatomia da melancolia,
de Robert Burton (UFPR, 2011-2013), renderam-lhe os prêmios APCA e Jabuti. As Elegias
do poeta latino Sexto Propércio
(Autêntica, 2014) obteve o Prêmio Paulo Rónai da Fundação Biblioteca Nacional. E
pelos Fragmentos completos de Safo (Editora 34, 2017) ganhou pela segunda
vez o APCA. Confirmando o que se esperava, a tradução de Rabelais é um trabalho
simplesmente excepcional.
A edição começa
com os clássicos Gargântua (1534) e Pantagruel (1532). Consistem em dois livros
dedicados aos personagens homônimos, mais três livros de aventuras apenas de Pantagruel.
As edições anteriores dispõem primeiro Gargântua e depois Pantagruel. Flores inverteu
a sequência. Optou por seguir a ordem das publicações e não a gênese das personagens.
O projeto se dispõe
assim: Volume 1: Pantagruel (Livro 1)
e Gargântua (Livro 2). Volume 2: Pantagruel (Livros 3, 4 e 5), além de capítulos
manuscritos que não aparecem nas edições do quinto livro (cuja autoria ainda hoje
é duvidosa). Volume 3: obra sortida e diversa, a maioria nunca traduzida em língua
portuguesa. Flores seguiu o exemplo de M. A. Screech e Gabriel Hormaechea em suas
respectivas traduções para o inglês e o espanhol. Em vez de notas de rodapé extensas,
criou introduções explicativas pequenas e eruditas para cada capítulo.
Nascido em Chinon, vila medieval
francesas, Rabelais foi (quase) tudo: monge franciscano, depois beneditino; quase
expulso da Igreja por ter tido três filhos; secretário na corte de Francisco I;
tradutor de gregos e latinos; médico pela Universidade de Montpellier e professor
de medicina no Hospital de Lyon. Como era comum
no Renascimento, sua curiosidade era infinita. Versado em línguas antigas e modernas,
foi um legítimo polímata, alguém que transita em diversos saberes e ciências, da
filosofia, magia, geomancia e astrologia à anatomia,
filologia, numismática, cabala e hermetismo.
Pantagruel é um gigante, filho
de Gargântua. A mãe morrera sufocada no parto pelo peso
do bebê. Ambos descendem de uma longa dinastia de gigantes que remonta a
mitos medievais e cuja principal fonte são As grandes e inestimáveis crônicas do grande e enorme gigante
Gargântua. Como Shakespeare, Rabelais imprime uma fisionomia singular a narrativas anônimas.
A primeira edição de Pantagruel teria
surgido entre 1531 e 1532, resta apenas um exemplar sem data. É assinada pelo mestre
Alcofribas Nasier (anagrama de François Rabelais), destilador de quinta-essência
(referência à alquimia).
A obra de Rabelais
é de dificílimo enquadramento. Uma primeira abordagem se refere ao chamado “gênero
misto”. Este se consolida com a tragicomédia La Celestina de Fernando de Rojas (c. 1470-1541) e é bastante teorizado nos séculos XVI e XVII. Rabelais
se encaixa tanto na comédia quanto na sátira, respectivamente definidas pelos risos
“sem dor” e “com dor”, segundo Aristóteles. A primeira implica festividade coletiva.
A segunda pressupõe admoestação e vitupério. Ou seja: corrosão do caráter alheio.
Pode-se entender Pantagruel como mais
cômico e Gargântua como mais satírico.
Outros aspectos recorrentes na fortuna crítica rabelaisiana
é a utilização de recursos antigos e medievais. Estes podem ser divididos em cinco
grupos: a carnavalização, a paródia, o fantástico, o grotesco e o cinismo.
Dentre as fontes populares medievais, o célebre estudo do teórico russo Mikhail Bakhtin
(1895-1975) destaca a carnavalização: inversão de papeis sociais e subversão das hierarquias alto-baixo.
Para Bakhtin, o “baixo materialismo” é uma das definições essenciais desse tipo
de moral invertida. Já a paródia é um “canto paralelo” (para odès). Trata-se de um modo pelo quais um autor imita e emula uma
obra alheia, deslocando-a para um registro ou um gênero “inferiores”.
Quanto ao fantástico (representação
de seres gerados pela fantasia), foi identificado pelo historiador de arte lituano
Jurgis Baltrušaitis (1903-1988) como
uma das bases de toda Idade Média, em contraposição ao icástico (representação de
seres empíricos). Ou seja: fantásticas são todas as imagens que imitam modelos mentais
mais do que objetos extensos.
Um longo debate entre proporção
e desproporção vem desde os tratados gregos e latinos. Qual seria a melhor régua
para medir a arte? Os limites variariam conforme as prescrições de cada gênero.
Os adeptos do grotesco apostam em uma aplicação deliberada de desproporcionalidades.
O intuito seria ampliar os limites de um determinado gênero. Corroer a beleza. Deformar
a forma.
Por fim, o cinismo (kyen, cão) é um movimento da filosofia grega.
Tornou-se icônico na figura do filósofo-cão Diógenes de Sínope (404/412? a.C.-c.
323 a.C.). Adeptos fervorosos da natureza, os cínicos defendiam os instintos contra
a hipocrisia da civilização. Como protoanarquistas e performers, a ação cínica vai da masturbação em praça pública ao nudismo,
do culto à pobreza à crítica a todos os deuses, costumes, valores e virtudes de
Atenas, incluindo a filosofia.
Seguindo estudos de Marie-Odile Goulet-Cazé, Bracht Branham, Peter Sloterdijk e Niehus-Pröbsting, o cinismo migrou da filosofia
para a literatura e as artes. E teve uma explosão no Renascimento. Um de seus expoentes
é Hieronymus Bosch (1450-1516), o
Rabelais da pintura. O cinismo também fora assimilado por Lutero e por movimentos
cristãos de combate ao catolicismo. Além disso, do boca do inferno Gregorio de Matos
à obscena e genial senhora Hilda Hilst, o cinismo é uma das matrizes de toda literatura
moderna.
A obra rabelaisiana une excesso, glutonice e nonsense em doses excepcionais contra inimigos. Um dos seus alvos favoritos é a
pedanteria e o pernosticismo dos acadêmicos (nos dias de hoje não faltaria material
para sua diversão). São os “escumadores de latim”, intelectuais pseudoprofundos
que latinizam tudo. São chamados de sorbonistas: sofistas da Sorbonne.
Um traço formal
importante diz respeito ao narrador. Este se diz “discípulo do mestre Pantagruel”.
E o picareta Panurgo, parceiro constante de Pantagruel, refere-se a este como seu
“mestre e senhor”. Isso gera uma interessante equivalência entre narrador e Panurgo,
entre escritor e trapaceiro. Há também reiterados diálogos com o leitor. E, ao apontar
fontes externas à obra, o narrador sugere narradores implícitos, como mais tarde
Cervantes fará no Quixote.
Panurgo é uma
personagem-tipo impressionante. Vindo da Turquia, interpela Pantagruel e seus amigos
e lhes fala em alemão, italiano, escocês, basco, holandês, espanhol, dinamarquês,
hebraico, grego, latim e outras línguas fictícias. Segundo o narrador, “conhecia sessenta e três jeitos
de encontrar”... dinheiro. Malfeitor, trapaceiro, beberrão, treteiro, patife e com
vários processos em Paris. Por fim, compara-se a Odisseu.
Diante disso tudo, qual seria
a religião de Rabelais? O historiador Lucien Febvre dedicou um livro seminal a este
problema. Entre o ateísmo desbragado e uma divinização do corpo, entre o combate
anticlerical interno à Igreja e o panteísmo renascentista, entre a secularização
e o revolução protestante em relação à fé, o enigma continua em aberto.
A plasticidade e a riqueza lexicais
de Flores são espetaculares. Xingamentos: cu de frango,
xepas, banguelas, sararás, nós cegos, bundas moles, lambe-sacos, pançudos, matracas,
chumbregas, xibungos, lerdezas, jacus, metidinhos, dingos, vaqueiros de bosta, pastores
de merda, limpacu, bexiguentos. Brincadeiras: pinocle,
bisca, passa-dez, mexe-mexe, tapão, zanga, fedor, resta-um, uíste, mancala, ganizes,
civete, pique-pega, pitorra, muçunga. E um dos pontos altos são os brasileirismos: pica, xota, olho do cu, mortinho da silva, bicuda, mirréis,
jeca, pé-d’água, manguaceiros, prequela, tomatodas, cacarecos, monta-garupa, babaca,
zé-ruela.
Falando em Brasil,
o leitor deve imaginar o quanto a podridão atual do país seria produtiva. Se Rabelais
estivesse vivo, não lhe faltariam parasitas, rachadeiros, negacionistas, juizecos,
fascistas, genocidas, ladrões, picaretas, fisiologistas, quadrilheiros, terraplanistas,
milicianos e toda uma escumalha para banquetear Pantagruel, em um vilipêndio sem
fim. Por outro lado, enquanto o puritanismo emporcalha tudo, à direita e à esquerda,
o cinismo sujo e a linguagem exuberante de Rabelais talvez sejam um dos poucos recantos
de resistência para a vida. Uma esfera onde a dor se converte em alegria e a fraqueza
vira força – pelo riso.
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RODRIGO PETRONIO é escritor e filósofo. Professor titular da FAAP e pesquisador associado no Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD/PUC-SP), onde desenvolveu Pós-Doutorado.
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UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO
Número 188 | novembro de 2021
Artista convidada: Ana Sabiá (Brasil, 1978)
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