Transbordamento passional
O núcleo duro do movimento
surrealista não era formado por amantes do teatro apesar do “papel significativo”
da literatura teatral “na pré-história do surrealismo”. [1] Mas o movimento, constituído sobretudo por poetas, pintores e cineastas
e oficializado por André Breton em 1924 com o Primeiro Manifesto Surrealista
emprestou seu nome do subtítulo de uma peça teatral de Guillaume Apollinaire:
As mamas de Tirésias, drama surrealista em dois atos e um prólogo.
Os
hommes de théâtre do grupo – Roger Vitrac, autor de Victor, ou as crianças
no poder, e Antonin Artaud, futuro idealizador do Teatro da Crueldade – foram
expulsos em 1926 por incompatibilidade com os objetivos do surrealismo. Neste mesmo ano em que Breton, Aragon, Eluard
aderiram ao Partido Comunista, Artaud, Vitrac e Aron publicaram o primeiro Manifesto
do Teatro Alfred Jarry, companhia fundada no ano seguinte e “parte da linhagem
do primeiro surrealismo”. [2]
Artaud,
que chegou a conduzir o bureau de pesquisas surrealistas além de atuar como autor e editor da revista La Révolution Surréaliste,
respondeu à sua exclusão em Para a grande noite ou o blefe surrealista. No
texto, acusa Breton e seus companheiros de sectarismo e recusa a guinada
marxista do movimento por acreditar que “a verdadeira revolução é um assunto do
indivíduo” [3] que depende de “uma metamorfose
das condições interiores da alma”. [4]
O confronto
persiste nos anos seguintes. Em 1928, os surrealistas intervém numa apresentação de uma peça de Strindberg pelo Teatro Alfred Jarry,
acusando Artaud de espírito comercial e cumplicidade com o capitalismo. Em A
seguir: pequena contribuição para o dossiê de alguns intelectuais de tendência
revolucionária, publicado em 1929, os homens de teatro são acusados de serem arrivistas e instruídos a “arrastar-se de estrume em estrume, o cadáver que se autodenomina Artaud e a lesma que se chama Vitrac”. [5]
No
Segundo Manifesto Surrealista, que reconfirma em 1930 os laços indissociáveis
entre surrealismo e marxismo, Breton retoma de modo papal o debate sobre a encenação
de O Sonho. Questiona “o valor moral do evento” [6] tendo em vista que Artaud realizou o espetáculo “depois de saber
que que a Embaixada sueca pagaria” sua encenação. Em outro lugar, o manifesto expressa a esperança na
contribuição futura das conquista surrealistas às artes em geral, incluindo o teatro,
mas Breton ridiculariza os poetas e pensadores teatrais excomungados (Soupault,
Vitrac e Artaud) sob a alegação que “somente muito poucos entre os pretendentes
atendem à elevada exigência do surrealismo”. [7]
Com
exceção feita a Vitrac,
há certo consenso crítico acerca da inexistência de autores
teatrais “especificamente surrealistas” e da qualificação das apresentações dos
textos de Breton, Desnos e Pérez como “encenação de uma poesia mais do que de teatro”.
[8] A ausência de uma teatralidade específica do surrealismo caracteriza também os textos
de Picasso – O desejo pego pelo rabo (1941) e As Quatro Meninas (1947) – concebidos sob o domínio
da linguagem que é considerada por Breton como meio principal de expressão e conversão
humanas.
Mesmo
Artaud, que concebeu com o Teatro da Crueldade uma espécie de teatralidade pós-surrealista
avessa ao primado do verbo, confessa em dezembro de 1946, depois de sua saída definitiva
do manicômio de Rodez e pouco antes de sua lendária aparição em 13 de janeiro de
1947 no Thêatre Le Vieux-Colombier com Histoire Vécue d’Artaud-Momo “uma
coisa que vai talvez surpreender muita gente. Eu sou o inimigo do teatro, sempre
fui. Tanto quanto amo o teatro, eu sou, por este motivo, seu inimigo.” [9]
Segundo
Artaud, o teatro como “um transbordamento passional / uma terrível
transferência / de força / do corpo / para o corpo” encontra-se sob o ponto de vista de sua transmissão artística numa problemática
situação de auto-contradição porque “esta transferência não pode ser repetida duas vezes.” [10]
Essas
esparsas reminiscências relativas
ao período inaugural do movimento surrealista marcado pela exclusão de seus criadores
teatrais apontam para a natureza problemática de um hipotético discurso sobre um
teatro surrealista respectivamente o surrealismo no teatro.
Indícios de surrealismo
Um século depois da emergência
do furor surrealista, a abordagem de suas influências no taanteatro ou teatro
coreográfico de tensões e no repertório da Taanteatro
Companhia já não sofre das paixões estéticas e ideológicas absolutistas que caracterizavam o que Arthur Danto denominou a era dos
manifestos.
A companhia
fundada por Maura Baiocchi em 1991 em São Paulo desenvolveu seus conceitos e sua
metodologia performativa [11] próprios
e nunca reivindicou o estatuo de um teatro-coreográfico surrealista. Ainda assim,
há indícios que justificam a suposição de uma ressonância da poética do surrealismo
em seus métodos e em suas obras.
Muito
mais marcante, porém, para a produção e evolução da Taanteatro, é o que o poeta e tradutor Claudio Willer chamou de um “catálogo colossal” [13] de encenações e projetos em torno da obra de Antonin Artaud. Em
1996, a companhia organizou a mostra internacional Artaud 100 Anos. A programação
transdisciplinar dessa homenagem ao centenário do poeta francês, realizada no MASP,
na Cinemateca, na Rádio USP e no Teatro Sérgio Cardoso, incluía encenações de teatro,
dança e radiopeça, uma mostra de cinema, uma exposição fotográfica, leituras e lançamentos
de livros. Inaugurada por um discurso de abertura de Willer, a mostra comissionou
a encenação de três espetáculos inéditos: Para acabar com o juízo na encenação
de José Celso Martinez Correa e o Teatro Oficina, A Conquista (do México)
adaptada e dirigida pelo coreógrafo japonês Min Tanaka com elenco brasileiro e Artaud
– onde deus corre com olhos de uma mulher cega concebido e dirigido Maura Baiocchi.
O espetáculo
de Baiocchi, apresentado entre 1996 e 2004, não fazia nenhuma referências direta
aos escritos de Artaud, mas visava invocar as energias artaudianas, seu aspecto
bufão e xamã. [14] A origem onírica do
espetáculo estava refletida em sua dramaturgia, seus personagens, na cenografia
e no vestuário. À reelaboração das imagens dos sonhos da autora no contexto da encenação
juntavam-se elementos da iconografia surrealista e figuras recorrentes do imaginário
artaudiano. O personagem momo-xamã, protagonista de
Artaud – onde deus corre …, proliferou ainda na série de solo performances
Matéria 1ª a 3ª Forma apresentadas
por Baiocchi entre 1998 a 1999, no
Brasil e no Japão.
O cerne
temático da encenação subsequente, Arará – histórias que os ossos cantam,
[15] vinha também de um sonho
de Baiocchi. Nessa sátira ácida sobre os vínculos entre poder e religião, a performer
encarnava o líder da liga transgênica dos adoradores da mentira principal
que psicografava mensagens de Artaud durante sua despedida definitiva da
vida.
A partir
de 2014, a Taanteatro Companhia retomou seu trabalho sobre Artaud numa sequencia
contundente de obras, entre os quais 50 desenhos para assassinar a magia (2014),
a trilogia cARTAUDgrafia (2015) e Artaud, le Mômo (2016). A trilogia
com duração total de cinco horas e meia abordava a vida de Artaud em combinação
com elementos de grande variedade de seus escritos como Uma Correspondência, O Teatro e seu Duplo, Viagem ao país dos Tarahumaras, Novas Revelações do Ser; Artaud, o Momo; Verdadeira História de Artaud-Momo; Supostos e Supliciações e Para
dar um fim no juízo de deus.
Em
2016, por ocasião dos cento e vinte anos desde o nascimento do poeta, a companhia
produziu o evento multidisciplinar Ocupação Artaud no Teatro Aliança Francesa em São Paulo. O solo Artaud,
le Momo, apresentado na capela de Rodez, no Théâtre de Nesle em Paris e no Theaterhaus
Mitte em Berlin, rendeu durante anos subsequentes excelentes críticas à performance
de Baiocchi na Europa. Em 2020, motivada pela pandemia da Covid-19, a companhia
idealizou e conduziu o projeto cinematográfico internacional Antonin Artaud’s
The Theater and the Plague. [16]
Obviamente,
a mera encenação e criação de espetáculos com base em obras de um precursor e de
um dissidente do surrealismo ainda não define, por si só, uma poética e prática
performativas de cunho surrealista. No entanto, encontramos na recepção das encenações
da Taanteatro Companhia a percepção recorrente de seu “clima surreal”. [17]
Segundo
alguns críticos e comentadores, a linguagem cênica do Taanteatro “causa um enfeitiçamento no observador e move mundos internos que estavam
nas distâncias impensáveis
que nos habitam”, uma linguagem que “nos faz sonhar acordados” [18] e que “constrói uma atmosfera onírica, mas atualizada para um tempo em que
se desaprendeu a sonhar.” [19]
A atmosfera
extra-cotidiana das obras da companhia é atribuível à uma confluência de fatores:
de um lado, a escolha e origem de seus temas em combinação com um tratamento dramatúrgico
e um modo de encenação que priorizam a criação de atmosferas tensivas no lugar da
narração de histórias e de conflitos dramáticos. De outro lado, um processo de preparação
da/os performers investido no corpo e suas faculdades energéticas e apenas eventualmente
na interpretação de personagens. E, por fim, a busca por uma linguagem inédita decorrente
não de um estilo teatro-coreográfico preexistente, mas das exigências do tema abordado
e do momento sociohistórico da encenação.
A já citada origem onírica da dramaturgia
de certas obras de Baiocchi precede a fundação da companhia e está presente em espetáculos
anteriores como Himalaia e seu personagem Feifei, emergido em experiências
estáticas. Numa das obras inaugurais da Taanteatro Companhia, O livro dos mortos
de Alice (1992), espetáculo de seis horas de duração e apresentado em quatro
capítulos, a personagem icônica de Lewis Carrol é transferida para o subterrâneo
do inconsciente, nomeadamente o limbo do bardo e os labirintos dos livros dos
mortos tibetano e egípcio.
Entre
os espetáculos ambientados na vizinhança do surrealismo, [20]
cabe também mencionar Frida Kahlo: uma mulher de pedra dá luz à noite. Concebido,
encenado e performado por Baiocchi, entre 1991 e 2007, em formato solo, duo e trio,
este “tributo à extraordinária
Frida Kahlo de Rivera” não interpretava a biografia da pintora
mas se apresentava como poema corpóreo e como “uma aventura e um mergulho na força
e fragilidade do universo feminino regido pelas palavras-energias chaves: imaginação,
inconformismo, independência, perseverança, foco e intensidade.”
[21] Uma das particularidades de Frida
Kahlo: uma mulher de pedra dá luz à noite era seu caráter metamórfico e magnetizante
derivado da transição do corpo de Baiocchi entre os reinos animal, vegetal e mineral
e de sua fusão com a paisagem cênica e seus objetos, qualidades também presentes
nas paisagens oníricas da pintura surrealista.
Conforme
aludido, somam-se à essas origens
e escolhas temáticas, localizadas em mundos do devaneio e sonho, os objetivos e
métodos da preparação performativa . A dinâmica taanteatro visa a/o performer autônoma/o
em estado de esquizopresença [22]
e empenhada/o na criação de uma linguagem singular, produto do eterno originar
[23] “que significa movimentar-se como
uma força da natureza ou como um jogo de forças naturais que desconhece a autoridade
de juízos e verdade e de beleza”. [24]
O veículo
principal dessa tonificação da anatomia afetiva da/o performer é o MAE ou mandala
de energia corporal. [25] Dois momentos
dessa prática que integra e sintoniza as faculdades motoras, sensoriais, cognitivas e imaginativas da/o
performer – a A-PosiçãoZero e o MarRitmo –
contribuem em particular para a capacidade de transição entre dois domínios que correspondem ao que Breton chamou de vida verdadeira
e
mundo real (e vice versa).
Até
certo ponto, o MarRitmo no
taanteatro reflete à écriture automatique
do surrealismo por
privilegiar o desconhecido e por convidar
a/o performer a “praticar a poesia,
descer às fontes anárquicas
da imaginação, tocar a matéria-prima
da linguagem e entregar-se aos fluxos do movimento sem intervenção crítica da razão.” [26]
No MarRitmo a/o performer experimenta
a imersão
na beleza convulsiva do
inconsciente poético, invocada por Breton no segundo Manifesto do Surrealismo. Mas é preciso
acrescentar que seu 'movimento automático’ passa por um tratamento seletivo e de
refinamento no decorrer do processo de ensaio.
Por
fim, é possível constatar a aproximação à uma dramaturgia de tendência surrealista
num projeto de cinema recente da Taanteatro Companhia. Antonin Artaud’s The Theater
and the Plague, realizado no período da eclosão da pandemia da Covid-19 no Brasil,
é uma releitura cinematográfica do ensaio O Teatro e a Peste de Artaud à
luz das experiência pandêmica de artistas colaboradora/es da França, Tunísia, Islândia,
Moçambique, Alemanha, Rússia, Argentina, Tailândia, Suíça, Austrália e do Brasil.
O fio condutor do filme é o texto de Artaud falado nos respectivos idiomas dos artistas,
mas a dramaturgia visual da obra segue o espírito imprevisível do cadavre
exquis, jogo
gráfico e de escritura coletiva praticado pelos surrealistas.
O surrealismo de acordo com seus manifestos
Uma meditação sobre o
possível significado do surrealismo um século após a primeira manifestação de seu
“non-conformiso absoluto” [27]
requer a recordação de suas proposições principais.
No Primeiro Manifesto, Breton apresenta o Surrealismo como oposição
da vida verdadeira ao mundo real e como confronto entre dois tipos
de personalidade correlativas, a “personalidade interior” e a “personalidade
histórica”. [28]
Movida por uma “inquietação humana incurável” [29] e definida pelo tempo presente, a vida verdadeira lança o furor de sua liberdade de espírito e sua paixão pelo absoluto contra o mundo real, combatendo a racionalidade domesticada
preocupada com tradições passadas e deveres futuros com poesia, sonhos e loucura.
O surrealismo
se revolta contra o empirismo mimético, a aversão à imaginação e o “ódio ao maravilhoso”
[30] do realismo. Seu élan anti-histórico
em direção ao maravilhoso e fantástico (e o belo que lhes é inerente) é acompanhado pela “futura dissolução desses aparentemente tão contraditórios estados de sonho
e realidade em uma espécie de realidade absoluta, se é que se pode dizer: surrealidade”. [31] Impulsionado pelo fervor da “crença na realidade superior (…) na onipotência do sonho, no jogo de pensamento
sem propósito”, [32]
Breton define o Surrealismo como:
puro automatismo psíquico através do qual se tenta expressar oralmente ou por escrito ou de qualquer outra forma o processo real do pensamento. Pensamento-Ditado sem nenhum controle da razão, além de considerações
estéticas ou éticas. [33]
O Segundo Manifesto Surrealista especifica a captação da voz surrealista como processo de “mediação muito sombria” [38] entre o conteúdos intencionais e involuntários da consciência. Segundo
Breton, essa mediação – apesar de não depreciar as dimensões racionais da consciência
– procura visualizar seus aspectos involuntários com clareza. Em termos metodológicos, o
surrealismo visa a
reprodução artificial desse momento ideal em que o ser
humano, sob o feitiço de um movimento emotivo muito peculiar, é repentinamente
dominado por algo “que é mais forte que ele”, lançando-o , contra todas as resistências, na imortalidade. [39]
De
acordo com Breton, a instauração metódica
deste momento de 'inspiração' serve
ao surrealismo – em combinação com a escrita automática e protocolo de sonhos – como chave ao infinito. Consequentemente,
os métodos surrealistas, ao direcionarem “sua atenção não mais para o real, mas para o imaginário”, não visam em primeiro lugar “produzir obras de arte, mas iluminar a dimensão não conhecida porém
conhecível de nosso ser”. [40]
A partir
do Primeiro e do Segundo Manifesto Surrealista, as posições do surrealismo podem
ser resumidas da seguinte forma:
o surrealismo rejeita história,
religião, pátria, tradição, família, moral burguesa, capitalismo e guerra, mas enaltece intensidade, ética, liberdade e amor. Ele objetiva superar a historicidade da vida social em direção a uma pureza original das
faculdades psíquicas e do pensamento no intuito de obter entendimento
absoluto através da vivência do infinito e eterno. Ao privilegiar o pensável em vez do pensado, o surrealismo
visa “expor a facticidade das velhas antinomias” e dicotomias – realidade e irrealidade,
razão e irracionalidade, conhecimento e desconhecimento – e fazer
o juízo dessa oposições no sentido de superá-las e alcançar
uma posição espiritual que possibilita que “não sejam mais percebidas como contraditórias”. [41] Como um todo, a revolta surrealista
contra o mundo real e o realismo racionalista da personalidade histórica pretende
“desencadear uma crise da consciência” [42]
para chegar ao avesso do real, isto é, na realidade absoluta ou surrealidade.
Tensão e sonho
Em O que o surrealismo
quer (1953), Breton reitera que seu objetivo nunca se resumiu à criação de
obras de artes nem à iluminação do inconsciente enquanto domínio do desejo e origem
dos mitos. Em primeiro lugar, o surrealismo quer “devolver a linguagem à sua vida
verdadeira” [43] através da redescoberta
de sua materia prima alquímica liberta de qualquer resíduo utilitário. Essa crença em um ideal
de pureza original [44] da linguagem,
anterior à sua instrumentalização designativa porém dotada do poder linguistico
demiurgo de fazer brotar o verdadeiro nome das coisas está à base da ideia
surrealista da “libertação da intuição poética […] como criadora de novas
formas, capaz então de compreender em si todas and estruturas do mundo”. Para Breton,
o surrealismo reconduz, para além da arte, ao caminho da gnose, ou seja,
ao “conhecimento da realidade supra-sensível”. [45]
Se
o sacrifício de 17 milhões vidas humanas durante a Primeira Guerra Mundial conseguiu despertar a revolta de uma juventude
desiludida e enfastiada de valores patrióticos e contribuir para o surgimento de
movimentos em busca de liberdade e elevação ética, os terrores genocidas ainda maiores
da Segunda Guerra Mundial, aparentemente, não tiveram a força de dissuadir Breton
de suas convicções fundamentais e de esfriar as
expectavas superaquecidas investidas na ideia de uma salvação
espiritual pelo surrealismo.
É certo
que Breton nunca formulou argumentos demasiado convincentes para justificar sua
credulidade na existência e primazia criadora de uma suposta pureza original (da
linguagem, do espírito, do homem) capaz de proporcionar conhecimento absoluto. Tampouco
explicou por que motivo os métodos inovadores porém modestos da escritura automática
e do protocolo onírico teriam o poder de revolucionar não somente a personalidade
histórica mas também de superar a história como tal a partir do mero registro da
voz surrealista. Breton não ofereceu uma conciliação conceitual entre os princípios
opostos do surrealismo e do materialismo histórico. E, apesar da insistente recusa
do realismo e da exaltação dos estados puros, o surrealismo reproduziu por via escrita
e visual imagens corporais de extraordinário hibridismo fenomenal e formal.
Precisamente,
em função
dessa impureza estética, o
teórico do modernismo Clement Greenberg situou o surrealismo na
contramão da história da modernidade. Segundo Greenberg, a modernidade
é caraterizada pela intensificação de um processo autocrítico do Ocidente, motivada pelo objetivo
de examinar e definir seus próprios fundamentos. Introduzido pela filosofia
transcendental de Kant – “por ter sido o primeiro a criticar os próprios meios da crítica” [46] – essa autocrítica
é definida pelo “uso de métodos característicos
de uma disciplina para criticar essa mesma disciplina” [47] e estendeu-se a todos os domínios da cultura, incluindo o da arte. De
acordo com Greenberg, a autocrítica artística, próxima do método
científico, levou à purificação das linguagens,
ou seja, à uma autodefinição radical sede cada disciplina de arte sob a condição da eliminação
de todos os meios e efeitos expressivos próprios de linguagens alheias.
Se
a prática surrealista contradiz a teoria do surrealismo, a produção artística pós-moderna
(ou pós-histórica) desmente a estética modernista ao relevar, em termos práticos
e conceituais, a ausência de uma direção histórica da arte e por demostrar, segundo
Danto, “que tudo poderia ser arte”, que “nenhuma arte é mais
verdadeira que a outra, e que a arte não está atrelada à uma forma prescrita de ser: toda
arte é igual e indiscriminadamente arte.” [48]
A paixão
surrealista pela produtividade do inconsciente e da imaginação se opus à
reivindicação de exclusividade
do positivismo no que diz respeito à ideia das formas legitimadas de pensamento
e restituiu à
vida cultual e às ciências sociais o valor existencial e político
da invenção poética.
Com
a viagem de Breton ao México em 1938, dois anos depois de Artaud, e o exílio de
vários surrealistas [50] em Nova Iorque
a partir de 1940, o surrealismo passa a se difundir de forma consistente na América
Latina e nos Estados Unidos. O retorno desses artistas à Europa, depois Segunda
Guerra Mundial, proporciona uma difusão do ativismo surrealista por uma série de
países europeus, estimula uma multiplicidade de movimentos das artes visuais, entre
os quais o grupo COBRA e a Companhia de Arte Bruta de Dubuffet.
Breton
morre em 1966, mas seu empreendimento ressoa nos eventos do Maio de 1968: l'imagination
au pouvoir. Desde então, o surrealismo contagia as mais diversas esferas da
vida cultural e do mercado das artes. Se faz presente não somente na poesia e na
pintura, mas se populariza também na música e arte audiovisual de Frank Zappa [51] e David Bowie, [52] no cinema de David Lynch, [53] na moda de renomados estilistas
e – ironia do destino – no teatro.
Em
1971, cinco anos após a morte da eminência parda do surrealismo, o poeta Louis Aragon
publica Uma Carta aberta a André Breton sobre 'Deafman Glance' de Robert
Wilson. [54] Correligionário de Breton
desde o advento do movimento e corresponsável pela excomunicação de Vitrac e Artaud,
Aragon transmite ao falecido através dessa carta a boa nova de um milagre
“que estávamos esperando”. [55] Trata-se
do “mundo de uma criança surda” encenado como síntese da “vida acordada e da vida
com olhos fechados”. [56] Essa ópera
surda de Wilson, diz Aragon, opera como uma máquina de liberdade. “Não
é surrealismo de forma alguma, mas é o que nos, que geramos o surrealismo, sonhamos
que ele poderia se tornar depois de nós, além de nós.” [57] Breton diria, imagina Aragon, que Wilson
virá surrealista através de um teatro que celebra o “casamento do gesto e
do silêncio, do movimento e do inefável.” [58]
Cinquenta
anos depois do maravilhamento de Aragon face ao Olhar do Surdo, a escritora
Kristen Bateman se indaga acerca do retorno da vibrações oníricas do surrealismo,
desta vez, no mundo fashion:
Mas por que, em 2021, o movimento está voltando? Considerando que ainda estamos em meio a uma pandemia global na esteira
de muitos distúrbios políticos, a próxima geração do surrealismo na moda faz muito sentido. Afinal, o motivo dos
surrealistas originais era tornar o familiar estranho e mostrar um mundo frágil cheio de tensão em um novo estado de sonho. [59]
Haveria
uma resposta mais apropriada para o teatro coreográfico de tensões de uma
companhia que nos faz sonhar acordados?
NOTAS
1. READ, Peter. Apollinaire et les mamelles de Tirésias
em Surréalisme et surréalistes. Rennes: Presses universitaires de Rennes,
2000. P. 139 -149 (tradução nossa).
2. GROSSMAN, Évelyne. Antonin Artaud. Un insurgé du corps.
Paris: Découvertes Gallimard, 2006. P. 31 (tradução nossa).
3. ARTAUD,
Antonin.Oeuvres. Paris: Quarto Gallimard, 2004. P.
245 (tradução nossa).
4. Ibid. P. 236
5. A suivre.Petite contribution
au dossier de certains intellectuels à tendance révolutionnaire em Variété. Le Surréalisme en 1929. Paris, 1929.Disponível em: https://manifestedusurrealisme.files.wordpress.com/2014/12/manifetedusurrealisme.pdf . Acesso em: 27/10/2021.
6. BRETON, André. Die Manifeste des Surrealismus. Hamburg:
Rowohlt, 2004. P. 60 (tradução nossa).
7. Ibid. P. 63. Vale observar uma certa reconciliação entre
Breton e Artaud após a saída do autor das Cartas de Rodez do manicômio. Breton
faz o discurso de abertura a Homenagem a Antonin Artaud em 7 de Junho de
1946 no Teatro Sarah Bernhardt em Paris, onde declara que foi Artaud
que avançou de forma “mais ousada e mais
longe” no caminho de “mudar o mundo, de mudar a vida, e de renovar a mente humana
em todas as partes” (KAPRALIK, Elena. Antonin
Artaud. Leben und Werk des Schauspielers, Dichters und Regisseurs. München:
Matthes & Seitz, 1977. Em 1959, e conversa com Jean Laurent, Breton
situa o Van Gogh de Artaud ao lado de Aurélia de Gerard de Nerval
e os poemas tardios de Friedrich Hölderlin.
8. CHAVOT, Pierre. l’ABCdaire du Surréalisme. Paris: Flammarion, 2001. P. 110 (tradução nossa).
9. ARTAUD, Antonin. 2004. P. 1177 (tradução nossa)
10. Ibid.
11. BAIOCCHI,M. e PANNEK, W. Taanteatro: forças & formas.
São Paulo: Transcultura, 2018.
12. BRETON,
André. La Révolution Surréaliste. N°12, 15 Décembre 1929. Disponível em: http://melusine-surrealisme.fr/site/Revolution_surrealiste/Revol_surr_12.htm . Acesso em: 27/10/2021.
13. WILLER, Claudio. Artaud,
A. & Willer, C. Escritos de Antonin Artaud.
Posfácio para a nova edição. Porto Alegre: LP&M, 2019. P. 208, 209.
14. ROCHA, Daniela. Maura
Baiocchi revela Artaud Momo. Folha
de S. Paulo, 23/04/1997. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/4/23/ilustrada/44.html. & ROCHA, Daniela. Espetáculo
traz lado xamã do ator. Folha de S.Paulo, 01/09/1996. Disponível
em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/9/01/mais!/8.html. Acessos em 27/10/2021.
15. DE SÁ, Nelson. Baiocchi
satiriza a “mexicanização”. Folha de S. Paulo, 24/10/1997. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq241025.htm. Acesso em: 27/10/2021.
16. Website do projeto Antonin Artaud’s The Theater
and the Plague: https://oteatroeapeste.wixsite.com/taanteatro
17. CALSAVARA, Katia. Taanteatro celebra 20 anos com atmosfera
surrealista. Folha de S. Paulo. 06/07/2012. Disponível em: https://m.folha.uol.com.br/ilustrada/2012/07/1115696-taanteatro-celebra-20-anos-com-atmosfera-surrealista.shtml. Acesso em: 27/10/2021.
18. GESISKY, Jaime. Crítica de Subtração de Ophelia
no blog da Mostra de Dança XYZ em Brasília em 2006. https://www.dancaxyz2006.com.br/
19. GORTE-DALMORO, Daniel. Danças
[Im]Puras. Comportamento Geral. 08/07/2012. Disponível em: https://comportamentogeral.blogspot.com/search?q=baiocchi. 08/07/2012.
20. Frida Kahlo recusou a rubrica surrealista para definir sua pintura. Do ponto de vista
da artista mexicana, simplesmente retratava sua própria
vida. Ainda assim aceitou a inclusão de seus quadros em exposições surrealistas organizadas por Breton em Nova Iorque e Paris.
21. Citado a partir da página web de Frida Kahlo: uma mulher
de pedra dá luz à noite (versão 1991) no site da Taanteatro Companhia. Disponível
em: http://www.taanteatro.com/obras/frida-kahlo-uma-mulher-de-pedr.html . Acesso em: 2710/2021.
22. Com o conceito da esquizopresença, o
teatro coreográfico de tensões designa “um tipo de presença performativa não representativa-narrativa” de inspiração
nietzscheana-deleuziana. Esquizopresença pressupõe conexão com o plano ontológico
do acontecimento performativo: seu fluxo de tensões (ou devir tensivo). É
em função dessa conexão, que o performer se torna capaz de superar a representação
e de criar o novo na figura de “signos sustentados por uma tensão vital-criativa entre forças
e formas.” Para maiores informações, consulte: Pannek, W.
e Baiocchi, M. (Org.). Taanteatro: [Des]construção e Esquizopresença. São Paulo,Transcultura, 2016.
23. Sobre o eterno originar, consulte: BAIOCCHI, M. e PANNEK, W.Taanteatro: forças & formas. São Paulo, Transcultura, 2018.
24. Ibid. P. 21
25. BAIOCCHI, M. e PANNEK, W. Taanteatro: MAE – mandala de energia corporal. São
Paulo, Transcultura, 2013.
26. Ibid.
P. 114
27. BRETON,
André. 2004. P. 43
28. Ibid. P. 83
29. Ibid. P.20
30. Ibid. P.18
31. Ibid.
32. Ibid. P.26,
27
33. Ibid. P.26
34. Ibid. P.21
35. Ibid. P.25
36. Ibid. P.27
37. Ibid. P. 34
38. Ibid. P.79
39. Ibid. P. 81
40. Ibid.
41. Ibid. P. 55
42. Ibid.
43. P. 132
44. La Révolution Surréaliste
N°12, 15 Décembre1929. P.2. Disponível em: http://melusine-surrealisme.fr/site/Revolution_surrealiste/Revol_surr_12.htm . Acesso em: 27/10/2021.
45. BRETON, André, 2004, P. 132
46. FERREIRA, Glória e COTRIM,
Cecilia. Clement Greenberg e o debate crítico.
Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1997. P. 101
47. Ibid. P.101
48. DANTO, Arthur. Das Fortleben der Kunst. München: Finkelverlag. 2000. P. 60 (tradução nossa).
49. Entre os quais, os poetas: Louis Aragon, Antonin Artaud, André Breton, René Crevel, Robert Desnos, Paul Éluard , Michel Leiris , Benjamin Péret, Philippe Soupault, e a/os artistas visuais:
Man Ray, Salvador Dalí, Max Ernst, René
Magritte, André Masson, Joan Miró,
Paul Delvaux, Remedios Varo, Leonor Fini, Dorothea Tanning, Meret Oppenheim, Leonora
Carrington, entre outra/os.
50. Entre os quais Char, Duchamp, Ernst,
Masson, Pérez, Tanguy, Tzara e Breton.
51. FREMER, Michael. Frank Zappa's Surrealistic Documentary
and Soundtrack 200 Motels Gets Multi-Format 50th Anniversary Treatment. Analogplanet. 24/09/2021. Disponível em: https://www.analogplanet.com/content/frank-zappas-surrealistic-documentary-and-soundtrack-200-motels-gets-multi-format-50th. Acesso em: 27/10/2021.
52. MORLEY, Paul. Dalí, Duchamp and Dr Caligari: the
surrealism that inspired David Bowie. The
Guardian. 22/07/2016. Disponível em: https://www.theguardian.com/books/2016/jul/22/david-bowie-surrealist-inspired-dali-duchamp-dr-caligari. Acesso em: 27/10/2021.
53. JAMES, Ezra L..The Surrealist World of David Lynch.
Storius. 09/01/2020. Disponível em: https://storiusmag.com/the-surrealist-world-of-david-lynch-d200c86657f1. Acesso em: 27/10/2021.
54. ARAGON, Louis. An Open Letter to Andre Breton on
Robert Wilson’s ‘Deafman Glance. Performing Arts Journal, vol. 1, no. 1, Performing Arts Journal, Inc.,
1976, P. 3–7, https://doi.org/10.2307/3245181 .
55. Ibid. P. 4
56. Página sobre Deafman Glance no website de Robert
Wilson: https://robertwilson.com/deafman-glance
57. ARAGON, Louis. 1976. P.4
58. Ibid. P. 5
59. BATEMAN, Kristen. Surrealism Is Staging a Fashion
Comeback. Harpers
Bazaar.13/07/2021. Disponível em: https://www.harpersbazaar.com/fashion/trends/a36877016/surrealism-fashion-comeback/. Acesso em: 27/10/2021.
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WOLFGANG
PANNEK.
Diretor, performer, autor, tradutor e produtor. Integrante (1992) e codiretor (1994)
da Taanteatro Companhia. M.A. (filosofia, letras e psicologia) pela FernUniversität
Hagen (Alemanha). Diretor de produção da Mostra 95 Butoh e Teatro Pesquisa,
idealizador e diretor de produção de Artaud 100 Anos, coordenador do Intercâmbio
Cultural Matola-Brasil (2005) e organizador da Hans
Thies Lehmann Brasil Tour 2010. Idealizador e produtor da Ocupação
Artaud (2016) e da Ocupação Deleuze (2017) no Teatro Aliança
Francesa de São Paulo. Atuou como coreógrafo e ator em Os
Sertões, sob direção de José Celso Martinez Corrêa. Criou e dirigiu
a trilogia cARTAUDgrafia (2015) sobre a vida e obra de Antonin Artaud
e o espetáculo 1001 PLATÔS (2017) baseado na obra Mil Platôs de Gilles
Deleuze e Félix Guattari. Idealizou e produziert o filme coletivo The
Theatre and the Plague (2020). Na televisão participou como ator do
seriado “fdp” (HBO Brasil), da telenovela “Além do horizonte” (TV Globo) e da série
“El Presidente: Jogo da Corrupção” (Amazon Prime).
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Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO
Número 186 | novembro de 2021
Curadoria: Floriano Martins (Brasil, 1957)
Artista convidado: Marcos Tedeschi (Brasil, 1982)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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