O que se pretende nessa abordagem é um mergulho
através dos tempos, para minimamente refletir sobre a origem do formato desse gênero,
que dentre outras coisas mostrou grande força e influência, no enfrentamento aos
terríveis anos de chumbo (1964/1985), quando criadores de música, precisavam usar
de subterfúgios para a liberação de canções, tais como a troca de títulos ou alterações
nas letras, muitas vezes trocando palavras por outra com o mesmo significado, seis
por meia dúzia como diz o ditado, manobras suficientes para ludibriar uma achavascada
censura de época. Taiguara é um perfeito exemplo desse procedimento, a música “Mais
valia” (Taiguara), uma guarania de poesia marxista:
Mais
valia eu ter te amado
Que
ter te explorado
tanto fiz capital, te explorando
fiz
o mal, nos separando!
Em sua camuflagem de música de amor, passou
desapercebida pelo capataz, sem uma chicotada sequer, diferente de outras de suas
canções que fizeram de Taiguara um dos compositores mais censurados no período.
Em tempo a maioria dos artistas fora, depois de passarem algum tempo presos, forçada
ao exílio, para evitar mais torturas e até ameaças de morte. O fato é que mesmo
com a ausência desses compositores e cantores no Brasil, a MPB resistiu com sua
qualidade poética e musical, reforçando movimentos e dando alento aos que por aqui
ficaram.
Na época o plano estadunidense, de controle
da América latina, orientava ditaduras militares a primordialmente perseguir intelectuais,
censurar suas criações em geral, queimar livros em praças públicas, tal e qual a
humanidade já havia presenciado no nazismo, só para citar um modelo de dominação
de massas. É aí que a música brasileira aparece para o enfrentamento ao regime e
compositores como Chico Buarque, Geraldo Vandré, Edu Lobo, Caetano Veloso, Gilberto
Gil, Sergio Ricardo e Taiguara dentre outros, adicionam suas obras à mensagens de
resistência e desafios ao status quo. Os festivais da TV Record nos anos 60, nos
mostraram um verdadeiro panorama dos conflitos entre arte e ditadura, quando num
ambiente vigiado, como mostra a canção “Disparada” (Geraldo Vandré e Théo de Barros)
defendida por um frenético Jair Rodrigues, levando a plateia a loucura na apresentação
final, como vencedora em 1966, ali misturados ao público e também nos bastidores
se vê uma milícia atônita e incomodada com a desafiadora reação da plateia quando
nos versos:
Porque
gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata,
mas
com gente é diferente!
E superando a questão da competição propriamente
dita, fardo proposto por esse modelo de festival, afinal de contas o público elegia
suas favoritas como abraçou “Roda viva” de Chico Buarque:
Roda
mundo, roda gigante,
roda
moinho, roda peão,
o
tempo rodou num instante,
nas
rodas do meu coração
Mesmo ficando em terceiro em 1967 “Roda
viva”, em seu loop crescendo, não só levantou a plateia, como a integrou dentro
do arranjo, fazendo naturalmente com que essa crescesse em reação, em uma apresentação
memorável com Chico e o MPB4.
Contudo os bastidores do próprio setor,
possuíam conturbações ocasionadas por desentendimentos com choques entre setores
puristas e outros que traziam como proposição a inovação na música, como por exemplo
o episódio das guitarras defendido por compositores como Gil e Caetano, em contraste
à resistência de outros compositores. A Tropicália surgia então, dentro desse contraponto,
com artistas de várias tendências, como Hélio Oiticica, Torquato Neto, Tom Zé, maestros
Júlio Medalha e Rogério Duprat, na
canção Domingo no Parque, 1967, de Gilberto Gil, Duprat inova com a fusão de timbres
sinfônicos, ruídos de um parque de diversões, misturados à ritmos marcadamente brasileiros
e instrumentos elétricos, o que traz singularidade ao arranjo, a criação então abraça
a tragédia, brinca na alegria dos domingos, e confere coerência ao poema:
O rei da brincadeira Ê, José,
o rei da confusão Ê, João,
um trabalhava na feira, Ê José,
outro na construção Ê João,
Foi que ele viu,
Juliana na rosa com João,
uma rosa eu um sorvete na mão,
Juliana seu sonho uma ilusão,
Juliana e o amigo João
à tragédia em:
Olha a faca (Olha a faca),
Olha o sangue na mão Ê José,
Juliana no chão Ê José,
Outro corpo caído Ê José,
Seu amigo João Ê José!!
É preciso destacar o papel da banda Os Mutantes,
primordial no complemento das orquestrações dessa fase. Polêmicas à parte o fato
é que esse debate se demonstrou pertinente e ganharam a nova música e o público
que passou a absorvê-la.
Provavelmente vaias e apupos de uma plateia
de festivais, universitários em sua maioria, provocaram não só a reação de Caetano
Veloso que reagiu com esse discurso:
Mas é isso que é a juventude que diz que
quer tomar o poder? Vocês tem coragem de aplaudir, uma música, um tipo de música
que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado! São a mesma juventude que
vão sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem!
Esses incidentes dentro dos festivais na
época, fizeram protagonismo a um importante movimento que se contrastava, melhor,
se opunha aos paradigmas daqueles tempos. Outro episódio com a participação de uma
plateia enfurecida, foi a do compositor Sergio Ricardo e sua canção; “Beto bom de
bola”, quando tentava cantar em meio à intensas vaias,
Beto
vai chutando pedra cheio de amargura,
num
terreno tão baldio,
o
quanto a vida é dura!”
Diante dos insistentes apupos Sergio perde
a paciência e numa intempestiva reação, quebra o violão e sai do palco.
E os Festivais da Record ficaram na história
dos anos 60 chegando ao fim e deixando de bandeja para a TV Globo criar um novo
formato, mais comprometido com resultados e patrocinadores, além de subserviente
ao regime, como era hábito da emissora apoiadora do golpe de 1964. Mesmo assim a
força da MPB criou surpresas inesperadas à emissora, que se viu forçada à malabarismos
para sempre se justificar junto ao poder. Casos como o de Geraldo Vandré em “Pra
não dizer que não falei das flores”, saia justa nos versos:
Há
soldados armados amados ou não,
quase
todos perdidos de armas na mão,
nos
quartéis lhes ensinam uma antiga lição,
de
morrer pela pátria e viver sem razão,
para chegar no icônico refrão:
Vem
vamos embora que esperar não é saber,
quem
sabe faz a hora não espera acontecer!”
E tentando conter os apupos de uma plateia
inconformada com “Sabiá”, vencedora daquele concurso, no afã de solicitar respeito
à Chico Buarque e Tom Jobim, autores da canção, e não conseguindo controlar as vaias,
Vandré coloca uma pá de cal nos modelos de festivais competitivos e sentencia ao
vivo em pleno Maracanãzinho:
A vida não se resume em festivais!
Outras canções de origem andina, como as de Violeta Parra e Vitor Jara, compositores chilenos, pra citar alguns, acrescentaram força ancoradas nas vozes de Mercedes Sosa e Milton Nascimento, fortalecendo e também agregando novas tendências ao que já se conhecia como MPB. Um episódio que retrata os acontecimentos da época são a queda de braço entre Chico Buarque e a Rede Globo (apoiadora do regime), vencida pelo compositor para que os poetas e compositores cubanos Silvio Rodríguez e Pablo Milanés, pudessem não só entrar no Brasil, como participarem de um show histórico com Chico no Canecão.
A origem
No final do século XIX, o fruto das inquietações
humanas essencialmente na música, encontra no Brasil uma grande vontade de transformação
em contraponto à forte influência da Europa. A modinha, bastante cultuada na corte
e recheada de versos amorosos, precisava principalmente beber das águas de uma outra
fonte, para fundamentar o que viria a ser o começo de um novo formato para a futura
música popular brasileira. É nesse cenário que o Lundu, considerado música profana
e seus tambores, ritmo originário de Angola, trazido pelos negros escravizados e
festejado nos terreiros, ali também tratado como umbigada, toma conta de uma parte
da sociedade e encontra uma jovem compositora e maestra de enorme talento e coragem;
Chiquinha Gonzaga, pianista, filha de mãe escrava alforriada e pai militar, uma
combinação bombástica que forjaria sua forte personalidade, uma mulher muito a frente
daqueles tempos.
Consta que Joaquim Calado, considerado
o pai do choro, autor do primeiro choro, “Flor amorosa”, para muitos chorões o hino
do chorinho, era o protetor de Chiquinha em tempos de total ausência feminina na
sociedade, Calado apresentou a maestra em rodas de choro da época, aliás o choro
também surgiu segundo relatos, da fusão de lundu, polca e modinhas e se atribui
a Chiquinha Gonzaga o mérito por fazer a ponte para a compreensão dessas mesclas,
principalmente em relação a polca, gênero que a compositora dominava, considerando-se
também a presença de Chiquinha nos terreiros de Lundu, contrariando as severidades
paternas e os olhares da moral vigente. Chiquinha Gonzaga também teve forte presença
nos primórdios do carnaval carioca, criando a marcha; “O abre alas”, que virou hino
de abertura daquele evento e começava passando pela porta da casa de Chiquinha,
com as grandes sociedades em desfile entoando a canção em louvor à maestra e o carnaval
também faz parte da argila que serviu de molde para o que tratamos aqui de formato
da MPB. Como se não bastasse deve-se a maestra a criação da primeira sociedade de
proteção ao direito autoral, a SBAT (Sociedade Brasileira
de Autores teatrais).
Época da efervescência da música que brotava
dos instrumentos, como o chorinho e outros gêneros, mais uma vez é preciso aceitar
nomenclaturas que embora muitos não concordem é preciso digerir, pois definida como
instrumental nos tempos modernos era provavelmente no início do século XX, celebrada
como música tão somente e o jovem flautista compositor Patápio Silva por exemplo,
desde os 19 anos dominava a preferência nos salões da corte no Rio de Janeiro, de
1900 até 1907, quando teve morte precoce.
O formato
Agora
eu não ando mais fagueiro,
pois
o dinheiro não é fácil de ganhar,
mesmo
eu sendo um cara trapaceiro,
não
consigo ter nem pra gastar!
Na verdade uma alusão à quebra da bolsa
de Nova York em 1929 segundo se especula. Noel demonstrava total descompromisso
com a moral vigente, o que lhe atribuía um sentido de liberdade único, avesso à
hipocrisias, acabou pagando com a vida acometido por uma tuberculose, fruto da intensa
boemia que escolheu pra viver e sem a qual provavelmente não teria construído esse
incomparável acervo, Noel Rosa por ter forjado o formato da música do Brasil, vive
até hoje nas canções dos compositores dos séculos XX e XXI.
Alguns teóricos atuais ironizam que a MPB
acabou em 1985, certamente numa alusão à falsa abertura política, o cavalo de Tróia
presente dado pela ditadura militar, porém o que ocorre de fato é que a mídia e
as grandes corporações fonográficas, escolheram novos modelos para aumentarem seus
ganhos e pulverizaram ricos acervos de antes, propondo questionáveis paradigmas
de unilateralidade através de um domínio financeiro sobre veículos de mídia (Rádio
e TV) e rifando a pluralidade. Essas ações, no entanto, não impediram que compositoras
e compositores de agora, criassem novos modelos de música e performance, que alguns
chamam de alternativa, mas que segue mostrando a qualidade da nossa boa, velha e
sempre atual MPB, em tempos de internet, Noel Rosa vive!
Referências: vídeos
Taiguara. Mais valia.
https://www.youtube.com/watch?v=UiKVtQjDGVQ
Jair Rodrigues. Disparada.
https://www.youtube.com/watch?v=82dRs2z6iQs
Chico Buarque. Roda viva.
https://www.youtube.com/watch?v=3ALZNNUQdYM
Gilberto Gil e Os Mutantes. Domingo no parque.
https://www.youtube.com/watch?v=pinZdm2lC9w
Caetano Veloso e Os Mutantes
https://www.youtube.com/watch?v=4xEz2uva_ZE
Sergio Ricardo. Beto bom de bola.
https://www.youtube.com/watch?v=S6jGBptVU6k&t=245s
Geraldo Vandré. Pra não dizer que não falei
das flores
https://www.youtube.com/watch?v=wkEGNgib2Yw
O Lundu por Mario de Andrade
https://www.youtube.com/watch?v=XH2XkZUM7BM&t=42s
Chiquinha Gonzaga.
Polca. Sultana
https://www.youtube.com/watch?v=2gnb91dB6OY
Lysia Condé. Flor amorosa. Joaquim Calado
https://www.youtube.com/watch?v=-xwgCUWnhD8
Noel Rosa. Com que roupa
https://www.youtube.com/watch?v=rETSGoLBjjk
Carlos
Papel, compositor, cantor e violonista brasileiro, transita com desenvoltura no
meio cultural do Espírito Santo, onde mora, respeito adquirido por seus diversos
trabalhos autorais, trilhas para peças de teatro, cinema e mercado publicitário.
É um dos compositores mais gravados em terras capixabas por artistas de todas as
gerações. Em 2020 produziu seu primeiro Song Book, coordenado por Fernanda Nali
da FiNA produtora, que gerencia sua carreira. Com um espectro diversificado de temas
com recorrência de assuntos políticos, filosóficos, ecológicos e regionais, ressalta-se
a força e a importância da palavra na obra de Carlos Papel, capaz de traduzir visões
de mundo e promover uma relação íntima entre volume da letra e conteúdo da música.
Nota-se ainda presença de diálogos com grandes vertentes e referências da MPB. Atualmente
Carlos Papel é graduando em Música/bacharelado, na Universidade Federal do Espírito
Santo, sexto período.
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Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO
Número 198 | dezembro de 2021
Artista convidada: Evelyne Axell (Bélgica, 1935-1972)
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