quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

GEORGIA DOMINIQUE VANESSA CEDRAZ LOPES | Mulheres “de cor” e hierarquias no mundo do trabalho urbano na Havana colonial (séc. XIX): gênero, classe e raça



O artigo ora apresentado tem por objetivo analisar como as hierarquias forjadas sob gênero, classe e raça permearam o mundo do trabalho urbano em Havana, quando esta província colonial espanhola estava mergulhada nas guerras por independência e abolição da escravidão que estalaram em Cuba, na segunda metade do século XIX. Nesse período, em Havana, como em outros centros urbanos coloniais, mulheres e homens “de cor” (livres, libertos/as e escravizados/as) e brancos/as exerciam uma gama de atividades laborais; todavia, a existência de uma série de hierarquias que caracterizaram a sociedade colonial espanhola indicam diferenças entre as experiências vividas por estes homens e mulheres; brancos/as e não brancos/as. Analisando fontes produzidas pela administração colonial, produções literárias, periódicos, dentre outras, concluímos a princípio que, as atividades que exigiam maior esforço físico, rendiam menor remuneração e tinham menos prestígio social, eram executadas majoritariamente por homens e mulheres “de cor”; documentos históricos evidenciaram, ainda, como o mundo do trabalho colonial era perverso com as mulheres, em especial, as negras e mestiças.

Através dos dados reunidos no Diccionario Geografico, Estadistico, Historico, de la isla de Cuba publicado em 1863 e também em outras fontes tentaremos compreender melhor o mundo do trabalho colonial. [1] Cabe destacar que, apesar dos dados compilados neste dicionário se referirem à população de cor livre, as informações acerca do mercado de trabalho destes indivíduos/as, em alguma medida, nos dizem muito sobre o mercado de trabalho dos/as escravizados/as. Veremos que, apesar de haver uma hierarquia entre os/as de cor, as ocupações laborais destes/as indivíduos/as em muito se assemelhavam.

 

Mundo do trabalho e hierarquia

Em princípio, a análise dos censos compilados no Diccionario de 1863 indica que o mercado de trabalho colonial refletia a hierarquização social do período; isto é, as atividades que exigiam maior esforço físico, rendiam menor remuneração e tinham menos prestígio social, eram executadas majoritariamente por homens e mulheres de cor. [2] O documento indica, ainda, que em Havana, atividades de maior prestígio e remuneração, que exigiam maior qualificação e escolaridade, eram exercidas, exclusivamente, por homens brancos. Advogados somavam 287; nenhum deles era um livre de cor. Os escreventes, por sua vez, somavam 262 profissionais; nenhum deles era negro ou pardo. Em se tratando do ramo do comércio, que envolvia as volumosas negociações de produtos para exportação, a administração de grandes empresas e estabelecimentos comerciais, muitos deles administrados por peninsulares, a assimetria era significativa: dos mais de 7 mil homens que eram comerciantes ou dependentes do comércio em Havana, conforme sinalizado no dicionário de 1863, apenas 267 eram homens de cor. [3]

Em algumas categorias ocupacionais havia equilíbrio entre os de cor e os brancos. Dos mais de 1 913 pedreiros registrados no censo referente à jurisdição de Havana, cerca de 1.060 eram homens de cor; brancos somavam 853. Entre os 13 aguadeiros registrados, 3 eram brancos e 10 negros ou pardos. Cozinheiros somavam 63 brancos e 137 de cor. Serventes somavam 109 brancos e 146 de cor livres. Dos que viviam “dedicados a seus bens”, 2.622 eram brancos e 1 026 de cor. De todo modo, os de cor seguiam sendo os mais numerosos a ocupar as atividades menos prestigiadas, que exigiam maior esforço físico.

Quando analisamos a remuneração a partir do nível de escolaridade notamos um viés de classe e, assim, uma disparidade e diferença no pecúlio; homens brancos com acesso à educação, exercendo a função de “escrevente segundo” ganhavam 600 pesos mensais; um servente, atividade exercida por brancos e não-brancos, sem a exigência de maiores qualificações, recebiam uma remuneração de 180 pesos. [4]

Tais distinções também ocorriam na execução de uma mesma atividade executada por homens brancos e de cor, indicando aqui uma hierarquia racial; sobre os não brancos pesava a suspeição, que podia lhes impedir de exercer cargos de confiança ou receber uma remuneração equânime em relação a um homem branco. Ao analisar o trabalho dos homens negros na região portuária de Havana, os historiadores Pedro Deschamps Chapeaux e Juan Perez de la Riva (1974, p. 17-18) chegaram a esta conclusão. O trabalho nas docas habaneras constituíram uma zona onde homens de cor, africanos ou crioulos, livres ou escravos, recebiam um salário inferior mesmo executando as mesmas atividades de carga e descarga de mercadorias, que os homens brancos, peninsulares ou crioulos. Homens de cor estavam, inclusive, excluídos dos trabalhos de vigilância e estiva, a menos que estivessem registrados. As zonas e escalas erguidas e impostas pelo regime escravista para estabelecer uma divisão social do trabalho foram determinadas pela origem, a cor e o estado social dos indivíduos, fatores determinantes para distingui-los (CHAPEAUX, 1971).

Os serventes que trabalhavam no Hospital Geral Militar de Cuba em 1853 estavam classificados em categorias: 1ª, 2ª e 3ª; a remuneração entre eles variava; 1ª classe - 168 pesos, 2ª classe - 144 e 3ª classe - 120. Os cozinheiros, por sua vez, apesar de não estarem classificados por “classes”, também tinham remunerações distintas; dois deles recebiam 204 pesos e um outro, 168 pesos. [5] É possível que a distinção de salários tenha sido elaborada conforme a qualificação destes sujeitos mas, também, de acordo com a origem, cor e status social, como indicaram Pedro Deschamps Chapeaux e Juan Perez de la Riva (1974).

Em verdade, em Cuba, desde as primeiras décadas do trabalho escravo houve uma preocupação em vigiar e dificultar qualquer atividade independente de homens e mulheres de cor; legislações tentavam controlar e punir ações consideradas impróprias ou deletérias por proprietários/as de cativos/as e pela administração colonial; no século XIX, essa apreensão se acentuou devido ao contexto sócio-político interno e externo; a deflagração e prolongamento da Guerra de Dez Anos (1868-1878) e da Guerra Chiquita (1879-1880), dificultou o cotidiano dos/as de cor; o clima de tensão reverberou na vida dos/as trabalhadores/as urbanos/as de Havana tornando-os/as alvos reiterados de suspeição. [6]


Este cenário tem sido detalhado pela historiografia cubana e cubanista com estudos de fôlego; pesquisas indicam que, desde as primeiras décadas do século XIX, na tentativa de suplantar qualquer tentativa de sublevação que pudesse resvalar no fim do sistema escravista e na independência da colônia mais valiosa do Caribe, isto é, diante de um contexto sócio-político desfavorável aos seus interesses, as autoridades coloniais ampliaram suas instâncias de vigilância, colocando a todos/as, independente da classe social, raça ou gênero, em suspeição. [7] Neste contexto, os/as de cor foram sempre o alvo central das suspeitas por crimes comuns ou políticos; leis e outras deliberações administrativas indicam uma política colonial racializada, que tornava os/as de cor livres, escravizados/as ou libertos/as, um grupo permanentemente suspeito, identificado como mais suscetível ao crime; eram os/as de cor que sofriam as penas mais duras e tinham os corpos mais vigiados em espaços públicos ou particulares.

É possível que, a suspeição que pairava sobre os/as de cor, nos ajude a compreender porque nos censos da década de 1860 relativos ao ayuntamiento de Havana, nenhum integrante do corpo de polícia era um homem de cor, conforme indica o Diccionario Geografico, Estadistico, Historico, de la isla de Cuba publicado em 1863.

O temor que a administração colonial e os/as senhores de escravos/as nutria pelos/as de cor segiu se ampliando, em especial, em meio às guerras por independência e abolição da escravidão, quando as alianças estabelecidas entre brancos e não-brancos na luta contra a Coroa espanhola se ampliavam e aprofundavam. A própria composição do Exército Libertador – multirracial – e o recrutamento de escravizados para a luta abolicionista e anticolonial atemorizava os/as que queriam manter as hierarquias de raça e classe do sistema colonial (MATA, 2015).

 

Ascensão demográfica

Para além da associação entre os de cor e lideranças brancas, independentistas e abolicionistas, – a ascensão demográfica dos homens e mulheres negros/as e mestiços/as, que integravam grande parte da engrenagem social de Cuba também gerou temor; escravizados/as, livres e libertos estavam por toda parte em Havana; quem circulava pelas ruas da cidade, majoritariamente, eram os/as de cor; a ostensiva presença deles/as impressionava quem estava na jurisdição (HAZARD, 1928). Na década de 60 do Oitocentos, às vésperas da primeira guerra, o norte-americano Samuel Hazard, que residiu em Havana por alguns anos destacou que a população total de Havana, “[...] segundo as melhores autoridades na matéria, é de cento e noventa e sete mil habitantes, uma boa parte dos quais são negros e mulatos livres” (HAZARD, 1928). [8]

Nesse cenário a presença das mulheres de cor, em especial, se destacava; de dia, independente do cenário, era a presença de negras e mestiças que impactava. Na década de 1860, Hazard, indicava que o viajante que visitasse a capital da colônia circulando hora atrás hora da manhã raramente encontraria uma mulher a pé, a não ser as negras (HAZARD, 1928). Estatísticas oficiais endossam essa máxima elaborada pelo contemporâneo. Dados do Diccionario Geografico, Estadistico, Historico, de la isla de CUBA, publicado em 1863, reiteram este cenário de afluxo das mulheres de cor pelas ruas de Havana; de acordo com censos contidos neste documento, mais de 25 mil mulheres brancas estavam dedicadas aos afazeres da casa; mulheres de cor livres, encerradas em atividades dentro de residências, chegavam a pouco mais de 3 mil (PEZUELA, 1863).

Em meados do século XIX, essas mulheres representavam 38% da população, 57% dos habitantes livres da jurisdição Ocidental (COWLING, 2018). Ao analisar dados estatísticos do censo de 1846 e 1862, Rebecca J. Scott concluiu que a população negra livre do Departamento Oriental tinha “um caráter rural bem definido”; no Departamento Ocidental, todavia, 65% da população negra livre era urbana; ou seja, a maioria dos homens e mulheres negras/os livres viviam nas vilas e cidades (SCOTT, 1991).

Em 1877, Cuba tinha cerca de 1.500.000 habitantes; entre os quais, mais de 900 mil espanhois, cerca de 9 mil estrangeiros, mais de 40 mil asiáticos e pelo menos 480 mil indivíduos de cor; Havana concentrava cerca de 28% da população total de Cuba e era a província mais populosa da ilha. [9] A presença ostensiva dessa população de cor na segunda metade do século XIX estava atrelada ao tráfico de escravizados/as que seguiu crescente em Cuba até a década de 1860 (OROVIO, 2009; SCOTT, 1991; SANTOS, 2012).

O ayuntamiento de La Habana, que pertencia à província de La Habana reunia, em 1877, pouco mais de 198 mil habitantes; dos quais cerca de 18 mil homens de cor e 28 mil mulheres de cor. [10] A província inteira, que incluía 12 Partidos Judiciales Bejucal, Guanabacoa, Guínes, La Habana (dividida em 7), Jaruco, San António de los Baño – tinha mais de 435 mil habitantes. [11] Neste ano, as mulheres de cor livres seguiam sendo maioria e somavam mais de 39 mil; homens de cor livres, por sua vez, somavam pouco mais de 30 mil. Em se tratando da população escravizada, homens somavam mais de 20 mil; mulheres cativas, mais de 18 mil. Coartados somavam 1 134; coartadas, 1 568. [12]

Estes e outros dados indicam que, quando a primeira guerra de independência de Cuba estalou, as mulheres de cor já eram a maioria da força de trabalho das ruas das cidades e vilas, em se tratando da venda de mercadorias e serviços; essas mulheres seguiram sendo maioria, por isso, certamente foram alvo reiterado de vigilância em Havana, já que ocupavam ostensivos postos de trabalho (HAZARD, 1928; CASTILLO e TERRY, 2011; MATA, 2015; LANIER e CASTILLO, 2016).

 

Clivagens de gênero

Os dados do Diccionario Geografico, Estadistico, Historico, de la isla de CUBA, elaborado no início da segunda metade do oitocentos também contribui para que possamos compreender que, além de uma hierarquização racial e de classe, as atividades laborais também apresentavam clivagens de gênero. [13] Das mais de cem atividades detalhadas neste documento, referentes à jurisdição de Havana, as mulheres de cor exerciam somente doze: costureiras, lavadeiras, tecelãs, professoras, parteiras, dedicadas aos afazeres do lar, modistas, preceptoras, cozinheiras, doceiras, proprietárias e serventes. Este dado indica que as mulheres estavam muito mais cerceadas na chance de conseguir ocupações remuneradas do que os homens, mesmo os de cor. A historiadora Oilda Hevia Lanier (2016) chegou à mesma conclusão; para a pesquisadora, fossem livres ou libertas, para as mulheres, havia “escassos ofícios permitidos [...] [e estes], em geral, eram os mesmos para ambas”.


A ausência de mulheres brancas ou de cor, nos quadros da Polícia de Havana, também endossam a constatação da interdição imposta às mulheres no mercado de trabalho colonial; reiteram a presença de hierarquias de gênero, que vetavam à elas, o acesso à postos de trabalho considerados de exclusividade dos homens. [14]

Para o historiador Alejandro de la Fuente (2009) a “cultura de escravização continha importantes distinções de gênero”; as atividades laborais estavam associadas a escravos de um ou outro sexo. O trabalho na construção, por exemplo, nos quais foram empregados milhões de cativos, era executado exclusivamente por homens; em se tratando dos contratos para formação de artesãos, os aprendizes eram invariavelmente homens. As mulheres, por sua vez, controlavam as atividades do setor terciário; ocupações tidas pelas autoridades, como “intrinsecamente femininas”. Dessas mulheres se exigia um comportamento condizente a escrúpulos religiosos e morais; aos homens as atividades atribuídas pelas autoridades coloniais eram justificadas com o intuito de impedir furtos, fugas e levantamentos (FUENTE, 2009).

 O trabalho na área educacional executado por mulheres nos ajuda a entender o enquadramento de atividades laborais por gênero; às mulheres de cor que se ocupavam de educar crianças de até 6 ou 7 anos de idade, até 1844, não era exigida titulação, ou seja, formação acadêmica ou profissional, mas sim, antecedentes morais, decoro e higiene, fato que indica como esta categoria de trabalhadoras estava submetida a juízos de valor comportamental, de caráter, muito mais subjetivos que objetivos, estes sim, atrelados às qualificações técnicas e teóricas necessárias para execução de funções no mercado de trabalho (ZEQUEIRA, 2015).

Em verdade, às mulheres eram cerceados meios de se emanciparem; os artifícios para isso envolviam, além de aspectos subjetivos de gênero, aspectos de hierarquia racial; entre a década de 1850 e 1860, quando a primeira Escuela de Tipógrafas foi inaugurada em Havana, para garotas entre 8 e 15 anos de idade, havia um pré-requisito: que fossem brancas (MATA, 2016). Outro dado evidencia como o mundo do trabalho colonial era perverso com as mulheres, em especial, as negras. Das três atividades de maior prestígio e remuneração elencados no censo, as mulheres inexistiam; não havia advogadas ou mulheres escreventes no registro do censo e, entre as 116 mulheres identificadas como proprietárias, nenhuma delas era uma negra livre. [15]

Em se tratando de remuneração e prestígio, a maioria das trabalhadoras de cor, à semelhança de seus pares, homens negros livres, exerciam atividades com menores soldos e respeitabilidade social; com menores exigências dos níveis de escolaridade e maior esforço físico. Das lavadeiras de Havana registradas no Diccionario Geografico, Estadistico, Historico, de la isla de CUBA, conforme indicado anteriormente, 983 eram brancas; negras e mestiças somavam pelo menos 3 549 mil. Dedicando-se ao ofício de cozinheiras, 408 eram mulheres de cor; brancas não passavam de 72. [16]

Até a primeira metade do Oitocentos, em se tratando das mulheres de cor que trabalhavam como professoras, o soldo era baixo; variava entre um real por semana pelo ensino de doutrina [cristã], leitura e escrita; incluir o ensino de costura ampliava o valor em dois reais. Também se pagava dois reais semanais pelo aprendizado da escrita e quatro reais semanais para aprender a cozinhar (MATA, 2016). Cabe detalhar que algumas mulheres de cor professoras, sequer recebiam algum soldo; isto é, algumas trabalhavam quase gratuitamente e, acerca das dificuldades econômicas a que estavam submetidas ao atuar como professoras e sendo mulheres, a parda livre Juana Pastor asseverou: “[...] meu sexo não me permite adquirir com meu pessoal trabalho o necessário". Para o historiador Pedro Deschamps Chapeaux, “[...] inegavelmente, o setor de menores possibilidades econômicas para o negro ou mulato, livres, era o do ensino” (CHAPEAUX, 1971; MATA, 2016).

Entre as décadas de quarenta e cinquenta do oitocentos, as parteiras, por sua vez, ganhavam 4 pesos por turno diurno (manhã ou tarde) e 8 pesos pelo turno noturno, nos partos que fossem até o amanhecer. Também ganhavam 4 pesos ao dia para cuidar do umbigo dos recém-nascidos (CHAPEAUX, 1971; RODRIGUEZ apud ZEQUEIRA, 2015).

As informações ora apresentadas nos levam a perceber que a hierarquia racial e de gênero da sociedade colonial se refletia no setor econômico, no mercado de trabalho. Dito de outra maneira percebemos que às mulheres, em especial as de cor, a sociedade colonial reservava papeis determinados – ainda que eles fossem por vezes subvertidos – em geral, de pouco ou nenhum prestígio, cuja renda era baixa.

Os dados do Diccionario Geografico, Estadistico, Historico, de la isla de CUBA, 1863, apesar de detalhados, todavia, são inconclusivos se tomarmos o amplo mercado de trabalho de Havana como parâmetro, visto que não incluem outra dezena de atividades exercidas por homens e mulheres e excetuam os/as escravizados/as – estes/as trabalhadores/as exerciam outras atividades que escaparam a este registro. [17]

Além das doze atividades que constam do Diccionário, as mulheres de cor, escravizadas, libertas e livres se ocupavam como lavadeiras, passadeiras, costureiras, cozinheiras, prostitutas, enfermeiras, comerciantes, senhoras de escravos e amas de leite; os homens, por sua vez, trabalhavam como condutores de uma variedade de veículos de passageiros e de cargas, carpinteiros, pintores, cozinheiros, peões, aguadeiros, sapateiros, pedreiros, estivadores, dentre outras atividades (LANIER, 2016; FUERTES, 2008). É possível, portanto, que a administração colonial não desse conta de registrar todas as atividades laborais desempenhadas por esses/as homens e mulheres. Dados dos censos elaborados em 1842 e 1862, reunidos pela historiadora Oilda Hevia Lanier, reiteram essa dificuldade. Das doze ocupações presentes no Diccionario Geografico, Estadistico, Historico, de la isla de CUBA, 1863, não consta nenhuma mulher de cor vendedora; no censo de 1846, haviam 106 (LANIER, 2016). [18]

Outras fontes, em especial da Hacienda cubana indicam que, vendedoras, locatárias, comerciantes, prostitutas, enfermeiras, aguadeiras, apesar de ausentes dos censos do governo, tinham importância na dinâmica do espaço urbano e socioeconômico cubano (CEDRAZ, 2019).


Anúncios de jornais publicados entre 1791 e 1815, por sua vez, indicam que escravizadas também exerciam as atividades de lavadeiras, cozinheiras, costureiras, enfermeiras, doceiras, vendedoras, jornaleiras, cuidadoras de crianças e serviços domésticos. Já os escravizados trabalhavam como jornaleiros, ferreiros, vendedores, sapateiros, alfaiates, caleseros (condutores de carruagens), cozinheiros, tabaqueiros, padeiros, alambiqueiros, cabeleireiros, carpinteiros, barbeiros, dentre outras atividades (SANTOS, 2012). Relacionar estes dados aos dados do Diccionário elaborado por Don Jacobo de la Pezuela expõe que, numa sociedade racializada, sair do cativeiro não significava se afastar da órbita escravista; mesmo estando livre as atividades laborais exercidas pelos de cor não seriam, necessariamente, menos árduas e/ou melhor remuneradas. Por fim cabe indicar que, à semelhança do que ocorreu com os dados relativos aos/às livres de cor do Diccionário elaborado em 1863, nos anúncios relativos a escravizados/as, 24 atividades estavam destinadas a homens e apenas 9, às mulheres, refletindo as menores possibilidades de acesso a atividades laborais para elas. (SANTOS, 2012).

Estes dados expõem que, em verdade, ainda que a historiografia venha identificando que, em Cuba, homens e mulheres brancos/as e não brancos/as trabalharam de modo associado, executando atividades laborais iguais, em parceria, sob determinadas circunstâncias, essa associação não significou equivalência; as hierarquias de raça, classe e gênero se fizeram presentes, expondo as clivagens impostas pela sociedade colonial (SCOTT, 1991; CHAPEAUX, 1971; CHAPEAUX e RIVA, 1974; FRAGINALS, 2014).

 

NOTAS

1. O Diccionario elaborado em 4 volumes foi uma fonte importante pois reune detalhadas informações de Cuba; clima, geografia, agricultura, reino animal e, também, organização governamental; dados acerca da divisão política, militar, eclesiástica, judicial, marítima e administrativa da colônia. PEZUELA, Jacobo de la. Diccionario Geografico, Estadistico, Historico, de la isla de CUBA. 1863, p. 134 e 135, Tomo III, disponível na Biblioteca Nacional da Espanha http://bdh-rd.bne.es/viewer.vm?id=0000041269&page=1.

2. Pezuela, Diccionario Geografico, p. 350-371, Tomo III.

3. Ibid.

4. Pezuela, Dicionario Geografico, p. 181 e 298, Tomo III.

5. Pezuela, Dicionario Geografico, p. 163, Tomo III.

6. Cuba teve três conflitos bélicos; o primeiro, denominado Guerra de Dez Anos teve início em 10 de outubro de 1868 e só terminou em 10 de fevereiro de 1878, quando a liderança branca da insurreição selou um acordo com a Espanha, o Pacto de Zanjón; o fim da guerra foi negociado sem a independência e sem a abolição da escravidão. Em 1879 começou a Guerra Chiquita; o segundo conflito reuniu insurretos inconformados com o Zanjón; esse conflito foi sufocado pela Espanha em 1880. Em 1895 uma nova insurreição começou; este terceiro conflito só terminou em 10 de dezembro de 1898, com a assinatura do Tratado de Paris, através do qual a Espanha se comprometia em se retirar de suas possessões de ultramar.

7. GARCÍA, 2003; SANTOS, 2012; MATA, 2015.

8. HAZARD, 1928, p. 85.

9. MATA, 2015, p. 27, 36 e 255; CUBA, p. 228, 231, Volume 1, Tomo I.

10. Ayuntamiento: Instância política que dirigia e administrava uma cidade. VALLE, 1952.

11. Ver CUBA, p. 142, Volume 2, Tomo I.

12. A lei espanhola estabelecia que, um/a escravo/a que oferecesse uma quantia substancial como pagamento inicial sobre seu preço de compra se tornava um/a coartado/a; a coartación possibilitava a autoemancipação e criava uma categoria intermediária entre escravo e livre”. SCOTT, 1991, p. 31. Censo da população de Havana realizado em 1877. CUBA. Los censos de poblaión y viendas en Cuba: estimaciones, empadronamientos y censos de poblacion de la época colonial y la primera intervencion norteamericana, p. 132, Volume 2, Tomo I, Comite Estatal de estadísticas - Instituto de Investigaciones Estadísticas.

13. Pezuela, Dicionario Geografico, pp. 350-371, Tomo III.

14. Para compreender melhor como essa hierarquia de gênero operava e sua amplitude no mercado de trabalho urbano de Havana ler: CEDRAZ, 2019.

15. Pezuela, Dicionario Geografico, pp. 350-371, Tomo III.

16. Ibid.

17. Pezuela, Dicionario Geografico, Tomo I e III.

18. Pezuela, Dicionario Geografico, pp. 350-371, Tomo III.

 

Referências

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Alejandro de la Fuente, “Esclavitud, 1510-1886” in Consuelo Naranjo Orovio (Org.), Historia de Cuba, Madrid, 2009.

Consuelo Naranjo Orovio, “Evolución de la populación desde 1760 a la actualidad”, in Consuelo Naranjo Orovio (Org.), Historia de Cuba, Madrid, 2009.

Digna Castañeda Fuertes, “La mujer negra esclava en el siglo XIX cubano: su papel en la economía”, Revista Brasileira do Caribe, Goiânia, vol. VIII, nº 16, 339-361, 2008.

Georgia Dominique Vanessa Cedraz Lopes, “‘Trabalhando por conta própria’: mulheres de cor e trabalho urbano na Havana entreguerras (1868-1880)” (Dissertação de mestrado), Salvador: Universidade Federal da Bahia (UFBA), 2019.

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Iacy Maia Mata, Conspirações da raça de cor: Escravidão, liberdade e tensões raciais em Santiago de Cuba (1864-1881), Campinas, SP: Editora Unicamp, 2015.

Jacobo de la Pezuela, Diccionario Geografico, Estadístico, Historico, de la isla de CUBA. Madrid: Imprenta del Establecimiento de Mellado, 1863, Tomo I e III. Disponível na Biblioteca Nacional da Espanha. Disponível em: http://bdh-rd.bne.es/viewer.vm?id=0000041269&page=1. Acesso em: 24 mar. 2019.

Oilda Hevia Lanier, “Reconstruyendo la historia de la exesclava Belén Álvarez”, in Daisy Rubiera Castillo e Inés María Martiatu Terry (org.). Afrocubanas: historia, pensamiento y prácticas culturales. La Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 2011.

___. “Historias ocultas: Mujeres dueñas de esclavos en la Habana colonial (1800-1860)”, in Oilda Hevia Lanier e Daisy Rubiera Castillo, Emergindo del silencio: Mujeres negras en la Historia de Cuba. Editorial de Ciencias Sociales, La Habana, 2016.

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María del Carmen Barcia Zequeira, Oficios de mujer – Parteras, nodrizas y “amigas”: Servicios públicos en espacios privados (Siglo XVII-siglo XIX), Santiago de Cuba: Editorial Oriente, 2015.

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Samuel. Hazard, Cuba, a pluma y lapiz. Habana: Cultural S.A., 1928, Tomo I, p. 84 e 85. Disponível em: <https://archive.org/details/CubaAPlumaYLapizT1/page/n29 > acessado em 04/04/2019 às 22:00.

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Walter Goodman, Un artista en Cuba, Havana: Consejo Nacional de Cultura/Empresa Consolidada de Artes Gráficas, 1965.

 

GEORGIA DOMINIQUE VANESSA CEDRAZ LOPES. Doutoranda em História Social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA); Mestra em História Social (UFBA); professora da Rede Pública de Educação Básica do Estado da Bahia; integrante da Linha de Pesquisa Escravidão e invenção da liberdade. Algumas fontes e conclusões apresentadas neste texto são parte da dissertação de mestrado intitulada “Trabalhando por conta própria”: mulheres de cor e trabalho urbano na Havana entreguerras (1868-1880)” defendida no Programa de Pós-Graduação em História Social da UFBA; pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB). Contato: georgiacedraz@gmail.com.




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[A partir de janeiro de 2022]
 

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UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO

Número 190 | dezembro de 2021

Curadoria: Maria de Fátima Novaes Pires (UFBa) e Rogério Soares Brito (UNEB)

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