quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

FERNANDA PESSOA BARBOSA, ESMERALDA GUIMARÃES MEIRA | Imbricações entre linguagem, história e sociedade: um estudo de “Viola quebrada”, de Camillo de Jesus Lima



Introdução

Este trabalho tem como corpus de pesquisa o poema “Viola Quebrada” de Camillo de Jesus Lima, texto escrito e com primeira publicação em 1945 no livro homônimo, posteriormente publicado também na Antologia Poética de Camillo de Jesus Lima, pela editora da UESB em 1987 e em Obra Poética (2014), coletânea das obras publicadas durante a vida do escritor, uma edição da Assembleia Legislativa da Bahia.

Camillo, com toda a carga social que deu às obras, principalmente na década de 1940, apresenta nesse poema em estudo os sentimentos, as mágoas e as saudades de um sertanejo que foi forçado pela seca a sair de sua região. O desabafo do eu lírico rompe o silencio imposto pela sociedade ao mesmo tempo em que demonstra a sensibilidade sertaneja, ao ver em pedaços sua viola – amiga confidente e companheira – pelas mãos de um subdelegado.

Essa cena do poema Viola Quebrada nos leva a querer saber qual a relação entre linguagem, história e sociedade, destacando a hipótese de que a linguagem poética traduz sentimentos de resistência e engajamento dos sujeitos líricos, localizados historicamente em um tempo e um espaço. São notáveis as relações que os indivíduos estabelecem com o mundo através das diversas formas de linguagens, uma vez que eles atuam como sujeitos sociais, participantes ativos do movimento e das transformações culturais e históricas.

Para a compreensão dos sentidos do texto foi relevante analisar o papel da poesia como forma de resistência, além da apresentação do contexto histórico, ideológico e social em que estão inseridos obra e autor e suas imbricações na construção do poema. Portanto, este trabalho além de possibilitar uma reflexão sobre a linguagem artística como meio de expressão e aprendizado sobre o mundo e o próprio ser humano, traz para a esfera acadêmica os estudos sobre Camillo de Jesus Lima, escritor que muito contribuiu com a literatura baiana no século XX, como poeta, cronista e crítico de rodapé, ampliando o panorama literário brasileiro.

 

Pelos caminhos da história e da linguagem

As investigações e análises realizadas partem da historicidade dos fenômenos, dos homens enquanto sujeitos sociais, históricos e políticos, compreendendo a história das sociedades como um movimento complexo e contínuo de transformações. Assim, a análise literária se alinha a uma perspectiva crítica, diante da necessidade de

 

[…] entender ideologias – as ideias, os valores e os sentimentos por meio dos quais os homens vivem e concebem a sociedade em diversas épocas. E algumas dessas ideias e valores só se tornam disponíveis a nós na literatura. Entender ideologias significa entender tanto o passado quanto o presente de modo mais profundo; e tal entendimento contribui para a nossa libertação (EAGLETON, 2011).

 

A partir disso, tornou-se imprescindível, primeiramente, a seleção e o estudo de um aporte teórico nesta perspectiva e a organização do material a ser analisado de escritos do e sobre o autor. Em seguida, foram analisados os elementos que compõem o poema em questão e o gênero literário, assim como seu autor.

O referencial teórico deste trabalho é formado por autores que versam sobre as concepções e aspectos da linguagem, principalmente a linguagem poética, diante das relações que os indivíduos estabelecem coletiva e individualmente enquanto sujeitos sociais e históricos. Nessa perspectiva, as contribuições de Bosi (1977; 2015), Candido (1985), Eagleton (2011), Fiorin (2013) e Meira (2017) foram fundamentais no auxílio e na compreensão de alguns conceitos caros a este recorte que fizemos acerca das imbricações entre linguagem, história e sociedade.

No que se refere a linguagem, Fiorin (2013) a explica como uma atividade simbólica especifica da espécie humana, que possibilita representar, perceber e dar sentido ao mundo, influenciar, expressar a subjetividade, informar e comunicar. Através dela transmitem-se e guardam saberes e culturas, memória, identidade; cria, mantém e estabelece vínculos sociais, fala e explica a si mesma, é fonte de satisfação, forma de ser e agir no mundo e conceber novas realidades. Dessa forma, cita o referido autor:

 

A linguagem […] é uma inesgotável riqueza de múltiplos valores. A linguagem é inseparável do homem e segue-o em todos os seus atos. A linguagem é o instrumento graças ao qual o homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base última e mais profunda da sociedade humana. [..] a linguagem não é um simples acompanhante, mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento. (HJELMSLEV apud FIORIN, 2013).

 

Assim, surgem inúmeras formas de linguagem, dentre elas a própria da poesia. Bosi (2015), ao discorrer sobre a poesia, esclarece que ela sempre acompanhou os indivíduos, assim como a linguagem, antes mesmo da invenção da escrita, pois “ela lhes deu o abrigo da memória, os tons e as modulações do afeto, o jogo da imaginação e o estimulo para refletir, às vezes agir”.

Segundo Bosi (2015), o papel da poesia na história é uma forma de resistir, de iluminar os escuros, desenhar contornos, preencher vazios, retirar rostos, vozes e expressões relegadas e esquecidas do anonimato. A poesia também mantém viva a palavra (forma e significado), revela o outro, representa o mundo, desconcerta, descondiciona os olhares, aproxima o que estava longe e aquilo que pareceria nítido pode tornar-se estranho.

Candido (1985), por sua vez, também explica a relação das formas artísticas - a literatura, a poesia – com a linguagem, a história e o seres humanos (o artista e também o receptor), defendendo que os sujeitos, constituídos a partir das sociedades em que vivem, darão forma a realidade através da sua criatividade, de sua própria percepção crítica, da imaginação, do lugar em que ocupa e de suas convicções, pois o

 

Poeta não é uma resultante, nem mesmo um simples foco refletor; possui o seu próprio espelho, a sua mônada individual e única. Tem o seu núcleo e o seu órgão, através do qual tudo o que passa se transforma, porque ele combina e cria ao devolver à realidade" (SAINTE-BEUVE, apud CANDIDO, 1985).

 

Desse modo, Bosi complementa ressaltando que “um poeta não vive em uma outra História, distante ou alheia à história da formação social em que escreve”. Assim, mesmo com toda a liberdade que a linguagem e a poesia lhe permitem, o escritor diz uma verdade quando escreve, a sua verdade, porque “o poeta é o primeiro a dar, pela própria composição do seu texto, um significado histórico às suas representações e expressões”. A escrita passeia pela subjetividade do poeta e os vários tempos e espaços que a compõem, valores, ideologias e a consciência histórica do autor e do leitor.

Eagleton (2011) também discorre sobre as relações entre literatura e história, explicando que para compreender a literatura de forma plena realmente é preciso entender o processo social no qual ela está envolvida, pois

 

As obras literárias não são misteriosamente inspiradas, nem explicáveis simplesmente em termos da psicologia dos autores. Elas são formas de percepção, formas específicas de se ver o mundo; e como tais, elas devem ter uma relação com a maneira dominante de ver o mundo, a ‘mentalidade social’ ou ideológica de uma época (EAGLETON, 2011).

 


 Essa ideologia, segundo o autor, é resultado das relações dos sujeitos com o mundo, as relações concretas em sociedade em um tempo, um momento e um espaço específicos. Além disso, os homens são restringidos nas suas relações sociais pela necessidade material, assim não são livres para fazer suas escolhas, pois estas dependem fortemente do desenvolvimento e dos meios de produção. Dessa forma, compreender uma obra literária

 

significa mais do que interpretar seu simbolismo, estudar sua História Literária e incluir anotações sobre fatos sociológicos relacionados. Significa, antes de tudo, compreender as relações complexas e indiretas entre essas obras e os mundos ideológicos que elas habitam – relações que surgem não apenas em ‘temas’ e ‘questões’, mas no estilo, ritmo, na imagem, qualidade e […] forma (EAGLETON, 2011).

 

Eagleton explica também que “cada escritor tem uma posição individualizada na sociedade, reagindo a uma História geral a partir do seu próprio ponto de vista, decifrando-a em seus próprios termos concretos”. Desse modo, o escritor Camillo de Jesus Lima, como um intelectual de esquerda atuou como um verdadeiro “ator social da história”. Deu a suas produções um engajamento social, revelando o lado da história em que esteve na luta de classes, posicionando-se em defesa das causas do proletário, dos mais pobres; um autor progressista, que propôs a si mesmo que sua arte não se resumiria em sentimentalismo, mas que tivesse um papel e força na história:

 

Na cidade de Conquista, onde a tragédia humana me ensanguentou a sensibilidade, comecei a compreender que a minha arte devia ter outra finalidade. Devia esquecer o mundo das emoções subjetivas e ter uma função social. Lembrei-me então das palavras de Mathews Arnold: a poesia deve ser uma crítica da vida, e achei razão na sentença de Wordsworth: a poesia é uma atitude do espírito diante dos fenômenos da existência. Deixei de ser um místico da beleza e fiz da arte uma arma de combate. (LIMA apud MEIRA, 2017).

 

O poeta Camillo de Jesus Lima nasceu na cidade de Caetité-Bahia, mas logo se mudou com os pais para outras cidades, permanecendo por um bom tempo em Vitória da Conquista, lugar em que viveu grande parte de sua vida. Nesta cidade escreveu para jornais como cronista e crítico literário, além de colaborar com jornais da capital baiana e de outros estados brasileiros. Desde a sua adolescência até sua vida adulta manteve um fluxo de produção literária pulsante, ora com poemas de diferentes linhas estéticas, ora como ficcionista, escrevendo crônica, conto e romance.

Em tese sobre Camillo de Jesus Lima, Meira (2017) explica que os temas abordados pelo escritor em suas obras – principalmente os da década de 40, em que se dedicou a um estudo mais profundo do materialismo histórico-dialético – perpassam a luta dos trabalhadores, as dificuldades enfrentadas nas regiões mais recônditas do sertão, nas pequenas cidades onde teve a experiência de conviver com a realidade de homens e mulheres. Nos seus textos ele se posiciona e expõe suas opiniões criticamente, provoca reflexões e influencia seus leitores à uma análise aprofundada da realidade, abordando temas que não se limitam a uma leitura superficial e acomodada da história, deixando nas entrelinhas da literatura seu forte engajamento social. Camillo, segundo Meira (2017), fazia das suas obras um ato de resistência diante das intempéries da história e acreditava que a sociedade deveria ser mais justa, igualitária e livre.

As relações e as imbricações entre os diversos tempos e espaços que compõem o texto literário em análise exigem uma leitura aprofundada das várias histórias que fazem parte de sua construção: a história do autor, a história da poesia, a história contada nos versos e a história que se reconstrói em cada nova leitura.

 

Tocando a viola – uma breve análise

Antes de começar os primeiros versos do poema “Viola quebrada”, Lima (1987) faz uma pequena introdução para situar o leitor sobre os acontecimentos, que seguem aqui. João Macambira foi forçado a sair do rancho em que vivia fugindo da seca no sertão. No lugar em que se refugiara, começa a tocar a sua viola, a quem tem por amiga e confidente, o que desagrada o subdelegado do arraial, que, jogando-a contra as pedras, acaba por quebrá-la. Assim, iniciam seus versos:

 

- ‘Seu moço, qui é qui eu lhe fiz

Pra vancê fazê assim?

Rebentou minha viola,

Bateu vinte vez em mim.

Qui é qui a pobre da inocente

Fez de male, minha gente?

Esse farso testemunho

Mas quem foi que alevantou?

Quem bate numa viola

Não tá bem certo da bola:

Bate ni Nosso Sinhô.

 

Escuta, seu delegado,

Escuta o qui vou falá:

Anceis aqui não têm alma,

A parti do maiorá.

Quem pega numa viola

Cum mão de raiva, zangado,

Dá tapa in cara de mãe,

Chama o pai de excomungado.

 

O poema traz uma sonoridade própria pela musicalidade de seus versos, escritos em redondilhas e em rimas consoantes, como o caso das palavras assim – mim, inocente – gente, viola – bola, delegado – zangado – excomungado, e tantos outros exemplos em todo o poema. Os versos de Viola quebrada transmitem uma intensa influência da cultura popular, observada na preservação da linguagem coloquial (tipicamente sertaneja, desprestigiada e tantas vezes vista como incorreta), como também na voz do eu lírico, um homem simples, provavelmente não escolarizado, mas com um nível de consciência política invejável ao explicitar a ideia de diferença entre classes sociais. Em seguida, João Macambira demonstra a dor e toda a sua insatisfação por tudo que aconteceu com sua “companheira de infelicidade”:

 

Minha viola de pinho…

Quanta vez, pelo caminho,

Queimando de tanto só,

Eu tirava ela das costas;

Sentava junto da estrada

E cantava uma toada

Tão triste de fazê dó:

 

Nos mato nem uma foia!

Os pé pocado de boia

As mão tremendo de fome,

Quando eu tirava das cordas

A toada que ela gemia,

O male, a dô esquecia,

Ficava memo outro home.

 

A barriga no espinhaço,

Cum treis dias de jijum,

Memo assim não dava ela

A outro por preço nenhum […].

 


O som da viola, o toque nas cordas, a junção das notas, os acordes, parece que tudo isso na viola dizia aquilo que ele mesmo já não mais conseguia, pois a dor já lhe escorria pelos olhos. O cansaço, a tristeza refletida na paisagem árida e seca do sertão, a fome, as condições mínimas de sobrevivência, os animais morrendo são imagens construídas pelo eu lírico em suas palavras ao subdelegado. Essas imagens também tomaram forma em grandes obras da literatura brasileira, como Os Sertões, de Euclides da Cunha, A Bagaceira, de José Américo de Almeida, O Quinze, de Rachel de Queiroz, Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto e tantos outros.

Desse modo, tendo que suportar as intempéries da vida no sertão, o eu lírico, nos versos seguintes, deixa explicita a diferença da sua vida com a do seu interlocutor, mesmo os dois vivendo em um ambiente de aridez e falta de recursos, as condições de vida entre os dois se polarizam:

 

Vamincê, patrão, é rico;

Veve ca barriga cheia,

Den-de-casa, mais os fio;

Não anda pru terra aeia.

Ancê nunca viu a cara

(Livre ancê Santa Quilara)

Da fome – a véia coroca

Qui não tem alma nem pena. –

Ancê nunca abandonou

Uma casinha pequena

Pra caça o que comê;

Ancê nunca viu, na porta,

os bois chorando e gemendo,

Percurando o que bebê.

Ancê nunca viu um fio

Morrê de fome nos braço;

Ancê é gordo e luzido,

É bonito e bem ricaço;

Ancê nunca viu a roça

Esturricando do só

E a tarde morrendo, triste,

Sem um grito de sofrê,

Sem um pio de tiê,

Sem o choro de noitibó.

Ancê nunca viu a serra

Vremeia de fazê medo

E o sol queimando e acabando

Com tudo derna de cedo

Ancê nunca viu a fome

Levando ancê pulo braço…

Ancê é gordo e luzido,

É fortão e bem ricaço…

 

João Macambira tem que lidar com a fome, com a perda dos seus animais, resistir ao sol flamejante queimando tudo que existe e com a desterritorialização. Já o subdelegado não precisa deixar seus familiares nem sua terra para procurar subsistência em outro lugar, não passa fome, não precisa ir à roça e lidar com uma terra seca ou ver o gado morrer. O eu lírico, consciente das divisões de classe, chega a proferir duas vezes nessa estrofe: “ancê é gordo e luzido/ É bonito e bem ricaço”, somente trocando o “bonito” por “fortão” (LIMA, 1987).

As diferenças nas condições de vida apontadas pelo eu lírico entre sua história e a do subdelegado se cruzam em uma divisão maior, a que separa os detentores do poder e os que são oprimidos por esse mesmo poder. É perceptível essa construção da ideia de classes sociais no poema, história que retrata o modelo de mundo moderno, em que os indivíduos são separados por suas condições materiais de existência.

O conceito de classe é muito amplo e de extrema importância dentro da teoria marxista da história, distinguindo, na sociedade capitalista, burgueses e proletários. Marx, segundo Bottomore (2001), assim define uma classe plenamente formada:

 

Na medida em que milhões de famílias vivem sob condições econômicas de existência que separam seu modo de vida, seus interesses e a sua cultura daqueles das outras classes e as colocam em posição hostil a essas outras classes, elas formam uma classe. Na medida em que há apenas uma interconexão local entre esses camponeses, de pequenas propriedades, e a identidade não gera nenhuma comunidade, nenhum elo nacional e nenhuma organização política entre eles, tais pessoas formam uma classe.

 

Segundo Marx e Engels (2009), a luta entre as classes foi, por diversas vezes, o motor que impulsionou as transformações históricas, e estas continuam a ocorrer desde os pequenos até os grandes atos, pois as condições materiais dos homens têm grande peso em todas as áreas de suas vidas, e isso é ainda mais visível na atualidade: “[…] opressores e oprimidos, em constante opressão, têm vivido uma guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada […]” (ENGELS, MARX, 2018).

Essas concepções do materialismo histórico tiveram um papel imprescindível na produção literária de Camillo, que, como já dito anteriormente, dedicou boa parte de sua vida ao estudo do método dialético, principalmente na década de 1940, declarando-se convictamente como um intelectual de esquerda.

Camillo, segundo Meira (2017), mesmo ainda não sendo filiado ao Partido Comunista em 1945, vê no materialismo uma nova concepção e um método para compreensão dos fenômenos sociais e culturais. Mesmo com as limitações que existiam no que se refere à aquisição de livros e revistas marxistas, meios de veiculação e de divulgação dos conceitos que fundamentavam seus ideais, não se sentiu impedido, manteve sua dedicação aos estudos vinculados a esse método e buscava sempre uma forma de compartilhar o pensamento marxiano nos jornais com os quais colaborava:

 

Usava a sua condição de escritor colaborador nos jornais baianos, em especial, em O Combate, para, no uso da palavra, tratar dos problemas sociais e políticos que afligiam a sociedade, esclarecendo aos seus leitores por quais razões havia tanta desigualdade social, apontando, nas entrelinhas da literatura, algumas possibilidades de reações. (MEIRA, 2017).

 

Além de “Viola Quebrada”, muitos outros poemas, contos, críticas e crônicas do autor revelam a necessidade e o desejo que de que sua arte estivesse em favor dos pobres, dos sofredores, do proletariado. Suas produções apresentam sentimentos próprios dos sujeitos de sua época, diante dos grandes acontecimentos que ocorreram na década de 1940, como o fim da Segunda Guerra Mundial e do Estado Novo de Getúlio Vargas. E mesmo plenamente consciente das relações de opressão que envolvem os diversos seguimentos da sociedade e diante do clima de tensão dos anos que se seguiam, “mesmo descontente, jamais quis se tornar um cético diante da vida. Pelo contrário, mostrou, por convicção, que o mundo poderia ser melhor, se tomasse como princípio a luta por uma sociedade mais igualitária. ” (MEIRA, 2017).

Na vigésima estrofe do poema, o eu lírico mostra-se cada vez mais certo de que as condições econômicas estabelecem a divisão de classes, assim como apartadas a sua concepção de vida e a que imagina ser a do subdelegado:

 

Ancê diz que nóis, seu moço,

Qui nem cigarra vadia,

Morre de não trabaiá.

Burro de carga, na vida,

Sela não pode leva.

Nóis não nasceu pra sê rico,

Nóis nasceu foi pra cantá.

Nóis nasceu abrindo os óio

Pras beleza do sertão.

Deixa nóis morrê de fome,

Que essa é a sina, patrão.

Deixa nóis botá, prus óio,

Feito em água o coração!

 


O eu lírico camilliano expressa com sensibilidade a forma como vê a cultura de sua gente, e assim como o autor Camillo de Jesus Lima não se deixa calar ante as adversidades impostas ao pobre sertanejo. João Macambira sugere, de forma crítica, que um dos motivos da destruição de sua viola seja por ela tornar mais amenos os grandes problemas que ele carregava consigo além de parecer inconcebível ao subdelegado imaginar o fato dele, abraçado à sua viola, cantar ao invés de trabalhar. Esse posicionamento assumido pelo subdelegado, que chama o eu lírico de “cigarra vadia”, reporta à fábula atribuída a Esopo e recontada por Jean de La Fontaine: “A cigarra e a formiga”.

Na referida fábula, a cigarra que passou o verão inteiro se divertindo acaba por não ter nenhum alimento quando chega o inverno, já a formiga desfrutará da fartura por ter trabalhado durante toda estação. A moral da estória é mostrar que as nossas atitudes têm consequências, o que acaba por atribuir a responsabilidade por sua situação de vida ao sertanejo. Porém, o eu lírico mostra-se consciente de seus esforços, do duro trabalho que tem de empenhar todos os dias para sobreviver. Ele não se ilude com a vida, prefere vê-la como é, declarando: “burro de carga, na vida, / sela não pode leva. / Nóis não nasceu pra sê rico, / nóis nasceu foi pra cantá”, pois está é a sua “sina” (LIMA, 1987).

Nos versos seguintes, o eu lírico percebe que lágrimas estão caindo dos olhos do subdelegado, que se sente comovido pelo desabafo do sertanejo:

 

Mas, pro qui é qui ancê chora?

Pru que é que ancê tá chorando,

Vendo os cacos da vida

Que foi ancê qui quebrou?

Tá chorando, delegado?

Tá sintindo arguma dô?

Pena de mim? mas, pru que?

Óia, eu digo a vamincê

Que eu, assim cumo estou,

Rasgado, passando fome,

Cumo um cachorro pestento

Qui Deus na terra jogou,

Feita em pedaço a viola

Que meu avô me deixou,

Óia, eu tô rindo, seu moço,

Eu não tenho nada, não

Eu tenho dentro dos óio

Tudo o qui eu vi no sertão.

 

A viola era herança do seu avô, que lhe acompanhava nos momentos de tristeza, alegria, infelicidade e desesperança. Agora, só lhe resta a memória de tudo que viu e viveu ao lado de sua companheira. Nos versos ficam explicitas as dificuldades e obstáculos que surgiram ao longo da vida do sertanejo que resiste. Essa resistência que se impõe também na linguagem, na forma escolhida e utilizada pelo autor para expressar tema tão recorrente e tão necessário, inclusive nos tempos atuais em que os sertanejos nordestinos continuam a atravessar, com miséria, seca, falta de apoio social e condições para o trabalho. Este também é o momento em que os olhares precisam se voltar para a revitalização de culturas populares, respeitando a diversidade linguística, comunicacional e artística.

Segundo Bosi (1977), a resistência é própria da linguagem poética, principalmente a partir do período conhecido como modernidade. No interior da modernidade, do sistema capitalista de produção, em que há a supremacia da razão, articulam-se conceitos e ideais de ordem, ciência, progresso, técnica, constituindo um modelo ocidental de nação, de sujeito, em detrimento da visão do outro, da realidade em si mesma, mascarada pela ideologia dominante da própria poesia. A ideologia dominante começa a ditar a consciência dos grupos sociais, os valores a serem seguidos, aquilo que deveria importar ou não, assim “entra na linha de frente do texto (poético) o sistema ideológico de conotações que vai escolher ou descartar imagens, e trabalhar as imagens escolhidas com uma coerência de perspectiva que só uma cultura coesa e interiorizada pode alcançar” (BOSI, 1977).

A poesia tem que subsistir em um momento em que a palavra, antes usada para dar sentido, nomear, unir, tomada pela ideologia “parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender” (BOSI, 1977).

A linguagem poética questiona o modelo: no lugar em que reina a ordem, a poesia surge com a desordem, desautomatiza, revela, desperta. A poesia como resistência propõe desestabilizar, romper, angustiar, criticar, revelar:

 

A poesia resiste à falsa ordem, que é, a rigor, barbárie e caos, ‘esta coleção de objetos de não amor’ (Drummond). Resiste ao contínuo ‘harmonioso’ pelo descontínuo gritante; resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo harmonioso. Resiste aferrando-se à memória viva do passado; e resiste imaginando uma nova ordem que se recorta no horizonte da utopia. (BOSI, 1977).

 

Nesse momento, recorre-se aqui mais uma vez a Bosi (1977), para pensar na relação entre poesia e ideologia. Porém, esse diálogo não se deve reduzir a uma interpretação superficial que se fixa na tese de que a poesia é o espelho da ideologia, porque é dialética “ela deve avançar firmemente para a antítese, que está na vida social e na linguagem poética (poesia, resistência à ideologia)”. Isso é muito bem retratado ao longo do poema, como uma crítica ao modelo de sociedade, a divisão social de classes, o desamparo aos necessitados, a opressão resultante de um sistema que exclui.

Essa visão crítica da realidade presente nas obras de Camillo é um retrato do que ele viveu assim como da sociedade de seu tempo, o que acaba por refletir também na inviabilidade de publicação de suas produções. Segundo Meira, diante dos acontecimentos do pós-guerra e seus efeitos no Brasil, Camillo passou a olhar ainda mais criticamente para as expectativas que nutria sobre sua produção literária.

 

Se em 1945 esteve motivado a publicar, […] a sua nova fase, diante dos acontecimentos do pós-guerra, das condições em que as editoras ficaram, sob a censura militar, não abrindo espaço às publicações consideradas de esquerda ou que tivessem quaisquer ligações com o socialismo/comunismo, fez com que o escritor, cada vez mais, apostasse na sua reclusão ‘nas costas d'África de São Pedro de Macarani’, alusão feita a São Pedro de Loanda. (MEIRA, 2017).

 

Seus estudos marxistas prosseguiram no tempo em que permaneceu em Macarani, lugar em que trabalhara, sendo obrigado a ficar longe da esposa e dos filhos para lhes dar o sustento. Seu refúgio, alento e motivação era a leitura. Em carta a seu amigo Clóvis relata:

 

Em compensação estou estudando muito o marxismo; estou fazendo, mesmo, modéstia à parte, uma grande cultura marxista, que hei de empregar, em melhores dias, a serviço do glorioso partido do proletariado. Hoje, Clóvis, só creio no Partido Comunista, e se este me faltasse, seria eu um verdadeiro barco sem vela e sem leme, a quem seria indiferente o porto ou os escolhos. Dia a dia me aprofundo mais na doutrina de Marx, – esse gênio que conseguiu criar não apenas um sistema filosófico, porém, toda uma concepção de vida, – norte à solução única do complicado problema social e humano. (Lima, 6.11.1946 apud MEIRA, 2017).

 

Camillo dedicava-se à leitura e a nova concepção teórico-metodológica que assumia e na qual cada vez mais se aprofundava. Foi provocado às leituras mais críticas da vida, da humanidade, da história, das relações de produção, na construção de uma literatura que não se resumia à beleza estética, mas ia ao encontro do homem como “ator social da história” e sujeito de transformação. Camillo “via, em tudo isso, uma possibilidade de mudança, pois construía, em meio ao caos, a esperança de melhores dias, além da concreta recompensa dos dias entregues à solidão: tornara-se um ‘marxista convicto”. (MEIRA, 2017).

Desse modo, assim se seguem os versos das duas últimas estrofes do longo poema:

 

Não chora, qui eu guardo os cacos

Pra amá e querê bem.

Coisa mió póde havê

Do qui a gente pode tê

O qui teve e já não tem?

 

Deus qui paga ancê, seu moço,

Sua raiva e cruerdade.

Meu patrão, ancê quebrou

Minha vida, meu amô,

- Uma viola de verdade. –

Mas comigo ancê deixô

A frô qui não morre nunca,

Qui vai comigo pra cova,

Sempre viva, sempre nova,

Sempre cheia de bondade:

Viola qui ninguém quebra,

Feitiço qui nóis conhece

Pulo nome de sodade!’…

 

Assim termina seu discurso, uma espécie de desabafo, pois as palavras parecem brotar com uma facilidade que chega a ferir o coração, que emocionam até mesmo o próprio subdelegado. O que guarda na memória é o dínamo que movimenta a sua existência e a sua resistência, são os momentos divididos, as paisagens vistas, os sentimentos compartilhados.

O poema “Viola Quebrada” apresenta muitos dos sentimentos dos indivíduos de seu tempo histórico, as inseguranças, questionamentos, insatisfações, injustiças do pós-guerra e seus efeitos na política, na cultura, na arte, na economia brasileira, além de fazer uma representação social de muitos sertanejos que sofrem com a seca da região, a exclusão social, o preconceito, a falta de amparo, apoio e dignidade.

 

Referências

BOSI, Alfredo. Entre a Literatura e a História. 2ª Edição. São Paulo: Editora 34, 2015.

___. O ser e o Tempo da Poesia. São Paulo: Ed. Cultrix, Ed. da Universidade de São Paulo, 1977.

BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2001.

CÂNDIDO, Antônio. Literatura e a Sociedade: estudos de teoria e história literária. 7. Ed. – São Paulo: Ed. Nacional, 1985.

EAGLETON, Terry. “Literatura e História”. In. Marxismo e Crítica Literária. São Paulo: Unesp, 2011.

FORIN, José Luiz (Org.). Linguística? O que é isso? São Paulo: Contexto, 2013.

LIMA, Camillo de Jesus. Antologia Poética. Vitória da Conquista: UESB, 1987.

LIMA, Camillo de Jesus. Obra Poética. v. 1. Salvador: Assembleia Legislativa, 2014.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. “Burgueses e Proletários”. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O Manifesto comunista. 4ª reimpressão. São Paulo: Editora Boitempo, 2005. Cap.01, p. 40-51.

MEIRA, Esmeralda Guimarães. O arquivista de si – história e memória do escritor Camillo de Jesus Lima. Tese (doutorado em Memória: Linguagem e Sociedade. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, 2017.

 

FERNANDA PESSOA BARBOSA. Bolsista PICIN, graduanda em Letras, Língua Portuguesa e Literaturas na Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas – Campus VI/Caetité e membro do Grupo de Pesquisa Cultura, Sociedade e Linguagem (GPCSL). E-mail: fernandapbarbosa@outlook.com.

ESMERALDA GUIMARÃES MEIRA. Doutora em Memória: Linguagem e Sociedade na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia; possui mestrado em Estudo de Linguagens pela Universidade do Estado da Bahia (2010). Atualmente é professora adjunta da Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas – Campus VI/Caetité e membro do Grupo de Pesquisa Cultura, Sociedade e Linguagem (GPCSL). Desenvolve pesquisas sobre o poeta baiano Camillo de Jesus Lima, com artigos, ensaios e críticas publicados em livro, revistas e anais de Congresso. E-mail: emeira@gmail.com.


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[A partir de janeiro de 2022]
 

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Agulha Revista de Cultura

UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO

Número 190 | dezembro de 2021

Curadoria: Maria de Fátima Novaes Pires (UFBa) e Rogério Soares Brito (UNEB)

Artista convidado: Eduardo Eloy (Brasil, 1955)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

logo & design | FLORIANO MARTINS

revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES

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