Introdução
Este trabalho tem como corpus de pesquisa o poema “Viola Quebrada”
de Camillo de Jesus Lima, texto escrito e com primeira publicação em 1945 no livro
homônimo, posteriormente publicado também na Antologia Poética de Camillo de Jesus Lima, pela editora da UESB em
1987 e em Obra Poética (2014), coletânea
das obras publicadas durante a vida do escritor, uma edição da Assembleia Legislativa
da Bahia.
Camillo, com toda a carga social que deu
às obras, principalmente na década de 1940, apresenta nesse poema em estudo os sentimentos,
as mágoas e as saudades de um sertanejo que foi forçado pela seca a sair de sua
região. O desabafo do eu lírico rompe o silencio imposto pela sociedade ao mesmo
tempo em que demonstra a sensibilidade sertaneja, ao ver em pedaços sua viola –
amiga confidente e companheira – pelas mãos de um subdelegado.
Essa cena do poema Viola Quebrada nos leva
a querer saber qual a relação entre linguagem, história e sociedade, destacando
a hipótese de que a linguagem poética traduz sentimentos de resistência e engajamento
dos sujeitos líricos, localizados historicamente em um tempo e um espaço. São notáveis
as relações que os indivíduos estabelecem com o mundo através das diversas formas
de linguagens, uma vez que eles atuam como sujeitos sociais, participantes ativos
do movimento e das transformações culturais e históricas.
Para a compreensão dos sentidos do texto
foi relevante analisar o papel da poesia como forma de resistência, além da apresentação
do contexto histórico, ideológico e social em que estão inseridos obra e autor e
suas imbricações na construção do poema. Portanto, este trabalho além de possibilitar
uma reflexão sobre a linguagem artística como meio de expressão e aprendizado sobre
o mundo e o próprio ser humano, traz para a esfera acadêmica os estudos sobre Camillo
de Jesus Lima, escritor que muito contribuiu com a literatura baiana no século XX,
como poeta, cronista e crítico de rodapé, ampliando o panorama literário brasileiro.
Pelos caminhos da história e da linguagem
As investigações e análises realizadas partem
da historicidade dos fenômenos, dos homens enquanto sujeitos sociais, históricos
e políticos, compreendendo a história das sociedades como um movimento complexo
e contínuo de transformações. Assim, a análise literária se alinha a uma perspectiva
crítica, diante da necessidade de
[…] entender ideologias – as ideias, os
valores e os sentimentos por meio dos quais os homens vivem e concebem a sociedade
em diversas épocas. E algumas dessas ideias e valores só se tornam disponíveis a
nós na literatura. Entender ideologias significa entender tanto o passado quanto
o presente de modo mais profundo; e tal entendimento contribui para a nossa libertação
(EAGLETON, 2011).
A partir disso, tornou-se imprescindível,
primeiramente, a seleção e o estudo de um aporte teórico nesta perspectiva e a organização
do material a ser analisado de escritos do e sobre o autor. Em seguida, foram analisados
os elementos que compõem o poema em questão e o gênero literário, assim como seu
autor.
O referencial teórico deste trabalho é formado
por autores que versam sobre as concepções e aspectos da linguagem, principalmente
a linguagem poética, diante das relações que os indivíduos estabelecem coletiva
e individualmente enquanto
sujeitos sociais e históricos. Nessa perspectiva, as contribuições de Bosi (1977;
2015), Candido (1985), Eagleton (2011), Fiorin (2013) e Meira (2017) foram fundamentais
no auxílio e na compreensão de alguns conceitos caros a este recorte que fizemos
acerca das imbricações entre linguagem, história e sociedade.
No que se refere a linguagem, Fiorin (2013)
a explica como uma atividade simbólica especifica da espécie humana, que possibilita
representar, perceber e dar sentido ao mundo, influenciar, expressar a subjetividade,
informar e comunicar. Através dela transmitem-se e guardam saberes e culturas, memória,
identidade; cria, mantém e estabelece vínculos sociais, fala e explica a si mesma,
é fonte de satisfação, forma de ser e agir no mundo e conceber novas realidades.
Dessa forma, cita o referido autor:
A linguagem […] é uma inesgotável riqueza
de múltiplos valores. A linguagem é inseparável do homem e segue-o em todos os seus
atos. A linguagem é o instrumento graças ao qual o homem modela seu pensamento,
seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento
graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base última e mais profunda da
sociedade humana. [..] a linguagem não é um simples acompanhante, mas sim um fio
profundamente tecido na trama do pensamento. (HJELMSLEV apud FIORIN, 2013).
Assim, surgem inúmeras formas de linguagem,
dentre elas a própria da poesia. Bosi (2015), ao discorrer sobre a poesia, esclarece
que ela sempre acompanhou os indivíduos, assim como a linguagem, antes mesmo da
invenção da escrita, pois “ela lhes deu o abrigo da memória, os tons e as modulações
do afeto, o jogo da imaginação e o estimulo para refletir, às vezes agir”.
Segundo Bosi (2015), o papel da poesia na
história é uma forma de resistir, de iluminar os escuros, desenhar contornos, preencher
vazios, retirar rostos, vozes e expressões relegadas e esquecidas do anonimato.
A poesia também mantém viva a palavra (forma e significado), revela o outro, representa
o mundo, desconcerta, descondiciona os olhares, aproxima o que estava longe e aquilo
que pareceria nítido pode tornar-se estranho.
Candido (1985), por sua vez, também explica
a relação das formas artísticas - a literatura, a poesia – com a linguagem, a história
e o seres humanos (o artista e também o receptor), defendendo que os sujeitos, constituídos
a partir das sociedades em que vivem, darão forma a realidade através da sua criatividade,
de sua própria percepção crítica, da imaginação, do lugar em que ocupa e de suas
convicções, pois o
Poeta não é uma resultante, nem mesmo um
simples foco refletor; possui o seu próprio espelho, a sua mônada individual e única.
Tem o seu núcleo e o seu órgão, através do qual tudo o que passa se transforma,
porque ele combina e cria ao devolver à realidade" (SAINTE-BEUVE,
apud CANDIDO, 1985).
Desse modo, Bosi complementa ressaltando
que “um poeta não vive em uma outra História, distante ou alheia à história da formação
social em que escreve”. Assim, mesmo com toda a liberdade que a linguagem e a poesia
lhe permitem, o escritor diz uma verdade quando escreve, a sua verdade, porque “o
poeta é o primeiro a dar, pela própria composição do seu texto, um significado histórico
às suas representações e expressões”. A escrita passeia pela subjetividade do poeta
e os vários tempos e espaços que a compõem, valores, ideologias e a consciência
histórica do autor e do leitor.
Eagleton (2011) também discorre sobre as
relações entre literatura e história, explicando que para compreender a literatura
de forma plena realmente é preciso entender o processo social no qual ela está envolvida,
pois
As obras literárias não são misteriosamente
inspiradas, nem explicáveis simplesmente em termos da psicologia dos autores. Elas
são formas de percepção, formas específicas de se ver o mundo; e como tais, elas
devem ter uma relação com a maneira dominante de ver o mundo, a ‘mentalidade social’
ou ideológica de uma época (EAGLETON, 2011).
significa mais do que interpretar seu simbolismo,
estudar sua História Literária e incluir anotações sobre fatos sociológicos relacionados.
Significa, antes de tudo, compreender as relações complexas e indiretas entre essas
obras e os mundos ideológicos que elas habitam – relações que surgem não apenas
em ‘temas’ e ‘questões’, mas no estilo, ritmo, na imagem, qualidade e […] forma
(EAGLETON, 2011).
Eagleton explica também que “cada escritor
tem uma posição individualizada na sociedade, reagindo a uma História geral a partir
do seu próprio ponto de vista, decifrando-a em seus próprios termos concretos”.
Desse modo, o escritor Camillo de Jesus Lima, como um intelectual de esquerda atuou
como um verdadeiro “ator social da história”. Deu a suas produções um engajamento
social, revelando o lado da história em que esteve na luta de classes, posicionando-se
em defesa das causas do proletário, dos mais pobres; um autor progressista, que
propôs a si mesmo que sua arte não se resumiria em sentimentalismo, mas que tivesse
um papel e força na história:
Na cidade de Conquista, onde a tragédia
humana me ensanguentou a sensibilidade, comecei a compreender que a minha arte devia
ter outra finalidade. Devia esquecer o mundo das emoções subjetivas e ter uma função
social. Lembrei-me então das palavras de Mathews Arnold: a poesia deve ser uma crítica
da vida, e achei razão na sentença de Wordsworth: a poesia é uma atitude do espírito
diante dos fenômenos da existência. Deixei de ser um místico da beleza e fiz da
arte uma arma de combate. (LIMA apud MEIRA, 2017).
O poeta Camillo de Jesus Lima nasceu na
cidade de Caetité-Bahia, mas logo se mudou com os pais para outras cidades, permanecendo
por um bom tempo em Vitória da Conquista, lugar em que viveu grande parte de sua
vida. Nesta cidade escreveu para jornais como cronista e crítico literário, além
de colaborar com jornais da capital baiana e de outros estados brasileiros. Desde
a sua adolescência até sua vida adulta manteve um fluxo de produção literária pulsante,
ora com poemas de diferentes linhas estéticas, ora como ficcionista, escrevendo
crônica, conto e romance.
Em tese sobre Camillo de Jesus Lima, Meira
(2017) explica que os temas abordados pelo escritor em suas obras – principalmente
os da década de 40, em que se dedicou a um estudo mais profundo do materialismo
histórico-dialético – perpassam a luta dos trabalhadores, as dificuldades enfrentadas
nas regiões mais recônditas do sertão, nas pequenas cidades onde teve a experiência
de conviver com a realidade de homens e mulheres. Nos seus textos ele se posiciona
e expõe suas opiniões criticamente, provoca reflexões e influencia seus leitores
à uma análise aprofundada da realidade, abordando temas que não se limitam a uma
leitura superficial e acomodada da história, deixando nas entrelinhas da literatura
seu forte engajamento social. Camillo, segundo Meira (2017), fazia das suas obras
um ato de resistência diante das intempéries da história e acreditava que a sociedade
deveria ser mais justa, igualitária e livre.
As relações e as imbricações entre os diversos
tempos e espaços que compõem o texto literário em análise exigem uma leitura aprofundada
das várias histórias que fazem parte de sua construção: a história do autor, a história
da poesia, a história contada nos versos e a história que se reconstrói em cada
nova leitura.
Tocando a viola – uma breve análise
Antes de começar os primeiros versos do
poema “Viola quebrada”, Lima (1987) faz uma pequena introdução para situar o leitor
sobre os acontecimentos, que seguem aqui. João Macambira foi forçado a sair do rancho
em que vivia fugindo da seca no sertão. No lugar em que se refugiara, começa a tocar
a sua viola, a quem tem por amiga e confidente, o que desagrada o subdelegado do
arraial, que, jogando-a contra as pedras, acaba por quebrá-la. Assim, iniciam seus
versos:
-
‘Seu moço, qui é qui eu lhe fiz
Pra
vancê fazê assim?
Rebentou
minha viola,
Bateu
vinte vez em mim.
Qui
é qui a pobre da inocente
Fez
de male, minha gente?
Esse
farso testemunho
Mas
quem foi que alevantou?
Quem
bate numa viola
Não
tá bem certo da bola:
Bate
ni Nosso Sinhô.
Escuta,
seu delegado,
Escuta
o qui vou falá:
Anceis
aqui não têm alma,
A
parti do maiorá.
Quem
pega numa viola
Cum
mão de raiva, zangado,
Dá
tapa in cara de mãe,
Chama
o pai de excomungado.
O poema traz uma sonoridade própria pela
musicalidade de seus versos, escritos em redondilhas e em rimas consoantes, como o caso das palavras assim – mim, inocente
– gente, viola – bola, delegado – zangado – excomungado, e tantos outros exemplos
em todo o poema. Os versos de Viola quebrada transmitem uma intensa influência da
cultura popular, observada na preservação da linguagem coloquial (tipicamente sertaneja,
desprestigiada e tantas vezes vista como incorreta), como também na voz do eu lírico,
um homem simples, provavelmente não escolarizado, mas com um nível de consciência
política invejável ao explicitar a ideia de diferença entre classes sociais. Em
seguida, João Macambira demonstra a dor e toda a sua insatisfação por tudo que aconteceu
com sua “companheira de infelicidade”:
Minha
viola de pinho…
Quanta
vez, pelo caminho,
Queimando
de tanto só,
Eu
tirava ela das costas;
Sentava
junto da estrada
E
cantava uma toada
Tão
triste de fazê dó:
Nos
mato nem uma foia!
Os
pé pocado de boia
As
mão tremendo de fome,
Quando
eu tirava das cordas
A
toada que ela gemia,
O
male, a dô esquecia,
Ficava
memo outro home.
A
barriga no espinhaço,
Cum
treis dias de jijum,
Memo
assim não dava ela
A
outro por preço nenhum […].
Desse modo, tendo que suportar as intempéries
da vida no sertão, o eu lírico, nos versos seguintes, deixa explicita a diferença
da sua vida com a do seu interlocutor, mesmo os dois vivendo em um ambiente de aridez
e falta de recursos, as condições de vida entre os dois se polarizam:
Vamincê,
patrão, é rico;
Veve
ca barriga cheia,
Den-de-casa,
mais os fio;
Não
anda pru terra aeia.
Ancê
nunca viu a cara
(Livre
ancê Santa Quilara)
Da
fome – a véia coroca
Qui
não tem alma nem pena. –
Ancê
nunca abandonou
Uma
casinha pequena
Pra
caça o que comê;
Ancê
nunca viu, na porta,
os
bois chorando e gemendo,
Percurando
o que bebê.
Ancê
nunca viu um fio
Morrê
de fome nos braço;
Ancê
é gordo e luzido,
É
bonito e bem ricaço;
Ancê
nunca viu a roça
Esturricando
do só
E
a tarde morrendo, triste,
Sem
um grito de sofrê,
Sem
um pio de tiê,
Sem
o choro de noitibó.
Ancê
nunca viu a serra
Vremeia
de fazê medo
E
o sol queimando e acabando
Com
tudo derna de cedo
Ancê
nunca viu a fome
Levando
ancê pulo braço…
Ancê
é gordo e luzido,
É
fortão e bem ricaço…
João Macambira tem que lidar com a fome,
com a perda dos seus animais, resistir ao sol flamejante queimando tudo que existe
e com a desterritorialização. Já o subdelegado não precisa deixar seus familiares
nem sua terra para procurar subsistência em outro lugar, não passa fome, não precisa
ir à roça e lidar com uma terra seca ou ver o gado morrer. O eu lírico, consciente
das divisões de classe, chega a proferir duas vezes nessa estrofe: “ancê é gordo
e luzido/ É bonito e bem ricaço”, somente trocando o “bonito” por “fortão” (LIMA,
1987).
As diferenças nas condições de vida apontadas
pelo eu lírico entre sua história e a do subdelegado se cruzam em uma divisão maior,
a que separa os detentores do poder e os que são oprimidos por esse mesmo poder.
É perceptível essa construção da ideia de classes sociais no poema, história que
retrata o modelo de mundo moderno, em que os indivíduos são separados por suas condições
materiais de existência.
O conceito de classe é muito amplo e de
extrema importância dentro da teoria marxista da história, distinguindo, na sociedade
capitalista, burgueses e proletários. Marx, segundo Bottomore (2001), assim define
uma classe plenamente formada:
Na medida em que milhões de famílias vivem
sob condições econômicas de existência que separam seu modo de vida, seus interesses
e a sua cultura daqueles das outras classes e as colocam em posição hostil a essas
outras classes, elas formam uma classe. Na medida em que há apenas uma interconexão
local entre esses camponeses, de pequenas propriedades, e a identidade não gera
nenhuma comunidade, nenhum elo nacional e nenhuma organização política entre eles,
tais pessoas formam uma classe.
Segundo Marx e Engels (2009), a luta entre
as classes foi, por diversas vezes, o motor que impulsionou as transformações históricas,
e estas continuam a ocorrer desde os pequenos até os grandes atos, pois as condições
materiais dos homens têm grande peso em todas as áreas de suas vidas, e isso é ainda
mais visível na atualidade: “[…] opressores e oprimidos, em constante opressão,
têm vivido uma guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada […]” (ENGELS, MARX,
2018).
Essas concepções do materialismo histórico
tiveram um papel imprescindível na produção literária de Camillo, que, como já dito
anteriormente, dedicou boa parte de sua vida ao estudo do método dialético, principalmente
na década de 1940, declarando-se convictamente como um intelectual de esquerda.
Camillo, segundo Meira (2017), mesmo ainda
não sendo filiado ao Partido Comunista em 1945, vê no materialismo uma nova concepção
e um método para compreensão dos fenômenos sociais e culturais. Mesmo com as limitações
que existiam no que se refere à aquisição de livros e revistas marxistas, meios
de veiculação e de divulgação dos conceitos que fundamentavam seus ideais, não se
sentiu impedido, manteve sua dedicação aos estudos vinculados a esse método e buscava
sempre uma forma de compartilhar o pensamento marxiano nos jornais com os quais
colaborava:
Usava a sua condição de escritor colaborador
nos jornais baianos, em especial, em O Combate, para, no uso da palavra, tratar
dos problemas sociais e políticos que afligiam a sociedade, esclarecendo aos seus
leitores por quais razões havia tanta desigualdade social, apontando, nas entrelinhas
da literatura, algumas possibilidades de reações.
(MEIRA, 2017).
Além de “Viola Quebrada”, muitos outros
poemas, contos, críticas e crônicas do autor revelam a necessidade e o desejo que
de que sua arte estivesse em favor dos pobres, dos sofredores, do proletariado.
Suas produções apresentam sentimentos próprios dos sujeitos de sua época, diante
dos grandes acontecimentos que ocorreram na década de 1940, como o fim da Segunda
Guerra Mundial e do Estado Novo de Getúlio Vargas. E mesmo plenamente consciente
das relações de opressão que envolvem os diversos seguimentos da sociedade e diante
do clima de tensão dos anos que se seguiam, “mesmo descontente, jamais quis se tornar
um cético diante da vida. Pelo contrário, mostrou, por convicção, que o mundo poderia
ser melhor, se tomasse como princípio a luta por uma sociedade mais igualitária.
” (MEIRA, 2017).
Na vigésima estrofe do poema, o eu lírico
mostra-se cada vez mais certo de que as condições econômicas estabelecem a divisão
de classes, assim como apartadas a sua concepção de vida e a que imagina ser a do
subdelegado:
Ancê
diz que nóis, seu moço,
Qui
nem cigarra vadia,
Morre
de não trabaiá.
Burro
de carga, na vida,
Sela
não pode leva.
Nóis
não nasceu pra sê rico,
Nóis
nasceu foi pra cantá.
Nóis
nasceu abrindo os óio
Pras
beleza do sertão.
Deixa
nóis morrê de fome,
Que
essa é a sina, patrão.
Deixa
nóis botá, prus óio,
Feito
em água o coração!
Na referida fábula, a cigarra que passou
o verão inteiro se divertindo acaba por não ter nenhum alimento quando chega o inverno,
já a formiga desfrutará da fartura por ter trabalhado durante toda estação. A moral
da estória é mostrar que as nossas atitudes têm consequências, o que acaba por atribuir
a responsabilidade por sua situação de vida ao sertanejo. Porém, o eu lírico mostra-se
consciente de seus esforços, do duro trabalho que tem de empenhar todos os dias
para sobreviver. Ele não se ilude com a vida, prefere vê-la como é, declarando:
“burro de carga, na vida, / sela não pode leva. / Nóis não nasceu pra sê rico, /
nóis nasceu foi pra cantá”, pois está é a sua “sina” (LIMA, 1987).
Nos versos seguintes, o eu lírico percebe
que lágrimas estão caindo dos olhos do subdelegado, que se sente comovido pelo desabafo
do sertanejo:
Mas,
pro qui é qui ancê chora?
Pru
que é que ancê tá chorando,
Vendo
os cacos da vida
Que
foi ancê qui quebrou?
Tá
chorando, delegado?
Tá
sintindo arguma dô?
Pena
de mim? mas, pru que?
Óia,
eu digo a vamincê
Que
eu, assim cumo estou,
Rasgado,
passando fome,
Cumo
um cachorro pestento
Qui
Deus na terra jogou,
Feita
em pedaço a viola
Que
meu avô me deixou,
Óia,
eu tô rindo, seu moço,
Eu
não tenho nada, não
Eu
tenho dentro dos óio
Tudo
o qui eu vi no sertão.
A viola era herança do seu avô, que lhe
acompanhava nos momentos de tristeza, alegria, infelicidade e desesperança. Agora,
só lhe resta a memória de tudo que viu e viveu ao lado de sua companheira. Nos versos
ficam explicitas as dificuldades e obstáculos que surgiram ao longo da vida do sertanejo
que resiste. Essa resistência que se impõe também na linguagem, na forma escolhida
e utilizada pelo autor para expressar tema tão recorrente e tão necessário, inclusive
nos tempos atuais em que os sertanejos nordestinos continuam a atravessar, com miséria,
seca, falta de apoio social e condições para o trabalho. Este também é o momento
em que os olhares precisam se voltar para a revitalização de culturas populares,
respeitando a diversidade linguística, comunicacional e artística.
Segundo Bosi (1977), a resistência é própria
da linguagem poética, principalmente a partir do período conhecido como modernidade.
No interior da modernidade, do sistema capitalista de produção, em que há a supremacia
da razão, articulam-se conceitos e ideais de ordem, ciência, progresso, técnica,
constituindo um modelo ocidental de nação, de sujeito, em detrimento da visão do
outro, da realidade em si mesma, mascarada pela ideologia dominante da própria poesia.
A ideologia dominante começa a ditar a consciência dos grupos sociais, os valores
a serem seguidos, aquilo que deveria importar ou não, assim “entra na linha de frente
do texto (poético) o sistema ideológico de conotações que vai escolher ou descartar
imagens, e trabalhar as imagens escolhidas com uma coerência de perspectiva que
só uma cultura coesa e interiorizada pode alcançar” (BOSI, 1977).
A poesia tem que subsistir em um momento
em que a palavra, antes usada para dar sentido, nomear, unir, tomada pela ideologia
“parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho
que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender” (BOSI, 1977).
A linguagem poética questiona o modelo:
no lugar em que reina a ordem, a poesia surge com a desordem, desautomatiza, revela,
desperta. A poesia como resistência propõe desestabilizar, romper, angustiar, criticar,
revelar:
A poesia resiste à falsa ordem, que é, a
rigor, barbárie e caos, ‘esta coleção de objetos de não amor’ (Drummond). Resiste
ao contínuo ‘harmonioso’ pelo descontínuo gritante; resiste ao descontínuo gritante
pelo contínuo harmonioso. Resiste aferrando-se à memória viva do passado; e resiste
imaginando uma nova ordem que se recorta no horizonte da utopia. (BOSI,
1977).
Nesse momento, recorre-se aqui mais uma
vez a Bosi (1977), para pensar na relação entre poesia e ideologia. Porém, esse
diálogo não se deve reduzir a uma interpretação superficial que se fixa na tese
de que a poesia é o espelho da ideologia, porque é dialética “ela deve avançar firmemente
para a antítese, que está na vida social e na linguagem poética (poesia, resistência
à ideologia)”. Isso é muito bem retratado ao longo do poema, como uma crítica ao
modelo de sociedade, a divisão social de classes, o desamparo aos necessitados,
a opressão resultante de um sistema que exclui.
Essa visão crítica da realidade presente
nas obras de Camillo é um retrato do que ele viveu assim como da sociedade de seu
tempo, o que acaba por refletir também na inviabilidade de publicação de suas produções.
Segundo Meira, diante dos acontecimentos do pós-guerra e seus efeitos no Brasil,
Camillo passou a olhar ainda mais criticamente para as expectativas que nutria sobre
sua produção literária.
Se em 1945 esteve motivado a publicar, […]
a sua nova fase, diante dos acontecimentos do pós-guerra, das condições em que as
editoras ficaram, sob a censura militar, não abrindo espaço às publicações consideradas
de esquerda ou que tivessem quaisquer ligações com o socialismo/comunismo, fez com
que o escritor, cada vez mais, apostasse na sua reclusão ‘nas costas d'África de
São Pedro de Macarani’, alusão feita a São Pedro de Loanda.
(MEIRA, 2017).
Seus estudos marxistas prosseguiram no tempo
em que permaneceu em Macarani, lugar em que trabalhara, sendo obrigado a ficar longe
da esposa e dos filhos para lhes dar o sustento. Seu refúgio, alento e motivação
era a leitura. Em carta a seu amigo Clóvis relata:
Em compensação estou estudando muito o marxismo;
estou fazendo, mesmo, modéstia à parte, uma grande cultura marxista, que hei de
empregar, em melhores dias, a serviço do glorioso partido do proletariado. Hoje,
Clóvis, só creio no Partido Comunista, e se este me faltasse, seria eu um verdadeiro
barco sem vela e sem leme, a quem seria indiferente o porto ou os escolhos. Dia
a dia me aprofundo mais na doutrina de Marx, – esse gênio que conseguiu criar não
apenas um sistema filosófico, porém, toda uma concepção de vida, – norte à solução
única do complicado problema social e humano. (Lima, 6.11.1946 apud MEIRA, 2017).
Camillo dedicava-se à leitura e a nova concepção
teórico-metodológica que assumia e na qual cada vez mais se aprofundava. Foi provocado
às leituras mais críticas da vida, da humanidade, da história, das relações de produção,
na construção de uma literatura que não se resumia à beleza estética, mas ia ao
encontro do homem como “ator social da história” e sujeito de transformação. Camillo
“via, em tudo isso, uma possibilidade de mudança, pois construía, em meio ao caos,
a esperança de melhores dias, além da concreta recompensa dos dias entregues à solidão:
tornara-se um ‘marxista convicto”. (MEIRA, 2017).
Desse modo, assim se seguem os versos das
duas últimas estrofes do longo poema:
Não
chora, qui eu guardo os cacos
Pra
amá e querê bem.
Coisa
mió póde havê
Do
qui a gente pode tê
O
qui teve e já não tem?
Deus
qui paga ancê, seu moço,
Sua
raiva e cruerdade.
Meu
patrão, ancê quebrou
Minha
vida, meu amô,
-
Uma viola de verdade. –
Mas
comigo ancê deixô
A
frô qui não morre nunca,
Qui
vai comigo pra cova,
Sempre
viva, sempre nova,
Sempre
cheia de bondade:
Viola
qui ninguém quebra,
Feitiço
qui nóis conhece
Pulo
nome de sodade!’…
Assim termina seu discurso, uma espécie
de desabafo, pois as palavras parecem brotar com uma facilidade que chega a ferir
o coração, que emocionam até mesmo o próprio subdelegado. O que guarda na memória
é o dínamo que movimenta a sua existência e a sua resistência, são os momentos divididos,
as paisagens vistas, os sentimentos compartilhados.
O poema “Viola Quebrada” apresenta muitos
dos sentimentos dos indivíduos de seu tempo histórico, as inseguranças, questionamentos,
insatisfações, injustiças do pós-guerra e seus efeitos na política, na cultura,
na arte, na economia brasileira, além de fazer uma representação social de muitos
sertanejos que sofrem com a seca da região, a exclusão social, o preconceito, a
falta de amparo, apoio e dignidade.
Referências
BOSI,
Alfredo. Entre a Literatura e a História.
2ª Edição. São Paulo: Editora 34, 2015.
___.
O ser e o Tempo da Poesia. São Paulo:
Ed. Cultrix, Ed. da Universidade de São Paulo, 1977.
BOTTOMORE,
Tom. Dicionário do pensamento marxista.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2001.
CÂNDIDO,
Antônio. Literatura e a Sociedade: estudos
de teoria e história literária. 7. Ed. – São Paulo: Ed. Nacional, 1985.
EAGLETON,
Terry. “Literatura e História”. In. Marxismo
e Crítica Literária. São Paulo: Unesp, 2011.
FORIN,
José Luiz (Org.). Linguística? O que é isso?
São Paulo: Contexto, 2013.
LIMA,
Camillo de Jesus. Antologia Poética. Vitória
da Conquista: UESB, 1987.
LIMA,
Camillo de Jesus. Obra Poética. v. 1.
Salvador: Assembleia Legislativa, 2014.
MARX,
Karl; ENGELS, Friedrich. “Burgueses e Proletários”. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O Manifesto comunista.
4ª reimpressão. São Paulo: Editora Boitempo, 2005. Cap.01, p. 40-51.
MEIRA,
Esmeralda Guimarães. O arquivista de si –
história e memória do escritor Camillo de Jesus Lima. Tese (doutorado em Memória:
Linguagem e Sociedade. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, 2017.
FERNANDA
PESSOA BARBOSA. Bolsista PICIN, graduanda em Letras, Língua
Portuguesa e Literaturas na Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências
Humanas – Campus VI/Caetité e membro do Grupo de Pesquisa Cultura, Sociedade e Linguagem
(GPCSL). E-mail: fernandapbarbosa@outlook.com.
ESMERALDA GUIMARÃES MEIRA. Doutora em Memória: Linguagem e Sociedade na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia; possui mestrado em Estudo de Linguagens pela Universidade do Estado da Bahia (2010). Atualmente é professora adjunta da Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas – Campus VI/Caetité e membro do Grupo de Pesquisa Cultura, Sociedade e Linguagem (GPCSL). Desenvolve pesquisas sobre o poeta baiano Camillo de Jesus Lima, com artigos, ensaios e críticas publicados em livro, revistas e anais de Congresso. E-mail: emeira@gmail.com.
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Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO
Número 190 | dezembro de 2021
Curadoria: Maria de Fátima Novaes Pires (UFBa) e Rogério Soares Brito (UNEB)
Artista convidado: Eduardo Eloy (Brasil, 1955)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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