quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

LAURA MARIA DE CARVALHO MATOS | Redes de colaboração entre periódicos iluministas hispano-americanos



Através da aplicação vertiginosa da vacinação contra a covid-19, em alguns poucos países do mundo, hoje sabemos a existência de uma alternativa viável para reduzir as sequelas devastadoras provocadas durante os anos de 2020/21 pelo vírus Sars-Cov2. Essas vacinas foram produzidas por diferentes empresas farmacêuticas em um intervalo curto de doze meses. Até então, a vacina que ocupava o posto de imunizante fabricado em menor tempo era a da caxumba, que levou quatro anos para surgir, nos anos 1960.

O ineditismo da elaboração das vacinas contra a covid-19 instigou reações dúbias, principalmente no Brasil. Entre as gratulações à enorme façanha realizada, não foi atípico localizar discursos em redes sociais e nos aplicativos de mensagens instantâneas, questionando a eficiência e a segurança dos imunizantes.

Para aqueles que ainda têm dúvidas sobre as vacinas anti-covid-19, vale à pena visitar os principais sites de notícias e as páginas na internet das reconhecidas comissões de universidades internacionais e brasileiras, que informam as recentes pesquisas, protocolos e boletins sobre a covid. Se, por acaso, fizerem esse exercício de leitura, saibam que dificilmente irão encontrar respostas conclusivas, em virtude de se tratar de um vírus ainda desconhecido em sua totalidade. Para explicar a questionável rapidez da preparação das vacinas contra a covid-19, recorre-se a uma multifacetada e uma extensa rede de colaboração científica.

A cooperação estende-se desde as pesquisas e técnicas sobre outros imunizantes, desenvolvidas por estudiosos no passado, que deram base para os atuais trabalhos, e atravessa as políticas de financiamento de governos às empreses privadas farmacêuticas e aos institutos públicos e privados de pesquisa. Os altos recursos investidos na fabricação de uma solução para o caos em eu vivíamos, na realidade, intensificam a entrosamento de cientistas do mundo todo.

Na ocasião em que a farmacêutica norte-americana Pfizer anunciou, em novembro de 2020, a efetividade contra a covid-19 em até 95%, dizia-se ser o resultado do esforço coletivo com outras duas farmacêuticas: a alemã BioNTech e a chinesa Shanghai Fosun Pharmaceutical. Ao descrever em entrevista o projeto bem-sucedido, Ugur Sahin – um dos criadores da BioNTech e, também desenvolvedor da vacina –, recusa a ver-se como um novo super-herói e ressalta: “só conseguimos fazer isso porque temos uma equipe fantástica. Uma equipe de cientistas internacionais e funcionários de 60 países diferentes que trabalham conosco [...]”. [1]

No caso do Brasil, no segundo trimestre de 2021, soubemos que iniciaria a confecção da primeira vacina contra a covid-19, produzida, integralmente, no país. Chamada de “a vacina brasileira” pela imprensa, logo descobriu-se que os parâmetros seguidos por tal vacina era fruto das investigações laboratoriais executadas pelo Mount Sinai-Institute, localizado na cidade de Nova Iorque. O Instituto Butantan, uma instituição pública ligada à Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, esclareceu que havia recebido uma licença do instituto nova-iorquino para o uso e a exploração da tecnologia criada por eles. O objetivo da colaborativa transferência de tecnologia consistia em auxiliar na erradicação dos efeitos da infecção respiratória, preferencialmente, em nações pobres.

 

A secular colaboração científica

Para compreendermos como a colaboração entre os pares tornou-se tão usual e partícipe da ciência, é necessário imaginarmos o cenário – composto por espontâneos curiosos do saber ou pelos exigentes e dedicados eruditas – em que homens e mulheres precisaram enfatizar a razão científica e os benefícios de seus métodos. A insistência no discurso se deve aos movimentos renascentistas e iluministas da Era Moderna (séculos XV-XVIII) que, através de uma revolução intelectual, pôs em xeque muito do que se sabia até aquele momento. Ao dispensarem a teologia como a principal fonte de compreensão do mundo, reações contrárias forçaram a união por um projeto comum.

Todo conhecimento descoberto de como funcionava o Universo deveria ser agregado em uma espécie de república ou de reino da mente, que se desenvolvia independentemente dos outros espaços – a saber, o político e o econômico – constitutivos da vida social humana. Nomeada, muitas vezes, como “República das Letras”, a idealização de sociabilidade, voltada para o debate racional, foi também expressada pelos nomes de “república do saber” e “república literária”. Cabia, portanto, a esse renovado espaço de saber priorizar a elaboração e a disseminação do conhecimento científico.

Para evitar prejuízos ao funcionamento do habitat próprio, os saberes modernos deveriam ser regidos, obrigatoriamente, pela convivência respeitosa entre seus membros. Minimizar algumas das muitas diferenças culturais e sociais que separavam os homens e as mulheres de saber baseava-se na convicção de que, solitários e inflexíveis ao contraditório, jamais desvendariam a tantas indagações que supostamente faziam de suas observações. Esperava-se que a resolução de tal dilema iria decorrer-se da ajuda mútua entre os pares, sem as influentes restrições do tempo, do espaço e das crenças, seguindo, devidamente, os valores cosmopolitas.

 

Periódicos iluministas hispano-americanos e as suas redes (internas) de colaboração

Diante de tais princípios abrangentes, parece-lhes inusitada a presença dos ibero-americanos nessa empreitada? Dentre as reações da intelectualidade americana, convém apresentar os periódicos impressos nos mais influentes polos político-econômico do território espanhol na América – situados na Cidade de México, Lima, Santafé de Bogotá, Quito e Havana –, gerados no decorrer da última década do século XVIII.


Até o momento de criação desses periódicos, a imprensa hispano-americana era priorizada pela Coroa espanhola como ferramenta informativa dos acontecimentos em terras americanas e, por conseguinte, dependente dos interesses coloniais. O novo formato adquirido por este cenário correlaciona-se diretamente pela interferência das correntes iluministas, que repercutiram na orientação da escrita dos impressos americanos, em favor de um cunho mais científico. Apesar das mudanças, em nenhum momento houve o desfalecimento da presença das políticas governamentais na cultura americana, mesmo sob o domínio do despotismo esclarecido. [2] Explicando, assim, a atuação de governadores e vice-reis em decretarem a permissão de replicação de textos impressos logo após serem oficializados em seus cargos, nomeados pelo monarca espanhol, para administrarem territórios americanos.

Esses impressos, publicados semanalmente, eram vistos como canal educativo direto com o público pouco habituado aos debates científicos da época. A cada vez que nascia um periódico hispano-americano, sinaliza-se, entre as páginas desses impressos, a comemoração da entrada deles na República da Letras. Um simbólico gesto, realizado por causa da extensa distância que lhes separavam.

Assim, sem dúvida, agiu o Papel Periódico de la Ciudad de Santafé de Bogotá (1791-1797) em julho de 1791, quando comunicou que o Mercurio Peruano (1790-1795) surgia pela Sociedade Patriótica local e finalizava seu longo texto acerca dos temas expostos nos primeiros números do periódico limenho com uma pequena nota de rodapé, contando ao público que havia recebido exemplares do novo Papel Periódico de la Havana (1790-1804). Cinco meses depois da celebração, o Papel Periódico de Bogotá noticiava o aparecimento de outro periódico, batizado pelo título de Primicias de la Cultura de Quito (1791-1792), por meio da reprodução de um trecho do Mercurio Peruano.

No teor dessas resenhas, os autores relatam a gentil postura dos “irmãos” americanos ao encaminharem edições de periódicos. Na prática, o envio de periódicos às outras redações americanas (ou, de modo geral, para os envolvidos) era a iniciativa recorrida pelos interessados em disseminar seus trabalhos. Essas investidas por interlocução mantinham-se na companhia de diferentes espaços de sociabilidade de saber (no caso, citado acima, é a Sociedade Patriótica) e de representantes da Coroa Espanhola na América, para assim dar credibilidade a suas intenções.

Certamente, na ausência da combinação dos dois impulsionadores, o alastramento dos impressos americanos limitar-se-iam a movimentos espontâneos de aquisição de textos. Daí o Mercurio Peruano ter interpretado com naturalidade, mas não com modéstia, a chegada dos periódicos bogotanos através de uma carta escrita pelo vice-rei da Nova Granada à Sociedade Econômica de Amantes do País de Lima.

Na época, grupos de discussão eram concebidos lado a lado com os tradicionais espaços universitários de ensino. Os encontros mais informais, como as tertúlias, aconteciam regidos por muita bebida e comida, e recitações de poesias, que propiciavam ambiente aconchegante para exposição de pensamentos. Enquanto isso, as cerimoniosas Sociedades Econômicas de Amigos do País seguiam por normas rígidas de participação, com o objetivo de promover o desenvolvimento de suas comunidades através do estudo da situação econômica e da busca de soluções para os problemas detectados na agricultura, no comércio e na indústria; muitas destas soluções, guiadas por traduções e obras estrangeiras que se apoiavam em concepções da Fisiocracia e do Liberalismo Econômico.

Existiam também despretensiosas alternativas de reuniões, conforme se transformaram as livrarias do século XVIII. Esses estabelecimentos até que lembram as livrarias contemporâneas pela disponibilidade em adquirir periódicos e livros; sua particularidade, entretanto, estava na escassez. Não se produzia em grande escala os textos impressos (até mesmo porque, era escasso o material, principalmente, papel e tinta). Para solucionar as privações, as livrarias recorreram ao acúmulo de atribuições, que lhes transformaram em um ponto de encontro, um local de socialização de indivíduos interessados em literatura, no debate de saberes, e que se tratava igualmente de um lugar no qual eram emprestados, trocados e vendidos livros, artigos e jornais pessoais – de forma semelhante a que já era feito nas tertúlias. De modo algum as livrarias se limitaram à venda de impressos.

 

O (favorável) compartilhamento de espaços de sociabilidade e o auxílio do Estado

Não importa a ordem; livrarias, sociedades econômicas ou tertúlias, cada um à sua maneira, contribuíram na promoção de uma rede informativa entre periódicos e periodistas americanos, em razão de seus membros compartilharem espaços de sociabilidade. A comum convivência ampliava as chances de que fossem conhecidos os debates apresentados nos periódicos e, desse modo, favorecer às prováveis participações de seus interlocutores. Por isso, muitos dos artigos publicados nos periódicos foram escritos devido as indagações sugeridas pelas sociedades econômicas das cidades de Santafé de Bogotá, Lima, La Havana e Cidade da Guatemala – por meio de expressiva publicidade, diferentemente do comportamento intimista das tertúlias.

Na outra ponta da teia, estavam as livrarias, assegurando a impressão, venda e encomenda dos periódicos, do mesmo modo que possibilitava seus leitores colocarem nas cajas (que eram literalmente caixas) as cartas destinadas aos autores dos periódicos. Ademais, nos próprios periódicos, pessoas pediam que fossem impressas obras específicas nas livrarias que gostariam de ler ou, então, perguntava-se se alguém teria um determinado livro, e em caso afirmativo, que o levasse à livraria para provável empréstimo ou venda.

Cabe salientar que a presença dos mais distintos representantes da Coroa Espanhola na América nesses variados espaços de sociabilidade garantiu também a oportunidade de cargos (oficiais ou semioficiais) aos autores dos periódicos. Vice-reis, governadores, oidores e outros, deixaram seus nomes nas histórias desses periódicos, nomeando redatores, encarregando autores dos periódicos à administração de bibliotecas ou nomeando-os a censores para que coletassem valiosos dados sociais e naturais do território americano, e assim, responder aos planos bourbônicos de explorar melhor os recursos americanos.

Como não eram remunerados os poucos autores que davam vida os periódicos, o cumprimento dessas outras funções de trabalho deu fôlego financeiro, mas também criatividade, à República das Letras americana. Ainda assim, é evidente a vulnerabilidade em que se encontravam os autores desses periódicos. Nos periódicos, recorria-se ao discurso de que a recompensa ao exaustivo trabalho viria pela conquista do reconhecimento dos pares, ao considerar as suas descobertas, análises e demonstrações. Por outro lado, as repetitivas queixas dos autores, relacionadas às inconveniências que os atrapalhavam, induzem a crer que os elogios de seus colegas não eram suficientes. Incomodava a sensação de que a ciência praticada na América era desprovida de glórias, grandeza ou poder.

 

Discurso coletivo em prol do espaço científico americano

Toda vez que os periodistas americanos recorriam à colaboração entre eles, materializava-se, na verdade, o esforço coletivo em redirecionar os escassos e lentos estímulos à produção de conhecimento centralizados em universidades e monastérios, para as inúmeras criações de ambientes de sociabilidade intelectual ilustrada.


Em outras palavras, desejava-se estabelecer a partir da comunicação interamericana, um espaço viável para o desenvolvimento científico americano, no qual comunicar-se poderia fomentar debates e discussões diversas, oferecendo mais contribuições à retórica e argumentação, e favoreceria o status social desses intelectuais. Formou-se, assim, uma defesa precisa de valorização da cultura científica americana, baseada em procedimentos, até aquela ocasião, recém-adquiridos entre os nascidos na América.

Por muito tempo, a comunicação interna entre os americanos fazia-se com dificuldades, inclusive, legais. Como os espanhóis preferiram dimensões territoriais mais restritas, na tentativa de conceder funções específicas a cada uma das unidades administrativas localizadas na América hispânica, qualquer concorrência com a metrópole estava vedada aos americanos, e mesmo as partes individuais do continente não podiam comerciar entre si. Naturalmente, essas medidas foram implementadas apenas em parte, tendo sempre existido bastante contrabando.

Contudo, mesmo que sob efeito das duradouras políticas coloniais, vivia-se um momento particular na América espanhola quando foram criados os periódicos, no final do século XVIII. Com a dinastia dos Bourbon na Espanha, melhorou-se os caminhos e as estradas, além dos serviços postais e das comunicações marítimas do império, ainda que enfrentando os obstáculos naturais representados pelos rios, planícies e desertos e as impenetráveis selvas e montanhas da América. Quanto às barreiras econômicas entre reinados e cidades hispano-americanos, estas foram oficialmente encerradas a partir de 1765, na ocasião em que o governo imperial estimulou o comércio interamericano.

Essas medidas reformistas deram mais interatividade às rotas que interligavam o império americano, seja por pequenas, médias ou longas distâncias. Em consequência, o cenário próspero ensejou uma constante disposição ao diálogo e, para aqueles que não realizassem, produziu o risco de verem esvaecido os seus empreendimentos literários.

 

As viagens dos hispano-americanos

À propósito, de um modo geral, viajar era sempre preciso, na estrutura administrativa colonial espanhola. Essas viagens feitas pelos americanos aconteciam caso alguém quisesse se empenhar nos estudos, e não residisse nas capitais reinais. Outros precisaram viajar em direção aos grandes centros do Império espanhol para trabalhar. No tempo da dinastia Bourbon, se reforçou esta tendência inquieta pela mobilidade: a proposta era criar um aparato estatal unificado, leal – logo, desarraigado das vinculações provenientes da naturalidade –, e controlado diretamente pelo governante.

Por ofício ou instrução, os letrados crioulos americanos desta República das Letras setecentista tenderam a se limitar ao deslocamento por cidades localizadas na América hispânica. Pouquíssimos deles viajaram para a Europa. A maior parte do conhecimento europeu ilustrado chegou aos americanos através de livros, jornais, boatos, pinturas, canções, poemas, e tantos outros recursos, considerados não necessariamente como legais pela Coroa espanhola.

Em resultado, imagina-se que os letrados, enquanto peregrinavam entre regiões diferentes na América Hispânica, encontraram o companheirismo que pleitearam para tornar acessível e aceitável o conhecimento científico produzido nos seus territórios locais. Como sugere os resultados da viagem feito pelo criador e principal autor do Primicias de la Cultura de Quito, Eugenio Espejo, para a cidade de Santafé de Bogotá – capital do Vice-Reinado.

Espejo ali se exilou, por mais de ano, para responder às acusações de traição ao rei. Apesar das pressões e das prováveis consequências do seu caso, Espejo fora abastecido dessa camaradagem que o espírito das luzes disseminou na América. Durante sua estadia em Bogotá, o quitenho manteve contato com seu amigo e protetor, o também quitenho Juan Maria Torcuato de Montúfar, marquês de Selva Alegre, filho do antigo presidente de Quito. Selva Alegre animou Espejo a formar uma sociedade econômica iluminista em Quito – no mesmo período, uma sociedade econômica estava sendo composta na cidade de Lima e tinha entre seus participantes o marquês de Selva Alegre, que mais tarde se tornaria sócio da Escuela de la Concordia, a sociedade econômica quitenha que Espejo tentou organizar.

 

Benefícios e desentendimentos nas colaborações

Seguindo a mesma noção de companheirismo, as colaborações recorriam do benefício de que as matérias americanas intercambiadas se distinguiam do conteúdo estrangeiro europeu por abordar temáticas mais próximas do contexto americano, seja nas suas raízes linguísticas, administrativas, burocráticas ou históricas. Conhecer seu próprio espaço os concederia decisões mais racionais na maneira de lidar com a produção econômica, a infraestrutura, a higiene, a educação etc.

Para tal fim, o jornalismo americano procedia, ora reproduzindo fielmente textos americanos, ora através dos resumos, contando o que havia nos periódicos irmãos, ou mesmo por meio de elogios com referências curtas a textos de outros periódicos americanos.

E, com a existência do debate, o diálogo entre os periódicos americanos pouco a pouco passou a lidar com as discórdias. É nesse campo do contraditório que fica mais perceptível como as trocas por conhecimento foram se transformando em conversações calorosas, cheias de adjetivos acusatórios que animavam o leitor, o qual presenciava uma batalha argumentativa. Nem tudo se podia concordar, sendo assim, era o momento em que as semelhanças são deixadas de lado e se exibe os pensamentos que lhes distinguiam, evidentemente, fruto das suas particularidades socioculturais.

Em uma acirrada disputa entre o Papel Periódico de la Havana e a Gaceta de Literatura de México, questionou-se a toxicidade de uma erva. Desse longo debate, transcorridos em cinco números do periódico de La Havana e duas edições do periódico mexicano, a única conclusão chegada, por concordância de ambos os participantes, foi quanto à possibilidade de estarem descrevendo espécies diferentes de ervas.

Infelizmente, a sabedoria coletiva e a harmonia esperada não foram alcançadas. Disputas e controvérsias nunca cessaram, mesmo sob a capa do anonimato. Em contrapartida, as indisposições deram continuidade e mais ressonância aos (ainda) principiantes debates mantidos pelos periódicos americanos, em comparação às interlocuções com os textos provenientes da Europa.

E os periódicos americanos estavam realmente abarrotados de transcrições de artigos dos principais impressos madrilenos do período. Na ocasião em que os autores dos periódicos desejavam noticiar os eventos históricos e as novidades científicas, ocorridos em toda a Europa, valiam-se desses periódicos espanhóis (oficialmente estatais). A interação mais usual dos americanos com a comunidade internacional intelectual era através dos ilustrados espanhóis. Inclusive, com retribuições dos periódicos espanhóis, pois, também publicaram artigos originais dos periódicos iluministas americanos, com o intuito de abordar o que acontecia em terras americanas.

Notem, são tantos os textos replicados vindos da Europa, que, de imediato, realçaram aos olhos a comunicação entre periódicos exclusivamente americanos. Sempre que eram introduzidos os textos dos amigos americanos, defendia-se a máxima de que havia um descompasso que circulava na América e sobre a América, e como juntos poderiam solucionar este problema. Sobretudo, combateriam a maneira pela qual os estrangeiros descreviam os americanos.

 

O combate às visões (inverídicas) de estrangeiros

Estrangeiros, aqui, não se refere apenas a autores nascidos na Europa, mas, sobretudo, àqueles que nem sequer pisaram os pés na América ou que, em virtude de expedições, tinham apenas passado uma temporada no Novo Mundo. De fato, boa parte dos autores que produziu literatura sobre a América não havia nascido no continente. Era reduzida a produção autoral de literatura interna que alcança grande repercussão, sobretudo porque se imprimia em número limitado. Foi somente durante o século XVIII que se viu publicações com maior regularidade e frequência quanto à escrita feita pelos americanos. A partir do novo ambiente literário americano, a retificação de informações errôneas se propunha especialmente na formulação de novas informações, mais atualizadas e exatas sobre a América. Diante de tantos mal-entendidos, acreditava-se que, se houvesse uma maneira dos hispano-americanos contribuírem com a República das Letras, seria através dessas correções.


Mas sejamos prudentes. Mesmo na situação em que a “americanidade” veio em resposta à visão indelicada que a ciência europeia dava ao Novo Mundo e seus habitantes, os argumentos perpassavam pela conquista e pela administração espanhola na história americana. O patriotismo (promovido pelos debates racionais iluministas) expresso nesses periódicos americanos não simboliza distorções de seu tempo, pelo contrário, desenvolveu-se dentro e como sustentação da ordem estabelecida, e não fora ou contra ele. Como observa-se a vinculação do sentimento patriótico ao Estado-Nação, proposto na figura do monarca absoluto e na lealdade a ele. Para que os espanhóis americanos conseguissem fazer valer sua atuação no espaço cosmopolita do saber, estes se utilizaram da ligação cultural com os espanhóis para contar ao mundo a presença do interesse científico no continente americano.

 

Convite de colaboração ao público

Por certo, todos saberiam que os periódicos hispano-americanos estavam dispostos a privilegiar o conhecimento, desde que os autores convidassem na íntegra os indivíduos a participar do espaço literário que se estendia nos temas abordados pelos impressos, ainda que fosse apenas para o consumo da literatura produzida, como foi o caso das mulheres. O público ajudaria na disseminação da razão, e podendo igualmente contribuir na produção de conhecimento. Cabia, então, a república literária americana tornar-se em um espaço convidativo para a prática da discussão livre.

O código deveria ser evidente: de maneira alguma a liberdade deveria ser confundida por calúnias, injúrias ou difamações, sejam ofensas feitas contra indivíduos privados ou instituições representativas de coletividades, como a Igreja Católica, o Estado monárquico ou o próprio espaço de aprendizagem produtor de conhecimento. Por isso, mais uma vez, recorria-se à censura. Os inconvenientes que a liberdade poderia oferecer, declaravam os redatores dos periódicos, derivariam de quão iniciantes eram essas práticas de criticidade ao público americano.

Queixava-se no Mercurio Peruano de que permanecia no público uma certa dose de ceticismo para toda invenção nova, assim sendo penoso convencê-los com as mais evidentes demonstrações. Para, então, convencer os céticos, acreditou-se que era indispensável persistir na aprendizagem, isto é, na apresentação de tópicos ligados às matérias científicas. Os autores dos periódicos americanos sabiam que precisavam ter paciência ao lidar com seus leitores e que nunca solucionar-se-ia tal controvérsia com pesadas limitações na participação da sociedade. Fomentar o acolhimento parecia ser o recurso mais sensato diante dos tão poucos afiliados que lhes reuniam.

 

Considerações finais: colaboração também é prática de comércio

Existia nos letrados americanos – e, provavelmente, em todos os integrantes da República das Letras – a vontade de evitar a imposição de limites à concretização da comunicação científica, fossem barreiras temporais, geracionais ou espaciais. Sob essa máxima, a colaboração científica adquiria o status de uma troca indispensável e essencial para o funcionamento das sociedades.

Daí no século XVIII, haver uma tendência destas redes de colaboração serem compreendidas como comércio, em oposição aos discursos da moral cristã, que associavam o comércio a um pecado original. Na verdade, o comércio era pensado de maneira muito ampla no Iluminismo, referindo-se não apenas às questões econômicas, mas a uma extensa gama de formas (in)voluntárias de intercâmbio e reciprocidade.

Para alguns, o comércio de luxo e das boas maneiras entre indivíduos polidos produzia gentileza e civilidade. Chamado como commerce doux (comércio suave) pelos franceses, acreditava-se que uma civilização comercial avançada, baseada largamente no “suave comércio”, seria a expressão dos “benefícios à coletividade” que surgem involuntariamente no livre jogo dos “vícios privados”, como o egoísmo. [3] Isto significa, mesmo sendo o homem naturalmente egoísta, sem qualquer coerção e havendo interesse, ele poderia praticar atos de reciprocidade prováveis de se transformarem em expressões benéficas de sociabilidade por meio de obras literárias, arquitetônicas etc.

Porém, o que prevaleceu no século XVIII foi o apelo à ideia de que os seres humanos seriam naturalmente sociáveis, uma visão que gozava do apoio quase que unânime entre os philosophes. Para estes pensadores ilustrados, o termo francês sociabilité se referia à tendência natural do homem em abraçar a sociedade sem a necessidade de uma intervenção interna (o egoísmo) ou externa (o Estado) para acontecer. Por conseguinte, já que se tinha uma tendência natural a sociabilizar, ideias eram comercializadas.

Como seres pensantes e racionais, era através da comunicação (do comércio) que se sabia as vantagens em juntar-se aos outros e quais prejuízos decorreriam de tal associação. A comunicação tornou-se, então, o suporte de união entre as pessoas em sociedade. Ainda assim, a percepção de socialização não se concluía desse jeito. Conforme a teoria da natural sociabilidade do homem, somente conseguir-se-ia realizar a comunicação mediante a prática social. Um não conseguiria viver sem o outro. Viver em sociedade era obrigatório para o desenvolvimento da comunicação de ideias e conhecimento, uma vez que suas tramitações seriam vitais para o funcionamento proveitoso da sociedade.

Afinal, os modernos, ao concederem o sentido civilizatório para o comércio de conhecimento, geraram uma máxima a ser perseguida por sociedades que almejavam favorecer-se da ciência. Como tanto buscaram os periódicos americanos, ao investir na impressão de seus debates, e que, até hoje, insistimos fazer. Temos, em 2021, a vantagem de apelar aos múltiplos dispositivos de negociação e coalizações para parcerias científicas, inclusive, acompanhado por acordos mais atraentes financeiramente. Segundo os preceitos seguidos pela República das Letras moderna, o comércio de luxo ou simplesmente de conhecimento não se dedicava à busca de riquezas materiais. De resto, viver do ofício da escrita era considerado atividades malvistas.

Usufruímos, atualmente, de um espaço cientifico cada vez mais desafiado a ultrapassar barreiras do que é conhecido, todavia, permanece susceptível aos desequilíbrios provocados pela geopolítica internacional, que concentra os investimentos (humanos e financeiros) em tão poucos países. Tal como reforçam os monopólios pelas vacinas contra a covid-19, que põem em xeque a real validade do princípio de cooperação mundial. Porém, novamente, essas desigualdades não anulam o feito: as vacinas anti-covid-19 são a confirmação da vitória do projeto republicano do saber.


NOTAS

[1] HESSLER, Uwe; WREDE, Insa. Alemanha condecora desenvolvedores da vacina da Biontech-Pfizer. DW Brasil, 19 de mar. de 2021. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/alemanha-condecora-desenvolvedores-da-vacina-da-biontech-pfizer/a-56930483>. Acesso em: 14 de jun. de 2021.

[2] O chamado “despotismo esclarecido” é o termo mais comum utilizado para designar a prática dos monarcas que, apesar de reinarem de forma absoluta, ainda implementaram reformas político-econômicas baseadas nas ideias iluministas vigentes no período.

[3] GARRARD, Graeme. Rousseau’s Counter-Enlightenment: A Republican Critique of the Philosophes. Nova York: State University of New York Press, 2003.

 

Bibliografia geral

ALARCÓN, Roberto Mejía. História del periodismo. Lima: Escuela de Periodismo Jaime Bausate y Mesa, 2001.

BURKE, Peter. Erasmus and the Republic of Letters. Europe Review 7, n. 1, p. 5-21, 1999.

___. Uma história social do conhecimento: de Gutenberg a Diderot. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

___. La República de las Letras como sistema de comunicación (1500-2000). IC Revista Científica de Información y Comunicación, n. 8, p. 34-49, 2011.

CANO, Gilberto Loaiza. La opinión pública y la República de las Letras. La opinión ilustrada en la América española, 1767-1810. Cali, Colômbia: Prismas: Revista de História intelectual, n. 21, p. 11-31, 2017.

CRUZ SOTO, Rosalba. Las publicaciones periódicas y la formación de una identidad nacional. Estudios de Historia Moderna y Contemporánea de México, Cidade de México, n. 20, p. 15- 39, 2000.

DASTON, Lorraine. The ideal and reality of the Republic of Letters in the Enlightenment. Science in Context, n. 4, p. 367-386, 1991.

FUMAROLI, Marc. La República de las Letras. Barcelona: Acantilado, 2013.

GOODMAN, Dena. The Republic of Letters. A Cultural History of ther French Enlightenment. Ithaca: Cornell University Press, 1996.

JOHN, Henry. A Revolução Científica e as origens da Ciência Moderna. trad. de Maria L. X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

LAFAYE, Jacques. A Literatura e a Vida Intelectual na América Espanhola Colonial. In: BETHELL, Leslie (org). História da América Latina. América Latina Colonial. Vol. 2. São Paulo: Edusp, p. 595-636, 2004.

LAMY, Jérôme. La République des Lettres et la structuration des savoirs à l’époque moderne. Littératures, n. 67, p. 91-108, 2013.

LANDÁZURI, Andrés. Espejo, el ilustrado. Quito: INPC; Municipio del Distrito Metropolitano de Quito, 2011.

LILTI, Antoine. The Kingdom of Politesse: Salons and the Republic of Letters in Eighteenth-century Paris. Republics of Letters: A Journal for the Study of Knowledge, Politics, and Arts 1, n. 1, p. 1-11, 2009.

MADRID, Raúl. La República de las Letras y el tránsito de la universidad medieval a la moderna. Cauriensia, vol. XII, p. 513-534, 2017.

MARCHENA, F. Juan. Su Majestad quiere saber. Información oficial y reformismo borbónico en la América de la Ilustración. In: Recepción y difusión de Textos Ilustrados. Intercambio científico entre Europa y América en la Ilustración. Madri: Calambur, p. 45-83, 2003.

NÚÑEZ, Eloy Martos. De la República de las Letras a internet. De la ciudad letrada a la cibercultura y las tecnologías del S. XXI. Álabe: Revista de Investigación sobre Lectura y Escritura, n. 1, p. 1-16, 2010.

OUTRAM, Dorinda. La Ilustración. Cidade do México: Siglo Veintiuno, 2009.

SALDAÑA, Juan José. Ilustración, ciencia y técnica em América. In: La Ilustración en América Colonial. Madri: Consejo Superior de Investigaciones Científicas (COLCIENCIAS); Doce Calles, p. 19-53, 1995.

VOVELLE, Michel. El hombre de letras. In: El hombre de la Ilustración. Madri: Alianza, p. 151-195, 1995.

XAVIER-GUERRA, François. A nação na América espanhola: a questão das origens. Revista Maracanan, vol. 1, n. 1, p. 9-30, 1999. 

 

LAURA MARIA DE C. MATOS (Salvador-Bahia, Brasil), professora de História, graduada em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e mestre em História Social pela mesma universidade, desenvolve pesquisas sobre circulação de ideias iluministas na América Espanhola a partir da segunda metade do século XVIII. Foi bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) e do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC).




*****

 


[A partir de janeiro de 2022]
 

*****

Agulha Revista de Cultura

UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO

Número 190 | dezembro de 2021

Curadoria: Maria de Fátima Novaes Pires (UFBa) e Rogério Soares Brito (UNEB)

Artista convidado: Eduardo Eloy (Brasil, 1955)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

logo & design | FLORIANO MARTINS

revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES

ARC Edições © 2021

 

Visitem também:

Atlas Lírico da América Hispânica

Conexão Hispânica

Escritura Conquistada

 


 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário