O
ineditismo da elaboração das vacinas contra a covid-19 instigou reações dúbias,
principalmente no Brasil. Entre as gratulações à enorme façanha realizada, não foi
atípico localizar discursos em redes sociais e nos aplicativos de mensagens instantâneas,
questionando a eficiência e a segurança dos imunizantes.
Para
aqueles que ainda têm dúvidas sobre as vacinas anti-covid-19, vale à pena visitar
os principais sites de notícias e as páginas na internet das reconhecidas comissões
de universidades internacionais e brasileiras, que informam as recentes pesquisas,
protocolos e boletins sobre a covid. Se, por acaso, fizerem esse exercício de leitura,
saibam que dificilmente irão encontrar respostas conclusivas, em virtude de se tratar
de um vírus ainda desconhecido em sua totalidade. Para explicar a questionável rapidez
da preparação das vacinas contra a covid-19, recorre-se a uma multifacetada e uma
extensa rede de colaboração científica.
A
cooperação estende-se desde as pesquisas e técnicas sobre outros imunizantes, desenvolvidas
por estudiosos no passado, que deram base para os atuais trabalhos, e atravessa
as políticas de financiamento de governos às empreses privadas farmacêuticas e aos
institutos públicos e privados de pesquisa. Os altos recursos investidos na fabricação
de uma solução para o caos em eu vivíamos, na realidade, intensificam a entrosamento
de cientistas do mundo todo.
Na
ocasião em que a farmacêutica norte-americana Pfizer anunciou, em novembro de 2020, a efetividade contra a covid-19
em até 95%, dizia-se ser o resultado do esforço coletivo com outras duas farmacêuticas:
a alemã BioNTech e a chinesa Shanghai Fosun Pharmaceutical. Ao descrever
em entrevista o projeto bem-sucedido, Ugur Sahin – um dos criadores da BioNTech e, também desenvolvedor da vacina
–, recusa a ver-se como um novo super-herói e ressalta: “só conseguimos fazer isso
porque temos uma equipe fantástica. Uma equipe de cientistas internacionais e funcionários
de 60 países diferentes que trabalham conosco [...]”. [1]
No
caso do Brasil, no segundo trimestre de 2021, soubemos que iniciaria a confecção
da primeira vacina contra a covid-19, produzida, integralmente, no país. Chamada
de “a vacina brasileira” pela imprensa, logo descobriu-se que os parâmetros seguidos
por tal vacina era fruto das investigações laboratoriais executadas pelo Mount Sinai-Institute, localizado na cidade
de Nova Iorque. O Instituto Butantan, uma instituição pública ligada à Secretaria
de Estado da Saúde de São Paulo, esclareceu que havia recebido uma licença do instituto
nova-iorquino para o uso e a exploração da tecnologia criada por eles. O objetivo
da colaborativa transferência de tecnologia consistia em auxiliar na erradicação
dos efeitos da infecção respiratória, preferencialmente, em nações pobres.
A
secular colaboração científica
Para
compreendermos como a colaboração entre os pares tornou-se tão usual e partícipe
da ciência, é necessário imaginarmos o cenário – composto por espontâneos curiosos
do saber ou pelos exigentes e dedicados eruditas – em que homens e mulheres precisaram
enfatizar a razão científica e os benefícios de seus métodos. A insistência no discurso
se deve aos movimentos renascentistas e iluministas da Era Moderna (séculos XV-XVIII)
que, através de uma revolução intelectual, pôs em xeque muito do que se sabia até
aquele momento. Ao dispensarem a teologia como a principal fonte de compreensão
do mundo, reações contrárias forçaram a união por um projeto comum.
Todo
conhecimento descoberto de como funcionava o Universo deveria ser agregado em uma
espécie de república ou de reino da mente, que se desenvolvia independentemente
dos outros espaços – a saber,
o político
e o econômico – constitutivos da vida social humana. Nomeada, muitas vezes, como
“República das Letras”, a idealização de sociabilidade, voltada para o debate racional,
foi também expressada pelos nomes de “república do saber” e “república literária”.
Cabia, portanto, a esse renovado espaço de saber priorizar a elaboração e a disseminação
do conhecimento científico.
Para
evitar prejuízos ao funcionamento do habitat próprio, os saberes modernos deveriam
ser regidos, obrigatoriamente, pela convivência respeitosa entre seus membros. Minimizar
algumas das muitas diferenças culturais e sociais que separavam os homens e as mulheres
de saber baseava-se na convicção de que, solitários e inflexíveis ao contraditório,
jamais desvendariam a tantas indagações que supostamente faziam de suas observações.
Esperava-se que a resolução de tal dilema iria decorrer-se da ajuda mútua entre
os pares, sem as influentes restrições do tempo, do espaço e das crenças, seguindo,
devidamente, os valores cosmopolitas.
Periódicos
iluministas hispano-americanos e as suas redes (internas) de colaboração
Diante
de tais princípios abrangentes, parece-lhes inusitada a presença dos ibero-americanos
nessa empreitada? Dentre as reações da intelectualidade americana, convém apresentar
os periódicos impressos nos mais influentes polos político-econômico do território
espanhol na América – situados na Cidade de México, Lima, Santafé de Bogotá, Quito
e Havana –, gerados no decorrer da última década do século XVIII.
Esses
impressos, publicados semanalmente, eram vistos como canal educativo direto com
o público pouco habituado aos debates científicos da época. A cada vez que nascia
um periódico hispano-americano, sinaliza-se, entre as páginas desses impressos,
a comemoração da entrada deles na República da Letras. Um simbólico gesto, realizado
por causa da extensa distância que lhes separavam.
Assim,
sem dúvida, agiu o Papel Periódico de la Ciudad
de Santafé de Bogotá (1791-1797) em julho de 1791, quando comunicou que o Mercurio Peruano (1790-1795) surgia pela
Sociedade Patriótica local e finalizava seu longo texto acerca dos temas expostos
nos primeiros números do periódico limenho com uma pequena nota de rodapé, contando
ao público que havia recebido exemplares do novo Papel Periódico de la Havana (1790-1804). Cinco meses depois da celebração,
o Papel Periódico de Bogotá noticiava
o aparecimento de outro periódico, batizado pelo título de Primicias de la Cultura de Quito (1791-1792), por meio da reprodução
de um trecho do Mercurio Peruano.
No
teor dessas resenhas, os autores relatam a gentil postura dos “irmãos” americanos
ao encaminharem edições de periódicos. Na prática, o envio de periódicos às outras
redações americanas (ou, de modo geral, para os envolvidos) era a iniciativa recorrida
pelos interessados em disseminar seus trabalhos. Essas investidas por interlocução
mantinham-se na companhia de diferentes espaços de sociabilidade de saber (no caso,
citado acima, é a Sociedade Patriótica) e de representantes da Coroa Espanhola na
América, para assim dar credibilidade a suas intenções.
Certamente,
na ausência da combinação dos dois impulsionadores, o alastramento dos impressos
americanos limitar-se-iam a movimentos espontâneos de aquisição de textos. Daí o
Mercurio Peruano ter interpretado com
naturalidade, mas não com modéstia, a chegada dos periódicos bogotanos através de
uma carta escrita pelo vice-rei da Nova Granada à Sociedade Econômica de Amantes
do País de Lima.
Na
época, grupos de discussão eram concebidos lado a lado com os tradicionais espaços
universitários de ensino. Os encontros mais informais, como as tertúlias, aconteciam
regidos por muita bebida e comida, e recitações de poesias, que propiciavam ambiente
aconchegante para exposição de pensamentos. Enquanto isso, as cerimoniosas Sociedades
Econômicas de Amigos do País seguiam por normas rígidas de participação, com o objetivo
de promover o desenvolvimento de suas comunidades através do estudo da situação
econômica e da busca de soluções para os problemas detectados na agricultura, no
comércio e na indústria; muitas destas soluções, guiadas por traduções e obras estrangeiras
que se apoiavam em concepções da Fisiocracia e do Liberalismo Econômico.
Existiam
também despretensiosas alternativas de reuniões, conforme se transformaram as livrarias
do século XVIII. Esses estabelecimentos até que lembram as livrarias contemporâneas
pela disponibilidade em adquirir periódicos e livros; sua particularidade, entretanto,
estava na escassez. Não se produzia em grande escala os textos impressos (até mesmo
porque, era escasso o material, principalmente, papel e tinta). Para solucionar
as privações, as livrarias recorreram ao acúmulo de atribuições, que lhes transformaram
em um ponto de encontro, um local de socialização de indivíduos interessados em
literatura, no debate de saberes, e que se tratava igualmente de um lugar no qual
eram emprestados, trocados e vendidos livros, artigos e jornais pessoais – de forma
semelhante a que já era feito nas tertúlias. De modo algum as livrarias se limitaram
à venda de impressos.
O
(favorável) compartilhamento de espaços de sociabilidade e o auxílio do Estado
Não
importa a ordem; livrarias, sociedades econômicas ou tertúlias, cada um à sua maneira,
contribuíram na promoção de uma rede informativa entre periódicos e periodistas
americanos, em razão de seus membros compartilharem espaços de sociabilidade. A
comum convivência ampliava as chances de que fossem conhecidos os debates apresentados
nos periódicos e, desse modo, favorecer às prováveis participações de seus interlocutores.
Por isso, muitos dos artigos publicados nos periódicos foram escritos devido as
indagações sugeridas pelas sociedades econômicas das cidades de Santafé de Bogotá,
Lima, La Havana e Cidade da Guatemala – por meio de expressiva publicidade, diferentemente
do comportamento intimista das tertúlias.
Na
outra ponta da teia, estavam as livrarias, assegurando a impressão, venda e encomenda
dos periódicos, do mesmo modo que possibilitava seus leitores colocarem nas cajas (que eram literalmente caixas) as cartas
destinadas aos autores dos periódicos. Ademais, nos próprios periódicos, pessoas
pediam que fossem impressas obras específicas nas livrarias que gostariam de ler
ou, então, perguntava-se se alguém teria um determinado livro, e em caso afirmativo,
que o levasse à livraria para provável empréstimo ou venda.
Cabe
salientar que a presença dos mais distintos representantes da Coroa Espanhola na
América nesses variados espaços de sociabilidade garantiu também a oportunidade
de cargos (oficiais ou semioficiais) aos autores dos periódicos. Vice-reis, governadores,
oidores e outros, deixaram seus nomes nas histórias desses periódicos, nomeando
redatores, encarregando autores dos periódicos à administração de bibliotecas ou
nomeando-os a censores para que coletassem valiosos dados sociais e naturais do
território americano, e assim, responder aos planos bourbônicos de explorar melhor
os recursos americanos.
Como
não eram remunerados os poucos autores que davam vida os periódicos, o cumprimento
dessas outras funções de trabalho deu fôlego financeiro, mas também criatividade,
à República das Letras americana.
Ainda assim, é evidente a vulnerabilidade em que se encontravam os autores desses
periódicos. Nos periódicos, recorria-se ao discurso de que a recompensa ao exaustivo
trabalho viria pela conquista do reconhecimento dos pares, ao considerar as suas
descobertas, análises e demonstrações. Por outro lado, as repetitivas queixas dos
autores, relacionadas às inconveniências que os atrapalhavam, induzem a crer que
os elogios de seus colegas não eram suficientes. Incomodava a sensação de que a
ciência praticada na América era desprovida de glórias, grandeza ou poder.
Discurso
coletivo em prol do espaço científico americano
Toda
vez que os periodistas americanos recorriam à colaboração entre eles, materializava-se,
na verdade, o esforço coletivo em redirecionar os escassos e lentos estímulos à
produção de conhecimento centralizados em universidades e monastérios, para as inúmeras
criações de ambientes de sociabilidade intelectual ilustrada.
Por
muito tempo, a comunicação interna entre os americanos fazia-se com dificuldades,
inclusive, legais. Como os espanhóis preferiram dimensões territoriais mais restritas,
na tentativa de conceder funções específicas a cada uma das unidades administrativas
localizadas na América hispânica, qualquer concorrência com a metrópole estava vedada
aos americanos, e mesmo as partes individuais do continente não podiam comerciar
entre si. Naturalmente, essas medidas foram implementadas apenas em parte, tendo
sempre existido bastante contrabando.
Contudo,
mesmo que sob efeito das duradouras políticas coloniais, vivia-se um momento particular
na América espanhola quando foram criados os periódicos, no final do século XVIII.
Com a dinastia dos Bourbon na Espanha, melhorou-se os caminhos e as estradas, além
dos serviços postais e das comunicações marítimas do império, ainda que enfrentando
os obstáculos naturais representados pelos rios, planícies e desertos e as impenetráveis
selvas e montanhas da América. Quanto às barreiras econômicas entre reinados e cidades
hispano-americanos, estas foram oficialmente encerradas a partir de 1765, na ocasião
em que o governo imperial estimulou o comércio interamericano.
Essas
medidas reformistas deram mais interatividade às rotas que interligavam o império
americano, seja por pequenas, médias ou longas distâncias. Em consequência, o cenário
próspero ensejou uma constante disposição ao diálogo e, para aqueles que não realizassem,
produziu o risco de verem esvaecido os seus empreendimentos literários.
As
viagens dos hispano-americanos
À
propósito, de um modo geral, viajar era sempre preciso, na estrutura administrativa
colonial espanhola. Essas viagens feitas pelos americanos aconteciam caso alguém
quisesse se empenhar nos estudos, e não residisse nas capitais reinais. Outros precisaram
viajar em direção aos grandes centros do Império espanhol para trabalhar. No tempo
da dinastia Bourbon, se reforçou esta tendência inquieta pela mobilidade: a proposta
era criar um aparato estatal unificado, leal – logo, desarraigado das vinculações
provenientes da naturalidade –, e controlado diretamente pelo governante.
Por
ofício ou instrução, os letrados crioulos americanos desta República das Letras
setecentista tenderam a se limitar ao deslocamento por cidades localizadas na América
hispânica. Pouquíssimos deles viajaram para a Europa. A maior parte do conhecimento
europeu ilustrado chegou aos americanos através de livros, jornais, boatos, pinturas,
canções, poemas, e tantos outros recursos, considerados não necessariamente como
legais pela Coroa espanhola.
Em
resultado, imagina-se que os letrados, enquanto peregrinavam entre regiões diferentes
na América Hispânica, encontraram o companheirismo que pleitearam para tornar acessível
e aceitável o conhecimento científico produzido nos seus territórios locais. Como
sugere os resultados da viagem feito pelo criador e principal autor do Primicias de la Cultura de Quito, Eugenio
Espejo, para a cidade de Santafé de Bogotá – capital do Vice-Reinado.
Espejo
ali se exilou, por mais de ano, para responder às acusações de traição ao rei. Apesar
das pressões e das prováveis consequências do seu caso, Espejo fora abastecido dessa
camaradagem que o espírito das luzes disseminou na América. Durante sua estadia
em Bogotá, o quitenho manteve contato com seu amigo e protetor, o também quitenho
Juan Maria Torcuato de Montúfar, marquês de Selva Alegre, filho do antigo presidente
de Quito. Selva Alegre animou Espejo a formar uma sociedade econômica iluminista
em Quito – no mesmo período, uma sociedade econômica estava sendo composta na cidade
de Lima e tinha entre seus participantes o marquês de Selva Alegre, que mais tarde
se tornaria sócio da Escuela de la Concordia, a sociedade econômica quitenha
que Espejo tentou organizar.
Benefícios
e desentendimentos nas colaborações
Seguindo
a mesma noção de companheirismo, as colaborações recorriam do benefício de que as
matérias americanas intercambiadas se distinguiam do conteúdo estrangeiro europeu
por abordar temáticas mais próximas do contexto americano, seja nas suas raízes
linguísticas, administrativas, burocráticas ou históricas. Conhecer seu próprio
espaço os concederia decisões mais racionais na maneira de lidar com a produção
econômica, a infraestrutura, a higiene, a educação etc.
Para
tal fim, o jornalismo americano procedia, ora reproduzindo fielmente textos americanos,
ora através dos resumos, contando o que havia nos periódicos irmãos, ou mesmo por
meio de elogios com referências curtas a textos de outros periódicos americanos.
E,
com a existência do debate, o diálogo entre os periódicos americanos pouco a pouco
passou a lidar com as discórdias. É nesse campo do contraditório que fica mais perceptível
como as trocas por conhecimento foram se transformando em conversações calorosas,
cheias de adjetivos acusatórios que animavam o leitor, o qual presenciava uma batalha
argumentativa. Nem tudo se podia concordar, sendo assim, era o momento em que as
semelhanças são deixadas de lado e se exibe os pensamentos que lhes distinguiam,
evidentemente, fruto das suas particularidades socioculturais.
Em
uma acirrada disputa entre o Papel Periódico
de la Havana e a Gaceta de Literatura
de México, questionou-se a toxicidade de uma erva. Desse longo debate, transcorridos
em cinco números do periódico de La Havana e duas edições do periódico mexicano,
a única conclusão chegada, por concordância de ambos os participantes, foi quanto
à possibilidade de estarem descrevendo espécies diferentes de ervas.
Infelizmente,
a sabedoria coletiva e a harmonia esperada não foram alcançadas. Disputas e controvérsias
nunca cessaram, mesmo sob a capa do anonimato. Em contrapartida, as indisposições
deram continuidade e mais ressonância aos (ainda) principiantes debates mantidos
pelos periódicos americanos, em comparação às interlocuções com os textos provenientes
da Europa.
E
os periódicos americanos estavam realmente abarrotados de transcrições de artigos
dos principais impressos madrilenos do período. Na ocasião em que os autores dos
periódicos desejavam noticiar os eventos históricos e as novidades científicas,
ocorridos em toda a Europa, valiam-se desses periódicos espanhóis (oficialmente
estatais). A interação mais usual dos americanos com a comunidade internacional
intelectual era através dos ilustrados espanhóis. Inclusive, com retribuições dos
periódicos espanhóis, pois, também publicaram artigos originais dos periódicos iluministas
americanos, com o intuito de abordar o que acontecia em terras americanas.
Notem,
são tantos os textos replicados vindos da Europa, que, de imediato, realçaram aos
olhos a comunicação entre periódicos exclusivamente americanos. Sempre que eram
introduzidos os textos dos amigos americanos, defendia-se a máxima de que havia
um descompasso que circulava na América e sobre a América, e como juntos poderiam
solucionar este problema. Sobretudo, combateriam a maneira pela qual os estrangeiros
descreviam os americanos.
O
combate às visões (inverídicas) de estrangeiros
Estrangeiros,
aqui, não se refere apenas a autores nascidos na Europa, mas, sobretudo, àqueles
que nem sequer pisaram os pés na América ou que, em virtude de expedições, tinham
apenas passado uma temporada no Novo Mundo. De fato, boa parte dos autores que produziu
literatura sobre a América não havia nascido no continente. Era reduzida a produção
autoral de literatura interna que alcança grande repercussão, sobretudo porque se
imprimia em número limitado. Foi somente durante o século XVIII que se viu publicações
com maior regularidade e frequência quanto à escrita feita pelos americanos. A partir
do novo ambiente literário americano, a retificação de informações errôneas se propunha
especialmente na formulação de novas informações, mais atualizadas e exatas sobre
a América. Diante de tantos mal-entendidos, acreditava-se que, se houvesse uma maneira
dos hispano-americanos contribuírem com a República das Letras, seria através dessas
correções.
Convite
de colaboração ao público
Por
certo, todos saberiam que os periódicos hispano-americanos estavam dispostos a privilegiar
o conhecimento, desde que os autores convidassem na íntegra os indivíduos a participar
do espaço literário que se estendia nos temas abordados pelos impressos, ainda que
fosse apenas para o consumo da literatura produzida, como foi o caso das mulheres.
O público ajudaria na disseminação da razão, e podendo igualmente contribuir na
produção de conhecimento. Cabia, então, a república literária americana tornar-se
em um espaço convidativo para a prática da discussão livre.
O
código deveria ser evidente: de maneira alguma a liberdade deveria ser confundida
por calúnias, injúrias ou difamações, sejam ofensas feitas contra indivíduos privados
ou instituições representativas de coletividades, como a Igreja Católica, o Estado
monárquico ou o próprio espaço de aprendizagem produtor de conhecimento. Por isso,
mais uma vez, recorria-se à censura. Os inconvenientes que a liberdade poderia oferecer,
declaravam os redatores dos periódicos, derivariam de quão iniciantes eram essas
práticas de criticidade ao público americano.
Queixava-se
no Mercurio Peruano de que permanecia
no público uma certa dose de ceticismo para toda invenção nova, assim sendo penoso
convencê-los com as mais evidentes demonstrações. Para, então, convencer os céticos,
acreditou-se que era indispensável persistir na aprendizagem, isto é, na apresentação
de tópicos ligados às matérias científicas. Os autores dos periódicos americanos
sabiam que precisavam ter paciência ao lidar com seus leitores e que nunca solucionar-se-ia
tal controvérsia com pesadas limitações na participação da sociedade. Fomentar o
acolhimento parecia ser o recurso mais sensato diante dos tão poucos afiliados que
lhes reuniam.
Considerações
finais: colaboração também é prática de comércio
Existia
nos letrados americanos – e, provavelmente, em todos os integrantes da República
das Letras – a vontade de evitar a imposição de limites à concretização da comunicação
científica, fossem barreiras temporais, geracionais ou espaciais. Sob essa máxima,
a colaboração científica adquiria o status
de uma troca indispensável e essencial para o funcionamento das sociedades.
Daí
no século XVIII, haver uma tendência destas redes de colaboração serem compreendidas
como comércio, em oposição aos discursos da moral cristã, que associavam o comércio
a um pecado original. Na verdade, o comércio era pensado de maneira muito ampla
no Iluminismo, referindo-se não apenas às questões econômicas, mas a uma extensa
gama de formas (in)voluntárias de intercâmbio e reciprocidade.
Para
alguns, o comércio de luxo e das boas maneiras entre indivíduos polidos produzia
gentileza e civilidade. Chamado como commerce
doux (comércio suave) pelos franceses, acreditava-se que uma civilização comercial
avançada, baseada largamente no “suave comércio”, seria a expressão dos “benefícios
à coletividade” que surgem involuntariamente no livre jogo dos “vícios privados”,
como o egoísmo. [3] Isto significa, mesmo sendo o homem naturalmente egoísta, sem
qualquer coerção e havendo interesse, ele poderia praticar atos de reciprocidade
prováveis de se transformarem em expressões benéficas de sociabilidade por meio
de obras literárias, arquitetônicas etc.
Porém,
o que prevaleceu no século XVIII foi o apelo à ideia de que os seres humanos seriam
naturalmente sociáveis, uma visão que gozava do apoio quase que unânime entre os
philosophes. Para estes pensadores ilustrados,
o termo francês sociabilité se referia
à tendência natural do homem em abraçar a sociedade sem a necessidade de uma intervenção
interna (o egoísmo) ou externa (o Estado) para acontecer. Por conseguinte, já que
se tinha uma tendência natural a sociabilizar, ideias eram comercializadas.
Como
seres pensantes e racionais, era através da comunicação (do comércio) que se sabia
as vantagens em juntar-se aos outros e quais prejuízos decorreriam de tal associação.
A comunicação tornou-se, então, o suporte de união entre as pessoas em sociedade.
Ainda assim, a percepção de socialização não se concluía desse jeito. Conforme a
teoria da natural sociabilidade do homem, somente conseguir-se-ia realizar a comunicação
mediante a prática social. Um não conseguiria viver sem o outro. Viver em sociedade
era obrigatório para o desenvolvimento da comunicação de ideias e conhecimento,
uma vez que suas tramitações seriam vitais para o funcionamento proveitoso da sociedade.
Afinal,
os modernos, ao concederem o sentido civilizatório para o comércio de conhecimento,
geraram uma máxima a ser perseguida por sociedades que almejavam favorecer-se da
ciência. Como tanto buscaram os periódicos americanos, ao investir na impressão
de seus debates, e que, até hoje, insistimos fazer. Temos, em 2021, a vantagem de
apelar aos múltiplos dispositivos de negociação e coalizações para parcerias científicas,
inclusive, acompanhado por acordos mais atraentes financeiramente. Segundo os preceitos
seguidos pela República das Letras moderna, o comércio de luxo ou simplesmente de
conhecimento não se dedicava à busca de riquezas materiais. De resto, viver do ofício
da escrita era considerado atividades malvistas.
Usufruímos,
atualmente, de um espaço cientifico cada vez mais desafiado a ultrapassar barreiras
do que é conhecido, todavia, permanece susceptível aos desequilíbrios provocados
pela geopolítica internacional, que concentra os investimentos (humanos e financeiros)
em tão poucos países. Tal como reforçam os monopólios pelas vacinas contra a covid-19,
que põem em xeque a real validade do princípio de cooperação mundial. Porém, novamente,
essas desigualdades não anulam o feito: as vacinas anti-covid-19 são a confirmação
da vitória do projeto republicano do saber.
NOTAS
[1] HESSLER, Uwe; WREDE, Insa. Alemanha
condecora desenvolvedores da vacina da Biontech-Pfizer. DW Brasil, 19 de mar. de 2021. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/alemanha-condecora-desenvolvedores-da-vacina-da-biontech-pfizer/a-56930483>.
Acesso em: 14 de jun. de 2021.
[2] O chamado “despotismo esclarecido” é
o termo mais comum utilizado para designar a prática dos monarcas que, apesar de
reinarem de forma absoluta, ainda implementaram reformas político-econômicas baseadas
nas ideias iluministas vigentes no período.
[3] GARRARD, Graeme. Rousseau’s
Counter-Enlightenment: A Republican Critique of the Philosophes. Nova York:
State University of New York Press, 2003.
Bibliografia geral
ALARCÓN, Roberto
Mejía. História del periodismo. Lima: Escuela de Periodismo Jaime Bausate y Mesa, 2001.
BURKE, Peter. Erasmus and the Republic of Letters. Europe
Review 7, n. 1, p. 5-21, 1999.
___. Uma história social do conhecimento:
de Gutenberg a Diderot. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2003.
___. La República de las Letras como sistema de comunicación
(1500-2000). IC Revista Científica de Información y Comunicación, n. 8, p. 34-49,
2011.
CANO, Gilberto Loaiza.
La opinión pública y la República de las Letras.
La opinión ilustrada en la América española, 1767-1810. Cali, Colômbia: Prismas:
Revista de História intelectual, n. 21, p. 11-31, 2017.
CRUZ SOTO, Rosalba.
Las publicaciones periódicas y la formación
de una identidad nacional. Estudios de Historia Moderna y Contemporánea de México,
Cidade de México, n. 20, p. 15- 39, 2000.
DASTON, Lorraine. The ideal and reality of the Republic of Letters
in the Enlightenment. Science in Context, n. 4, p. 367-386, 1991.
FUMAROLI, Marc. La
República de las Letras. Barcelona: Acantilado, 2013.
GOODMAN, Dena. The Republic of Letters. A Cultural History
of ther French Enlightenment. Ithaca: Cornell University Press, 1996.
JOHN, Henry. A Revolução Científica e as
origens da Ciência Moderna. trad. de Maria L. X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1998.
LAFAYE, Jacques. A Literatura e a Vida Intelectual
na América Espanhola Colonial. In: BETHELL, Leslie (org). História da América Latina.
América Latina Colonial. Vol. 2. São Paulo: Edusp, p. 595-636, 2004.
LAMY, Jérôme. La République des Lettres et la structuration
des savoirs à l’époque moderne. Littératures, n. 67, p. 91-108, 2013.
LANDÁZURI, Andrés.
Espejo, el ilustrado. Quito: INPC; Municipio del Distrito Metropolitano de Quito,
2011.
LILTI, Antoine.
The Kingdom of Politesse: Salons and the Republic
of Letters in Eighteenth-century Paris. Republics of Letters: A Journal for
the Study of Knowledge, Politics, and Arts 1, n. 1, p. 1-11, 2009.
MADRID, Raúl. La República de las Letras y el tránsito de la
universidad medieval a la moderna. Cauriensia, vol. XII, p. 513-534, 2017.
MARCHENA, F. Juan.
Su Majestad quiere saber. Información oficial
y reformismo borbónico en la América de la Ilustración. In: Recepción y difusión
de Textos Ilustrados. Intercambio científico entre Europa y América en la Ilustración.
Madri: Calambur, p. 45-83, 2003.
NÚÑEZ, Eloy Martos.
De la República de las Letras a internet.
De la ciudad letrada a la cibercultura y las
tecnologías del S. XXI. Álabe: Revista de Investigación sobre Lectura y Escritura,
n. 1, p. 1-16, 2010.
OUTRAM, Dorinda. La
Ilustración. Cidade do México: Siglo Veintiuno, 2009.
SALDAÑA, Juan José.
Ilustración, ciencia y técnica em América.
In: La Ilustración en América Colonial. Madri: Consejo Superior de Investigaciones
Científicas (COLCIENCIAS); Doce Calles, p. 19-53, 1995.
VOVELLE, Michel. El hombre de letras. In: El hombre de la
Ilustración. Madri: Alianza, p. 151-195, 1995.
XAVIER-GUERRA, François. A nação na América espanhola: a questão das origens. Revista Maracanan, vol. 1, n. 1, p. 9-30, 1999.
LAURA MARIA DE C. MATOS (Salvador-Bahia,
Brasil), professora de História, graduada em História pela Universidade Federal
da Bahia (UFBA) e mestre em História Social pela mesma universidade, desenvolve
pesquisas sobre circulação de ideias iluministas na América Espanhola a partir da
segunda metade do século XVIII. Foi bolsista do Programa Institucional de Bolsas
de Iniciação à Docência (PIBID) e do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
Científica (PIBIC).
*****
Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO
Número 190 | dezembro de 2021
Curadoria: Maria de Fátima Novaes Pires (UFBa) e Rogério Soares Brito (UNEB)
Artista convidado: Eduardo Eloy (Brasil, 1955)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2021
Visitem também:
Atlas Lírico da América Hispânica
Nenhum comentário:
Postar um comentário