terça-feira, 28 de dezembro de 2021

ROGERIO LUZ | Franz Kafka e Samuel Beckett: a voz sem dono

 


Toda voz tem um dono, a voz do proprietário, a voz da autoridade, a voz de prisão. A publicidade de cantores e músicos populares não deixa ilusões sobre isso: é preciso reunir o som da voz à imagem do rosto. Deve-se reunir também uma voz a uma assinatura, a uma identidade legitimada. É o caso, por exemplo, dos grandes nomes da literatura e do teatro universais: grandes sujeitos, grandes autores. Franz Kafka, Samuel Beckett.

Na arte, sempre às voltas com a pergunta quem fala – ou grita, ou canta, ou emudece – a conexão instituída entre voz e rosto, voz e poder, voz e sujeito é ao mesmo tempo celebrada e posta em questão: o som ganha, nesse deslindar, uma dimensão entre a música das esferas celestes e o silêncio noturno, abismal.

O que se segue aqui não é um estudo aprofundado de dois autores, aliás fundamentais para a compreensão desse novo registro da voz em nossa modernidade tardia: é apenas uma leitura. Em toda leitura, cruzam-se sem se encontrar dois modos de recepção: vemos o som, escutamos a letra. Por essa fronteira, esse limiar – que estamos sempre transpondo, atraídos pelo outro lado no qual nos exilamos, linha ao mesmo tempo intransponível e lugar de conexão, de partilha – passam estas breves notas sobre alguns textos: dois contos de Kafka e uma pequena peça teatral de Beckett. Notas que procuram indicar um dos elementos, entre tantos outros, com o qual esses textos nos atingem, nos afetam e nos forçam a pensar diferentemente, a dar lugar a narrativas sem garantia de identidade e finalidade. E esse elemento é o som.

 

Kafka e o som da trombeta

Da obra de Kafka – seus relatos, no entanto votados por ele mesmo à destruição, mas também sua correspondência – extraem-se conceitos centrais ao entendimento do que é a arte hoje para nós, na cisão entre a imagem e o som, a imagem visual, que é imagem de coisa, mas também imagem de palavra, e a imagem sonora, toque, baque, rumor, canto, verbo, mas também o murmúrio, o inaudito, a surdez, o silêncio. Com o avanço das tecnologias atuais de produção da imagem, nossa civilização acreditou-se audiovisual. A tarefa da arte, e do pensamento sobre arte – cujo destino é ser escrita sobre escrita –, tem sido também a de fraturar a aparente unidade e continuidade não problemáticas da escuta e do olhar. (1)

Indicamos aqui, na comparação entre dois pequenos relatos, o modo como operam o espaço e o som: o espaço – seus territórios enclausurados e suas saídas, trabalhadas por intensidades de um tempo não linear –; o som, configurado como ruído, fala e música.

 

A PARTIDA

 

Dei ordem de irem buscar meu cavalo ao estábulo. O criado não me compreendeu. Fui eu mesmo ao estábulo, encilhei o cavalo e montei. Ao longe ouvi o som de uma trombeta, perguntei o que significava aquilo. Ele de nada sabia, não ouvira nada. No portão deteve-me, para perguntar-me: – Para onde cavalga o senhor?

Não sei – respondi –. Apenas quero ir-me daqui, somente ir-me daqui. Partir sempre, sair daqui, apenas assim posso alcançar minha meta.

Conhece, então, sua meta? – perguntou ele.

Sim - respondi eu –. Já disse. Sair daqui: esta é minha meta.

 

RENUNCIA!

 

Era muito cedo, pela manhã, as ruas estavam limpas e vazias, eu ia à estação. Ao verificar a hora em meu relógio com a do relógio de uma torre, vi que era muito mais tarde do que eu acreditara, tinha que apressar-me bastante; o susto que me produziu esta descoberta me fez perder a tranquilidade, não me orientava ainda muito bem naquela cidade. Felizmente, havia um policial nas proximidades, fui até ele e perguntei-lhe, sem fôlego, qual era o caminho. Sorriu e disse:

Por mim queres conhecer o caminho?

Sim – disse –, já que não posso encontrá-lo por mim mesmo.

Renuncia, renuncia – disse e voltou-se com grande ímpeto, como as pessoas que querem ficar a sós com o seu riso. (2)

 


Narrados em primeira pessoa, os dois relatos não reeditam, no entanto, uma subjetividade literária expressiva: quem fala, fala anonimamente.

A Partida se inicia com uma quebra das relações hierárquicas de poder, mas desvia de imediato para outra direção: a ordem não é compreendida, os liames de autoridade e comunicação não se podem reatar, desde que tomada a decisão de partir. Os limites da propriedade, sua estrutura interna, seus locais e funções, perdem definição.

A ordem inicial dá lugar ao diálogo entre as personagens, na verdade uma sucessão de interrupções, sem continuidade, embora a cada vez de diferente natureza.

Quanto ao som da trombeta: ele não será nem ao menos ouvido por quem só aparentemente ocupa o lugar de um interlocutor, mas não compreende, não sabe, não ouve. Seria o significado desse som o de um chamamento, que conclama o narrador a perseguir um objetivo mais alto ou mais vil, por meio talvez de uma batalha ou de uma celebração? O leitor, assim como o criado, permanecerá na ignorância, que primeiro atingiu o próprio cavaleiro. Essa ignorância não pode ser ultrapassada: ela corresponde ao clamor assignificante da trombeta.

 

O que interessa a Kafka é uma pura matéria sonora intensa, sempre em relação com sua própria abolição, som musical desterritorializado, grito que escapa à significação, à composição, ao canto, à fala, sonoridade em ruptura para desprender-se de uma cadeia ainda muito significante. (3)

 

Mas ao tomar a palavra, o criado parece acreditar possível estabelecer um diálogo em torno do que justifica o gesto de partida, garantia de sentido para a direção tomada pelo cavaleiro rumo ao que é exterior a seu território, a essa exterioridade que desata os nós do quotidiano, as articulações que fazem do território um território.

Diante da pergunta, o narrador – que relata o acontecido em um passado indeterminado, ele próprio sem designar o lugar de onde agora fala – também de nada sabe: sabe apenas sua vontade de partir, nomadismo ou exílio. Como diria Deleuze do espaço nômade: indefinido, aberto, não-comunicante. Logo o cavaleiro indica, porém, a partida como um meio para atingir seu objetivo. Contradição meramente retórica? Teremos enfim a chave explicativa da partida, ao que tudo indica súbita, sem preparativos que a anunciassem ao criado? O diálogo parece então seguir seu curso normal, em que uma intervenção não interrompe, mas é consequência da anterior: o criado quer saber o que quer e o que sabe o cavaleiro, agora destituído de seu papel de senhor.

A resposta é convincente, mas em um plano que destitui de sentido toda finalidade: a meta da partida é a partida, essa relação consigo mesma que, antes de traçar uma linha reta entre o ponto de partida e o ponto de chegada, enrola-se sobre si mesma sem repouso e sem clausura: a partida é a relação com o Fora, de onde vem o som que não cabe nos limites do diálogo e da comunicação, e que escava um vazio no mais íntimo do território que o cavaleiro e sua montaria abandonam – que ele sempre abandona, porque sempre repete a meta, que é tão-somente, mais do que partir, a vontade, o desejo de partir.

 

A escritura em Kafka, o primado da escritura só significa uma coisa: de modo algum a literatura, mas que a enunciação constitui unidade com o desejo, por cima das leis, dos estados, dos regimes. No entanto, enunciação sempre histórica, política e social. (4)

 

O segundo relato inverte, luva agora às avessas, esse espaço que o De Fora tornou ilimitado. O caminhante atravessa as ruas, claras e definidas, rumo a um objetivo explícito. Mas o tempo do homem e o da cidade subitamente divergem: aceleração e desorientação arruinam por dentro a tranquilidade de uma cidade desconhecida. A ordem, contudo, parece retornar na figura de um policial, autoridade pública que, no interior de um espaço urbano disciplinado, deve investir-se de saber, se não quiser tornar-se cômica.

O diálogo aqui se dá em condições diversas do relato anterior. É o narrador que nada sabe: à sua pergunta falta quase o essencial da fala, sopro ou fôlego. Faltam clareza e autodomínio à própria pergunta sobre o meio de atingir a meta – isto é, a estação, lugar fronteiriço de partidas e chegadas, de conexão com o exterior (não saberemos o motivo que leva o narrador a este lugar limite que, no entanto, ele pretende atingir em hora aprazada). Logo: lugar instável, limiar de transição e de ruptura.


O intercâmbio de palavras se faz escusa de um eficaz encadeamento dialógico. É o policial que estranha seja-lhe atribuída a função de saber. Teria ele alguma função? De seu lado, o narrador sabe apenas que é incapaz de encontrar o caminho por conta própria – o descompasso de tempo e lugar o destituiu de toda potência. Ele sabe que não sabe, mas isso não lhe será de nenhuma serventia. Kafka contra Sócrates. O policial nada afirma de positivo, apenas sugere ou ordena um ato negativo, de retirada e desistência. De fato, a cidade já contém a própria exterioridade que a torna sem direção e fora dos eixos. Nela, a comunicação pragmática ou significativa torna-se impossível. Mas, para além dos diálogos, o que nos faz experimentar esse desfazimento das coordenadas de tempo, espaço e linguagem é o gesto impetuoso de voltar-se em outra direção, no entanto sem finalidade, de escapar do face-a-face e do diálogo, e de talvez rir à socapa, assegurando a solidão: ocultar à vista o riso eventual, talvez irreprimível, que transforma a palavra – inquieta com a exigência de ordem e finalidade – em ruído sem significação.

No desatar dos laços instituídos, o discreto tom de comédia perpassa as relações em vias de desaparecerem e as situações sem lei que em decorrência se abrem. A palavra não é um meio que assegure a comunicação, o que faz o leitor duvidar do encontro com o próprio texto que está lendo, pois este não oferece sentido algum, explícito ou oculto. Trata-se, antes, de experimentar o exílio, seja ao partir casualmente na direção de um som enigmático, vindo de fora, que nada promete e a nada conclama, seja no interior mesmo de um território urbano que só aparentemente se estrutura em firmes coordenadas de lugar e de tempo. Os dois pequenos relatos atestam o absurdo e a impossibilidade das relações instituídas na e pela fala comum: o do senhor com o servo, no espaço privado do feudo de sua propriedade, o do viajante com o guarda no espaço público da cidade.

 

Beckett: a pausa que repete

O teatro de Beckett, mínimo e essencial, nos põe frente à leitura e sua audição, e explora a natureza da relação que as faz divergir em um espaço de espelhamento. Em Improviso de Ohio, Beckett nos dá a ver a semelhança sem fusão entre um ouvinte e um leitor, em torno das últimas palavras: o idêntico que, duplicado, se altera, a dualidade que, frente a frente, descamba para o idêntico. No Improviso, Beckett desloca a questão do texto, autoria e iniciativa, e de sua interpretação à viva voz no teatro ou no rádio, para a leitura – leitura da peça. Ensaio geral? Somente o olho e o ouvido são ali convocados e submetidos ao texto escrito.

Sentados, idênticos – longo casaco negro, longos cabelos brancos: o leitor, à cabeceira da mesa, de perfil para o público, narra, entre pausas, a história de uma separação, de um isolamento, interrompido pela chegada de alguém que vem em nome de outro e lê, noite adentro até a aurora, um livro. De frente, o ouvinte limita-se a bater com a mão esquerda sobre a mesa, o que obriga o leitor a voltar sobre o que foi lido, a repeti-lo. Toda a leitura, e o relato que ela faz escutar, contêm-se entre dois enunciados: “Resta pouco a dizer”, “Não resta nada a dizer”.

A situação relatada repete-se na situação dramaticamente presente: indistinção entre o que é narrado e o que é representado, entre diegese e mimese. A pausa – o branco do som – e a batida, o ruído que impõe a repetição, vêm inscrever seus vazios na trama entre dois personagens, cuja relação é de alteridade: alteração a que o próprio texto conduz, e não altercação, que estabeleceria para o diálogo a lei de seu desenvolvimento e de seu desfecho. A palavra, ela própria ausência – ausência de coisa, presença de som, ausência de palavra – é intervalo: batida, pausa, mudez, silêncio.

 

A repetição responde ao “instinto de morte”, lembremo-lo de passagem, isto é, responde à necessidade ou ao conselho dessa discrição que põe entre ser e nada o intervalo próprio à palavra. A repetição apaga o dizer e o desmistifica. (5)

 

No Improviso, de Beckett, o caminho para o silêncio termina com os dois personagens levantando a cabeça e fixando-se sem expressão. Nessa leitura, que se repete, hesita, como que tartamudeia, entrecortada pelas pausas e pelas batidas, termina por declinar o destino da literatura moderna, em um texto que não tem conteúdo simbólico – a incomunicabilidade solitária, a indiferenciação dos companheiros –, mas se dá como ritmo e pulsação. Texto no qual a linguagem torna-se essencial por seu próprio esgotamento no ciclo das repetições. Vejamos este trecho:

 

Pausa.

Assim de tempo em tempo de improviso ela reaparecia para reler até o fim a triste história e adormecer a longa noite. Depois desaparecia sem uma palavra.

Pausa.

Sem jamais trocar uma única palavra eles se tornaram como que um só.

Pausa.

Veio enfim a noite em que fechado o livro aos primeiros raios de luz ele não desapareceu mas ficou sentado sem uma palavra.

Pausa.

Finalmente ele disse, Fui avisado – e nomeou o nome querido – de que não voltaria mais. Vi o rosto querido e ouvi as palavras mudas. Não precisas mais ir ter com ele, mesmo que tivesses esse poder.

Pausa.

Assim a triste –

Batida.

Vi o rosto querido e ouvi as palavras mudas. Não precisas mais ir ter com ele, mesmo que tivesses esse poder.

Pausa. Batida.

Assim a triste história uma última vez redita, ficaram sentados como se fossem de pedra. (6)

 


Para Blanchot, a obra de Samuel Beckett nos lembra, sob todas as formas, as palavras desenraizadas que caem na multiplicidade da tagarelice, mas é esta que, falando sem começo nem fim, surge então como manifestação de toda palavra profunda.

 

Dizer duas vezes a mesma coisa, não no cuidado pelo idêntico, mas na recusa da identidade e como se a mesma frase, reproduzindo-se, mas se deslocando, se desenvolvesse por ela mesma e segundo os traços próprios do espaço engendrado pelo deslocamento, e não de acordo com a organização do desenvolvimento retórico. (7)

 

Improviso nos dá a imagem de uma comunidade de palavra, em que a leitura e o olhar neutro que a ela se substitui, respondem pela alteridade operante entre a coisa e sua sombra, o espelho e a imagem que ele acolhe. Essa é a condição da linguagem poética, sua verdade paradoxal e irreconciliável. Talvez por isso, Blanchot abra da seguinte forma Le Dernier à Parler:

 

Platão: Porque ninguém sabe da morte, e Paul Celan: Ninguém testemunha pela testemunha. E, no entanto, sempre, escolhemos um companheiro: não para nós, mas para alguma coisa em nós, fora de nós, que precisa que faltemos a nós mesmos para transpor a linha que não alcançaremos. Companheiro de antemão perdido, a própria perda que ocupa daqui por diante nosso lugar. Onde procurar a testemunha para a qual não existe testemunha? (8)

 

Talvez por isso, Foucault possa afirmar sobre a experiência do De Fora:

 

…movimento de atração, o companheiro que se retira, colocam a nu o que é antes de qualquer palavra, abaixo de todo mutismo: o fluir contínuo da linguagem. (9)

 

NOTAS

(1) Cf. a propósito Blanchot, Maurice. De Kafka à Kafka. Paris: Gallimard, 1981, coletânea do autor que reúne artigos sobre Kafka, editados, ao longo de vinte anos, em publicações diversas.

(2) Kafka, Franz. A Muralha da China. S.Paulo: Livraria Exposição do Livro, s/d.

(3) Deleuze, Gilles & Guattari, Félix. Kafka - Por uma Literatura Menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.

(4) Idem.

(5) Blanchot, Maurice. A rose is a rose... L’Entretien Infini. Paris: Gallimard, 1969.

(6) Beckett, Samuel. Improviso de Ohio. In: Caderno Mais!, Folha de S.Paulo, 08.ago.1996.

(7) Blanchot, Maurice. A rose is a rose... L’Entretien Infini. Paris: Gallimard, 1969.

(8) Blanchot, Maurice. Le Dernier à parler. Paris: Fata Morgana, 1986.

(9) Foucault, M. La pensée du dehors. Dits et Écrits. Paris: Gallimard, 1997.

 

 

Rogerio Luz (Rio de Janeiro, 1936) professor aposentado da ECO-UFRJ, publicou artigos e livros nas áreas de arte e psicanálise. Analyse Structurale du Récit Filmique. Mons: Editions Ciné-Jeunes, 1969. Expressão Corporal: uma Política do Corpo. Rio: Centro de Documentação e Pesquisa, Funarte, 1979. Espace Potentiel et Expérience Filmique. Louvain-la-Neuve: Ciaco, 1987. Filme e Subjetividade. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2002. Em coautoria, com Roberto Machado, Angela Loureiro e Kátia Muricy: Danação da Norma (Medicina social e constituição da Psiquiatria no Brasil). Rio: Graal, 1978; com Ivone Lins: D. W. Winnicott: Experiência Clínica e Experiência Estética. Rio de Janeiro: Revinter, 1998; com Flávia Martins, Santeiros da Bahia – arte popular e devoção. Recife: Caleidoscópio, 2010; com Flávia Martins e Pedro Belchior. Escultores Populares de Pernambuco. Recife: Caleidoscópio, 2013. E mais oito coletâneas de poemas, dentre elas: Escritas (Prêmio de Poesia do Concurso Literário da Universidade Federal do Goiás). Goiânia: Ed. UFG, 2011, e Os Nomes (Prêmio de Poesia do Governo do Estado de Minas Gerais). Rio de Janeiro: Ed. Circuito, 2014. Publicou ainda um livro de contos: Aeroplano (Prêmio Uirapuru). Belém: Editora Folheando, 2020.




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[A partir de janeiro de 2022]
 

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