Na arte, sempre às voltas
com a pergunta quem fala – ou grita, ou
canta, ou emudece – a conexão instituída entre voz e rosto, voz e poder, voz e sujeito
é ao mesmo tempo celebrada e posta em questão: o som ganha, nesse deslindar, uma
dimensão entre a música das esferas celestes e o silêncio noturno, abismal.
O que se segue aqui não
é um estudo aprofundado de dois autores, aliás fundamentais para a compreensão desse
novo registro da voz em nossa modernidade tardia: é apenas uma leitura. Em toda
leitura, cruzam-se sem se encontrar dois modos de recepção: vemos o som, escutamos
a letra. Por essa fronteira, esse limiar – que estamos sempre transpondo, atraídos
pelo outro lado no qual nos exilamos,
linha ao mesmo tempo intransponível e lugar de conexão, de partilha – passam estas
breves notas sobre alguns textos: dois contos de Kafka e uma pequena peça teatral
de Beckett. Notas que procuram indicar um dos elementos, entre tantos outros, com
o qual esses textos nos atingem, nos afetam e nos forçam a pensar diferentemente,
a dar lugar a narrativas sem garantia
de identidade e finalidade. E esse elemento é o som.
Kafka e o som da trombeta
Da obra de
Kafka – seus relatos, no entanto votados por ele mesmo à destruição, mas também
sua correspondência – extraem-se conceitos centrais ao entendimento do que é a arte
hoje para nós, na cisão entre a imagem e o som, a imagem visual, que é imagem de
coisa, mas também imagem de palavra, e a imagem sonora, toque, baque, rumor, canto,
verbo, mas também o murmúrio, o inaudito, a surdez, o silêncio. Com o avanço das
tecnologias atuais de produção da imagem, nossa civilização acreditou-se audiovisual. A tarefa da arte, e do pensamento
sobre arte – cujo destino é ser escrita sobre
escrita –, tem sido também a de fraturar a aparente unidade e continuidade não
problemáticas da escuta e do olhar. (1)
Indicamos
aqui, na comparação entre dois pequenos relatos, o modo como operam o espaço e o
som: o espaço – seus territórios enclausurados e suas saídas, trabalhadas por intensidades
de um tempo não linear –; o som, configurado como ruído, fala e música.
A PARTIDA
Dei ordem de irem buscar meu cavalo ao estábulo.
O criado não me compreendeu. Fui eu mesmo ao estábulo, encilhei o cavalo e montei.
Ao longe ouvi o som de uma trombeta, perguntei o que significava aquilo. Ele de
nada sabia, não ouvira nada. No portão deteve-me, para perguntar-me: – Para onde
cavalga o senhor?
Não sei – respondi –. Apenas
quero ir-me daqui, somente ir-me daqui. Partir sempre, sair daqui, apenas assim
posso alcançar minha meta.
Conhece, então, sua meta?
– perguntou ele.
Sim - respondi eu –. Já
disse. Sair daqui: esta é minha meta.
RENUNCIA!
Era muito cedo, pela manhã, as ruas estavam limpas
e vazias, eu ia à estação. Ao verificar a hora em meu relógio com a do relógio de
uma torre, vi que era muito mais tarde do que eu acreditara, tinha que apressar-me
bastante; o susto que me produziu esta descoberta me fez perder a tranquilidade,
não me orientava ainda muito bem naquela cidade. Felizmente, havia um policial nas
proximidades, fui até ele e perguntei-lhe, sem fôlego, qual era o caminho. Sorriu
e disse:
Por mim queres conhecer
o caminho?
Sim – disse –, já que não
posso encontrá-lo por mim mesmo.
Renuncia, renuncia – disse
e voltou-se com grande ímpeto, como as pessoas que querem ficar a sós com o seu
riso. (2)
A Partida se inicia com
uma quebra das relações hierárquicas de poder, mas desvia de imediato para outra
direção: a ordem não é compreendida, os liames de autoridade e comunicação não se
podem reatar, desde que tomada a decisão de partir. Os limites da propriedade, sua
estrutura interna, seus locais e funções, perdem definição.
A ordem inicial dá lugar
ao diálogo entre as personagens, na verdade uma sucessão de interrupções, sem continuidade,
embora a cada vez de diferente natureza.
Quanto ao som da trombeta:
ele não será nem ao menos ouvido por quem só aparentemente ocupa o lugar de um interlocutor,
mas não compreende, não sabe, não ouve. Seria o significado desse som o de um chamamento,
que conclama o narrador a perseguir um objetivo mais alto ou mais vil, por meio
talvez de uma batalha ou de uma celebração? O leitor, assim como o criado, permanecerá
na ignorância, que primeiro atingiu o próprio cavaleiro. Essa ignorância não pode
ser ultrapassada: ela corresponde ao clamor assignificante da trombeta.
O que interessa a Kafka
é uma pura matéria sonora intensa, sempre em relação com sua própria abolição, som musical desterritorializado, grito que escapa
à significação, à composição, ao canto, à fala, sonoridade em ruptura para desprender-se
de uma cadeia ainda muito significante. (3)
Mas ao tomar a palavra,
o criado parece acreditar possível estabelecer um diálogo em torno do que justifica
o gesto de partida, garantia de sentido para a direção tomada pelo cavaleiro rumo
ao que é exterior a seu território, a essa exterioridade que desata os nós do quotidiano,
as articulações que fazem do território um território.
Diante da pergunta, o narrador
– que relata o acontecido em um passado indeterminado, ele próprio sem designar
o lugar de onde agora fala – também de nada sabe: sabe apenas sua vontade de partir,
nomadismo ou exílio. Como diria Deleuze do espaço nômade: indefinido, aberto, não-comunicante.
Logo o cavaleiro indica, porém, a partida como um meio para atingir seu objetivo.
Contradição meramente retórica? Teremos enfim a chave explicativa da partida, ao
que tudo indica súbita, sem preparativos que a anunciassem ao criado? O diálogo
parece então seguir seu curso normal, em que uma intervenção não interrompe, mas
é consequência da anterior: o criado quer saber o que quer e o que sabe o cavaleiro,
agora destituído de seu papel de senhor.
A resposta é convincente,
mas em um plano que destitui de sentido toda finalidade: a meta da partida é a partida,
essa relação consigo mesma que, antes de traçar uma linha reta entre o ponto de
partida e o ponto de chegada, enrola-se sobre si mesma sem repouso e sem clausura:
a partida é a relação com o Fora, de onde vem o som que não cabe nos limites do
diálogo e da comunicação, e que escava um vazio no mais íntimo do território que
o cavaleiro e sua montaria abandonam – que ele sempre abandona, porque sempre repete
a meta, que é tão-somente, mais do que partir, a vontade, o desejo de partir.
A escritura em Kafka, o primado da escritura só significa uma
coisa: de modo algum a literatura, mas que a enunciação constitui unidade com o
desejo, por cima das leis, dos estados, dos regimes. No entanto, enunciação sempre
histórica, política e social. (4)
O segundo relato inverte,
luva agora às avessas, esse espaço que o De Fora tornou ilimitado. O caminhante
atravessa as ruas, claras e definidas, rumo a um objetivo explícito. Mas o tempo
do homem e o da cidade subitamente divergem: aceleração e desorientação arruinam
por dentro a tranquilidade de uma cidade desconhecida. A ordem, contudo, parece
retornar na figura de um policial, autoridade pública que, no interior de um espaço
urbano disciplinado, deve investir-se de saber, se não quiser tornar-se cômica.
O diálogo aqui se dá em
condições diversas do relato anterior. É o narrador que nada sabe: à sua pergunta
falta quase o essencial da fala, sopro ou fôlego. Faltam clareza e autodomínio à
própria pergunta sobre o meio de atingir a meta – isto é, a estação, lugar fronteiriço
de partidas e chegadas, de conexão com o exterior (não saberemos o motivo que leva
o narrador a este lugar limite que, no entanto, ele pretende atingir em hora aprazada).
Logo: lugar instável, limiar de transição e de ruptura.
No
desatar dos laços instituídos, o discreto tom de comédia perpassa as relações em
vias de desaparecerem e as situações sem lei que em decorrência se abrem. A palavra
não é um meio que assegure a comunicação, o que faz o leitor duvidar do encontro
com o próprio texto que está lendo, pois este não oferece sentido algum, explícito
ou oculto. Trata-se, antes, de experimentar o exílio, seja ao partir casualmente
na direção de um som enigmático, vindo de fora, que nada promete e a nada conclama,
seja no interior mesmo de um território urbano que só aparentemente se estrutura
em firmes coordenadas de lugar e de tempo. Os dois pequenos relatos atestam o absurdo
e a impossibilidade das relações instituídas na e pela fala comum: o do senhor com
o servo, no espaço privado do feudo de sua propriedade, o do viajante com o guarda
no espaço público da cidade.
Beckett: a pausa que repete
O teatro de Beckett, mínimo e essencial, nos põe
frente à leitura e sua audição, e explora a natureza da relação que as faz divergir
em um espaço de espelhamento. Em Improviso
de Ohio, Beckett nos dá a ver a semelhança
sem fusão entre um ouvinte e um leitor, em torno das últimas palavras: o idêntico
que, duplicado, se altera, a dualidade que, frente a frente, descamba para o idêntico.
No Improviso, Beckett desloca a questão
do texto, autoria e iniciativa, e de sua interpretação à viva voz no teatro ou no
rádio, para a leitura – leitura da peça. Ensaio geral? Somente o olho e o ouvido
são ali convocados e submetidos ao texto escrito.
Sentados, idênticos – longo
casaco negro, longos cabelos brancos: o leitor, à cabeceira da mesa, de perfil para
o público, narra, entre pausas, a história de uma separação, de um isolamento, interrompido
pela chegada de alguém que vem em nome de outro e lê, noite adentro até a aurora,
um livro. De frente, o ouvinte limita-se a bater com a mão esquerda sobre a mesa,
o que obriga o leitor a voltar sobre o que foi lido, a repeti-lo. Toda a leitura,
e o relato que ela faz escutar, contêm-se entre dois enunciados: “Resta pouco a
dizer”, “Não resta nada a dizer”.
A situação
relatada repete-se na situação dramaticamente presente: indistinção entre o que
é narrado e o que é representado, entre diegese e mimese. A pausa – o branco do
som – e a batida, o ruído que impõe a repetição, vêm inscrever seus vazios na trama
entre dois personagens, cuja relação é de alteridade: alteração a que o próprio
texto conduz, e não altercação, que estabeleceria para o diálogo a lei de seu desenvolvimento
e de seu desfecho. A palavra, ela própria ausência – ausência de coisa, presença
de som, ausência de palavra – é intervalo: batida, pausa, mudez, silêncio.
A repetição responde ao “instinto de morte”, lembremo-lo de
passagem, isto é, responde à necessidade ou ao conselho dessa discrição que põe
entre ser e nada o intervalo próprio à palavra. A repetição apaga o dizer e o desmistifica. (5)
No Improviso, de Beckett, o caminho para o silêncio termina com os dois
personagens levantando a cabeça e fixando-se sem expressão. Nessa leitura, que se
repete, hesita, como que tartamudeia, entrecortada pelas pausas e pelas batidas,
termina por declinar o destino da literatura moderna, em um texto que não tem conteúdo
simbólico – a incomunicabilidade solitária, a indiferenciação dos companheiros –,
mas se dá como ritmo e pulsação. Texto no qual a linguagem torna-se essencial por
seu próprio esgotamento no ciclo das repetições. Vejamos este trecho:
Pausa.
Assim de tempo em tempo
de improviso ela reaparecia para reler até o fim a triste história e adormecer a
longa noite. Depois desaparecia sem uma palavra.
Pausa.
Sem jamais trocar uma única
palavra eles se tornaram como que um só.
Pausa.
Veio enfim a noite em que
fechado o livro aos primeiros raios de luz ele não desapareceu mas ficou sentado
sem uma palavra.
Pausa.
Finalmente ele disse, Fui
avisado – e nomeou o nome querido – de que não voltaria mais. Vi o rosto querido
e ouvi as palavras mudas. Não precisas mais ir ter com ele, mesmo que tivesses esse
poder.
Pausa.
Assim a triste –
Batida.
Vi o rosto querido e ouvi
as palavras mudas. Não precisas mais ir ter com ele, mesmo que tivesses esse poder.
Pausa. Batida.
Assim a triste história
uma última vez redita, ficaram sentados como se fossem de pedra. (6)
Dizer duas
vezes a mesma coisa, não no cuidado pelo idêntico, mas na recusa da identidade e
como se a mesma frase, reproduzindo-se, mas se deslocando, se desenvolvesse por
ela mesma e segundo os traços próprios do espaço engendrado pelo deslocamento, e
não de acordo com a organização do desenvolvimento retórico. (7)
Improviso nos dá a imagem de uma comunidade de palavra, em
que a leitura e o olhar neutro que a ela se substitui, respondem pela alteridade
operante entre a coisa e sua sombra, o espelho e a imagem que ele acolhe. Essa é
a condição da linguagem poética, sua verdade paradoxal e irreconciliável. Talvez
por isso, Blanchot abra da seguinte forma Le
Dernier à Parler:
Platão: Porque ninguém sabe da morte, e Paul Celan: Ninguém testemunha pela testemunha. E, no entanto, sempre, escolhemos um companheiro:
não para nós, mas para alguma coisa em nós, fora de nós, que precisa que faltemos
a nós mesmos para transpor a linha que não alcançaremos. Companheiro de antemão
perdido, a própria perda que ocupa daqui por diante nosso lugar. Onde procurar a
testemunha para a qual não existe testemunha? (8)
Talvez por isso, Foucault
possa afirmar sobre a experiência do De Fora:
…movimento de atração, o companheiro que se retira, colocam
a nu o que é antes de qualquer palavra, abaixo de todo mutismo: o fluir contínuo
da linguagem.
(9)
NOTAS
(1) Cf. a
propósito Blanchot, Maurice. De Kafka à Kafka.
Paris: Gallimard, 1981, coletânea do autor que reúne artigos sobre Kafka, editados,
ao longo de vinte anos, em publicações diversas.
(2) Kafka,
Franz. A Muralha da China. S.Paulo: Livraria
Exposição do Livro, s/d.
(3) Deleuze,
Gilles & Guattari, Félix. Kafka - Por
uma Literatura Menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
(4) Idem.
(5) Blanchot,
Maurice. A rose is a rose... L’Entretien Infini. Paris: Gallimard, 1969.
(6) Beckett,
Samuel. Improviso de Ohio. In: Caderno
Mais!, Folha de S.Paulo, 08.ago.1996.
(7) Blanchot, Maurice. A rose is a rose... L’Entretien Infini. Paris: Gallimard, 1969.
(8) Blanchot, Maurice. Le Dernier à parler. Paris: Fata Morgana, 1986.
(9) Foucault, M. La pensée du dehors. Dits et Écrits. Paris: Gallimard, 1997.
Rogerio Luz (Rio de Janeiro, 1936)
professor aposentado da ECO-UFRJ, publicou artigos e livros nas áreas de arte e
psicanálise. Analyse Structurale du Récit Filmique. Mons: Editions Ciné-Jeunes,
1969. Expressão Corporal: uma Política do Corpo. Rio: Centro de Documentação
e Pesquisa, Funarte, 1979. Espace Potentiel
et Expérience Filmique. Louvain-la-Neuve:
Ciaco, 1987. Filme e Subjetividade. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2002.
Em coautoria, com Roberto Machado, Angela Loureiro e Kátia Muricy: Danação da
Norma (Medicina social e constituição da Psiquiatria no Brasil). Rio: Graal,
1978; com Ivone Lins: D. W. Winnicott: Experiência Clínica e Experiência Estética.
Rio de Janeiro: Revinter, 1998; com Flávia Martins, Santeiros da Bahia – arte
popular e devoção. Recife: Caleidoscópio, 2010; com Flávia Martins e Pedro Belchior.
Escultores Populares de Pernambuco. Recife: Caleidoscópio, 2013. E mais oito
coletâneas de poemas, dentre elas: Escritas (Prêmio de Poesia do Concurso
Literário da Universidade Federal do Goiás). Goiânia: Ed. UFG, 2011, e Os Nomes
(Prêmio de Poesia do Governo do Estado de Minas Gerais). Rio de Janeiro: Ed. Circuito,
2014. Publicou ainda um livro de contos: Aeroplano (Prêmio Uirapuru). Belém:
Editora Folheando, 2020.
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Número 198 | dezembro de 2021
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