quinta-feira, 24 de março de 2022

ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | Abrindo as cortinas para Jacques Prévert

 


Ce fut au surréalisme où j’ai fait mes humanités.

JACQUES PRÉVERT


I | A escritura coletiva com surrealistas

 

Pouco importa ou exporta: Jacques Prévert é surrealista. Sua poesia transita pelos mesmos caminhos que os surrealistas seguem: o “umor”, a revolta contra os que oprimem o ser humano, a exaltação do amor e do sonho que levam à revolução.

Para determinar o encontro de Jacques Prévert com o Surrealismo (depois ele se encontraria novamente com os surrealistas), podemos marcar três momentos. O primeiro se dá no fim de 1924 na livraria Les amis du livre, de Adrienne Monnier onde, além de entrar em contato com a revista La Révolution Surréaliste, a qual muito lhe impressiona e entusiasma, Prévert tem acesso a uma literatura surrealista avant la lettre: os Cantos belos e terríveis de Maldoror, do Conde de Lautréamont, os Campos Magnéticos, de Philippe Soupault e André Breton, Le mariage du Ciel et de l’Enfer, de William Blake, Le refrain du Décervelage, do Roi Ubu de Alfred Jarry.

O segundo encontro com o Surrealismo ocorre quando, de um ônibus, pelo fim do mesmo ano de 1924, Prévert e o pintor Yves Tanguy, que então moravam com Marcel Duhamel na famosa Rue du Château 54, avistam numa vitrine da galeria Paul Guillaume em Paris o quadro Cerveau d’enfant, de Giorgio de Chirico, o qual lhes mostra a escritura dos sonhos. De acordo com Yves Courrière, Yves Tanguy sofreu um inpacto tão grande ao ver essa tela que, ao chegar em casa, destruiu alguns de seus quadros por considerá-los ingênuos demais.

No início de 1925, Marcel Duhamel conhece Breton e o leva para uma visita na Rue du Château; Breton fica tão entusiasmado com Prévert, Duhamel e Tanguy que passa a utilizar a casa como um dos locais de reunião do grupo surrealista.

Durante sua passagem pelo grupo de 1925 a 1929, Prévert não publica nada, não participa de sessões de hipnose, não relata seus sonhos nem exerce qualquer tipo de escritura automática. Participa apenas das “pesquisas sobre a sexualidade”, recolhidas nos “Archives du bureau surreáliste”. Os únicos manifestos que subscreve voltam-se para a defesa de dois artistas com quem mantém afinidades poéticas. Um deles é: “Hands off love”, publicado na edição de outubro de 1927 da revista La Révolution Surrealiste, a favor de Charles Chaplin, que era acusado, judicialmente, de maltratar sua esposa; o outro é “Permettez”, no qual Raymond Queneau protesta contra a inauguração de uma estátua em homenagem a Arthur Rimbaud.

Ajuda a criar o “cadavre exquis”, atividade que consistia em produzir um texto coletivo em que cada participante continuava um texto, acrescentando uma parte da frase sem saber o que vinha antes, daí resultando em criações livres de qualquer associação lógica. No primeiro texto, Prévert escreveu “le cadavre exquis”, em um papel dobrado e o passou a um outro participante que, em segredo, prosseguiu acrescentando “boira”; um terceiro, nas mesmas condições, concluiu o jogo e o texto com “le vin nouveau”.

Gérard Guillot considera que, graças ao grupo surrealista, Prévert pôde experimentar coisas novas e entrar em contato com várias modalidades de arte. Nas palavras do próprio Prévert, o surrealismo era

 

une rencontre de gens qui n’avaient pas de rendez-vous mais qui sans se ressembler se rassemblaient. Militaires, religieuses, policières, les grandes superencheries sacrées les faisaient rire. Leur rire, comme leurs peintures et leurs écrits, était un rire agressivement salubre et indéniablement contagieux. (Prévert, 1996)

 

Em 15 de janeiro de 1930, Prévert rompe com Breton, ao participar com seu primeiro texto “Mort d’un Monsieur, no panfleto Un cadavre, que ele e outros 11 dissidentes do Surrealismo dirigem como resposta aos ataques pessoais que Breton promovera no Segundo Manifesto. Em “Mort d’un Monsieur”, num estilo e num humor que caracterizarão seus poemas, Prévert começa lamentando o desaparecimento daquele que o fazia rir: “Hélas, je ne reverrai plus l’illustre Palotin du Monde Occidental, celui qui me faisait rire! (Prévert, 1996).

Depois, Prévert ataca os relatos de sonhos de Breton, dizendo que um dia num sonho, após se olhar seriamente (ou seja, sem humor) no espelho, ele se achou belo. Para Prévert, foi o fim de Breton, que passou a confundir “le désespoir et le mal de foie, la Bible et Les Chants de Maldoror, Dieu et Dieu, […] la Révolution Russe et la Révolution Surréaliste. (Encore… et toujours la plus scandaleuse du monde) (Prévert, 1996).

Depois de sua ruptura com Breton, Prévert decide fazer “route à part”, sem, no entanto, deixar de se reencontrar com o Surrealismo nem com o próprio Breton, com o qual se reconcilia em 1937. A partir então de 1930, passa a escrever para revistas como Biffurs, Documents, Commerce. Em 1932, torna-se dramaturgo do Groupe Octobre, escrevendo peças teatrais inspiradas em acontecimentos, querendo fazer a Revolução por meio do teatro. Com o fim do Groupe Octobre em 1936, passa a participar ativamente como roterista de filmes com diretores como Jean Renoir e Marcel Carné, com o qual realizou sua obra-prima, Les enfants du Paradis (1945).

Ainda em 1945, lança seu primeiro e mais famoso livro, Paroles, no qual se dirige violentamente contra as instituições com letras maiúsculas: a Igreja, a Família, a Propriedade, o Estado. Seguem-se a Paroles: Histoires (1947), Spectacle (1951), Grand bal du Printemps (1951) Charmes de Londres (1952), La pluie et le beau temps (1954), Fatras (1966), Imaginaires (1970), com colagens do autor, e Choses et Autres (1972). Além desses livros, Prévert escreveu outros a quatro mãos com artistas ligados ao Surrealismo como: Max Ernst (Les chiens ont soif), Picasso (Portraits de Picasso), Miró (Miró e Adonides) e Georges Ribemont-Dessaignes (Arbres).

De acordo com Bersani, em seus poemas, Prévert realiza a síntese de duas correntes que atravessam o Surrealismo: as correntes “dos jogos de linguagem” e “a libertária”. Para Bersani, Prévert é um “poète qui joue des mots, qui sait, comme le recommandait Breton, leur laisser “faire l’amour” pour mieux engendrer la merveille, Prévert est aussi et en même temps celui qui se joue des mots pour mieux se jouer de la société d’exploiteurs et d’oppresseurs qu’il vitupère”.

Por causa de seu humor (subversivo), Prévert figura na Anthologie de l’humour noir, organizada por André Breton. De Prévert, Breton seleciona “Tentative de description d’un dîner de têtes à Paris-France”, poema que abre Paroles. A propósito de Prévert, escreve Breton que “il dispose souverainement du raccourci (atalho, caminho abreviado) susceptible de nous rendre en un éclair la démarche (conduta) sensible, rayonnante de l’enfance, et de pourvoir indéfiniment le réservoir de la révolte” (Breton, 1998).

Em toda sua obra poética, Prévert empreende a busca surrealista pelo surreal, com a criação de uma realidade de liberdade, amor, poesia, sonho e revolução. Em um dos mais belos poemas de Fatras, “La veille au soir”, são as crianças que ao sonhar sopram apagando a vela do vigilante da noite e dos sonhos. Eis o poema:

 

La veilleuse du surveillant s’est éteinte

Et le surveillant dans la nuit

S’est éteint aussi

Les enfants en rêvant

Avaient soufflé sur lui. (Prévert, 1996).

 

Num maravilhoso jogo de palavras, Prévert aproxima semanticamente veille (vigília, privação do sono à noite), veilleuse (lanterna, vela e também o feminino de veilleur, guardião da noite) e surveillant (vigilante). Nesse jogo, imagina-se que um vigilante, um guardião do sono, munido de sua vela e ao mesmo tempo sua companheira, vigia os sonhos das crianças, para depois puni-las. Entretanto, estas são mais fortes que os guardiães, e, sonhando, destróem a realidade que as oprime, apagando – isto é, eliminando seus opressores. Nas palavras de Breton, no Primeiro Manifesto: “L’esprit qui plonge dans le surréalisme revit avec exaltation la meilleure part de son enfance. […] C’est peut-être l’enfance qui approche le plus de la “vraie vie” (Breton, 1986).

No poema “Ministère du ludique-action-publique” (que também dá título a uma colagem de Prévert), o poeta apresenta um artigo dos direitos universais da criança (e do ser humano), conforme o qual ela tem total liberdade:

 

Art. I

L’enfant n’a pas de contrat, il n’a pas signé son acte de naissance. Il est libre de refuser tôt ou tard l’âge qu’on “lui donne” et d’en choisir un autre, d’en changer selon ses désirs, comme de le garder le temps qu’il lui plaît. (Prévert, 1996)

 

Assim, não estaria Prévert realizando o que Breton disse no Primeiro Manifesto: que os surrealistas deveriam reescrever os direitos do ser humano para libertá-lo totalmente?

No último poema de Paroles (1946), “Lanterne magique de Picasso”, Prévert demonstra que sua obra procura a surrealidade, o ponto onde as contradições deixam de ser percebidas:

 

Les idées pétrifiées devant la merveilleuse indifférence

d’un monde passioné

d’un monde retrouvé

d’un monde indiscutable et inexpliqué

d’un monde sans savoir-vivre mais plein de joie de vivre

d’un monde sobre et ivre

d’un monde triste et gai

tendre et cruel

réel et surréel

terrifiant et marrant

nocturne et diurne

solite et insolite

beau comme tout. (Prévert, 1992)

 

Assim, a busca pela surrealidade continua a ser o ponto de contato entre aqueles que querem, através da união entre o Amor, a Poesia, o Sonho, o Humor e a Revolução, transformar o mundo e mudar a vida. Neste mesmo poema, a lanterna mágica de Picasso ilumina “le visage d’André Breton et de Paul Éluard”.

Nas entrevistas de Breton a André Parinaud, ao ser perguntado se a grande fonte do Surrealismo nos anos 1920 e 1930 seria o amor, Breton responde: “Oui: indépendamment du profond désir d’action révolutionnaire qui nous possède, tous les sujets d’exaltation propres au surréalisme convergent à ce moment vers l’amour”.  Para Prévert, não existem nem cinco ou seis maravilhas, mas apenas uma: o amor. Em outro poema, ele aproxima amor e revolução por sua cor vermelha:

 

Rouge, le mot rouge révolution reste rouge

malgré les décorations et les décolorations,

dissequé et nié le mot amour garde toute sa beauté. (Prévert, 1996)

 

Rouge (vermelho) é a cor pela qual Breton e Éluard no Dictionnaire abrégé du surréalisme definem Jacques Prévert: “Celui qui rouge de coeur” .


Para nós, o reencontro com os surrealistas ocorre quando Prévert os convoca tanto para questionar a linguagem, as instituições, a guerra, quanto para buscar a surrealidade. Numa entrevista a André Pozner, Prévert revela, ao falar de sua amizade com Breton, que nunca escreveria sobre (sur) um amigo, mas sim com (avec), expondo dessa maneira uma poética da criação coletiva, que se constrói com a ajuda do outro, mesmo que esse outro esteja morto: “Breton, ou André plutôt, avait tant de choses à dire, on a tant écrit sur lui! On dit toujours ça, écrire sur quelqu’un. Moi, si j’écrivais, j’écrirais avec lui”. (Prévert, 1996). Lembro aqui o preceito de Lautréamont: A poesia deve ser feita por todos. A seguir, veremos exemplos de escritura coletiva de Jacques Prévert com Max Ernst, o criador das colagens, André Breton, Paul Éluard, Phillipe Soupault e Robert Desnos.

Com Max Ernst, Prévert escreve a quatro mãos o livreto Les chiens ont soif (paródia do título do livro Les Dieux ont soif, de Anatole France), ilustrado com 27 litografias e 2 águas-fortes de Ernst. No início do texto, Prévert retoma o sentido que os surrealistas haviam dado à palavra littérature quando lançaram a revista Littérature: “J’écris au raturant de la plume d’un stylo”. Ou seja, em litté-rature (rasura da letra), Prévert escreve contra a literatura, a letra “oficial”, não escrevendo num belo estilo.

A Ernst, Prévert deve seu gosto pelas colagens. Em Imaginaires, Prévert dedica a Ernst o poema Roi image du collage: Max Ernst. No título lê-se não Roi mage (Rei mago), mas Roi image (Rei Imagem). Para compor seu poema, primeiro Prévert apresenta-nos a definição dicionarizada de colagem, a definição oficial, petrificada, que não apreende a revolução que a colagem imprime em nosso modo de ver a realidade:

 

Collages

Collage: Situation d’un homme et d’une femme qui vivent ensemble sans être mariés.

Papiers collés: Composition faite d’éléments collés sur la toile. (Petit Robert) (Prévert, 1996)

 

Depois, mostra suas definições, até mesmo a de décollage (que em francês pode-se ler como “descolagem” ou “decolagem”):

 

Roi image du collage: Max Ernst

Chiens collés: Châtiment infligé aux chiens n’ayant pas d’âme et vivant en concubinage.

Décollage: Image d’un avion arraché de l’image de l’aéroport (ou aérodrame s’il s’écrase sur le sol).

Image réconfortante s’il s’agit d’un bombardier. (Prévert, 1996)

 

Do título de um livro de colagem de Ernst, La femme 100 têtes, Prévert cria “La femme acéphale”, um de seus poemas que mais questionam a sociedade com seu autoritarismo, seus lugares-comuns. Vejam que Prévert inclui esse livreto em Fatras, seu primeiro livro que traz colagens de sua autoria. Entendemos que assim Prévert presta uma homenagem a Ernst, o criador da colagem.

Em Spectacle, Prévert transforma o livro em espaço de convocação coletiva. Na seçào “Intermède”, além de outros escritores, Prévert convoca, entre outros surrealistas, André Breton, Paul Éluard, Philippe Soupault e Robert Desnos para escreverem juntos. De André Breton e Paul Éluard, Prévert cita poemas do livro L’Immaculée Conception que Breton e Éluard escreveram a quatro mãos, reforçando assim a coletividade na ação de escrever:

 

J’ai ma femme avec moi dans mon lit même quand je suis debout.

J’ai scalpé le public. J’ai mis ma verge dans toutes les cheminées le jour de Nöel.

Je signe la paix et je vais porter le buvard aux Invalides. André Breton et Paul Éluard. (In Prévert, 1992)

 

Com Soupault, Prévert escreve:

 

Un éléphant dans sa baignoire

Et les trois enfants dormant

Singulière singulière histoire

Histoire du soleil couchant. Philippe Soupault. (In Prévert, 1992)

 

A este poema, Prévert coteja um poema de Minoutte, sua filha, no qual três gatinhos se banham também numa banheira, a fim de enfatizar o caráter infantil que deve constar na ação poética.

 

Trois petits chats dans une baignoire

Tournent la manivelle de satin

Et s’en vont dans les broussailles

Et partir et revenir, et partir et revenir

Et partir et revenir.

Et mangèrent leur déjeuner.

Ton… Ton…. (In Prévert, 1992)

 

De Desnos, Prévert apresenta um trecho do poema “Au bout du monde”, da seção “Les portes battantes”, do livro Fortunes (1942), no qual um desertor parlamenta com sentinelas que não entendem sua linguagem:

 

Quelque part dans le monde

Au pied d’un talus (escarpado)

Un déserteur parlemente

Avec des sentinelles

Qui ne comprennent pas son langage. Robert Desnos (In Prévert, 1992)

 

A linguagem da vida, do desertor, não é compreendida por aqueles que falam a linguagem da guerra, da guerra que matou Desnos. Ao utilizar um poema de uma seção chamada “As portas que batem”, Prévert retoma uma das imagens que Breton atribui à poesia surrealista: aquela que deixa as portas sempre batendo, para dentro e para fora.

Aliás, dentre os surrealistas é com Robert Desnos que a obra de Prévert mantém maior afinidade. Tanto Prévert quanto Desnos são conhecidos por sua militância política, sendo que, enquanto o primeiro militava apenas através de sua obra, o segundo participou ativamente de grupos de resistência, tendo um fim trágico em 1945, durante a Segunda Guerra. Em suas obras, há partes dedicadas a jogos com palavras, como o “Rrose Selavy”, de Desnos, e os graffitti, de Prévert. Se Desnos escreveu Trente chantefables pour des enfants sages, Prévert escreveu, mas não ironicamente, Contes pour enfants pas sages, uma vez que a simples leitura dessas obras demonstra o respeito que os poetas tinham por seu público infantil.

Em um depoimento de Michel Leiris a Jean Paul Corsetti, Leiris afirma que no surrealismo Desnos e Prévert haviam criado juntos um ramo original de poesia que apresentava uma verve popular, a qual destoava do restante da poesia praticada pelos surrealistas:

 

Il était avec Desnos, qu’il ne faut pas oublier, le creáteur de ce rameau original du surréalisme dont nous parlions tout à l’heure et, en ce sens, il échappait à la menace de “littératurisme” qui pesait sur le mouvement. […]

En tout cas, Prévert incarnait pour nous une poésie du “merveilleux”, mais du “merveilleux populaire”. C’est son innovation en tant que surréaliste. (Corsetti, 1991)

 

Embora, em vida, Desnos nunca tenha escrito nenhum texto com Prévert, consideramos que, em alguns dos poemas de Prévert dedicados a Desnos, pela magia da criação poética, podemos ler textos que trazem ao mesmo tempo as marcas desnosianas e as prevertianas. Para nós, no poema “Aujourd’hui”, podemos ver claramente a presença dessas marcas. A princípio, para entendermos que o poema se constitui como uma criação coletiva de Prévert com Desnos, devemos observar que, além de ser dedicado a Desnos, ele traz uma epígrafe retirada do poema “Aujourd’hui je me suis promené”, de Desnos, escrito em 1936, mas só publicado em État de veille em 1942. Eis a epígrafe:

 

Aujourd’hui je me suis promené avec mon camarade

Même s’il est mort

Je me suis promené avec mon camarade. Robert Desnos. État de veille, 1936, (Prévert, 1996)

 

Em relação ao diálogo entre seu texto e a epígrafe, Prévert dissemina pelo texto trechos da epígrafe a fim de marcar enfaticamente a presença tanto de Desnos quanto do poema desnosiano. Logo no primeiro verso de “Aujourd’hui”, Prévert dialoga diretamente com o poema desnosiano ao utilizar o termo “Aujourd’hui”. Note-se que nesse poema “Aujourd’hui” entra numa rede de referência tripla. Primeiro, remete imediatamente ao poema desnosiano. Segundo, refere-se à revista homônima em que Desnos trabalhou como crítico literário no início dos anos 1940. Terceiro, marca o momento da enunciação, chamando a atenção para o fato de que, para Prévert, Desnos continua.


Em seguida ao termo Aujourd’hui Prévert faz seguir lugares e datas ligados à vida de Desnos, como a rue Mazarine onde Desnos viveu durante muito tempo e seu período de militância que começou em 1936 e terminou tragicamente em 1945, quando Desnos morre contaminado pela febre tifoide.

Depois, Prévert apresenta o segundo verso da epígrafe, porém com a substituição do termo “mon camarade” pelo nome de Robert Desnos: “je me suis promené avec Robert Desnos” (Prévert, 1996). Quatro versos depois, Prévert cita o “même s’il est mort”.

Ao retomar o último verso da epígrafe, Prévert também opera uma modificação acrescentando-lhe na primeira enunciação um “moi aussi” e na segunda, que vem no verso seguinte em elipse, substitui o “mon camarade” pelo termo “mon ami”. Na primeira modificação Prévert nos diz que, além dele, vários outros também passeiam com Desnos, ou seja, que tal passeio é possível a todos aqueles que entram em contato com a obra desnosiana e aceitam empreender a caminhada poética. Já na segunda modificação, Prévert estabelece uma maior intimidade com Desnos, pois o autor de Paroles prefere o termo “mon ami” ao termo “mon camarade”, uma vez que este termo traz uma conotação de militância.

Assim, em “Aujourd’hui”, ouvimos dos poemas de Prévert e de Desnos um canto ao amor, de saudação à amizade. Vemos a exaltação da poesia como uma das formas de se chegar a esses momentos de confraternização que ultrapassam a vida e a morte.

Termino convocando André Breton e Jacques Prévert. Com Breton cito um trecho do poema “Hommage-hommage”, contribuição de Prévert para o número especial “Hommage à Picasso”, da revista Documents (março de 1930): o surrealista está com “un pied sur la rive droite, un pied sur la rive gauche et le troisième sur le derrière des imbéciles”. Com Prévert, rendo uma homenagem aos surrealistas:

 

ils aimaient la vie. Pour les uns, c’était la poésie, pour les autres, c’était l’humour, pour d’autres n’importe quoi, mais pour tous c’était l’amour. En souriant ils envisageaient la mort, mais c’était pour mieux dévisager la vie. Pour la rendre plus libre, plus belle, plus heureuse même. Beaucoup d’entre eux ont disparu. Mais grâce à eux, cette vie réelle, comme leurs rêves, continue. (Prévert, 1966)

 

 

II | A revolução surrealista antes e sempre (apesar dos cadáveres)

 

Aquilo que pode nos ter separado é

muito menos importante

do que aquilo que nos reuniu.

ANDRÉ BRETON

 

Desde suas primeiras experiências coletivas, o Surrealismo foi marcado tanto por experimentações das variadas nos campos da linguagem, quanto por encontros, crises, rupturas e adesões. Neste artigo, veremos o percurso do Surrealismo desde as suas primeiras práticas e manifestações até a crise de 1929, com os ataques recíprocos entre André Breton e ex-membros, expostos no Segundo Manifesto do Surrealismo e no panfleto Un cadavre contra Breton.

Vale lembrar que, em 1916, André Breton havia conhecido Jacques Vaché, um surrealista antes mesmo de o termo “surrealismo” ser criado. Em 1919, aos 23 anos, Vaché se suicida depois de tomar uma dose excessiva de ópio, deixando como legado literário suas Cartas de Guerra , publicadas em Littérature , as quais deram a Breton a noção corrosiva e subversiva do “Umour” (Humour, humor, grafado sem H).

De 1919 a 1924, depois de cinco anos de atividades intensas e sem interrupção, eis algumas das ações surrealistas: a publicação de relatos de sonhos, poemas, manifestos na Revista Littérature (1919-1924), a instituição de um tribunal para julgar o escritor Maurice Barrès sob a acusação de traição, além das sempre conturbadas manifestações públicas. Em 1920, Breton e Philippe Soupault publicam Les Champs magnétiques, com as experiências textuais que revelariam, mais tarde, para Breton o funcionamento da escritura automática.

Em 1923, Robert Desnos junta-se a Breton e sua turma, recém rompidos com o Dadaísmo, e demonstra desde já uma grande facilidade para “pegar no sono” a fim de ditar o discurso do inconsciente. Nesse mesmo ano, Desnos publica em Littérature seus relatos de sonho e, com Marcel Duchamp, os textos de Rose Sélavy , que se parecem, antes, com uma série de jogos de palavras extremamente trabalhados num laboratório verbal do que com livres manifestações do inconsciente.

Foi, em 1922, ao romper com Tristan Tzara e o Dadaísmo que André Breton, Philippe Soupault, Paul Éluard e Louis Aragon começaram a criar as bases para o surrealismo, expostas no Primeiro Manifesto Surrealista (1924). Conforme Breton, em suas entrevistas publicadas em 1960, marcam, essencialmente, tais experiências a escritura automática e as induções ao sono por meio de hipnose:

 

Quand paraît le premier manifeste, soit en 1924, il a derrière lui cinq années d’activité expérimentale ininterrompue entraînant un nombre et une variété appréciables de participants. Il faut dire que, même à distance, ces deux champs de prospection, l’écriture automatique et les apports du sommeil hypnotique sont aussi difficiles à circonscrire l’un que l’autre (Breton, 1960).

 

No Primeiro Manifesto, tais experiências se apresentam nos relatos de sonhos, na busca pelo maravilhoso. Os surrealistas mergulham no mais profundo do inconsciente, do sonho e da imaginação livre para lá verem “o funcionamento real do pensamento”. Breton, este sonhador definitivo, propõe, como nos diz Maurice Blanchot, a exploração do não-manifesto, ou seja, do maravilhoso num mergulho entre “La vie éveillée” (a vida acordada) e “la vie de rêve” (a vida de sonho).

Para o autor de Nadja, a busca pelo maravilhoso é uma violenta reação contra o empobrecimento e a esterilidade dos modos de pensar resultantes de séculos de racionalismo. No Primeiro Manifesto, Breton aproxima o maravilhoso do belo: “Le merveilleux est toujours beau, n’importe quel merveilleux est beau, il n’y a même le merveilleux qui soit beau” (Breton, 1960). É na surrealidade (surréalité) que André Breton e seus companheiros procuram o ponto onde todas as contradições e oposições deixam de existir. De acordo com Gaëton Picon, a surrealidade é “réalité et rêve, esprit et monde: au delà de toutes les antinomies et de toutes les séparations, il est totalité parce qu’il est surrationalité” (In Picon, 1954). Para se atingir a surrealidade, deve-se, segundo Breton, “reescrever os direitos do homem”, buscar “a liberação total do homem”, a qual pressupõe um desregramento de todos os sentidos (“déréglèment total des sens”).

No fim de 1924, por ocasião das homenagens, na França, a Anatole France, récem-falecido, Breton institui, dessa feita, um tribunal para julgá-lo, pois os surrealistas o consideravam como um defensor da burguesia e de idéias como as de Família, Propriedade, Religião e Estado. Além do julgamento, Breton publica um panfleto contra Anatole France: Un cadavre. Nele, Breton participa com o texto “Refus de inhumer” (Recusa de sepultar, inumar ou enterrar), cujo título mostra que os surrealistas se recusam a participar dos funerais de Anatole France.

Além de France, Breton dirige seus ataques contra Pierre Loti e Maurice Barrès:

 

(Pierre) Loti, (Maurice) Barrès, (Anatole) France, marquons tout de même d’un beau signe blanc l’année qui coucha ces trois bonhommes: l’idiot, le traître, le policier. Ayons, je ne m’y oppose pas, pour le troisième un mot de mépris particulier. Avec France, c’est un peu de la servilité humaine qui s’en va. (In Courrière, 1999).

 

Os signatários do panfleto se despedem de seus leitores alertando que estariam de volta no próximo cadáver nacional: “À la prochaine occasion il y aura un nouveau cadavre” (In Courrière, 1999).

A partir de 1925, com o lançamento da revista La Révolution Surréaliste, os surrealistas passam a se interessar por questões políticas e filosóficas ligadas ao Marxismo e ao Partido Comunista. Intensificam-se suas atividades políticas. Cria-se o “Bureau des recherches surréalistes”. O surrealismo passa a unir poesia e ação revolucionária para “transformer le monde” e “changer la vie”, aliás proposições respectivamente retomadas de Karl Marx e Arthur Rimbaud.

Ao ser questionado por André Parinaud sobre se as dificuldades que teria encontrado, entre 1926 e 1929, ao tentar levar à frente ao mesmo tempo a atividade interior (surrealista) e a atividade exterior (política) não teriam de certa maneira paralisado os meios surrealistas de expressão, André Breton responde que, ao contrário, esse foi um dos períodos mais produtivos do Surrealismo tanto no plano da linguagem verbal quanto no plano plástico. Para confirmar sua afirmação, Breton enumera as importantes obras surrealistas escritas nesse período:

 

Aragon publie Le Paysan de Paris et Traité du Style, Artaud Le Pèse-nerfs, Crevel L’Esprit contre la raison, Desnos Deuil pour Deuil et La liberté où l’amour, Éluard Capitale de la douleur et L’amour la Poésie, Ernst La femme 100 têtes, Péret Le grand jeu, moi même Nadja, et Le surréalisme et la peinture. (Breton, 1960)

 


Em relação ao plano plástico, Breton observa a contribuição no campo da invenção que artistas como Arp, Ernst, Masson, Miró, Man Ray, Tanguy e, de seu lado, Picasso operaram. (Breton, 1952)

Para se formar uma literatura crítica do Surrealismo, que aliasse poesia e ação, além dos lançamentos do Primeiro Manifesto e da revista La Révolution Surréaliste, de acordo com Breton, outras cinco etapas contribuíram decisivamente para tal, a saber:

– a publicação do trato “La révolution surréaliste d’abord et toujours” (1925), que serviu de prelúdio para a tentativa de formação de um intergrupo com a participação do grupo surrealista, dos membros mais ativos da revista Clarté, do folheto belga Correspondance e da revista Philosophies, de maneira a unificar tanto quanto possível seu vocabulário;

– a tentativa “abortada” de se criar, para esse intergrupo, uma revista, a qual se chamaria La guerre civile;

– a publicação de Légitime défense (1926), de André Breton;

– a publicação em 1927 de Au grand jour, uma coletânea de cartas endereçadas por André Breton, Louis Aragon, Paul Éluard, Pierre Unik e Benjamin Péret tanto aos comunistas quanto a membros do Surrealismo;

– e a assinatura, em 1929, por André Breton e Louis Aragon, do texto “À suivre, petite contribution au dossier de certains intellectuels à tendance révolutionnaire”, que seria como uma obra que desataria as questões levantadas nos quatro textos supra-relacionados. (Breton, 1960)

Embora as atividades do grupo desenvolvam-se, nesse período de 1926 a 1929, de maneira muito intensa e produtiva para uma união entre poesia e ação revolucionária, já começavam a se esboçar os fatores que levariam o grupo à sua mais grave crise, a de 1929, exposta por Breton no seu Segundo Manifesto do Surrealismo, publicado no último número de La Révolution Surréaliste, em novembro de 1929. Em 1929, o movimento fora sacudido por uma crise, provocada por desacordos sobre o sentido de sua adesão ao marxismo, questão levantada desde 1926, a pedido de Pierre Naville, e resolvida através de suas vicissitudes.

Insatisfeito com membros que não queriam tomar partido na ação revolucionária nem se preocupavam com problemas concretos, Breton expulsa do grupo fundadores do movimento como Philippe Soupault, por causa de sua orientação excessivamente literária; Robert Desnos, que havia ido para o Jornalismo e só se interessava pela escritura automática; Antonin Artaud, que, além de protestar contra as preocupações políticas do Surrealismo, em À la grande nuit (1927), queria, nas palavras de Breton, “par ostentation faire répresenter devant l’Ambassade de Suède, Le Songe, de Strindberg” (Duplessis, 1953). Em 1928, Pierre Naville deixa a direção da Revista Révolution Surréaliste, que passa para as mãos de Breton.

Entre outras causas da crise, cite-se a não-aceitação por parte de Breton da entrada no surrealismo do grupo da revista Grand Jeu, que encara o Surrealismo, na via aberta por Rimbaud, sob seu “aspect ésotérique et mystique”. Argumenta Breton que não se trata mais de “s’évader dans un monde supra-terrestre”, mas sim de fazer “faire oeuvre positive ici-bas” (In Duplessis, 1953). Nessa época, os “puros representantes do Surrealismo” seriam, além de Breton, Louis Aragon, Paul Éluard e Pierre Unik.

Em 1929, no último número de La Révolution Surréaliste, André Breton publica o Second manifeste du Surréalisme, no qual denuncia e ataca ferozmente dissidentes do Surrealismo e apresenta sua posição política favorável ao materialismo histórico. Se, no Primeiro Manifesto, Breton invoca a Psicanálise para buscar a liberação total do homem através de experiências como o sono induzido, o relato de sonhos, a escritura automática, no momento em que escreve o Segundo Manifesto, ele recorre ao materialismo dialético a fim de fazer a Revolução. Leitor de Hegel, Breton procura um ponto onde as contradições cessem de existir, num fenômeno de suspensão, expresso pelo conceito hegeliano de Aufhebung. Assim, conforme Breton,

 

Tout porte à croire qu’il existe un certain point de l’esprit d’où la vie et la mort, le réel et l’imaginaire, le passé et le futur, le communicable et l’incommunicable, le haut et le bas cessent d’être perçus contradictoirement. Or, c’est en vain qu’on chercherait à l’activité surréaliste un autre mobile que l’espoir de détermination de ce point. (Breton, 1996)

 

Para atingir esse ponto, os surrealistas deveriam partir, com suas próprias armas, adquiridas em seus anos de prática e de experiências, para a revolta e a Revolução, fazendo dogma da insubmissão total. Deve-se “ruiner les idées de famille, de patrie, de religion” (Breton, 1996). Assim, Breton prega que não se deve mais adorar aqueles escritores e artistas “ancestrais”, aliás citados como surrealistas no Primeiro manifesto. Diz que “en matière de révolte aucun de nous ne doit avoir besoin d’ancêtres” (Breton, 1996). Compreensivelmente, em seu ataque aos ancestrais, no qual Breton se dirige “contre Sade, Rimbaud, Lenine, Baudelaire, Poe (Crachons sur Poe)”, o líder do surrealismo excetua Lautréamont (Breton, 1996). Tal atitude se justifica pelo fato de que, além da manifesta revolta contra a sociedade que Lautréamont empreende em seus Cantos de Maldoror, é extremamente surpreendente a semelhança de estilos de ataques pessoais entre o texto “Gémissements poétiques”, de Lautréamont, e o Segundo Manifesto.

Além dos ancestrais, entram na lista do ajuste de contas de Breton ex-membros do surrealismo, como Pierre Naville, Phillippe Soupault, Antonin Artaud, Roger Vitrac, Robert Desnos, Georges Ribemont-Dessaignes, os membros da revista Le grand jeu, e um escritor que não fazia parte do Surrealismo: Georges Bataille. Ex-membros como Jacques Prévert e Raymond Queneau não são mencionados.

Em 15 de janeiro de 1930, a resposta a Breton dos dissidentes atacados no Segundo Manifesto vem sob a forma do panfleto Un cadavre, que retoma o título e o formato do Cadavre contra Anatole France em 1924. No alto da imensa fotografia representando Breton de olhos fechados, uma lágrima de sangue no canto das pálpebras, a fronte cingida por uma coroa de espinhos. Tal ideia de representar Breton como Jesus Crucificado teria partido de Desnos, que a justifica com termos místicos: no momento em que se lança o panfleto, Breton ainda tem 33 (trinta e três) anos, idade em que Cristo foi morto e crucificado. Como epígrafe, o panfleto traz a conclusão do outro “cadavre”: “il ne faut pas que cet homme fasse de la poussière”.

12 são seus signatários: Jacques Prévert, Raymond Queneau, Georges Ribemont-Dessaignes, Roger Vitrac, Michel Leiris, Georges Limbour, J.-A. Boiffard, Robert Desnos, Max Morise, Georges Bataille, Jacques Baron, Alejo Carpentier. No entanto, Pierre Naville, que havia saído em 1928 do movimento, deixando para Breton a direção da revista La Révolution Surréaliste, embora convidado, julgou inoportuno aliar-se aos opositores. De acordo com Maurice Nadeau, os participantes do “cadavre” de 1930 pertencem a diversas correntes:

 

um ex-dadaísta, Ribemont-Dessaignes; um ex-surrealista, Vitrac, expulso há muito tempo, Limbour, afastado dos escândalos e da agitação surrealista, graças a seu temperamento, Morise, ex-fiel seguidor e executor de Breton, Jacques Baron, Michel Leiris, Raymond Queneau, J.–A. Boiffard, Robert Desnos, Jacques Prévert, e um homem que jamais pertencera ao grupo mas que fora particularmente maltratado por Breton, Georges Bataille . (Nadeau, 197)

 

De certa maneira, os signatários de Un cadavre não atacam o movimento surrealista; elegem como alvo exclusivo Breton, já denominado de “papa do surrealismo”. Flic (tira, policial) e curé (cura, pároco) são os adjetivos mais frequentes, os quais visam a relacionar Breton com instituições que ele próprio declarara combater em seus Manifestos. Ainda, acusam-no “d’hypocrisie, d’esprit dictatorial et religieux, de radicalisme de salon, etc” (In Queneau, 2002) e de traidor de seus amigos e de seus ideais. A seguir, citamos alguns desses ataques:

 

“Cura: “O irmão Breton que prepara o padre ao molho de mostarda só fala de cátedra” (Ribemont-Dessaignes); “Tive um amigo sincero” (supostamente é Breton quem fala), Robert Desnos. “Eu o enganei, menti-lhe, dei-lhe falsamente minha palavra de honra” (Robert Desnos): “Ele trapaceou, em larga escala, com a amizade” (Vitrac). […] (In Nadeau, 1985).

 

No texto “DÉDÉ”, de Raymond Queneau, repetem-se quatro vezes o verso “Le doigt dans le trou du cul” (o dedo no buraco do cu), finalizando com uma espécie de moralidade a fim de lembrar a moralidade de Breton, e que, onde há regras, constrangimentos, não há humor (o “umor” que Breton dizia ter herdado de Jacques Vaché):

 

MORALITÉ

Non ! Non ! la poésie n’est pas morte!

Les chants désespérés sont toujours les plus

Beaux et ousqu’y a de la gêne y a pas d’humour

Pour les petits oiseaux . (In Queneau, 2002)

 

Em “Mort d’un Monsieur”, de Jacques Prévert, num estilo e no humor que caracterizarão seus poemas, Prévert começa lamentando o desaparecimento daquele que o fazia rir: “Hélas, je ne reverrai plus l’illustre Palotin du Monde Occidental, celui qui me faisait rire!. (Prévert, 1996). Depois, Prévert ataca os relatos de sonhos de Breton, dizendo que um dia num sonho, após se olhar seriamente (ou seja, sem humor) no espelho, ele se achou belo. Para Prévert, foi o fim de Breton, que passou a confundir “le désespoir et le mal de foie, la Bible et Les Chants de Maldoror, Dieu et Dieu, l’encre et le foutre, […] la Révolution Russe et la Révolution Surréaliste. (Encore… et toujours la plus scandaleuse du monde) (Prévert, 1996).

Afirma Prévert que, às vezes, Breton colocava sua toga de juiz e praticava a Moral e a Crítica de Arte, sem, no entanto, conseguir esconder as cicatrizes que o bigodudo das finanças (Dalí) havia lhe deixado: “il mettait parfois sa toque de juge par-dessus son képi, et faisait de la Morale ou de la critique d’art, mais il cachait difficilement les cicatrices que lui avait laissées le croc à phynances de la peinture moderne.” (Prévert, 1996)

Por fim, Prévert se lamenta novamente pela morte do controlador do Palácio das Miragens, o furador de bilhetes, o grande Inquisitor, o Deroulède do Sonho: “Hélas, le contrôleur du Palais des Mirages, le perceur de tickets, le gros Inquisiteur, le Déroulède du Rêve n’est plus”, pedindo que não se fale dele: “n’en parlons plus”. (Prévert, 1996)

Como contra-ataque aos signatários de Un cadavre, Louis Aragon diz que a entrada de novos elementos (René Char, Salvador Dali, Luis Buñuel) no Surrealismo compensou muito bem a saída de “tant de velléitaires confus et de littérateurs décidés.” (Ségalat, 1968)

No Paris-Midi, Pierre Lazareff, ao evocar o escândalo entre os surrealistas e os signatários de Un cadavre, chega a pressupor que o surrealismo, como escola filosófica e literária, teria acabado:

 

Déjà les bibliofiles s’arrachent Un cadavre… C’est la fin d’une école littéraire et philosophique qui, quoi qu’on en ait dit, a eu un retentissement profond dans la jeunesse intellectuelle. Depuis plus de deux mois, on savait que le nouveau groupement, connu sous le nom d’école des Deux-Magots, préparait une offensive contre André Breton . (In Queneau, 1997)

 

No entanto, não se formou nenhuma escola dissidente. O conflito não marca o fim do Surrealismo, mas assinala o início de um outro período. Da parte de Breton e seus colegas, cite-se a mudança do título do órgão oficial do movimento, a revista La Révolution Surréaliste, para Le Surréalisme au service de la Révolution, a qual dura de 1930 a 1933, mantendo-se independente de qualquer intervenção do Partido Comunista Francês. Segundo Sarane Alexandrian, esta nova revista “não tocou no problema da acção social, a não ser nas suas relações com a expressão ideal das paixões” (Alexandrian, 1973).

Da parte dos dissidentes, diga-se que todos eles resolveram “faire route à part”, mas sem nunca abandonar ideais essencialmente surrealistas, como o Amor, a Poesia, a Revolução, o Humor, a Experimentação e o Sonho. Ou seja, deixaram, por questões pessoais, a instituição “movimento surrealista”, mas não o Surrealismo.

Personagens desse conflito, como André Breton e Jacques Prévert, os quais se reconciliaram em 1937, consideraram, anos depois, que o momento que viviam justificava os ataques recíprocos. Quando perguntado por Madeleine Chapsal sobre a republicação dos manifestos em 1962 sem qualquer revisão, Breton responde:

 

Concordo que muitos desses ataques são de uma virulência deplorável e, aliás, largamente ultrapassados. Fiz justiça no prefácio à reedição do Segundo Manifesto, em 1946, que é retomado na reedição atual. Não me foram poupados ataques da mesma ordem. Contam-se entre os exageros que já não me cabe apagar. Aqueles que foram alvo deles sabem que resultam do clima passional em que se desenvolveu o surrealismo. (Chapsal, 1986)

 

Por sua vez, Jacques Prévert afirma em seu livro-entrevista Hebdromadaires (1972) que, embora tenha dito coisas desagradáveis a Breton, acha que elas foram necessárias naquele momento:

 

Moi, une fois, j’ai dit ou plutôt j’ai écrit des choses très désagréables pour lui. Ces choses, je les trouvais vraies. Je les disais en riant, peut-être, d’un rire qui n’était sans doute pas marrant pour lui à ce moment-là. Mais en y repensant, je n’en enlève rien. Par la suite, on s’est revus, on a beaucoup ri. Malgré tout, nous étions et nous sommes encore, aujourd’hui qu’il est mort comme on dit, des amis. (Prévert, 1996)

 

No último poema de Paroles (1946), “Lanterne magique de Picasso”, Prévert demonstra que, embora tenha desaprovado as críticas de Breton no Segundo Manifesto, sua obra também procura a surrealidade num mundo que seria, como escreveu Lautréamont, belo como tudo:

 

Les idées pétrifiées devant la merveilleuse indifférence

d’un monde passioné

d’un monde retrouvé

d’un monde indiscutable et inexpliqué

d’un monde sans savoir-vivre mais plein de joie de vivre

d’un monde sobre et ivre

d’un monde triste et gai

tendre et cruel

réel et surréel

terrifiant et marrant

nocturne et diurne

solite et insolite

beau comme tout . (Prévert, 1992)

 

Assim, a busca pela surrealidade, apesar dos conflitos que ela possa causar, continua a ser o ponto de contato entre aqueles que querem, através da união entre o Amor, da Poesia, do Sonho, do Humor e da Revolução, transformar o mundo e mudar a vida. Termino citando Prévert: “Graças aos surrealistas, esta vida real, como os sonhos deles, continua”. 

 

 


ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | Mestre em Letras Neolatinas (Língua Francesas e Literaturas de Língua Francesa) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2001) e doutor em Letras (Língua Francesa e Literaturas de Língua Francesa) pela Universidade de São Paulo (2006). Professor Associado 1 do curso de Letras Tradução Francês-Português da Universidade de Brasília. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Francesa e em Tradução, atuando principalmente nos seguintes temas: surrealismo, pataphysica de Alfred Jarry, filosofia de Maurice Blanchot, tradução poética e literária, a (im)possibilidade da Literatura em Italo Calvino; a voz vinda de alhures de Louis-René des Forêts, o livro em Edmond Jabès. Participa ativamente do Grupo de Estudos Blanchotianos e de Pensamento do Fora UNB-Cnpq e do Grupo de Estudos Italo Calvino UNB-UFSC-Cnpq. Atua também como professor do Mestrado em Estudos de Tradução (POSTRAD), na Universidade de Brasília.

 

 


LEILA FERRAZ (Brasil, 1944). Poeta, fotógrafa, artista plástica, ensayista, y traductora. Junto a Sergio Lima y Paulo Paranaguá organizó la 13ª Expo Surrealista Internacional en São Paulo (1967). En esa época realizó dos viajes a París y tuvo un encuentro entrañable con algunos integrantes del grupo surrealista francés. Ha publicado los poemarios Cometas (1977), Poemas plásticos (1980), y A mobília violenta do ar (2020). Participó en la expo surrealista “Las llaves del deseo”, Costa Rica, Cartago, 2016. Reside en São Paulo.

 


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 06

Número 205 | março de 2022

Artista convidada: Leila Ferraz (Brasil, 1944)

Tradução: Floriano Martins

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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