JACQUES PRÉVERT
I | A escritura coletiva com surrealistas
Pouco
importa ou exporta: Jacques Prévert é surrealista. Sua poesia transita pelos mesmos
caminhos que os surrealistas seguem: o “umor”, a revolta contra os que oprimem o
ser humano, a exaltação do amor e do sonho que levam à revolução.
Para
determinar o encontro de Jacques Prévert com o Surrealismo (depois ele se encontraria
novamente com os surrealistas), podemos marcar três momentos. O primeiro se dá no
fim de 1924 na livraria Les amis du livre, de Adrienne Monnier onde, além
de entrar em contato com a revista La Révolution Surréaliste, a qual muito
lhe impressiona e entusiasma, Prévert tem acesso a uma literatura surrealista avant
la lettre: os Cantos belos e terríveis de Maldoror, do Conde de Lautréamont,
os Campos Magnéticos, de Philippe Soupault e André Breton, Le mariage
du Ciel et de l’Enfer, de William Blake, Le refrain du Décervelage, do Roi Ubu de Alfred Jarry.
O
segundo encontro com o Surrealismo ocorre quando, de um ônibus, pelo fim do mesmo
ano de 1924, Prévert e o pintor Yves Tanguy, que então moravam com Marcel Duhamel
na famosa Rue du Château 54, avistam numa vitrine da galeria Paul Guillaume em Paris
o quadro Cerveau d’enfant, de Giorgio de Chirico, o qual lhes mostra a escritura
dos sonhos. De acordo com Yves Courrière, Yves Tanguy sofreu um inpacto tão grande
ao ver essa tela que, ao chegar em casa, destruiu alguns de seus quadros por considerá-los
ingênuos demais.
No
início de 1925, Marcel Duhamel conhece Breton e o leva para uma visita na Rue du
Château; Breton fica tão entusiasmado com Prévert, Duhamel e Tanguy que passa a
utilizar a casa como um dos locais de reunião do grupo surrealista.
Durante
sua passagem pelo grupo de 1925 a 1929, Prévert não publica nada, não participa
de sessões de hipnose, não relata seus sonhos nem exerce qualquer tipo de escritura
automática. Participa apenas das “pesquisas sobre a sexualidade”, recolhidas nos
“Archives du bureau surreáliste”. Os únicos manifestos que subscreve voltam-se para
a defesa de dois artistas com quem mantém afinidades poéticas. Um deles é: “Hands
off love”, publicado na edição de outubro de 1927 da revista La Révolution Surrealiste, a favor de Charles
Chaplin, que era acusado, judicialmente, de maltratar sua esposa; o outro é “Permettez”,
no qual Raymond Queneau protesta contra a inauguração de uma estátua em homenagem
a Arthur Rimbaud.
Ajuda
a criar o “cadavre exquis”, atividade que consistia em produzir um texto coletivo
em que cada participante continuava um texto, acrescentando uma parte da frase sem
saber o que vinha antes, daí resultando em criações livres de qualquer associação
lógica. No primeiro texto, Prévert escreveu “le cadavre exquis”, em um papel dobrado
e o passou a um outro participante que, em segredo, prosseguiu acrescentando “boira”;
um terceiro, nas mesmas condições, concluiu o jogo e o texto com “le vin nouveau”.
Gérard
Guillot considera que, graças ao grupo surrealista, Prévert pôde experimentar coisas
novas e entrar em contato com várias modalidades de arte. Nas palavras do próprio Prévert, o surrealismo era
une rencontre de gens qui n’avaient pas de rendez-vous
mais qui sans se ressembler se rassemblaient. Militaires, religieuses, policières,
les grandes superencheries sacrées les faisaient rire. Leur rire, comme leurs peintures
et leurs écrits, était un rire agressivement salubre et indéniablement contagieux. (Prévert, 1996)
Em
15 de janeiro de 1930, Prévert rompe com Breton, ao participar com seu primeiro
texto “Mort d’un Monsieur, no panfleto Un
cadavre, que ele e outros 11 dissidentes do Surrealismo dirigem como resposta
aos ataques pessoais que Breton promovera no Segundo Manifesto. Em “Mort
d’un Monsieur”, num estilo e num humor que caracterizarão seus poemas, Prévert começa
lamentando o desaparecimento daquele que o fazia rir: “Hélas, je ne reverrai plus
l’illustre Palotin du Monde Occidental, celui qui me faisait rire! (Prévert, 1996).
Depois,
Prévert ataca os relatos de sonhos de Breton, dizendo que um dia num sonho, após
se olhar seriamente (ou seja, sem humor) no espelho, ele se achou belo. Para Prévert, foi o fim de Breton, que passou a confundir
“le désespoir et le mal de foie, la Bible et Les Chants de Maldoror, Dieu et Dieu, […] la Révolution Russe et la
Révolution Surréaliste. (Encore… et toujours la plus scandaleuse
du monde) (Prévert, 1996).
Depois
de sua ruptura com Breton, Prévert decide fazer “route à part”, sem, no entanto,
deixar de se reencontrar com o Surrealismo nem com o próprio Breton, com o qual
se reconcilia em 1937. A partir então de 1930, passa a escrever para revistas como
Biffurs, Documents, Commerce. Em 1932,
torna-se dramaturgo do Groupe Octobre, escrevendo peças teatrais inspiradas em acontecimentos,
querendo fazer a Revolução por meio do teatro. Com o fim do Groupe Octobre em 1936,
passa a participar ativamente como roterista de filmes com diretores como Jean Renoir
e Marcel Carné, com o qual realizou sua obra-prima, Les enfants du Paradis (1945).
Ainda
em 1945, lança seu primeiro e mais famoso livro, Paroles, no qual se dirige
violentamente contra as instituições com letras maiúsculas: a Igreja, a Família,
a Propriedade, o Estado. Seguem-se a Paroles:
Histoires (1947), Spectacle (1951), Grand bal du Printemps
(1951) Charmes de Londres (1952), La pluie et le beau temps (1954),
Fatras (1966), Imaginaires (1970), com colagens do autor, e Choses
et Autres (1972). Além desses livros, Prévert escreveu outros
a quatro mãos com artistas ligados ao Surrealismo como: Max Ernst (Les chiens ont soif), Picasso (Portraits de Picasso), Miró (Miró e Adonides) e Georges Ribemont-Dessaignes
(Arbres).
De
acordo com Bersani, em seus poemas, Prévert realiza a síntese de duas correntes
que atravessam o Surrealismo: as correntes “dos jogos de linguagem” e “a libertária”.
Para Bersani, Prévert é um “poète
qui joue des mots, qui sait, comme le recommandait Breton, leur laisser “faire l’amour”
pour mieux engendrer la merveille, Prévert est aussi et en même temps celui qui
se joue des mots pour mieux se jouer de la société d’exploiteurs et d’oppresseurs
qu’il vitupère”.
Por
causa de seu humor (subversivo), Prévert figura na Anthologie de l’humour noir,
organizada por André Breton. De Prévert, Breton
seleciona “Tentative de description d’un dîner de têtes à Paris-France”, poema que
abre Paroles. A propósito de Prévert, escreve Breton que “il dispose souverainement
du raccourci (atalho, caminho abreviado) susceptible de nous rendre en un éclair
la démarche (conduta) sensible, rayonnante de l’enfance, et de pourvoir indéfiniment
le réservoir de la révolte” (Breton, 1998).
Em
toda sua obra poética, Prévert empreende a busca surrealista pelo surreal, com a
criação de uma realidade de liberdade, amor, poesia, sonho e revolução. Em um dos
mais belos poemas de Fatras, “La veille au soir”, são as crianças que ao
sonhar sopram apagando a vela do vigilante da noite e dos sonhos. Eis o poema:
La veilleuse du surveillant s’est éteinte
Et le surveillant dans la nuit
S’est éteint aussi
Les enfants en rêvant
Avaient soufflé sur lui. (Prévert, 1996).
Num
maravilhoso jogo de palavras, Prévert aproxima semanticamente veille (vigília,
privação do sono à noite), veilleuse (lanterna, vela e também o feminino
de veilleur, guardião da noite) e surveillant (vigilante). Nesse jogo,
imagina-se que um vigilante, um guardião do sono, munido de sua vela e ao mesmo
tempo sua companheira, vigia os sonhos das crianças, para depois puni-las. Entretanto,
estas são mais fortes que os guardiães, e, sonhando, destróem a realidade que as
oprime, apagando – isto é, eliminando seus opressores. Nas palavras de Breton, no Primeiro Manifesto:
“L’esprit qui plonge dans le surréalisme revit avec exaltation la meilleure part
de son enfance. […] C’est peut-être l’enfance qui approche le plus de la “vraie
vie” (Breton, 1986).
No
poema “Ministère du ludique-action-publique” (que também dá título a uma colagem
de Prévert), o poeta apresenta um artigo dos direitos universais da criança (e do
ser humano), conforme o qual ela tem total liberdade:
Art. I
L’enfant n’a pas de contrat, il n’a pas signé son acte
de naissance. Il est libre de refuser tôt ou tard l’âge qu’on “lui donne” et d’en
choisir un autre, d’en changer selon ses désirs, comme de le garder le temps qu’il
lui plaît. (Prévert,
1996)
Assim,
não estaria Prévert realizando o que Breton disse no Primeiro Manifesto:
que os surrealistas deveriam reescrever os direitos do ser humano para libertá-lo
totalmente?
No
último poema de Paroles (1946), “Lanterne magique de Picasso”, Prévert demonstra
que sua obra procura a surrealidade, o ponto onde as contradições deixam de ser
percebidas:
Les idées pétrifiées devant la merveilleuse indifférence
d’un monde passioné
d’un monde retrouvé
d’un monde indiscutable et inexpliqué
d’un monde sans savoir-vivre mais plein de joie de vivre
d’un monde sobre et ivre
d’un monde triste et gai
tendre et cruel
réel et surréel
terrifiant et marrant
nocturne et diurne
solite et insolite
beau comme tout. (Prévert, 1992)
Assim,
a busca pela surrealidade continua a ser o ponto de contato entre aqueles que querem,
através da união entre o Amor, a Poesia, o Sonho, o Humor e a Revolução, transformar
o mundo e mudar a vida. Neste mesmo poema, a lanterna mágica de Picasso ilumina
“le visage d’André Breton et de Paul Éluard”.
Nas entrevistas de Breton a André Parinaud, ao ser perguntado
se a grande fonte do Surrealismo nos anos 1920 e 1930 seria o amor, Breton responde:
“Oui: indépendamment du profond désir d’action révolutionnaire qui nous possède,
tous les sujets d’exaltation propres au surréalisme convergent à ce moment vers
l’amour”. Para Prévert, não existem
nem cinco ou seis maravilhas, mas apenas uma: o amor. Em outro poema, ele aproxima
amor e revolução por sua cor vermelha:
Rouge, le mot rouge
révolution reste rouge
malgré les décorations et les décolorations,
dissequé et nié le mot amour garde toute sa beauté. (Prévert, 1996)
Rouge (vermelho) é a cor pela qual Breton e Éluard no
Dictionnaire abrégé du surréalisme definem Jacques Prévert: “Celui qui rouge
de coeur” .
Com
Max Ernst, Prévert escreve a quatro mãos o livreto Les chiens ont soif (paródia
do título do livro Les Dieux ont soif, de Anatole France), ilustrado com
27 litografias e 2 águas-fortes de Ernst. No início do texto, Prévert retoma o sentido
que os surrealistas haviam dado à palavra littérature
quando lançaram a revista Littérature:
“J’écris au raturant de la plume d’un stylo”. Ou seja, em litté-rature (rasura da letra),
Prévert escreve contra a literatura, a letra “oficial”, não escrevendo num belo
estilo.
A
Ernst, Prévert deve seu gosto pelas colagens. Em Imaginaires, Prévert dedica
a Ernst o poema Roi image du collage: Max Ernst. No título lê-se não Roi mage (Rei mago), mas Roi image (Rei Imagem). Para compor seu poema,
primeiro Prévert apresenta-nos a definição dicionarizada de colagem, a definição
oficial, petrificada, que não apreende a revolução que a colagem imprime em nosso
modo de ver a realidade:
Collages
Collage: Situation d’un homme et d’une femme qui vivent
ensemble sans être mariés.
Papiers collés: Composition faite d’éléments collés
sur la toile. (Petit Robert) (Prévert,
1996)
Depois,
mostra suas definições, até mesmo a de décollage (que em francês pode-se ler como
“descolagem” ou “decolagem”):
Roi image du collage: Max Ernst
Chiens collés: Châtiment infligé aux chiens n’ayant
pas d’âme et vivant en concubinage.
Décollage: Image d’un avion arraché de l’image de l’aéroport
(ou aérodrame s’il s’écrase sur le sol).
Image réconfortante s’il s’agit d’un bombardier. (Prévert, 1996)
Do
título de um livro de colagem de Ernst, La femme 100 têtes, Prévert cria
“La femme acéphale”, um de seus poemas que mais questionam a sociedade com seu autoritarismo,
seus lugares-comuns. Vejam que Prévert inclui esse livreto em Fatras, seu
primeiro livro que traz colagens de sua autoria. Entendemos que assim Prévert presta
uma homenagem a Ernst, o criador da colagem.
Em
Spectacle, Prévert transforma o livro em espaço de convocação coletiva. Na
seçào “Intermède”, além de outros escritores, Prévert convoca, entre outros surrealistas,
André Breton, Paul Éluard, Philippe Soupault e Robert Desnos para escreverem juntos.
De André Breton e Paul Éluard, Prévert cita poemas do livro L’Immaculée Conception
que Breton e Éluard escreveram a quatro mãos, reforçando assim a coletividade
na ação de escrever:
J’ai ma femme avec moi dans mon lit même quand je suis
debout.
J’ai scalpé le public. J’ai mis ma verge dans toutes
les cheminées le jour de Nöel.
Je signe la paix et je vais porter le buvard aux Invalides. André Breton et Paul Éluard. (In Prévert, 1992)
Com Soupault, Prévert escreve:
Un éléphant dans sa baignoire
Et les trois enfants dormant
Singulière singulière histoire
Histoire du soleil couchant. Philippe Soupault. (In Prévert, 1992)
A
este poema, Prévert coteja um poema de Minoutte, sua filha, no qual três gatinhos
se banham também numa banheira, a fim de enfatizar o caráter infantil que deve constar
na ação poética.
Trois petits chats dans une baignoire
Tournent la manivelle de satin
Et s’en vont dans les broussailles
Et partir et revenir, et partir et revenir
Et partir et revenir.
Et mangèrent leur déjeuner.
Ton…
Ton…. (In Prévert, 1992)
De
Desnos, Prévert apresenta um trecho do poema “Au bout du monde”, da seção “Les portes
battantes”, do livro Fortunes (1942), no qual um desertor parlamenta com
sentinelas que não entendem sua linguagem:
Quelque part dans le monde
Au pied d’un talus (escarpado)
Un déserteur parlemente
Avec des sentinelles
Qui ne comprennent pas son langage. Robert Desnos (In Prévert, 1992)
A
linguagem da vida, do desertor, não é compreendida por aqueles que falam a linguagem
da guerra, da guerra que matou Desnos. Ao utilizar um poema de uma seção chamada
“As portas que batem”, Prévert retoma uma das imagens que Breton atribui à poesia
surrealista: aquela que deixa as portas sempre batendo, para dentro e para fora.
Aliás,
dentre os surrealistas é com Robert Desnos que a obra de Prévert mantém maior afinidade.
Tanto Prévert quanto Desnos são conhecidos por sua militância política, sendo que,
enquanto o primeiro militava apenas através de sua obra, o segundo participou ativamente
de grupos de resistência, tendo um fim trágico em 1945, durante a Segunda Guerra.
Em suas obras, há partes dedicadas a jogos com palavras, como o “Rrose Selavy”,
de Desnos, e os graffitti, de Prévert. Se Desnos escreveu Trente chantefables
pour des enfants sages, Prévert escreveu, mas não ironicamente, Contes pour
enfants pas sages, uma vez que a simples leitura dessas obras demonstra o respeito
que os poetas tinham por seu público infantil.
Em
um depoimento de Michel Leiris a Jean Paul Corsetti, Leiris afirma que no surrealismo
Desnos e Prévert haviam criado juntos um ramo original de poesia que apresentava
uma verve popular, a qual destoava do restante da poesia praticada pelos surrealistas:
Il était avec Desnos, qu’il ne faut pas oublier, le
creáteur de ce rameau original du surréalisme dont nous parlions tout à l’heure
et, en ce sens, il échappait à la menace de “littératurisme” qui pesait sur le mouvement.
[…]
En tout cas, Prévert incarnait pour nous une poésie
du “merveilleux”, mais du “merveilleux populaire”. C’est
son innovation en tant que surréaliste. (Corsetti, 1991)
Embora,
em vida, Desnos nunca tenha escrito nenhum texto com Prévert, consideramos que,
em alguns dos poemas de Prévert dedicados a Desnos, pela magia da criação poética,
podemos ler textos que trazem ao mesmo tempo as marcas desnosianas e as prevertianas.
Para nós, no poema “Aujourd’hui”, podemos ver claramente a presença dessas marcas.
A princípio, para entendermos que o poema se constitui como uma criação coletiva
de Prévert com Desnos, devemos observar que, além de ser dedicado a Desnos, ele
traz uma epígrafe retirada do poema “Aujourd’hui je me suis promené”, de Desnos,
escrito em 1936, mas só publicado em État de veille em 1942. Eis a epígrafe:
Aujourd’hui je me suis promené avec mon camarade
Même s’il est mort
Je me suis promené avec mon camarade. Robert Desnos. État de veille, 1936, (Prévert,
1996)
Em
relação ao diálogo entre seu texto e a epígrafe, Prévert dissemina pelo texto trechos
da epígrafe a fim de marcar enfaticamente a presença tanto de Desnos quanto do poema
desnosiano. Logo no primeiro verso de “Aujourd’hui”, Prévert dialoga diretamente
com o poema desnosiano ao utilizar o termo “Aujourd’hui”. Note-se que nesse poema
“Aujourd’hui” entra numa rede de referência tripla. Primeiro, remete imediatamente
ao poema desnosiano. Segundo, refere-se à revista homônima em que Desnos trabalhou
como crítico literário no início dos anos 1940. Terceiro, marca o momento da enunciação,
chamando a atenção para o fato de que, para Prévert, Desnos continua.
Depois,
Prévert apresenta o segundo verso da epígrafe, porém com a substituição do termo
“mon camarade” pelo nome de Robert Desnos: “je me suis promené avec Robert Desnos”
(Prévert, 1996). Quatro versos depois, Prévert cita o “même s’il est mort”.
Ao
retomar o último verso da epígrafe, Prévert também opera uma modificação acrescentando-lhe
na primeira enunciação um “moi aussi” e na segunda, que vem no verso seguinte em
elipse, substitui o “mon camarade” pelo termo “mon ami”. Na primeira modificação
Prévert nos diz que, além dele, vários outros também passeiam com Desnos, ou seja,
que tal passeio é possível a todos aqueles que entram em contato com a obra desnosiana
e aceitam empreender a caminhada poética. Já na segunda modificação, Prévert estabelece
uma maior intimidade com Desnos, pois o autor de Paroles prefere o termo
“mon ami” ao termo “mon camarade”, uma vez que este termo traz uma conotação
de militância.
Assim,
em “Aujourd’hui”, ouvimos dos poemas de Prévert e de Desnos um canto ao amor, de
saudação à amizade. Vemos a exaltação da poesia como uma das formas de se chegar
a esses momentos de confraternização que ultrapassam a vida e a morte.
Termino
convocando André Breton e Jacques Prévert. Com Breton cito um trecho do poema “Hommage-hommage”,
contribuição de Prévert para o número especial “Hommage à Picasso”, da revista Documents (março de 1930): o surrealista
está com “un pied sur la rive droite, un pied sur la rive gauche et le troisième
sur le derrière des imbéciles”. Com Prévert, rendo
uma homenagem aos surrealistas:
ils aimaient la vie. Pour les uns, c’était la poésie,
pour les autres, c’était l’humour, pour d’autres n’importe quoi, mais pour tous
c’était l’amour. En souriant ils envisageaient la mort, mais c’était pour mieux
dévisager la vie. Pour la rendre plus libre, plus belle, plus heureuse même. Beaucoup
d’entre eux ont disparu. Mais grâce à eux, cette vie réelle, comme leurs rêves,
continue. (Prévert, 1966)
II
| A revolução surrealista antes e sempre (apesar
dos cadáveres)
Aquilo que pode
nos ter separado é
muito menos importante
do que aquilo
que nos reuniu.
ANDRÉ BRETON
Desde suas primeiras experiências coletivas, o Surrealismo foi
marcado tanto por experimentações das variadas nos campos da linguagem, quanto por
encontros, crises, rupturas e adesões. Neste artigo, veremos o percurso do Surrealismo
desde as suas primeiras práticas e manifestações até a crise de 1929, com os ataques
recíprocos entre André Breton e ex-membros, expostos no Segundo Manifesto
do Surrealismo e no panfleto Un
cadavre contra Breton.
Vale lembrar que, em 1916, André Breton
havia conhecido Jacques Vaché, um surrealista antes mesmo de o termo “surrealismo”
ser criado. Em 1919, aos 23 anos, Vaché se suicida depois de tomar uma dose excessiva
de ópio, deixando como legado literário suas Cartas de Guerra , publicadas em Littérature
, as quais deram a Breton a noção corrosiva e subversiva do “Umour”
(Humour, humor, grafado sem H).
De 1919 a 1924, depois de cinco anos de
atividades intensas e sem interrupção, eis algumas das ações surrealistas: a publicação
de relatos de sonhos, poemas, manifestos na Revista Littérature (1919-1924),
a instituição de um tribunal para julgar o escritor Maurice Barrès sob a acusação
de traição, além das sempre conturbadas manifestações públicas. Em 1920, Breton
e Philippe Soupault publicam Les Champs magnétiques, com as experiências
textuais que revelariam, mais tarde, para Breton o funcionamento da escritura automática.
Em 1923, Robert Desnos junta-se a Breton
e sua turma, recém rompidos com o Dadaísmo, e demonstra desde já uma grande facilidade
para “pegar no sono” a fim de ditar o discurso do inconsciente. Nesse mesmo ano,
Desnos publica em Littérature seus relatos de sonho e, com
Marcel Duchamp, os textos de Rose Sélavy , que se parecem, antes, com
uma série de jogos de palavras extremamente trabalhados num laboratório verbal do
que com livres manifestações do inconsciente.
Foi, em 1922, ao romper com Tristan Tzara
e o Dadaísmo que André Breton, Philippe Soupault, Paul Éluard e Louis Aragon começaram
a criar as bases para o surrealismo, expostas no Primeiro Manifesto Surrealista
(1924). Conforme Breton, em suas entrevistas publicadas em 1960, marcam,
essencialmente, tais experiências a escritura automática e as induções ao sono por
meio de hipnose:
Quand paraît le premier manifeste, soit
en 1924, il a derrière lui cinq années d’activité expérimentale ininterrompue entraînant
un nombre et une variété appréciables de participants. Il faut dire que, même à
distance, ces deux champs de prospection, l’écriture automatique et les apports
du sommeil hypnotique sont aussi difficiles à circonscrire l’un que l’autre (Breton, 1960).
No Primeiro Manifesto, tais experiências se
apresentam nos relatos de sonhos, na busca pelo maravilhoso. Os surrealistas mergulham
no mais profundo do inconsciente, do sonho e da imaginação livre para lá verem
“o funcionamento real do pensamento”. Breton, este sonhador definitivo, propõe,
como nos diz Maurice Blanchot, a exploração do não-manifesto, ou seja, do maravilhoso
num mergulho entre “La vie éveillée” (a vida acordada) e “la vie de rêve” (a vida
de sonho).
Para o autor de Nadja,
a busca pelo maravilhoso é uma violenta reação contra o empobrecimento e a esterilidade
dos modos de pensar resultantes de séculos de racionalismo. No Primeiro Manifesto, Breton aproxima o maravilhoso
do belo: “Le merveilleux est toujours beau, n’importe quel merveilleux est beau,
il n’y a même le merveilleux qui soit beau” (Breton, 1960). É na surrealidade (surréalité) que André Breton e seus companheiros
procuram o ponto onde todas as contradições e oposições deixam de existir. De acordo com Gaëton Picon, a surrealidade
é “réalité et rêve, esprit et monde: au delà de toutes les antinomies et de toutes
les séparations, il est totalité parce qu’il est surrationalité” (In Picon, 1954).
Para se atingir a surrealidade, deve-se,
segundo Breton, “reescrever os direitos do homem”, buscar “a liberação total do
homem”, a qual pressupõe um desregramento de todos os sentidos (“déréglèment total
des sens”).
No fim de 1924, por ocasião das homenagens,
na França, a Anatole France, récem-falecido, Breton institui, dessa feita, um tribunal
para julgá-lo, pois os surrealistas o consideravam como um defensor da burguesia
e de idéias como as de Família, Propriedade, Religião e Estado. Além do julgamento,
Breton publica um panfleto contra Anatole France: Un cadavre. Nele, Breton participa com o texto “Refus de inhumer” (Recusa
de sepultar, inumar ou enterrar), cujo título mostra que os surrealistas se recusam
a participar dos funerais de Anatole France.
Além de France, Breton
dirige seus ataques contra Pierre Loti e Maurice Barrès:
(Pierre) Loti, (Maurice) Barrès, (Anatole)
France, marquons tout de même d’un beau signe blanc l’année qui coucha ces trois
bonhommes: l’idiot, le traître, le policier. Ayons, je ne m’y oppose pas, pour le
troisième un mot de mépris particulier. Avec France, c’est un peu de la servilité
humaine qui s’en va. (In Courrière, 1999).
Os signatários do panfleto
se despedem de seus leitores alertando que estariam de volta no próximo cadáver
nacional: “À la prochaine occasion il y aura un nouveau cadavre” (In Courrière,
1999).
A partir de 1925, com o lançamento da revista
La
Révolution Surréaliste, os surrealistas passam a se interessar por
questões políticas e filosóficas ligadas ao Marxismo e ao Partido Comunista. Intensificam-se
suas atividades políticas. Cria-se o “Bureau des recherches surréalistes”. O surrealismo
passa a unir poesia e ação revolucionária para “transformer le monde” e “changer
la vie”, aliás proposições respectivamente retomadas de Karl Marx e Arthur Rimbaud.
Ao ser questionado por André Parinaud sobre
se as dificuldades que teria encontrado, entre 1926 e 1929, ao tentar levar à frente
ao mesmo tempo a atividade interior (surrealista) e a atividade exterior (política)
não teriam de certa maneira paralisado os meios surrealistas de expressão, André
Breton responde que, ao contrário, esse foi um dos períodos mais produtivos do Surrealismo
tanto no plano da linguagem verbal quanto no plano plástico. Para confirmar sua
afirmação, Breton enumera as importantes obras surrealistas escritas nesse período:
Aragon publie Le Paysan de Paris et Traité du Style, Artaud Le Pèse-nerfs, Crevel L’Esprit
contre la raison, Desnos Deuil
pour Deuil et La liberté où l’amour, Éluard Capitale de la douleur et L’amour la Poésie, Ernst La
femme 100 têtes, Péret Le
grand jeu, moi même Nadja, et Le surréalisme et la peinture. (Breton, 1960)
Para se formar uma literatura crítica do
Surrealismo, que aliasse poesia e ação, além dos lançamentos do Primeiro Manifesto
e da revista La Révolution Surréaliste, de acordo com
Breton, outras cinco etapas contribuíram decisivamente para tal, a saber:
– a publicação do trato “La révolution surréaliste
d’abord et toujours” (1925), que serviu de prelúdio para a tentativa de formação
de um intergrupo com a participação do grupo surrealista, dos membros mais ativos
da revista Clarté, do folheto belga Correspondance e da revista Philosophies,
de maneira a unificar tanto quanto possível seu vocabulário;
– a tentativa “abortada” de se criar, para
esse intergrupo, uma revista, a qual se chamaria La guerre civile;
– a publicação de Légitime défense
(1926), de André Breton;
– a publicação em 1927 de Au grand jour,
uma coletânea de cartas endereçadas por André Breton, Louis Aragon, Paul Éluard,
Pierre Unik e Benjamin Péret tanto aos comunistas quanto a membros do Surrealismo;
– e a assinatura, em 1929, por André Breton
e Louis Aragon, do texto “À suivre, petite contribution au dossier de certains intellectuels
à tendance révolutionnaire”, que seria como uma obra que desataria as questões levantadas
nos quatro textos supra-relacionados. (Breton, 1960)
Embora as atividades do grupo desenvolvam-se,
nesse período de 1926 a 1929, de maneira muito intensa e produtiva para uma união
entre poesia e ação revolucionária, já começavam a se esboçar os fatores que levariam
o grupo à sua mais grave crise, a de 1929, exposta por Breton no seu Segundo Manifesto
do Surrealismo, publicado no último número de La Révolution
Surréaliste, em novembro de 1929. Em 1929, o movimento fora sacudido
por uma crise, provocada por desacordos sobre o sentido de sua adesão ao marxismo,
questão levantada desde 1926, a pedido de Pierre Naville, e resolvida através de
suas vicissitudes.
Insatisfeito com membros que não queriam
tomar partido na ação revolucionária nem se preocupavam com problemas concretos,
Breton expulsa do grupo fundadores do movimento como Philippe Soupault, por causa
de sua orientação excessivamente literária; Robert Desnos, que havia ido para o
Jornalismo e só se interessava pela escritura automática; Antonin Artaud, que, além
de protestar contra as preocupações políticas do Surrealismo, em À la grande
nuit (1927), queria, nas palavras de Breton, “par ostentation faire
répresenter devant l’Ambassade de Suède, Le Songe, de Strindberg” (Duplessis, 1953).
Em 1928, Pierre Naville deixa a direção da Revista Révolution Surréaliste,
que passa para as mãos de Breton.
Entre outras causas da crise, cite-se a
não-aceitação por parte de Breton da entrada no surrealismo do grupo da revista
Grand
Jeu, que encara o Surrealismo, na via aberta por Rimbaud, sob seu “aspect
ésotérique et mystique”. Argumenta Breton que não se trata mais de “s’évader dans
un monde supra-terrestre”, mas sim de fazer “faire oeuvre positive ici-bas” (In
Duplessis, 1953). Nessa época, os “puros representantes do Surrealismo” seriam,
além de Breton, Louis Aragon, Paul Éluard e Pierre Unik.
Em 1929, no último número de La Révolution
Surréaliste, André Breton publica o Second manifeste du Surréalisme,
no qual denuncia e ataca ferozmente dissidentes do Surrealismo e apresenta sua posição
política favorável ao materialismo histórico. Se, no Primeiro Manifesto,
Breton invoca a Psicanálise para buscar a liberação total do homem através de experiências
como o sono induzido, o relato de sonhos, a escritura automática, no momento em
que escreve o Segundo Manifesto, ele recorre ao materialismo dialético a fim
de fazer a Revolução. Leitor de Hegel, Breton procura um ponto onde as contradições
cessem de existir, num fenômeno de suspensão, expresso pelo conceito hegeliano de
Aufhebung.
Assim, conforme Breton,
Tout porte à croire qu’il existe un certain
point de l’esprit d’où la vie et la mort, le réel et l’imaginaire, le passé et le
futur, le communicable et l’incommunicable, le haut et le bas cessent d’être perçus
contradictoirement. Or, c’est en vain qu’on chercherait à l’activité surréaliste
un autre mobile que l’espoir de détermination de ce point. (Breton, 1996)
Para atingir esse ponto, os surrealistas
deveriam partir, com suas próprias armas, adquiridas em seus anos de prática e de
experiências, para a revolta e a Revolução, fazendo dogma da insubmissão total.
Deve-se “ruiner les
idées de famille, de patrie, de religion” (Breton, 1996). Assim, Breton prega que não se deve mais adorar aqueles escritores
e artistas “ancestrais”, aliás citados como surrealistas no Primeiro manifesto.
Diz que “en matière
de révolte aucun de nous ne doit avoir besoin d’ancêtres” (Breton, 1996). Compreensivelmente, em seu ataque aos ancestrais, no qual Breton
se dirige “contre Sade, Rimbaud, Lenine, Baudelaire, Poe (Crachons sur
Poe)”, o líder do surrealismo excetua Lautréamont (Breton, 1996). Tal atitude se
justifica pelo fato de que, além da manifesta revolta contra a sociedade que Lautréamont
empreende em seus Cantos de Maldoror, é extremamente surpreendente
a semelhança de estilos de ataques pessoais entre o texto “Gémissements poétiques”,
de Lautréamont, e o Segundo Manifesto.
Além dos ancestrais, entram na lista do
ajuste de contas de Breton ex-membros do surrealismo, como Pierre Naville, Phillippe
Soupault, Antonin Artaud, Roger Vitrac, Robert Desnos, Georges Ribemont-Dessaignes,
os membros da revista Le grand jeu, e um escritor que não fazia
parte do Surrealismo: Georges Bataille. Ex-membros como Jacques Prévert e Raymond
Queneau não são mencionados.
Em 15 de janeiro de 1930, a resposta a Breton
dos dissidentes atacados no Segundo Manifesto vem sob a forma do panfleto
Un cadavre, que retoma o título e o formato
do Cadavre contra Anatole France em 1924.
No alto da imensa fotografia representando Breton de olhos fechados, uma lágrima
de sangue no canto das pálpebras, a fronte cingida por uma coroa de espinhos. Tal
ideia de representar Breton como Jesus Crucificado teria partido de Desnos, que
a justifica com termos místicos: no momento em que se lança o panfleto, Breton ainda
tem 33 (trinta e três) anos, idade em que Cristo foi morto e crucificado. Como epígrafe,
o panfleto traz a conclusão do outro “cadavre”: “il ne faut pas que cet homme fasse
de la poussière”.
12 são seus signatários:
Jacques Prévert, Raymond Queneau, Georges Ribemont-Dessaignes, Roger Vitrac, Michel
Leiris, Georges Limbour, J.-A. Boiffard, Robert Desnos, Max Morise, Georges Bataille,
Jacques Baron, Alejo Carpentier. No entanto,
Pierre Naville, que havia saído em 1928 do movimento, deixando para Breton a direção
da revista La Révolution Surréaliste, embora convidado, julgou inoportuno
aliar-se aos opositores. De acordo com Maurice Nadeau, os participantes do “cadavre”
de 1930 pertencem a diversas correntes:
um ex-dadaísta, Ribemont-Dessaignes; um ex-surrealista, Vitrac,
expulso há muito tempo, Limbour, afastado dos escândalos e da agitação surrealista,
graças a seu temperamento, Morise, ex-fiel seguidor e executor de Breton, Jacques
Baron, Michel Leiris, Raymond Queneau, J.–A. Boiffard, Robert Desnos, Jacques Prévert,
e um homem que jamais pertencera ao grupo mas que fora particularmente maltratado
por Breton, Georges Bataille . (Nadeau,
197)
De certa maneira, os signatários de Un cadavre não atacam o movimento surrealista;
elegem como alvo exclusivo Breton, já denominado de “papa do surrealismo”. Flic (tira,
policial) e curé (cura, pároco) são os adjetivos mais frequentes, os quais
visam a relacionar Breton com instituições que ele próprio declarara combater em
seus Manifestos. Ainda, acusam-no “d’hypocrisie,
d’esprit dictatorial et religieux, de radicalisme de salon, etc” (In Queneau, 2002)
e de traidor de seus amigos e de seus ideais. A seguir, citamos alguns desses ataques:
“Cura: “O irmão Breton que prepara o padre ao molho de mostarda
só fala de cátedra” (Ribemont-Dessaignes); “Tive um amigo sincero” (supostamente
é Breton quem fala), Robert Desnos. “Eu o enganei, menti-lhe, dei-lhe falsamente
minha palavra de honra” (Robert Desnos): “Ele trapaceou, em larga escala, com a
amizade” (Vitrac). […] (In Nadeau, 1985).
No texto “DÉDÉ”, de Raymond Queneau, repetem-se
quatro vezes o verso “Le doigt dans le trou du cul” (o dedo no buraco do cu), finalizando com uma espécie de moralidade a
fim de lembrar a moralidade de Breton, e que, onde há regras, constrangimentos,
não há humor (o “umor” que Breton dizia ter herdado de Jacques Vaché):
MORALITÉ
Non ! Non ! la poésie
n’est pas morte!
Les chants désespérés
sont toujours les plus
Beaux et ousqu’y a
de la gêne y a pas d’humour
Pour les petits oiseaux
. (In Queneau, 2002)
Em “Mort d’un Monsieur”,
de Jacques Prévert, num estilo e no humor que caracterizarão seus poemas, Prévert
começa lamentando o desaparecimento daquele que o fazia rir: “Hélas, je ne reverrai
plus l’illustre Palotin du Monde Occidental, celui qui me faisait rire!. (Prévert, 1996). Depois, Prévert ataca os relatos de sonhos de
Breton, dizendo que um dia num sonho, após se olhar seriamente (ou seja, sem humor)
no espelho, ele se achou belo. Para Prévert, foi o fim de Breton, que passou a confundir
“le désespoir et le mal de foie, la Bible et Les Chants de Maldoror, Dieu et Dieu, l’encre et le foutre, […] la Révolution
Russe et la Révolution Surréaliste. (Encore… et toujours la plus scandaleuse du
monde) (Prévert, 1996).
Afirma Prévert que,
às vezes, Breton colocava sua toga de juiz e praticava a Moral e a Crítica de Arte,
sem, no entanto, conseguir esconder as cicatrizes que o bigodudo das finanças (Dalí)
havia lhe deixado: “il mettait parfois sa toque de juge par-dessus son képi, et
faisait de la Morale ou de la critique d’art, mais il cachait difficilement les
cicatrices que lui avait laissées le croc à phynances de la peinture moderne.” (Prévert,
1996)
Por fim, Prévert se
lamenta novamente pela morte do controlador do Palácio das Miragens, o furador de
bilhetes, o grande Inquisitor, o Deroulède do Sonho: “Hélas, le contrôleur du Palais
des Mirages, le perceur de tickets, le gros Inquisiteur, le Déroulède du Rêve n’est
plus”, pedindo que não se fale dele: “n’en parlons plus”. (Prévert, 1996)
Como contra-ataque aos signatários de Un cadavre, Louis Aragon diz que a entrada
de novos elementos (René Char, Salvador Dali, Luis Buñuel) no Surrealismo compensou
muito bem a saída de “tant de velléitaires confus et de littérateurs décidés.” (Ségalat,
1968)
No Paris-Midi, Pierre Lazareff, ao evocar o
escândalo entre os surrealistas e os signatários de Un cadavre, chega a pressupor que o surrealismo, como escola filosófica
e literária, teria acabado:
Déjà les bibliofiles s’arrachent Un cadavre…
C’est la fin d’une école littéraire et philosophique qui, quoi qu’on en ait dit,
a eu un retentissement profond dans la jeunesse intellectuelle. Depuis plus de deux
mois, on savait que le nouveau groupement, connu sous le nom d’école des Deux-Magots,
préparait une offensive contre André Breton . (In Queneau,
1997)
No entanto, não se formou nenhuma escola
dissidente. O conflito não marca o fim do Surrealismo, mas assinala o início de
um outro período. Da parte de Breton e seus colegas, cite-se a mudança do título
do órgão oficial do movimento, a revista La Révolution Surréaliste, para Le Surréalisme
au service de la Révolution, a qual dura de 1930 a 1933, mantendo-se
independente de qualquer intervenção do Partido Comunista Francês. Segundo Sarane
Alexandrian, esta nova revista “não tocou no problema da acção social, a não ser
nas suas relações com a expressão ideal das paixões” (Alexandrian, 1973).
Da parte dos dissidentes, diga-se que todos
eles resolveram “faire route à part”, mas sem nunca abandonar ideais essencialmente
surrealistas, como o Amor, a Poesia, a Revolução, o Humor, a Experimentação e o
Sonho. Ou seja, deixaram, por questões pessoais, a instituição “movimento surrealista”,
mas não o Surrealismo.
Personagens desse conflito, como André Breton
e Jacques Prévert, os quais se reconciliaram em 1937, consideraram, anos depois,
que o momento que viviam justificava os ataques recíprocos. Quando perguntado por
Madeleine Chapsal sobre a republicação dos manifestos em 1962 sem qualquer revisão,
Breton responde:
Concordo que muitos desses ataques são de uma virulência deplorável
e, aliás, largamente ultrapassados. Fiz justiça no prefácio à reedição do Segundo Manifesto, em 1946, que é retomado na reedição atual. Não me foram poupados
ataques da mesma ordem. Contam-se entre os exageros que já não me cabe apagar. Aqueles
que foram alvo deles sabem que resultam do clima passional em que se desenvolveu
o surrealismo. (Chapsal, 1986)
Por sua vez, Jacques Prévert afirma em seu
livro-entrevista Hebdromadaires (1972) que, embora tenha
dito coisas desagradáveis a Breton, acha que elas foram necessárias naquele momento:
Moi, une fois, j’ai dit ou plutôt j’ai écrit
des choses très désagréables pour lui. Ces choses, je les trouvais vraies. Je les
disais en riant, peut-être, d’un rire qui n’était sans doute pas marrant pour lui
à ce moment-là. Mais en y repensant, je n’en enlève rien. Par la suite, on s’est
revus, on a beaucoup ri. Malgré tout, nous étions et nous sommes encore, aujourd’hui
qu’il est mort comme on dit, des amis. (Prévert,
1996)
No último poema de Paroles (1946),
“Lanterne magique de Picasso”, Prévert demonstra que, embora tenha desaprovado as
críticas de Breton no Segundo Manifesto, sua obra também procura
a surrealidade num mundo que seria, como escreveu Lautréamont, belo como tudo:
Les idées pétrifiées
devant la merveilleuse indifférence
d’un monde passioné
d’un monde retrouvé
d’un monde indiscutable
et inexpliqué
d’un monde sans savoir-vivre
mais plein de joie de vivre
d’un monde sobre et
ivre
d’un monde triste et
gai
tendre et cruel
réel et surréel
terrifiant et marrant
nocturne et diurne
solite et insolite
beau comme tout . (Prévert,
1992)
Assim, a busca pela surrealidade, apesar dos conflitos que ela possa causar, continua a ser o ponto de contato entre aqueles que querem, através da união entre o Amor, da Poesia, do Sonho, do Humor e da Revolução, transformar o mundo e mudar a vida. Termino citando Prévert: “Graças aos surrealistas, esta vida real, como os sonhos deles, continua”.
ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | Mestre em Letras Neolatinas (Língua Francesas e Literaturas de Língua Francesa) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2001) e doutor em Letras (Língua Francesa e Literaturas de Língua Francesa) pela Universidade de São Paulo (2006). Professor Associado 1 do curso de Letras Tradução Francês-Português da Universidade de Brasília. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Francesa e em Tradução, atuando principalmente nos seguintes temas: surrealismo, pataphysica de Alfred Jarry, filosofia de Maurice Blanchot, tradução poética e literária, a (im)possibilidade da Literatura em Italo Calvino; a voz vinda de alhures de Louis-René des Forêts, o livro em Edmond Jabès. Participa ativamente do Grupo de Estudos Blanchotianos e de Pensamento do Fora UNB-Cnpq e do Grupo de Estudos Italo Calvino UNB-UFSC-Cnpq. Atua também como professor do Mestrado em Estudos de Tradução (POSTRAD), na Universidade de Brasília.
LEILA FERRAZ (Brasil, 1944). Poeta, fotógrafa, artista plástica, ensayista, y traductora. Junto a Sergio Lima y Paulo Paranaguá organizó la 13ª Expo Surrealista Internacional en São Paulo (1967). En esa época realizó dos viajes a París y tuvo un encuentro entrañable con algunos integrantes del grupo surrealista francés. Ha publicado los poemarios Cometas (1977), Poemas plásticos (1980), y A mobília violenta do ar (2020). Participó en la expo surrealista “Las llaves del deseo”, Costa Rica, Cartago, 2016. Reside en São Paulo.
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 06
Número 205 | março de 2022
Artista convidada: Leila Ferraz (Brasil, 1944)
Tradução: Floriano Martins
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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