Outro expressivo pintor surrealista foi
Eric Thake (1904-1982), cuja tela Archaeopteryx compartilha, em 1941, com
James Gleeson, o prêmio principal da Sociedade de Arte Contemporânea de Melbourne.
Homenagem a Magritte, esta obra de Thake trazia já a marca de um surrealismo engenhoso.
Thake, também era gráfico e fotógrafo, e posteriormente se aproximou do letrismo
e do mundo pop. Os dois artistas, Thake em Melbourne e Gleeson em Sidney, foram
os grandes semeadores de uma expansão de horizontes na criação artística de seu
país. E a base dessa expansão era justamente dada pelo Surrealismo, pela leitura
de uma paisagem inóspita e misteriosa como parte de um sonho que representa a própria
vida. Essa fecundação de estranhezas, que encontramos, por exemplo, em Yves Tanguy
ou Salvador Dalí, era o fluxo germinativo do que havia de mais profundo em termos
de arte na Austrália naquele momento. E me inclino por dizê-lo que aí se localiza
o que de mais importante até hoje se produz na região.
Recordemos ainda dois momentos inestimáveis da presença
sempre conturbada do Surrealismo na Austrália. Em 1949 o artista Bernard Boles (1912-2001),
ao ser rejeitado pela Sociedade Artística Vitoriana, em Melbourne, que considerava
irrelevante a sua comunhão, através da pintura, de imagens biomórficas marinhas
tão características do Surrealismo, amarrou duas de suas telas na cerca externa
da mostra e passava horas externando suas ideias surrealistas aos passantes. Anos
depois, é publicado o livro The art of Rosaleen
Norton (1952), de imediato tendo sido seu editor acusado de obsceno. Sobre Rosaleen
Norton (1917-1979) também recairia posteriormente a acusação de realizar missas
negras e envolver-se em atos sexuais antinaturais.
Graças à intensa criatividade pagã que marca a sua obra plástica, Norton descrevia
parte de sua criação como originada de transes auto-hipnóticos, o que marcava sua
afinidade com o Surrealismo. O conservadorismo na Austrália acabou por vincular
qualquer atividade surrealista à prática de obscenidade ou profanação.
As trilhas históricas desse surrealismo foram casual
ou sistematicamente apagadas? Talvez uma leitura da cronologia de vida e obra de
Max Harris nos ajude a compreender melhor. Ainda é possível encontrar em livrarias
australianas livros de arte em que há capítulos dedicados à pintura de Sidney Nolan
ou James Gleeson, porém sem que o texto se detenha demasiado em sua íntima relação
com o surrealismo. O caso de Max Harris é o que, no entanto, mais me preocupa. Exceto
por uma edição em pdf (www.nla.gov.au/sites/default/files/theangrypenguin.pdf) que circula na Internet, uma antologia de sua poesia,
não encontrei livros seus nas livrarias de Sidney, nem mesmo sua obra se inclui
em destacadas antologias panorâmicas da lírica australiana do século XX.
Em 1941 se reúnem Geoffrey Dutton (1922-1998), Donald
Kerr (1919-1942), Paul Pfeiffer (1916-1945) e Max Harris (1921-1995), sob a batuta
deste último, em torno da criação da revista Angry Penguins, cuja associação clara, se a encontrávamos afim de movimentos
como o simbolismo e o surrealismo, também era possível perceber o intuito de superação,
graças a uma irreverência que navegava pelas águas de uma turbulenta insularidade.
Geoffrey Dutton possui uma poética marcada pela versatilidade que o levou a escrever
poemas, romances, ensaios, críticas de arte e biografias, destacando-se ainda pela
publicação de um revelador volume de sua correspondência com Max Harris, The Vital Decade: Ten Years of Australian Art
and Letters (1968). A passagem de Donald Kerr e Paul Pfeiffer pela experiência
editorial e artística dos angry penguins
foi bastante curta, pois ambos foram mortos em combate ao defender a Austrália durante
a Segunda Guerra Mundial.
ele foi pioneiro na venda de livros remanescentes,
organizou descontos regulares em livros, dirigiu um serviço de pedidos pelo correio
de grande sucesso e produziu uma revista mensal, Mary’s
Own Paper (1950-61), que divulgou seu estoque
e comentou questões sociais e culturais locais. À medida que o negócio crescia,
ele montou mais livrarias em Melbourne, Sidney e Brisbane. Significativa também
foi sua campanha determinada a quebrar o domínio britânico e americano sobre as
editoras sob o Acordo de Mercado Tradicional. Com o fim do acordo, em 1976, ele
conseguiu comprar e lançar livros americanos e britânicos na Austrália a preços
mais baixos.
O poeta, com o passar do tempo, recolheu-se em um
retiro rural. Morreu em 1995 por conta de um câncer na próstata. Há menções de que
seja um dos maiores poetas líricos da Austrália, assim como também momentaneamente
ficou conhecido como o pai do modernismo nas artes deste país. No entanto, a realidade
é bem outra, e seu nome caiu hoje em um complexo e injusto esquecimento. Sua bibliografia inclui
os seguintes títulos: The Gift of Blood: Poetry
(1940), Dramas From the Sky (1942), The Coorong and Other Poems (1955), The Circus and Other Poems (1961), A Window at Night (1967), Poetic Gems (1979) e a antologia The Angry Penguins – Selected poems (1996).
Também é autor de um romance: The Vegetative
Eye (1943), além dos estudos críticos: The
Angry Eye (1973), Ockers: essays on the
bad old new Australia (1974), The Unknown
Great Australian and Other Psychobiographical Portraits (1983) e The Best of Max Harris – 21 Years of Browsing
(1986).
O casal John e Sunday Reed – ele era advogado e ela
uma patrona das artes –, em 1935, adquire uma velha fazenda em ruínas nas planícies
do rio Yarra, logo reformada e batizada como Heide, espécie de homenagem à Escola
de Heidelberg de artistas relevantes na Melbourne de finais do século XIX. O casal
abriu as portas para um grande centro boêmio e artístico, compartilhado por escritores
e artistas que para ali afluíram movidos pelo cultivo de uma educação ante-burguesa
e influenciados por ideias anarquistas. Dentre eles se encontravam Arthur Boyd,
Albert Tucker, John Perceval, Sidney Nolan e Danila Vassilieff, este último de origem
russa, pintor e escultor cuja obra rompia com os estudos preparatórios clássicos
ao ser criada em seu cavalete instalado pelas ruas expressando a vitalidade urbana
em seu fluxo natural.
Ao Círculo Heide – como aquele momento ficou conhecido
– logo se integrariam músicos e outros artistas, dentre eles a única mulher a compartilhar
as ideias do grupo, Joy Hester (1920-1960), uma das mais irreverentes criadoras
australianas, em especial graças a seus retratos psicológicos expressos em um estilo
ousado e provocativo, abordando temas como sexo e morte. Hester alcançou um equilíbrio
entre a simplicidade do traço e a complexidade sutil de seu testemunho. Ela mesma
diria, em 1947: Tenho pensado muito ultimamente
em quantos mundos existem em espaços muito pequenos e como cada pessoa é realmente
um mundo para si mesma, desconectado de qualquer pessoa ou coisa. Hester explorava
a sexualidade feminina com uma intensidade visual que nos leva a viajar pela emoção
corporal em sua mais íntima vertente física, com forte influência do expressionismo
e do surrealismo, porém com um acento singular que a qualificava como uma das mais
altas representantes da vanguarda em seu país. Igual intensidade, que chegava a
requintados traços perturbadores, encontramos em seus poemas, que ela em muitos
momentos os apresentava ao lado dos desenhos, como uma cumplicidade impressionante
e sensual.
Sua obra, no entanto, foi bastante marginalizada,
e curiosamente lemos, em 2001, em artigo assinado por Michael Fitzgerald, onde destaca
que
o que marginalizou Hester foi em grande
parte sua escolha de meio. Como aluna da National Gallery School, ela rapidamente
descobriu que a pintura matava os impulsos nervosos que eletrificavam sua arte.
Pelo resto da vida, dedicou-se quase exclusivamente ao desenho - com pincel e tinta
no papel. Foi uma escolha que selaria seu destino imediato: suicídio artístico.
E uma situação bem resumida em Fun Fair, c. 1946, em que a figura de uma mulher
desmaia diante de uma máscara nolanesca de Ned Kelly. A arte australiana favoreceu
homens como Nolan, que fizeram grandes declarações sobre a identidade nacional na
tela em tinta.
Mencionei o escândalo em torno do poeta Ern Malley
e aqui reproduzo uma síntese do ocorrido segundo relatado pelos críticos Rex Butler
e A. D. S. Donaldson, em seu ensaio O Surrealismo
e a Austrália: a caminho de uma história mundial do surrealismo, que publicamos
na Agulha Revista de Cultura # 129, março
de 2019:
Os falsos poemas concebidos pelos ante-modernistas
Harold Stewart e James McAuley eram, claro, imitações de colagens surrealistas voltadas
contra Max Harris e sua revista Angry Penguins, àquela altura sediada em Heide. O episódio
é tão conhecido porque foi usado por historiadores da arte para demonstrar a inevitabilidade
dos Antipodeans, ou seja, o surrealismo
é visto como mero precursor da rebelião
realista. O caso também é relatado como para sugerir cautela por polemistas como
Bernard Smith, que o trata como exemplo do que não fazer, um desvio incorreto do
desenvolvimento da arte australiana. Mas o sucesso artístico e a duradoura influência
dos poemas em si – por mais que tenham sido escritos de má-fé – revelam sem querer
aquilo que os australianistas jamais conseguiram. Ironicamente, foram as melhores
coisas que Stewart e McAuley jamais escreveram e foi demonstrado, contra o que declaravam
os próprios autores, que são obras de arte cuidadosa e deliberadamente construídas.
Angry Penguins foi o notável porta-voz das ideias que fervilhavam
no Círculo Heide e marcou toda uma época, repleta da mais intensa iconoclastia,
onde claramente se encontravam a influência da guerra e algum fervor comunista,
embora a afinidade maior viesse da filosofia anarquista do crítico inglês Herbert
Read. O cineasta Len Lye (1901-1980), de origem neozelandesa, ao passar uma época
em Sidney, em especial interessado na arte dos maoris, aborígenes australianos,
copia à mão o livro Totem & Tabu,
de Freud, em uma livraria dessa cidade. As fontes essenciais do Surrealismo foram
sendo tecidas de muitas formas. Graças a esse entranhado de fios a Austrália foi
descobrindo uma visão singular e profunda do movimento. Ainda segundo a dupla Rex
Butler e A. D. S. Donaldson, no mesmo estudo, há que destacar a realização de algumas
exposições, pois
foi por meio das primeiras exposições da Contemporary
Art Society (CAS) que o público australiano teve seu primeiro envolvimento prolongado
com o surrealismo. Formada por artistas de Melbourne e, depois, de Sidney em resposta
à fundação da Australian Academy of Art, financiada por Robert Menzies, as primeiras
exposições anuais da CAS foram dominadas pelo surrealismo. A mostra inaugural de
1939 na National Gallery of Victoria exibiu obras de Eric Thake, Sidney Nolan, Albert
Tucker e James Gleeson. A segunda, em 1940, realizada tanto em Melbourne quanto
em Sydney, apresentou Thake, Nolan, Gleeson, Max Ebert (pseudônimo do artista Herbert
McClintock) e Joseph Tierney (pseudônimo do artista e crítico Bernard Smith). E
a terceira, de 1941, manteve a proeminência do surrealismo. Muitos dos mesmos artistas
nela estavam (Cant, Nolan, Graham, McClintock, Oswald Hall), agora acompanhados
de Geoff e Dahl Collings, Loudon Sainthill, o pintor desconhecido Benezra Robert
e a escultora desconhecida Lyalla Benezra – imaginamos que talvez sejam, também,
pseudônimos. A terceira mostra ganharia a chamada “As imagens que chocaram Sidney”
no Sunday Telegraph –, mas na verdade já o vinham fazendo há anos. O que importa é que, na
falta de possibilidades de exposição de arte avançada na Austrália, essa repetição
de nomes deixa claro que as Anuais da CAS permitiram o estabelecimento de carreiras
artísticas duradouras.
Essa crescente expansão de horizontes dada pelo Surrealismo
e a consequente aceitação de todo um ambiente de vanguarda na Austrália acabou propiciando
uma reação desleal da parte de dois personagens inexpressivos, Harold Stewart e
James McAuley, o conhecido caso Ern Malley.
Um dia em 1944 Max Harris é surpreendido na redação de Angry Penguins com uma carta de Ethel Malley em que descrevia o falecimento
de seu irmão, Ern, no ano anterior, e comentava acerca de poemas por ela encontrados,
dos quais anexava alguns para avaliação. Segundo a irmã, Ern sofria de uma síndrome
de Graves, provocada pelo mal funcionamento da tireoide, o que o teria levado à
morte. Max ficou fascinado pelos poemas e os mostrou a seu sócio, John Reed, e logo
a algumas outras pessoas, todas elas compartilhando a mesma opinião, o que lhe fez
escrever a Ethel solicitando a íntegra dos originais e manifestando seu interesse
em publicá-los na revista. A biografia suscinta de Ern Malley informava de seu nascimento
em Liverpool em 1918 e que seu nome completo era Ernest Lalor Malley. Com a morte
em 1943 o corpo de Ern foi cremado. Max Harris estava mesmo interessado em sua poética,
cujo tom vanguardista vinha acompanhado de forte expressão existencial. Na edição
de Angry Penguins em que são publicados
os poemas, há uma apresentação de seu editor, de onde recorto a passagem:
A recepção da poesia do fictício personagem Ern Malley
– uma mostra de 16 poemas surrealistas acidentalmente valiosos – foi surpreendente,
o que confirmava a revelação de um grande poeta. Tudo parecia dar os melhores frutos,
quando uma jovem jornalista do Sunday Sun,
em Sidney, relata a seus editores uma conversa que teve com Harold Stewart em que
este confessa haver escrito os poemas, juntamente com seu amigo, James McAuley,
segundo ele uma farsa empenhada em lançar suspeita sobre a credibilidade de Max
Harris. Tess van Sommers, a jornalista, tinha em mãos alguns rascunhos a lápis dos
poemas e o jornal acabou interpretando o fato como uma fraude do próprio Max Harris,
acusado de forjar um poeta, e o escândalo assim tomou grande proporção, um festim
de mídia e tribunais – também a Igreja Católica aproveitou-se do tema para denegrir
a imagem de editor de Angry Penguins –,
Max sendo acusado de desonestidade e obscenidade, havendo inclusive um julgamento
cuja sentença que previa prisão acabou se convertendo no estabelecimento de uma
multa.
A ironia do caso é que os autores da farsa, dois poetas
medíocres, ao escreverem movidos por certo automatismo, empregando técnicas de colagem,
nonsense, livre associação e, como eles mesmos observaram, a presença inúmera de
versos intencionalmente ruins, totalmente
desprovidos de mérito literário, acabaram por criar um conjunto de poemas com
excepcional coesão poética, que chegaram a ser elogiados por Herbert Read e T. S.
Eliot. De qualquer modo, o escândalo foi a grande oportunidade que a sociedade australiana,
no fervor de seu conservadorismo, encontrou comprometer aquele momento da vanguarda.
Em 2012 Tijana
Parezanović publicou um extenso artigo na revista SIC, Croácia, onde relatava o caso:
Uma farsa
literária não é uma prática desconhecida, e a perpetrada por McAuley e Stewart
não parecia tão assustadora, embora tenha recebido bastante atenção
internacional. The New
York Times, The New Yorker, Spectator e Times, por exemplo, informaram seus leitores
sobre o evento, e a imprensa australiana estava decididamente do lado dos
fraudadores enquanto publicava extensivamente sobre o andamento da farsa. Duas
coisas se seguiram, no entanto, que parecem mais chocantes do que a própria
farsa. Primeiro, apesar da admissão de McAuley e Stewart de que seus poemas
eram sem sentido, um grupo de artistas e críticos reunidos em torno de Max
Harris insistiu em afirmar que eles realmente tinham um valor literário
distinto. O mais persistente foi Sir Herbert Reed, cujo apoio chegou em uma
carta da Inglaterra: todo o fenômeno da paródia é relevante [...] o
parodista tem uma liberdade excepcional, e por causa dessa liberdade pode
acabar enganando a si mesmo. E segundo, a
publicação de O Darkening
Ecliptic resultou nas
acusações de obscenidade levantadas contra Angry Penguins e seus
editores pela Polícia do Sul da Austrália.
Levado à justiça, o próprio julgamento foi uma farsa,
onde um debate literário ocupou o lugar de qualquer discussão sobre e ilegalidade
do caso. E debate literário regido pelas mais abomináveis formas de preconceito,
e com a mal disfarçada intenção de comprometer o Surrealismo. Como recorda a filha
do poeta, Samela Harris, Max Harris
foi ridicularizado
pelos superconservadores de Adelaide. Ele havia sido enganado por dois soldados
sarcásticos tentando zombar da literatura modernista, como Dylan Thomas, que estava
sendo publicado em Angry Penguins , o periódico
literário produzido por Max e seus colegas modernistas originários da Universidade
de Adelaide. Eles representavam tudo o que era temido e desprezado pela velha escola.
E tudo isto motivado pelo que tão bem observou Betty
Snowden, ou seja, o papel proeminente de Harris
na defesa do modernismo fez dele um alvo para aqueles que não gostavam dos novos
rumos da literatura. O caso marcou a época, porém não logrou de todo a mácula
que seus autores buscavam. Max Harris deixou seu nome como o ousado artífice da
modernidade, a vanguarda audaciosa das artes na Austrália. Isto lhe é impossível
apagar. Foi notável poeta, livreiro e editor. Além de Angry penguins, dirigiu o periódico Ern Malley’s Journal, 1952, ao lado de John Reed e Barrett Reid, e em
1961 funda a Australian Book Review. Em
1973, o empresário Rupert Murdoch, proprietário do jornal The Australian, onde Max Harris manteve por mais de uma década uma coluna
polêmica, disse que toda sociedade precisa de um Max, para
identificar seus sucessos, bem como seus fracassos, suas esperanças perdidas e suas
causas perdidas. E também para tirá-lo de sua presunção e hipocrisia, para agir
como um catalisador e irritante. Em todas as áreas o poeta foi um dínamo e exemplar,
pois graças a ele o Surrealismo ganhou importância visceral na cultura e nas artes
na Austrália.
Na tradução de Allan Vidigal, concluo essas notas
reproduzindo três poemas de Max Harris.
R.S.V.P.
Para Paul Éluard
Poderei te conhecer, irmã distante do
tempo,
vestida de verde,
olhando o canto esvaziado dos trens
a lançar fúria e lixo contra as luas?
Estive
prendendo entre os dedos a transição
da fumaça, lançando aos teus pés o pedido
de clemência, o desejo cortesão
de servir a tua mesa
e levar teus pratos até os lábios negros
de Júpiter, grávido
e escaldado de excremento.
Que belos dias,
estes, em que o amor lambe as areias da manhã.
Ama a garçonete dançarina que fuma e
fuma
para que eu esconda a chama do passado
dentro da manga
e pareça um grande mago
arrastando esperanças por aí
numa longa fieira de pérolas particulares.
O PÁSSARO
O pássaro empoleirado no ramo do meu
olho
é chamado de amigo da árvore
e seus pés delicados dão forças ao tronco
enquanto ele canta, perverso.
O pássaro que cantarola para a seiva
e as grutas de vermes escondidos
é o desejo que faz troça da terra cínica
e dos corações lacrados.
O pássaro empoleirado no ramo do meu
olho
bicou o nervo da retina
trouxe o tormento da chuva e o frescor
do sangue
ao longo da curva do coração.
NECROMANCIA
Sete são as tentações,
Nove as horas do dia,
Dois a distância entre nós
E uma só a via.
Verde a ideia em que há amor,
Branca a ideia que divide,
Negra a sombra que nos julga
Pela destruição da nossa lide.
Um sinal nos basta para viver,
Uma forma traçada no ar;
Longa a linha de tempo que seguimos.
Levará a algum lugar?
FLORIANO MARTINS | Poeta, editor, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo), e dirigiu a coleção “O amor pelas palavras” (2017-2021), parceria, de circulação exclusiva pela Amazon, entre ARC Edições e Editora Cintra. A partir de 2022 a coleção, embora mantendo seu nome, passa a ser coproduzida por ARC Edições e a revista Acrobata, destinada então à veiculação gratuita de livros em formato pdf. Curador dos projetos Atlas Lírico da América Hispânica, da revista Acrobata, e Conexão Hispânica, da Agulha Revista de Cultura.
JOE HESTER | (Austrália, 1920-1960). Foi uma intrigante artista do desenho, cujo traço automático acentuava a expressão dos rostos por ela revelados. Parte considerável da crítica entende que sua melhor fase data de 1948-9 quando fez inúmeros desenhos de seu amante. Contudo, a impulsão selvagem de sua mão trouxe à luz imagens tanto assombrosas, quanto as delirantes figuras da série “Getsêmani” (1946-47), quanto fascinante, no caso da luxúria encontrada na série “Os Amantes” (1956-58), ou mesmo cativante como os desenhos maiores de sua fase final, em que vemos crianças com os olhos esbugalhados ao lado de seus cães. Ao lado de James Gleeson, Sidney Nolan, Arthur Boyd e outros, Joe Hester se encuentra entre os grandes artistas australianos do século passado.
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 07
Número 206 | abril de 2022
Artista convidada: Joy Hester (Austrália, 1920-1960)
Tradução: Allan Vidigal
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS
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