sábado, 9 de abril de 2022

JOHN WELSON | Óscar Domínguez – O decano da decalcomania (uma visão particular)

 


Há energias criativas maiores do que a própria vida, de personalidade, temperamento, produção e efeito vulcânicos. Essas forças monumentais invocam imagens que, uma vez vistas, deixam impressa no observador uma importância impossível de se apagar. De certa forma, assumem o controle dos olhos e do ponto de vista. A força de sua visão nos captura a abordagem ao ver o que nos cerca. É como se penetrassem nossa realidade e emitissem ondas de choque que nos fazem renovar o entendimento do possível. Essas energias são chaves que destravam as dobradiças emperradas das portas, revelando terras que nos convidam, tentadoras, a atravessar os domínios adiante. Essencialmente, sua visão se torna o catalizador que nos chama a mergulhar na própria imaginação.

Assim foi com minha apresentação a Óscar Domínguez. Eu tinha doze anos de idade e estava em um colégio interno a uma boa distância de casa, que era uma fazenda no País de Gales Central. Minha expectativa era permanecer na escola até os doze anos de idade e depois retornar à fazenda para passar o restante da vida a cultivar a terra. Estava na biblioteca da escola e encontrei um livro novo em folha, intitulado Surrealismo. Seu autor, Patrick Waldberg. Ao terminar o volume, cheio de textos, fotografias e reproduções de pinturas, eu já decidira que era aquele o caminho que minha vida iria tomar. Entre pinturas reproduzidas estava uma de Óscar Domínguez, “O Caçador”, de 1934, representando um pássaro em uma gaiola, com a gaiola na forma de uma mão humana, tão simples e tão profundamente poética, tão instantaneamente ressonante como reflexão sobre a transformação poética. Era a complexidade do simples equilibrada com a simplicidade do complexo. A evaporação poética do funcional sustentada pelo questionamento da função e do propósito, quando o poético intervém como instrumento do questionar a lógica a funcionalidade. Foi uma revelação. A simplicidade da imagem era atraente, mas suas vibrações agiam como uma onda de choque, tudo podia dar à luz a própria poesia, redefinir o próprio lugar e o próprio potencial de transformação poética. A pintura fora realizada com delicadeza e humildade, havia nela um senso de força, convicção e certeza de intenção, era uma pintura convicta, mas a convicção, embora confrontadora em sua premissa de interrogação, não se mostrava por meio do uso da agressão, ou da violência destrutiva. A aura da obra denotava que os participantes representados estavam à vontade com a ação que se desenrolava, eram dela cúmplices, talvez até mesmo autores. Foi uma revelação para mim, a representação da mudança e da transformação em andamento em um clima de calma e afirmação.

O livro permaneceu na biblioteca e todos os dias eu visitava a prateleira onde estava. E, a cada dia, retirava o livro da prateleira e folheava suas páginas, mergulhando no mundo que emanavam. Aquele se tornara meu mundo e dele brotaram os primeiros poemas e pinturas. Enquanto virava as páginas, via fotos de Óscar Domínguez, ombros largos, uma cabeleira negra encaracolada, olhos penetrantes atrás dos óculos, um bigode farto. Problemas de saúde desde o nascimento alargaram seus traços e ossos e ele parecia um urso enfiado, pouco à vontade, em um corpo humano. Domínguez referiu a si mesmo como um rinoceronte em sua pintura “Autorretrato como rinoceronte”, de 1946. Mas é tocante que na carta que deixou antes de tomar a própria vida em Paris, na véspera do Ano Novo, em 1957, tenha escrito a respeito de si como o Minotauro: “O Minotauro se trancou permanentemente no próprio labirinto”. Em 1977, pintei com amor e respeito um retrato de Óscar Domínguez em que representei seu rosto inchado sobre um corpo que pintei como uma gaiola que se rompera para libertá-lo da dor física que suportou por toda a vida. O quadro incluiu o tema da gaiola como recordação da pintura que, tantos anos antes, fora um catalisador importante do meu desejo de compartilhar da aventura surrealista. A pintura foi reproduzida no capítulo sobre Domínguez da The International Encyclopaedia of Surrealism, publicada pela Bloomsbury Press em 2019. Georges Sebbag escreveu uma reflexão de profunda empatia sobre as pinturas de Domínguez da década de 1930, observando a forte ligação entre ele e André Breton naquele período.


Dentro de um ano, eu adquirira Surrealist Art, de Sarane Alexandrian, e A History of Surrealist Painting, de Marcel Jean. Um pouco depois (em 1972), visitei em Londres “Acoris, The Surrealist Art Centre”, onde pude ver minha primeira pintura de Óscar Domínguez, um óleo de 1942, “Natureza Morta com Passarinhos”, e comprei o livro de Filipacchi sobre o artista. Todos esses livros continham análises, reflexões, anedotas e reproduções que proporcionavam um insight em relação a uma energia criativa cuja produção durou mais ou menos 30 anos.

Óscar Domínguez foi pintor, produtor de objetos, “criador de decalcomanias”, escritor, um grande festeiro e bon-vivant. Nasceu em 1906 na ilha espanhola de Tenerife, uma das Canárias, um vulcão dormente que deu à luz um homem de imaginação e personalidade vulcânicas. Passou a infância vivendo com a avó e, desde muito jovem, demonstrou interesse pala pintura. Também desde muito jovem teve problemas de saúde que perdurariam por toda a sua vida. Aos 21 anos de idade, se mudou para Paris, onde trabalhava para o pai no mercado de Les Halles. Além de visitar museus e galerias, estudou arte, mas seu prazer estava na vida noturna e nos cabarés; era um ser social e sentia-se atraído pela companhia dos pintores de vanguarda e o mundo d e Yves Tanguy e Picasso. Em 1933, conheceu André Breton e Paul Éluard, o que consolidou o direcionamento de sua abordagem em termos de energia criativa. Pouco depois, já mostrava seu trabalho em exposições surrealistas de Copenhagen, Londres e Tenerife. Também trabalhou no Atelier 17 de S.W. Hayters, onde conheceu Georges Hugnet. No começo dos anos 1970, tive a satisfação de conhecer o pintor e colagista surrealista britânico Conroy Maddox e, em uma de minhas visitas ao seu atelier, ele me contou que vivera em Paris por algum tempo na década de 1930, ficando hospedado com Georges Hugnet, que o levou ao Atelier 17. Contou-me que a atmosfera ali era de criatividade organizada, com um ir e vir de artistas. Maddox se recordava de ter visto Domínguez a certa altura durante sua estada em Paris, provavelmente em uma das reuniões em cafés. Maddox tinha uma pequena decalcomania de Domínguez na parede do atelier, ao lado de um desenho de Max Ernst, e dizia: “é muito adequado que um Ernst e um Domínguez fiquem lado a lado”. Essa reflexão era ainda mais pertinente, uma vez que o próprio Maddox produzira muitas decalcomanias ao longo dos anos.

Jose Pierre escreveu sobre o trabalho de Domínguez da década de 1930: “A contribuição de Domínguez para o surrealismo entre 1934 e 1940 se distingue pela superabundância de novas ideias. Quando se refere a um objeto cotidiano – jarro, lata de sardinhas, máquina de escrever, rolo compressor – e o traduz em termos fantásticos, não é para explorá-lo em prol da própria glória, como Dali, e nem para, como Magritte, usá-lo como testemunha de uma ação praticada contra a lógica visual. Era, de forma mais modesta, para fazê-lo participar do diálogo entre o homem e os objetos por ele criados”.

De fato, em um período de menos de oito anos durante a década de 1930, Domínguez criou um mundo de imagens que questionavam de maneira ímpar o propósito dos objetos e sua relação com a suposta função. Usou uma seleção de leitmotifs como trampolim da realização de suas investigações visuais. O abridor de lata de sardinhas se tornou uma chave para a libertação, não só revelando as qualidades latentes do funcionamento do objeto como, também, liberando aquelas que haviam sido suprimidas, justificando o uso de um mecanismo de abertura para revelar seu potencial. Em pinturas como “Os Jarros”, de 1935, a figura ereta é composta de latas de sardinha sendo despidas pelos abridores respectivos; esse despir parece ser uma remoção de amarras para que a figura possa observar as borboletas esvoaçantes e os jarros que derramam água em uma cuia por sobre seixos negros. Nesse período, Domínguez assumiu o papel de observador que registrava o florescer da percepção do nascimento do latente. Era como se tivesse acabado de dobrar uma esquina e observasse e registrasse um evento. Ele não personaliza e nem, como refletiu Jose Pierre a respeito de Dalí, age como explorador em prol da própria glória. Em vez disso, Domínguez participa do diálogo entre homem e objeto, como se ocorresse uma reavaliação da interação e Domínguez fosse o taquígrafo desse experimento em liberdade. Em “Máquina Infernal”, de 1937, a roda de um gigantesco rolo compressor se derrete em fragmentos ao entrar em contato com a força da natureza sob a forma de uma única e pequena rosa. A proeminência do gigante metálico, um construto da opressão e da subjugação humanas, se desfaz perante a simplicidade e a pureza da natureza. A visão de Domínguez se mantém constante durante esse período, nem agressiva e nem gratuitamente violenta, mas enfaticamente focada no diálogo de interação e no prolongamento do diálogo, fazendo perguntas.

Com o distanciamento dos anos, poderíamos concluir que, se Domínguez tivesse pintado apenas os quadros da década de 1930s, seria respeitado como força criativa notável merecedora do mesmo respeito que Miró, Magritte, Ernst e Dali ao arar os primeiros sulcos da pintura surrealista. Mas aquela energia toda não podia ser temperada ou contida, seus objetos eram expressão da observação e da invenção poéticas em estado puro. “Carrinho de Mão”, um carrinho de mão estofado, abordava o contraste entre o prosaico e o poético. O artista transformou a ferramenta funcional em um recipiente suntuoso que foi fotografado por Man Ray junto com uma modelo vestindo um magnífico traje de gala. O objeto “Jamais”, exposto na Internationale du Surréalisme da Galeria Beaux Arts de Paris, em 1938, era um gramofone a corda, adaptado para celebrar os sentidos, com pernas, mãos e seios femininos agindo como partes funcionais do aparelho. A paixão de Domínguez pela vida noturna e pelo cabaré incluía o prazer da música, e muitas pinturas suas incluem pianos/órgãos no papel de instigadores dramáticos ou de acompanhantes musicais da ação que se desenrola ao seu lado. Em “Pianolar”, de 1934, o observador se sente testemunha de um tipo de filme mudo com acompanhamento musical à esquerda do palco, embora esse acompanhamento tenha se tornado parte da ação e a música seja tão muda quanto as mãos do musicista viajando sobre o instrumento.


Um traço singular da obra de Domínguez nesse período foi sua capacidade de incluir diversos dramas ou eventos representados simultaneamente em cada pintura. Não bastava atuar ou descrever um só foco de atividade, cada pintura trazia uma seleção de dramas que se davam concorrentemente, o palco repleto de atividades de cada um deles, e cada um influenciando o que transcorria ao lado. Muitas vezes os dramas surgem em primeiro plano, tendo por fundo uma paisagem marinha ou uma cadeia montanhosa, uma base calma para um drama animado na frente do palco, um mecanismo engenhoso para acentuar a intensidade dos papéis representados. A pintura “Borboletas perdidas na montanha”, de 1934, captura duas figuras femininas ajoelhadas à beira de um precipício ameaçador, de braços estendidos enquanto tentam agarrar uma caixa trazendo borboletas montadas além de seu alcance. Numerosos eventos transcorrem simultaneamente. Como em todas as pinturas de Domínguez desse período, se percebe um “silêncio ativo”, sempre com um tom subjacente de dúvida e investigação. Estão as personagens paralisadas, são as borboletas uma miragem de gelo, terão elas atraído as personagens para tão perigoso pico por algum motivo obscuro, terão as mulheres aprisionado as borboletas na caixa, terão as borboletas buscado libertação do cativeiro e escapado? Domínguez não oferece qualquer resposta, apenas faz perguntas perturbadoras, convertendo lógica e racionalidade em uma investigação cheia de perplexidade. Tem-nos fisgados, ficamos envolvidos no drama insondável e, como observou Jose Pierre, estamos “participando do diálogo entre o homem e os objetos por ele criados”. Trata-se de Domínguez em seu estado mais provocador, atraindo calmamente o observador para sua rede de incerteza fundamental, distante das explicações racionais que o ser humano criou para dialogar com o que o cerca; suspensas as cadeias da lógica, a faculdade humana vive em sua imaginação.

O espírito aventureiro e a mente inquisitiva de Domínguez alimentaram a aventura em muitas direções, cada uma delas parte de um todo e o “todo” parecendo um maremoto em movimento, avançando, dando continuidade à aventura, à sua obra de “fazer girar a pedra-mó da poesia”. Podemos comparar seu espírito ao de uma abelha, indo de flor em flor para banquetear-se em néctar. Seu período de consolidação de qualquer aspecto de seu olhar penetrante era, por opção e personalidade, curto e intenso, ele não se distribuía com parcimônia, cada pintura tinha que expressar toda a sua visão, já que ele breve ansiaria pelo desafio de novos pastos e novas paisagens. Sua forma de investigação visual ou intelectual não era superficial, era uma exploração intensa e decidida, muito embora cada fase sua tenha sido um degrau a caminho da descoberta. Em 1936, aprendeu um processo de impressão que era também usado para decorar porcelana, chamado decalcomania, que se acreditava datar de 1750 e ter sido inventado pelo gravador franco-inglês Simon François Ravenet. Para Domínguez, foi uma técnica que poderia facilitar outras rotas de aventura. Em 1936, ele escreveu: ”A decalcomania sem objeto pré-concebido, ou a decalcomania do desejo: usando um pincel espesso, espalhar gouache preto com maior ou menor diluição em diferentes pontos, sobre uma folha de papel envernizado e cobri-la imediatamente com outra folha sobre a qual se exerce pressão uniforme. Erguer a segunda folha sem pressa”. Georges Sebbag, em sua contribuição para a International Encyclopaedia of Surrealism, disse da decalcomania de Domínguez que “dá origem a um cortejo imaginário de visões naturais. Atinge o sublime porque desperta em nós impressões contrastantes: a aparição de um continuum em uma floresta de detalhe, um senso de infinitude brotando de uma gota d’água, o maravilhar-se perante a cristalização da matéria em formação, a convicção de tocar com os dedos a textura tanto do material quanto do imaginário”. O método ofereceu a Domínguez não só um novo meio de experimentação com processos de revelação, mas também a outros, entre eles Max Ernst, a possibilidade de utilização da decalcomania como técnica útil para por em marcha a imaginação. As decalcomanias que Domínguez criou no decorrer de um intervalo de tempo relativamente curto se tornaram realizações poderosas desse método de criação aleatória. Seu olho aguçado e sua mão desenhando um rio ondulante entre rochas, acrescentando uma ponte, tudo para criar uma paisagem maravilhosa. Ele libertava as paisagens que o acaso dava à luz.

À medida que se aproximava o fim dos anos 1930, a imaginação irrequieta de Domínguez se deslocou para novas trilhas de aventura. Ele dera ao observador dicas de que a transição era iminente. Cada fase de seu desenvolvimento surgiu sem grande surpresa, já que ele frequentemente dava pistas e indicações da mudança de forma de investigação e expressão, aspectos embrionários de aventuras futuras começam a se fazer sentir e Domínguez lhes dá vida e lhes define propósito e forma. Ao fim da década de 1930, a inclusão de personagens ou objetos como foco central da investigação foi substituída por paisagens que irrompiam em dimensão, porte, majestade. Começaram a se impor em pinturas como “Atingido por um raio”, 1938, e “Memória do futuro”, vistas de minérios e rochas, ondas marinhas formando contornos entrelaçados ao cruzar a paisagem que consumiam. A pintura “Nostalgia do Espaço”, de 1939, é o ápice do estágio de desenvolvimento em que Domínguez se encontrava no período, uma paisagem-treliça. Ele e o romancista e físico argentino Ernesto Sábato, que se encontrava em Paris e participou de encontros dos surrealistas (inspirando Matta), estavam interessados em aprofundar o conceito de mineralização do tempo, “Determinadas superfícies, que denominamos litocrônicas, abrem uma janela para o estranho mundo da quarta dimensão, constituindo uma espécie de solidificação do tempo”. As pinturas dessa época, com efeito, trazem um clima de estarem paralisadas no tempo, de movimento e momento. Esse senso de petrificação pode muito bem-estar associado ao fato de que a Segunda Guerra Mundial estava por irromper, a atmosfera de temor e incerteza certamente terá exercido efeito sobre Domínguez. Se ele estava incerto a respeito do destino de seus amigos e do que aconteceria a ele mesmo, não precisou esperar muito tempo, já que, declarada a guerra, muitos de seus amigos não só deixariam Paris como também abandonariam a França pelos Estados Unidos. O próprio Domínguez tentou deixar a França, indo primeiro para Perpignan e depois para Marselha, onde ficaria com André Breton e outros surrealistas que procuravam fugir. Criaram o tarô Jeu de Mars e Domínguez foi quem produziu a carta “Freud mage de rêve”, dedicada a Sigmund Freud. Domínguez não conseguiu se evadir da França e retornou a Paris, onde passou o restante da guerra. Foi a última oportunidade para a amizade entre Domínguez e Breton porque, ao retornar à França de seu exílio, Breton entendeu que o caminho de Domínguez se afastara do surrealismo e ele nunca mais foi convidado a participar de exposições surrealistas.


Retornando a Paris depois de sua tentativa fracassada de fuga de Marselha, Domínguez embarcou em uma série de pinturas que foram chamadas de seu “Período Metafísico”, onde a obra se assemelha às pinturas que Chirico produzira cerca de 30 anos antes. O óleo “Ouvinte silencioso”, de 1943, mostra uma musa reclinada, com o rosto ao estilo de Picasso em uma paisagem à maneira de Chirico. Perguntamo-nos se Domínguez se afastara deliberadamente da própria musa e encontrara algum consolo ao mergulhar nas energias daqueles que admirava. Não estava bem de saúde e recorria mais e mais ao álcool e a ciclos de comportamento antissocial frente a seus amigos e conhecidos. Diversas naturezas-mortas desse período incluem representações de revólveres, um sinal; sua anterior pulsão de esperança, energia e ânimo estava sendo substituída por uma atmosfera de trevas e letargia.

Domínguez tinha havia muito tempo uma relação de amizade com Picasso. Picasso tinha muitos amigos e muitas pessoas que queriam ser suas amigas. No caso de Domínguez, ambos eram espanhóis, e ambos gostavam de touradas. Sob ocupação alemã, Paris era um lugar muito diferente, com uma atmosfera muito diferente e Domínguez cada vez mais gravitava em direção ao “círculo de Picasso”. Também criou trabalhos de tom decididamente espanhol, com touradas e toureiros. Essas obras mantinham as marcas de Domínguez, mas havia nelas algo claramente próximo de Picasso. O fotógrafo Brassaï registrou um diário de suas visitas a Picasso durante o período e observou, em maio de 1945:

 

Picasso está com Óscar Domínguez, um belo espanhol de Tenerife, tão apaixonado por touradas quanto o próprio Picasso. Ultimamente, ele tem aparecido aqui com frequência cada vez maior. Um pintor de grandes dotes, com incrível domínio da técnica, que aprendeu muito com Picasso – na verdade, aprendeu demais. Algumas de suas telas parecem pintas à moda de (…) Picasso tem um fraco por esse homem/urso selvagem. Apesar de seus modos rudes, ele é cheio de vitalidade que se reflete em sua cabeça fidalga enorme, desproporcional, com seus bigodes delicados. Picasso gosta de sua mente inconstante, de seu humor negro e talvez goste da violência e inquietude vindas do sangue espanhol de Domínguez. O corpo grande e aparentemente pacato é habitado por um demônio e ninguém está a salvo quando o álcool o liberta. Já vi Domínguez brandir canivetes de mola ou revólveres, deixando todos ao seu redor em pânico e levando-os a sair correndo.

 

Esses episódios aconteceram em anos anteriores, certa vez custando um olho de Victor Brauner.

As pinturas que as décadas de 1940 e 1950 trouxeram se tornaram decorativas, com flores, casarios, crianças brincando nos parques, cenas de rua. O autor produziu uma grande quantidade de telas, mas lhes faltava a beleza convulsiva dos quadros e objetos de seu período dourado dos anos 1930. Domínguez perdera a centelha investigativa e acabou por tirar a própria vida.

Óscar Domínguez foi uma estrela cadente da imaginação durante os anos 1930. Sua luz brilhou forte, nos deixando um relance da celebração pura da imaginação. Ele é corretamente lembrado por suas pinturas, seus objetos e suas decalcomanias, um batimento cardíaco do surrealismo.

 

NOTA

Ensaio traduzido por Allan Vidigal.

 

 


JOHN WELSON | Nascido em Llanfair Llythynwg, Sir Faesyfed, País de Gales, em 8 de março de 1953. Pintor, poeta e escritor. Participa de atividades surrealistas internacionais desde o começo dos anos 1970, com mais 350 exposições por todo o mundo. Acaba de publicar The dialectical Phoenix, juntamente com John Richardson (Wales: Broken Sleep Books, 2022).

 

 

 


JOE HESTER | (Austrália, 1920-1960). Foi uma intrigante artista do desenho, cujo traço automático acentuava a expressão dos rostos por ela revelados. Parte considerável da crítica entende que sua melhor fase data de 1948-9 quando fez inúmeros desenhos de seu amante. Contudo, a impulsão selvagem de sua mão trouxe à luz imagens tanto assombrosas, quanto as delirantes figuras da série “Getsêmani” (1946-47), quanto fascinante, no caso da luxúria encontrada na série “Os Amantes” (1956-58), ou mesmo cativante como os desenhos maiores de sua fase final, em que vemos crianças com os olhos esbugalhados ao lado de seus cães. Ao lado de James Gleeson, Sidney Nolan, Arthur Boyd e outros, Joe Hester se encuentra entre os grandes artistas australianos do século passado.

 


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 07

Número 206 | abril de 2022

Artista convidada: Joy Hester (Austrália, 1920-1960)

Tradução: Allan Vidigal

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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