“Os pequenos peixes nadam na superfície, mas os grandes peixes nadam
em águas profundas”, diz Lynch num livro sobre meditação transcendental. Os peixes,
figuras emblemáticas para o movimento surrealista, são metáfora da consciência para
o realizador, uma consciência que precisa ser aprofundada e explorada até o seu
limite máximo. E essa era a proposta do grupo criado por Breton em 1924. O Surrealismo,
como o Dadaísmo fizera anteriormente, vai propor um mergulho no irracional, trazendo
de volta conceitos que já estavam presentes desde, pelo menos, o século XVIII. Como
movimento de vanguarda, deu vazão a um sentimento comum de revolver as entranhas
da velha arte e criar algo que refletisse seu próprio tempo.
Desnaturalizar o mundo, torná-lo estranho, para que, contraditoriamente,
ele possa ser novamente conhecido é a operação dialética realizada por Lynch na
sua obra. Acredito que o realizador, como os surrealistas, tenha conseguido encontrar
um equilíbrio entre as duas formas de se estar no mundo, racional/irracional, jogando
com suas antíteses. O prazer do jogo surrealista consiste exatamente em ir até as
profundezas do inconsciente e retornar com matéria suficiente para fazer uma obra
de arte. Ultrapassar o real, escolher um caminho diferente das possibilidades quotidianas
de mostrar o mundo, não é uma escolha fácil. Ao longo da construção da sua cinematografia,
David Lynch foi, pouco a pouco, aproximando-se mais daquilo que pode ser considerado
um cinema autenticamente surrealista. O excesso dos seus primeiros curtas foi domesticado
e a fusão entre espaço onírico e espaço real foi se tornando cada vez mais evidente.
Se em The alphabet vemos uma criança dormindo e sonhando, e
é no sonho que encontramos a componente de fantasia explícita do filme, em Blue
velvet o sonho invade o dia e tudo é contaminado por esse clima algo feérico
que se tornou marca registada do realizador. No início desse filme vemos um jardim
típico dos subúrbios norte-americanos: uma cerca branca, um céu azul, muitas flores
e, de repente, a câmara vai se aproximando cada vez mais da relva onde vemos formigas
e uma orelha humana, meio ensanguentada, ali no chão. Como a mutilação de Un
chien andalou, uma das obras inaugurais do cinema surrealista, aquela orelha
mutilada lembra-nos que, do mundo, vemos apenas a superfície. É necessário direcionar
os olhos para outro lado, talvez para dentro de nós mesmos, para penetrarmos no
mistério do real, que não é raso, nem previsível, e que contém, como nos sonhos,
diversas camadas de significação.
Como não pode conduzir um carro, e nem tem dinheiro para uma passagem
de autocarro, decide fazer essa travessia de trator e, durante seis semanas, percorre
o interior dos Estados Unidos, cruzando, pelo caminho, com uma série de pessoas
que vão ser, de alguma maneira, tocadas por esse encontro, ao mesmo tempo em que
o tocam com suas presenças e idiossincrasias. A crítica considera esse filme como
um produto atípico do realizador, deixando de ver os paralelos que o mesmo mantém
com a cinematografia de Lynch. O começo funciona como um eco distante de Blue
velvet e, ao longo do filme, de maneira discreta, o ponto de vista do realizador
desnaturaliza o caráter documental que o filme, de saída, possui. Como em Las
hurdes, de Buñuel, o aspecto documental da obra torna-a ainda mais surrealista,
pois, apesar de uma aparente consonância com o gênero documentário, é realizada
com o mesmo espírito dos filmes anteriores.
Se não encontramos nesse filme o tom feérico de Inland empire,
por exemplo, não deixamos de ver a marca registada de Lynch, que utiliza o quotidiano
para revelar aquilo que está sob a superfície, seja do mundo visível, seja das próprias
pessoas que vão se revelando em pequenos gestos ou grandes feitos, como essa odisseia
rural de Alvin Straight. O movimento constante de Alvin em seu trator, apesar de
funcionar como linha discursiva sobre a qual vai se desenrolar toda a história,
é uma maneira de manter a continuidade da palavra poética, de deixar que as imagens
apareçam e sejam reiteradas, como no tempo mítico, circular, onde tudo se move e
permanece ao mesmo tempo. Como na poesia de Breton/ Soupault:
[...] La lanterne
et le petit arbre gris qui porte un nom exotique
0 133 ce sont
les doigts des ataxiques les vignes des
Champs
La biologie
enseigne l’amour
Tissez les
lucides verités [...]
Sem dúvida é mais fácil perceber a relação de Inland empire,
com o surrealismo. Sonho e realidade imbricam-se indefectivelmente, provocando confusão
no espectador desavisado que tenta, desesperadamente, PERCEBER. O filme fala sobre
um filme, sobre uma atriz e sua relação com o marido, o vizinho, o mundo do cinema.
Um mundo de reflexos e enganos, de criação de uma realidade paralela, especular,
onde o ontem, o hoje e o amanhã são sempre o tempo presente, único tempo possível
da linguagem cinematográfica. Numa cena do filme ouvimos Nikki, a atriz, dizer: “This
is a story that happened yesterday. But I know it’s tomorrow”. O espectador não consegue divisar se aquilo que
vê no ecrã faz parte da realidade do filme ou da mente das personagens. Não consegue
sequer organizar as sequências dentro de uma temporalidade lógica, porque o tempo
e a lógica desse filme são outros.
Lynch, como os surrealistas, não sente a necessidade
de “jeter un voile apollinien sur la fascination dionysiaque du chaos. [2] Abraça o caos
como única forma possível de deixar a poesia vir à tona no cinema contemporâneo.
Abraça o caos como forma de lutar contra a domesticação das imagens e como única
maneira possível de ser coerente e verdadeiramente surrealista.
NOTAS
1. Breton, A. et Soupault, P. Les champs magnétiques.
3ª ed. Paris: Gallimard, 1996.
2. RICOEUR, P. Temps et récit. 2: La confuguration
du récit de fiction. Paris: Seuil, 1984.
MIRIAN NOGUEIRA TAVARES | Professora associada da Universidade do Algarve, Portugal. Com formação académica nas Ciências da Comunicação, na Semiótica e nos Estudos Culturais (doutorou-se em Comunicação e Culturas Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia), tem desenvolvido o seu trabalho de investigação e de produção teórica nas áreas das estéticas fílmica e artística. Como professora da Universidade do Algarve, participou na elaboração do projeto de licenciatura em Artes Visuais, do mestrado e doutoramento em Comunicação, Cultura e Artes e do doutoramento em Média-Arte Digital. Atualmente é coordenadora do CIAC (Centro de Investigação em Artes e Comunicação) e Diretora do doutoramento em Média-Arte Digital.
JOE HESTER | (Austrália, 1920-1960). Foi uma intrigante artista do desenho, cujo traço automático acentuava a expressão dos rostos por ela revelados. Parte considerável da crítica entende que sua melhor fase data de 1948-9 quando fez inúmeros desenhos de seu amante. Contudo, a impulsão selvagem de sua mão trouxe à luz imagens tanto assombrosas, quanto as delirantes figuras da série “Getsêmani” (1946-47), quanto fascinante, no caso da luxúria encontrada na série “Os Amantes” (1956-58), ou mesmo cativante como os desenhos maiores de sua fase final, em que vemos crianças com os olhos esbugalhados ao lado de seus cães. Ao lado de James Gleeson, Sidney Nolan, Arthur Boyd e outros, Joe Hester se encuentra entre os grandes artistas australianos do século passado.
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 07
Número 206 | abril de 2022
Artista convidada: Joy Hester (Austrália, 1920-1960)
Tradução: Allan Vidigal
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editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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