sábado, 9 de abril de 2022

MIRIAN TAVARES | O Surrealismo em David Lynch

 


“If everything is real… then nothing is real as well”. Esta é uma das frases que aparecem na BD The angriest dog in the world, criada em 1973 pelo cineasta David Lynch e publicada, pela primeira vez, dez anos depois no L.A. Reader. Essa frase acaba por definir toda a obra de um autor que, desde seus primeiros trabalhos, recusou-se a mergulhar num universo de imagens convencionais, apostando sempre no absurdo e no maravilhoso. E é essa obstinação que o torna um dos poucos artistas contemporâneos que podem ser considerados verdadeira e coerentemente surrealistas. O termo surrealismo perdeu, ao longo dos anos, o seu sentido original, sendo usado muitas vezes de maneira incorreta ou pouco séria por muitos que consideram surrealista qualquer coisa que se aproxime do absurdo ou que se mova contra a correnteza do quotidiano.

“Os pequenos peixes nadam na superfície, mas os grandes peixes nadam em águas profundas”, diz Lynch num livro sobre meditação transcendental. Os peixes, figuras emblemáticas para o movimento surrealista, são metáfora da consciência para o realizador, uma consciência que precisa ser aprofundada e explorada até o seu limite máximo. E essa era a proposta do grupo criado por Breton em 1924. O Surrealismo, como o Dadaísmo fizera anteriormente, vai propor um mergulho no irracional, trazendo de volta conceitos que já estavam presentes desde, pelo menos, o século XVIII. Como movimento de vanguarda, deu vazão a um sentimento comum de revolver as entranhas da velha arte e criar algo que refletisse seu próprio tempo.

Desnaturalizar o mundo, torná-lo estranho, para que, contraditoriamente, ele possa ser novamente conhecido é a operação dialética realizada por Lynch na sua obra. Acredito que o realizador, como os surrealistas, tenha conseguido encontrar um equilíbrio entre as duas formas de se estar no mundo, racional/irracional, jogando com suas antíteses. O prazer do jogo surrealista consiste exatamente em ir até as profundezas do inconsciente e retornar com matéria suficiente para fazer uma obra de arte. Ultrapassar o real, escolher um caminho diferente das possibilidades quotidianas de mostrar o mundo, não é uma escolha fácil. Ao longo da construção da sua cinematografia, David Lynch foi, pouco a pouco, aproximando-se mais daquilo que pode ser considerado um cinema autenticamente surrealista. O excesso dos seus primeiros curtas foi domesticado e a fusão entre espaço onírico e espaço real foi se tornando cada vez mais evidente.

Se em The alphabet vemos uma criança dormindo e sonhando, e é no sonho que encontramos a componente de fantasia explícita do filme, em Blue velvet o sonho invade o dia e tudo é contaminado por esse clima algo feérico que se tornou marca registada do realizador. No início desse filme vemos um jardim típico dos subúrbios norte-americanos: uma cerca branca, um céu azul, muitas flores e, de repente, a câmara vai se aproximando cada vez mais da relva onde vemos formigas e uma orelha humana, meio ensanguentada, ali no chão. Como a mutilação de Un chien andalou, uma das obras inaugurais do cinema surrealista, aquela orelha mutilada lembra-nos que, do mundo, vemos apenas a superfície. É necessário direcionar os olhos para outro lado, talvez para dentro de nós mesmos, para penetrarmos no mistério do real, que não é raso, nem previsível, e que contém, como nos sonhos, diversas camadas de significação.


Uma das técnicas que o realizador norte-americano utiliza em seus filmes é a criação de planos autônomos. Esses planos, como o da orelha mutilada sobre a relva, depois são dispostos na lógica da diegese de uma maneira natural, sem saltos ou grandes alardes. Passam a fazer parte daquela cadeia de significações e a modificar, pela sua presença, tudo aquilo que vem depois. Técnica utilizada na criação dos textos surrealistas desde o princípio. Em 1919 Breton e Soupault escrevem Les champs magnétiques – o primeiro texto feito a partir da escrita automática: “Prisonniers des gouttes d’eau, nous ne sommes que des animaux perpétuels. Nous courons dans la ville sans bruits et les affiches enchantées ne nous touchent plus”. [1] Como no surrealismo, o maravilhoso, em Lynch, emerge do quotidiano e é-nos revelado sem qualquer pirotecnia. A montagem é feita através de raccords e de rimas plásticas, sonoras ou temáticas. The straight story (filme que aparentemente foge do universo do realizador, por ser baseado em factos reais e por ser, como seu título anuncia, uma história direta, simples) conta a história de Alvin Straight, um veterano da II Grande Guerra que decide cruzar a América rural para visitar seu irmão que sofreu um AVC.

Como não pode conduzir um carro, e nem tem dinheiro para uma passagem de autocarro, decide fazer essa travessia de trator e, durante seis semanas, percorre o interior dos Estados Unidos, cruzando, pelo caminho, com uma série de pessoas que vão ser, de alguma maneira, tocadas por esse encontro, ao mesmo tempo em que o tocam com suas presenças e idiossincrasias. A crítica considera esse filme como um produto atípico do realizador, deixando de ver os paralelos que o mesmo mantém com a cinematografia de Lynch. O começo funciona como um eco distante de Blue velvet e, ao longo do filme, de maneira discreta, o ponto de vista do realizador desnaturaliza o caráter documental que o filme, de saída, possui. Como em Las hurdes, de Buñuel, o aspecto documental da obra torna-a ainda mais surrealista, pois, apesar de uma aparente consonância com o gênero documentário, é realizada com o mesmo espírito dos filmes anteriores.


Alvin é um viajante e, como o viajante dos campos magnéticos, o seu percurso é mais que uma simples viagem. É um processo que levará a personagem a reencontrar a si mesma e a repensar a sua vida, diante da morte iminente do irmão e talvez da sua própria, não muito distante. O espaço que ela percorre, habitual, conhecido, torna-se outro quando ela passa a vê-lo em movimento, quando passa a ser um caminho, quando se converte em uma longa estrada. A sua viagem visível, exterior, é acompanhada por uma viagem dentro dele mesmo.

Se não encontramos nesse filme o tom feérico de Inland empire, por exemplo, não deixamos de ver a marca registada de Lynch, que utiliza o quotidiano para revelar aquilo que está sob a superfície, seja do mundo visível, seja das próprias pessoas que vão se revelando em pequenos gestos ou grandes feitos, como essa odisseia rural de Alvin Straight. O movimento constante de Alvin em seu trator, apesar de funcionar como linha discursiva sobre a qual vai se desenrolar toda a história, é uma maneira de manter a continuidade da palavra poética, de deixar que as imagens apareçam e sejam reiteradas, como no tempo mítico, circular, onde tudo se move e permanece ao mesmo tempo. Como na poesia de Breton/ Soupault:

 

[...] La lanterne et le petit arbre gris qui porte un nom exotique

0 133 ce sont les doigts des ataxiques les vignes des

Champs

La biologie enseigne l’amour

Tissez les lucides verités [...]

 


As palavras vão seguindo umas as outras sem pontuação visível, com um ritmo constante que vai encadeá-las e dar sentido a algo que, de outra forma, pareceria desconexo.

Sem dúvida é mais fácil perceber a relação de Inland empire, com o surrealismo. Sonho e realidade imbricam-se indefectivelmente, provocando confusão no espectador desavisado que tenta, desesperadamente, PERCEBER. O filme fala sobre um filme, sobre uma atriz e sua relação com o marido, o vizinho, o mundo do cinema. Um mundo de reflexos e enganos, de criação de uma realidade paralela, especular, onde o ontem, o hoje e o amanhã são sempre o tempo presente, único tempo possível da linguagem cinematográfica. Numa cena do filme ouvimos Nikki, a atriz, dizer: “This is a story that happened yesterday. But I know it’s tomorrow”. O espectador não consegue divisar se aquilo que vê no ecrã faz parte da realidade do filme ou da mente das personagens. Não consegue sequer organizar as sequências dentro de uma temporalidade lógica, porque o tempo e a lógica desse filme são outros.

Lynch, como os surrealistas, não sente a necessidade de “jeter un voile apollinien sur la fascination dionysiaque du chaos. [2] Abraça o caos como única forma possível de deixar a poesia vir à tona no cinema contemporâneo. Abraça o caos como forma de lutar contra a domesticação das imagens e como única maneira possível de ser coerente e verdadeiramente surrealista.

 

NOTAS

1. Breton, A. et Soupault, P. Les champs magnétiques. 3ª ed. Paris: Gallimard, 1996.

2. RICOEUR, P. Temps et récit. 2: La confuguration du récit de fiction. Paris: Seuil, 1984.

 

 


MIRIAN NOGUEIRA TAVARES | Professora associada da Universidade do Algarve, Portugal. Com formação académica nas Ciências da Comunicação, na Semiótica e nos Estudos Culturais (doutorou-se em Comunicação e Culturas Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia), tem desenvolvido o seu trabalho de investigação e de produção teórica nas áreas das estéticas fílmica e artística. Como professora da Universidade do Algarve, participou na elaboração do projeto de licenciatura em Artes Visuais, do mestrado e doutoramento em Comunicação, Cultura e Artes e do doutoramento em Média-Arte Digital. Atualmente é coordenadora do CIAC (Centro de Investigação em Artes e Comunicação) e Diretora do doutoramento em Média-Arte Digital.
 

 

 


JOE HESTER | (Austrália, 1920-1960). Foi uma intrigante artista do desenho, cujo traço automático acentuava a expressão dos rostos por ela revelados. Parte considerável da crítica entende que sua melhor fase data de 1948-9 quando fez inúmeros desenhos de seu amante. Contudo, a impulsão selvagem de sua mão trouxe à luz imagens tanto assombrosas, quanto as delirantes figuras da série “Getsêmani” (1946-47), quanto fascinante, no caso da luxúria encontrada na série “Os Amantes” (1956-58), ou mesmo cativante como os desenhos maiores de sua fase final, em que vemos crianças com os olhos esbugalhados ao lado de seus cães. Ao lado de James Gleeson, Sidney Nolan, Arthur Boyd e outros, Joe Hester se encuentra entre os grandes artistas australianos do século passado.

 


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 07

Número 206 | abril de 2022

Artista convidada: Joy Hester (Austrália, 1920-1960)

Tradução: Allan Vidigal

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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