Pois seja ledo o meu
lente, e não se altere o ledor: para o fautor e Autor do Surrealismo, “O Pensamento
Poético é para mim o único com valor porque é o único interessado na Realidade que
se nos apresenta num todo e não parcelada”; e Poético Pensamento, ele é, para o
lisboês, o que era, a Ontologia, para o facundo Estagirita: se a Realidade absoluta
toma aqui o nome de Surrealidade, “a Idade de Ouro Futura não é mais do que a Ressurreição
Poética de Todos os Homens!”, é para a selecta, e para a colheita, um novo Pentecostes,
e aqui nós sideramos, e aqui revisitamos a nossa juventa. Queremos dizer: se o Poeta
abre as portas, os janelos e janelas, os burocratas só querem gabinetes separados.
Não basta, para o Poeta, o divertir, mas é mister o advertir. Instruir, no santo-e-senha,
e não e nanja destruir. Que o jogral é pois o jogo, e é jugo o filisteu. E se a
Lucina, deveras, alucina, remembramos, outrossim, a relevância que teve, o Novalis,
na Poesia portuguesa. Pois indo ao fundo, ao fundamento e ao fundamental, falar
da estância portuguesa, ou surpresa, do Surrealismo, é falar, sem dolo, do poético
escol de Agostinho Maldonado, da Portugalidade do Poeta João Belo: com eles, no
mirante, a admiração é o pasmo e o pasmo o assombro. O assombro e o espanto, aquilo
que leva os homens a filosofar. A expressar e a prensar. A prender, e a exprimir,
a ex-centricidade do Ser. E por isso, portanto, a compreender. E a tender e a pender,
e a apertar portanto a Musa de encontro ao coração. Que a famosíssima frase de Rimbaud
(“o Eu é um Outro”), ajusta-se, creio eu, à fenomenologia da Psique: “o Inconsciente”,
para Lacan, “é o discurso do Outro”. “O inconsciente”, para o estruturalista, ele
“é estruturado como uma linguagem”, “le ça parle”, por isso, para o mesmo Lacan.
E adrede, outrossim, ele há que assertar: o Inconsciente, pessoal, ele se alaga
ou se alarga por a oblação, proposição, do Inconsciente Colectivo. Que é representação
colectiva, que é conjunto, ou junção, dos arquétipos todos. Dos arquivos e arcanos,
daquilo a que chamava, o Freud, “resíduos arcaicos”. Sob esse ditame, o Eu, dessarte,
é o Nós, a Arte deixa, veramente, de ser individual. E aqui não há negá-lo, Amigo
ledor: a escrita automática, o sonho, e as Ciências Ocultas, desempenham, em Lisboa,
o seguinte papel: eles são meios de alargamento, e multiplicação, do campo cognitivo,
eles dilatam, alongam, a personalidade. Não era isso que acontecia, sobremaneira,
com Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa e Teixeira de Pascoaes? Que em França,
o Autor primeiro, ou primordial, a utilizar a expressão de “escrita automática”
foi Pierre Janet, o Autor e promotor de “O Automatismo Psicológico” - e está, o
tentâmen, em perfeita sintonia com William James, o americano, o filósofo pragmatista.
Artífice, em França, da segunda ou sagrada psiquiatria dinâmica, Janet foi fazedor,
e o feitor, da corrente e da escola da análise psicológica. Quanto, ademais, a
“O Automatismo Psicológico”: na Universidade de Paris, em 1889, essa foi, de Janet,
a tese de doutoramento em Filosofia. Esse automatismo, ou estado alterativo, é o
funcionamento espontâneo da vida psicológica, fora do controlo da consciência e
da vontade, é a estância, e o estudo, dos estados hipnóides. Sublinhemos, por isso,
e alembremos: Breton define, adrede, o Surrealismo como um “automatismo psíquico
puro”, ou melhor, como “um certo automatismo psíquico que corresponde bastante bem
ao estado de sonho”. Pois dormir é morrer, e morrer, desse modo, é ser Iniciado.
Dormir é mergulhar no útero, e no mar, do Mundo das Ideias. Ou melhor: Morfeu enflora,
e enforma, o mítico Orfeu. E ora vamos ovante avante: quer em James, quer em Freud,
o vígil consciente é apenas uma gota, uma ínfima parcela, do vasto oceano que é
o mundo inconsciente. Façamos coro, nós ora, com o feraz André Breton: a Histeria,
por a chamada de Charcot, foi a grande “alêtheia”, a maior fulgurância do século
XIX. No atinente à Psicanálise, a Histeria, de feito, é o começo da história. Não
aventado tinha já, o Sigmund Freud, que a Histeria não é mais que a deformação de
uma Obra de Arte? Uma Obra de Arte, por isso mesmo, em caricatura, a loucura aliada
à poética Lira.
Hemos visto, e divisado, que a Luz se transmite, ou se transporta, de boca a ouvido. No Inverno de 1902-1903, Carl Gustav Jung (1875-1961), que laborava, em Zurique, no Hospital Burgholzli, ele recebe, de Eugen Bleuler (1857-1939) uma licença de estudos: era mister que o psiquiatra assistisse, no Collège de France, a uma série de conferências, seminários, sobre a histérica paixão – e quem os proferia, lautamente, era o loquaz, o assisado, Pierre Janet. E no que concerne, aqui mesmo, à nossa labuta: a tese de doutoramento do simpático Jung, em 1902, se nominava, numinosa, “Sobre a Psicologia e a Patologia dos Fenómenos Ditos Ocultos” - e ela se baseava, ou fundamentava, na espírita, assombrada, Hélène Preiswerk; ela era a prima, ou primaz, do Carl Gustav Jung – e eis a prova, e as primícias, de nosso progredimento. E é que lê, o intelecto, no arteiro interior. Saudamos, na sorte, o solerte Estagirita: não há deveras grande Génio que não contenha, em si, um grão de loucura. Pois vem a cita, aqui, a talho de foice: para Elisabeth Roudinesco e o grande Michel Plon, André Breton era “psiquiatra de formação e médico interno de Joseph Babinski”: isto o verídico, isto o real e esta a verdade. Sendo, na Salpêtrière, o Joseph Babinski, o aluno preferido do magíster Charcot. É que anelava, o Breton, liberar, o ser humano, do presídio, golilha, do quotidiano. Acabar, de vez, com o Superego. Com o peco, e o seco, hospital psiquiátrico. E substituir, a realidade e o dever, por o princípio do prazer. Que em todo o polícia, insiste, como duplo, o pelotiqueiro, em todo o psiquiatra existe, latente, um selecto saltimbanco; se o Sol é monárquico, é lírica a zoina, é ácrata a “Luna”. Subscrevemos, inteiramente, o Carl Gustav Jung: é que o homem civilizado inda arrasta, atrás de si, a cauda dum sáurio. E se o amente resiste nos iatras da Psique, então, segundo o Lisboa, “a vida SURREAL, entenda-se, não é mais do que a mesma e única Realidade transfigurada pela Magia, pelo Desejo, pela Vontade, pelo Amor, pela Liberdade, pelo conhecimento sábio, pela POESIA!” Poesia para laborar, pra liberar, pra transmudar o mundo imundo. Nesta premente e urgente Poetosophia, subsistem, pois existem, três palavras-chave: a Magia, o Amor e a Liberdade, a Liberdade, aremos ora, até ao “quid” libertário. A Magia, o Magnetismo, a Ciência da Psique até ao “Liber Pater”. E libando nós alçamos: a hipnose, o sono lúcido, o Abade, luso-goês, José Custódio de Faria. E prossigamos, com Alma, no viático ou viagem: se Dioniso é o deus da loucura, ele é,
Que o Astro é o caminho
do holístico estro. Do estro que enflora o estrogénio da estrela. Pois pende e tende,
o movimento Surrealista, a ultrapassar o divórcio, divórcio deprimente, entre o
sonho e o real. Aduz e diz, o Breton, de facto e de feito: “Creio na resolução futura
destes dois estados, na aparência tão contraditórios, que são o sonho e a realidade,
numa espécie de realidade absoluta, de surrealidade, se assim se pode dizer.” Quer
ele dizer: aquilo que está no alto e aquilo que está em baixo deixam de ser apercebidos
contraditoriamente. E nós falamos e aflamos: pra Maria Lisboa, como, também, para
António Barahona e António Salvado, o poético ápice ele é, portanto, o “rêve éveillé”.
Sendo o “sonho desperto dirigido” um método psicoterapêutico aventado, ou inventado,
por o Robert Desoille (1890-1966). Sendo a vida e os sonhos as laudas e folhas de
um mesmo, dessarte, e único livro. No paradigma, então, um parentético excurso:
se escrevem, colunáveis, livros limitados, homens como o Lisboa, e o Mário Cesariny,
eles revelam, e redigem, o Livro do Mundo. E a propósito dos sonhos, aqui eu trago
à colação o genésico “Génesis”, e eis a escala, e eis a escola, e eis a escada de
Jacob. Ouçamos o que asserta, a talho de foice, o feitor, o Autor, o promotor do
“Ossóptico”: “Jarry sabe que o sonho é este que vivemos da forma mais sábia: dormir
acordado, estar acordado quando dorme, viver responsavelmente o sonho, não desculpar,
não se desculpar, não ter razões nem dar razões, e acontecer com a precisão sucessiva
do que acontece é o traço-de-união.” Magnífica lição, magna profissão da poética
fé. Sendo o sonho, pra Schopenhauer, uma pequena loucura, a loucura, de feito, um
grado e grande sonho. Ou melhor: sendo o sonho, decerto, uma alucinação. Uma obra
de Arte, ou mágica lanterna, cuja estrutura se revela, nos tropos, seguindo as metáforas
e segundo as metonímias. Que a mania, repetimos, é qual a mancia. De comum com o
Poeta, tem, o louco, um caso e um “quid”: é que ele sonha, veramente, acordado.
E ouçamos o que asserta, no “Fedro”, o fundador da Academia: “Na verdade, existem
duas espécies de delírio, um que é o resultado de doenças humanas, e o outro que
é o resultado de uma ruptura – de essência divina – com os hábitos e as suas regras.”
Como formas de hieromania, de feito, ou “delírio divino”, alcemos, em Platão, a
mania mistérica, que é doada por Dioniso, a mania divinatória, portada por Apolo,
a mania poética, inspirada por as Musas e, finalmente, a mania amorosa, por Afrodite
insuflada e deveras formada. Ao que nós acrescentamos: a escrita automática, o Tarot,
e o transe das espíritas. Que o “songe”, decerto, é “mensonge”. Se a criança é,
de feito, o antepassado do homem, se é, do indez, o pensamento selvagem, a imagem,
do Vate, é qual a magia, a filogénese se reflecte, e repete, em ontológica ontogénese.
Que o artista é, deveras, artilheiro. Que haurimos e fruímos, em António Maria Lisboa,
um novo paradigma civilizacional. E a Surrealidade, ela é, alfim, a vida verdadeira,
a vera vida da qual nós éramos à parte: não pensava, dessarte, o mítico Rimbaud?
É que a Beleza, como em Breton, ela é convulsiva – e é volitiva, apelativa, a lição
de João Belo. Se a escritura é automática, é mister, o fantástico, em estado de
transe, é o êxtase e estado ministerial. É o carme, e a canção, do ministério menestrel.
A “Littératerre”, da “Littérature”. O Mito como apanágio, e Númen, de toda a letradura.
Que é explícito, é expedito, o nosso lisboês: “No Amor tudo se passa em bases ilícitas
e Pecaminosas que é a única coisa LÍCITA e PURA que nós temos.” E aventamos, na
verve: face à multiplicação, dilatação, da humana “persona”, não deveríamos, em
vez de inconsciente, falar e parlar do Supra-Consciente? O que está, dessarte, em
baixo, como o está também no Alto, a Literatura qual expressão do preternatural.
Realçamos e alçamos, na linha de Carlyle e também de Nerval, o super-naturalismo.
Aquilo que excede, ultrapassa, e está além da natureza. Sendo, pois, o surrealismo,
aquilo que é “meta”, que é além, que está acima do real. E sendo, adrede, a Metaciência,
o Éter, o Outro, o real supra-sensível. O mesmo que era, a Metafísica, para o estreme
Estagirita. E anda, aqui, o Novalis muito perto: Poesia é sinónimo de “real absoluto”,
Poesia convoca o supra-real. Poesia, alfim, como o “alter”, Poesia qual sinal de
heterodoxia. Quero eu dizer, de alegoria. Que ao ser radical, vive o Poeta no célico
Céu, vive o Surreal em estado de Graça. Da Graça, na gnose, que é vida verdadeira.
Que é autêntica, autarca, comunicação. E se é genético o ginete, e se era, o Lisboa,
assistido por génios, o que é de facto, e de feito, o Surreal-Abjeccionismo? Ao
ser verbal dissociação, ele é, também, desinfecção moral, ele é sangria, é purga,
ele é Bertha Pappenheim. A lava, e a lição, do Josef Breuer-brasão. A cura, do amente,
através da palavra, a Psicologia, de feito, como a fala da Psique. E pedimos aqui
sonata. E pedimos aqui silêncio. E pedimos, nós ora, o re-velar, ocultação, do movimento
Supra-Real.
Pois qual herança e
aliança do Inconsciente Colectivo, o supra-real é do homem livre, do homem liberto
e portanto apaixonado: esse o desatino e eis o destino. E esse, o amante, o amente,
outrossim. Aquele que nos fala por os tópicos e tropos. Sendo, pois, o trovador,
o estorvador deveras. E sendo, o laurel, o ministério menestrel. E vejamos, no esteta,
vejamos a Poesia ligada à “catharsis”: “Acreditamos que jamais o homem será escravo
enquanto houver um só Poeta, isolado e ignorado que seja, a reclamar a si mesmo
a decisão ou indecisão magníficas.” Ou na esteira de Dostoievski: a Beleza, decerto,
como a salvação do mundo. E o livro como o livre, o anarquista supremo. A Poesia,
divisamos, impoluta, e sempre à escuta, das vozes recônditas que vêm do Ser. Por
isso nós lemos, na “Afixação Proibida”: “Aqui já ninguém busca um séquito, QUER-SE
COMPANHIA! Quer-se o Caminho lento e incendiário do Amor” – e não aventava, António
Maria Lisboa, o advento e a vinda dos Novos Amorosos? Em nosso Laboratório Mágico,
que funcionava e imanizava, nos anos oitenta, na velha e vetusta Avenida de Roma,
era a mancia, ou era a Poesia, feita, verbalmente, por todos os convivas, e era
o Pão, da campanha, partido em pequeninos. Divisava-se, aqui, a Poesia, qual autêntico
Pão da Vida. Na preclara “poiesis”, purificavam-se, em nós outros, as portas da
percepção – e o banquete iniciático se dava, não raro, no Café da “Sul-América”.
Tudo em crítica acribia. Tudo à volta, em derredor, da tertúlia, figadal, de Agostinho
Maldonado. Tal como em Lisboa, Herberto Helder, e, acima de tudo, no Eliphas Levi,
ponderosa e poderosa era, para nós, a Kabbalah cantante. Era a “Themura”, afinal,
no temor e no tremor; era notória, em Boa Nova, a “Notarikon” nodal; “Guematria”
era a “Grammaire” e também o Grimório – e tudo alado, alteado e alterado, e tudo
aflante, e falante, em Alquimia do Verbo.
PAULO JORGE BRITO E ABREU | (Portugal, 1960). Tem sido Poeta, Ensaísta, Pensador, Conferencista e, ademais, Crítico literário. Licenciado, em 1986, em Estudos Anglo-Portugueses, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Por o seu labor desenvolvido no jornal Artes & Artes, foi nomeado, numinosamente, a 30/ 11/ 1999, Sócio-Correspondente da Academia Carioca de Letras. Por seu admirável labor de intercâmbio cultural, recebe, em 2000, a Medalha Peregrino Júnior da União Brasileira de Escritores. Por o seu contributo para a Cultura Portuguesa, a 14/ 02/ 2006 é agraciado, pela Escola Secundária D. Diniz, em Lisboa, com uma insígnia selecta e a venera simbólica. Alfarrabista e numismata, dedica-se, a fundo, ao Esoterismo, à Literatura Comparada e à Santíssima Kabbalah. Livros principais: Cântico Jovem para a Tua Rebelião, Loas à Lua, O Livre e a Lavra, Duma Oração Portuguesa e, finalmente, Liber Mundi, em co-autoria com Filipe de Fiúza.
FERNANDO FREITAS FUÃO | Arquiteto, artista e ensaísta brasileiro, nascido em 1956. Começou a fazer colagens em 1975, no mesmo ano em que ingressa na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal de Pelotas (1975-81). Em 1987 vai a Barcelona cursar o doutorado na Escuela Técnica Superior de Arquitetura, desenvolve a tese Arquitetura como collage. Em 2011, publica o livro A collage como trajetória amorosa (Editora UFRGS). Possui uma série de artigos e ensaios que giram em torno a Collage, assim como textos publicados sobre alguns collagistas. Articula interlocuções da collage com a filosofia, a arquitetura, a psicologia e a educação. Desenvolveu a pesquisa A collage no Brasil, arquitetura e artes plásticas, sob o viés do surrealismo (1992-1995. CNPq). Pertenceu ao Grupo Surrealista de São Paulo, liderado por Sergio Lima e Floriano Martins durante os anos 1990. Ministrou desde então uma série de cursos e oficinas sobre collage. Mantém o blog http://mundocollage.blogspot.com/ e https://fernandofuao.blogspot.com/
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 11
Número 210 | junho de 2022
Artista convidado: Fernando Freitas Fuão (Brasil, 1956)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS
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