sexta-feira, 17 de junho de 2022

PAULO JORGE BRITO E ABREU | Poesia de António Maria Lisboa: meu louvor e a defesa do surrealismo

 


No conspecto e aspeito da Letradura, ou Literatura, portugalaica, fazer é mister um estudo e um escorço de António Maria Lisboa, à luz iluminante duma clareza, ou portuguesa, Filosofia. Tivemos, em Leonardo, uma filosofia poética; nós hemos, em Lisboa, nós hemos, em Junqueiro, nós hemos, em Pascoaes, a filosófica Poesia. E encetamos, desse modo, o excurso e o curso: aqueles que menosprezam, na terra de Ulisseia, o supra-realismo ou surrealismo, é porque nunca, meus Amigos, é porque nunca lá estiveram. Pois certamente, diremos nós: em acribia rigorosa, e portanto maravilhosa, toda a Arte, ao ser a criação, é expressão e unção duma surrealidade – e daí que pra Cinatti, “nós não somos deste mundo”. Diria pois o gaulês, diria o Rimbaud que “nós não estamos no mundo”. Cotejemos, aqui, a causa de Lisboa, com a de Mário de Sá-Carneiro: é que eles deram sua vida por a Grande Recusa, eles refusaram o “Logos” do mundo ocidental. Um pouco mais longe e diríamos mesmo: eles verrinaram, verberaram, o nome-do-Pai. E se há mito, então há morte. E se há meta, e mondar, então há mundo imundo. É que a Poesia, desde Platão, é qual excêntrica e forânea, é foragida da “polis”. E a imaginação, desde o Malebranche, é qual “a louca”, portanto, e o lixo da casa. E fora da “polis”, e contra a razão, Lisboa é Poeta insuflado, e movido, por a mirífica paixão. Ele é, etimologicamente, um “entusiasmado”, ele porta, consigo, um deus interior. O pitiatismo, d’ “Ossóptico”, uma “Operação do Sol”. E queremos, firmemente, afirmar: a identidade hegeliana entre o real e o racional está, em Lisboa, demolida e abolida. Os princípios peripatéticos da identidade, da não-contradição e do terceiro excluído perdem, aqui, a validade e valor. Se a Poesia, então, é para o segredo, vai Poesia para o degredo. Não queremos, na cita, perder a razão, nós queremos aquilo, tudo aquilo, que a razão nos faz perder. O sonho, “verbi gratia”, e o preste inconsciente. E a lavra nós sondamos. E sabemos, com Pascal, que “o coração tem razões que a razão desconhece.” Ou na linha notória, ou na linha, nitente, de Nicolas de Malebranche (1638-1715): “A consciência que temos de nós próprios apenas nos mostra uma pequena parte do nosso ser.” Pois mais do que pensarmos, segundo o razoar, nós somos é pensados por o nosso inconsciente. Quero eu dizer: ao vulgo do “statu quo”, do cousismo e do ramerraneiro opõe-se o surreal do clérigo ou do “clerc”, ou melhor, que ao anarquismo, descabelado, dum Guerra Junqueiro, Leonardo Coimbra, e do melhor Sampaio Bruno, há que aliar, ele há que ligar, o Milenarismo, ou Messianismo, dos Amigos do “abaissé”, duma fértil e feraz Cultura Portuguesa: e não vez, candente aqui, e não vês, tu, prometaico, o teléstico, os telhados, da vizinha Lisboa?

Pois seja ledo o meu lente, e não se altere o ledor: para o fautor e Autor do Surrealismo, “O Pensamento Poético é para mim o único com valor porque é o único interessado na Realidade que se nos apresenta num todo e não parcelada”; e Poético Pensamento, ele é, para o lisboês, o que era, a Ontologia, para o facundo Estagirita: se a Realidade absoluta toma aqui o nome de Surrealidade, “a Idade de Ouro Futura não é mais do que a Ressurreição Poética de Todos os Homens!”, é para a selecta, e para a colheita, um novo Pentecostes, e aqui nós sideramos, e aqui revisitamos a nossa juventa. Queremos dizer: se o Poeta abre as portas, os janelos e janelas, os burocratas só querem gabinetes separados. Não basta, para o Poeta, o divertir, mas é mister o advertir. Instruir, no santo-e-senha, e não e nanja destruir. Que o jogral é pois o jogo, e é jugo o filisteu. E se a Lucina, deveras, alucina, remembramos, outrossim, a relevância que teve, o Novalis, na Poesia portuguesa. Pois indo ao fundo, ao fundamento e ao fundamental, falar da estância portuguesa, ou surpresa, do Surrealismo, é falar, sem dolo, do poético escol de Agostinho Maldonado, da Portugalidade do Poeta João Belo: com eles, no mirante, a admiração é o pasmo e o pasmo o assombro. O assombro e o espanto, aquilo que leva os homens a filosofar. A expressar e a prensar. A prender, e a exprimir, a ex-centricidade do Ser. E por isso, portanto, a compreender. E a tender e a pender, e a apertar portanto a Musa de encontro ao coração. Que a famosíssima frase de Rimbaud (“o Eu é um Outro”), ajusta-se, creio eu, à fenomenologia da Psique: “o Inconsciente”, para Lacan, “é o discurso do Outro”. “O inconsciente”, para o estruturalista, ele “é estruturado como uma linguagem”, “le ça parle”, por isso, para o mesmo Lacan. E adrede, outrossim, ele há que assertar: o Inconsciente, pessoal, ele se alaga ou se alarga por a oblação, proposição, do Inconsciente Colectivo. Que é representação colectiva, que é conjunto, ou junção, dos arquétipos todos. Dos arquivos e arcanos, daquilo a que chamava, o Freud, “resíduos arcaicos”. Sob esse ditame, o Eu, dessarte, é o Nós, a Arte deixa, veramente, de ser individual. E aqui não há negá-lo, Amigo ledor: a escrita automática, o sonho, e as Ciências Ocultas, desempenham, em Lisboa, o seguinte papel: eles são meios de alargamento, e multiplicação, do campo cognitivo, eles dilatam, alongam, a personalidade. Não era isso que acontecia, sobremaneira, com Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa e Teixeira de Pascoaes? Que em França, o Autor primeiro, ou primordial, a utilizar a expressão de “escrita automática” foi Pierre Janet, o Autor e promotor de “O Automatismo Psicológico” - e está, o tentâmen, em perfeita sintonia com William James, o americano, o filósofo pragmatista. Artífice, em França, da segunda ou sagrada psiquiatria dinâmica, Janet foi fazedor, e o feitor, da corrente e da escola da análise psicológica. Quanto, ademais, a “O Automatismo Psicológico”: na Universidade de Paris, em 1889, essa foi, de Janet, a tese de doutoramento em Filosofia. Esse automatismo, ou estado alterativo, é o funcionamento espontâneo da vida psicológica, fora do controlo da consciência e da vontade, é a estância, e o estudo, dos estados hipnóides. Sublinhemos, por isso, e alembremos: Breton define, adrede, o Surrealismo como um “automatismo psíquico puro”, ou melhor, como “um certo automatismo psíquico que corresponde bastante bem ao estado de sonho”. Pois dormir é morrer, e morrer, desse modo, é ser Iniciado. Dormir é mergulhar no útero, e no mar, do Mundo das Ideias. Ou melhor: Morfeu enflora, e enforma, o mítico Orfeu. E ora vamos ovante avante: quer em James, quer em Freud, o vígil consciente é apenas uma gota, uma ínfima parcela, do vasto oceano que é o mundo inconsciente. Façamos coro, nós ora, com o feraz André Breton: a Histeria, por a chamada de Charcot, foi a grande “alêtheia”, a maior fulgurância do século XIX. No atinente à Psicanálise, a Histeria, de feito, é o começo da história. Não aventado tinha já, o Sigmund Freud, que a Histeria não é mais que a deformação de uma Obra de Arte? Uma Obra de Arte, por isso mesmo, em caricatura, a loucura aliada à poética Lira.

Hemos visto, e divisado, que a Luz se transmite, ou se transporta, de boca a ouvido. No Inverno de 1902-1903, Carl Gustav Jung (1875-1961), que laborava, em Zurique, no Hospital Burgholzli, ele recebe, de Eugen Bleuler (1857-1939) uma licença de estudos: era mister que o psiquiatra assistisse, no Collège de France, a uma série de conferências, seminários, sobre a histérica paixão – e quem os proferia, lautamente, era o loquaz, o assisado, Pierre Janet. E no que concerne, aqui mesmo, à nossa labuta: a tese de doutoramento do simpático Jung, em 1902, se nominava, numinosa, “Sobre a Psicologia e a Patologia dos Fenómenos Ditos Ocultos” - e ela se baseava, ou fundamentava, na espírita, assombrada, Hélène Preiswerk; ela era a prima, ou primaz, do Carl Gustav Jung – e eis a prova, e as primícias, de nosso progredimento. E é que lê, o intelecto, no arteiro interior. Saudamos, na sorte, o solerte Estagirita: não há deveras grande Génio que não contenha, em si, um grão de loucura. Pois vem a cita, aqui, a talho de foice: para Elisabeth Roudinesco e o grande Michel Plon, André Breton era “psiquiatra de formação e médico interno de Joseph Babinski”: isto o verídico, isto o real e esta a verdade. Sendo, na Salpêtrière, o Joseph Babinski, o aluno preferido do magíster Charcot. É que anelava, o Breton, liberar, o ser humano, do presídio, golilha, do quotidiano. Acabar, de vez, com o Superego. Com o peco, e o seco, hospital psiquiátrico. E substituir, a realidade e o dever, por o princípio do prazer. Que em todo o polícia, insiste, como duplo, o pelotiqueiro, em todo o psiquiatra existe, latente, um selecto saltimbanco; se o Sol é monárquico, é lírica a zoina, é ácrata a “Luna”. Subscrevemos, inteiramente, o Carl Gustav Jung: é que o homem civilizado inda arrasta, atrás de si, a cauda dum sáurio. E se o amente resiste nos iatras da Psique, então, segundo o Lisboa, “a vida SURREAL, entenda-se, não é mais do que a mesma e única Realidade transfigurada pela Magia, pelo Desejo, pela Vontade, pelo Amor, pela Liberdade, pelo conhecimento sábio, pela POESIA!” Poesia para laborar, pra liberar, pra transmudar o mundo imundo. Nesta premente e urgente Poetosophia, subsistem, pois existem, três palavras-chave: a Magia, o Amor e a Liberdade, a Liberdade, aremos ora, até ao “quid” libertário. A Magia, o Magnetismo, a Ciência da Psique até ao “Liber Pater”. E libando nós alçamos: a hipnose, o sono lúcido, o Abade, luso-goês, José Custódio de Faria. E prossigamos, com Alma, no viático ou viagem: se Dioniso é o deus da loucura, ele é,


outrossim, o deus das Belas-Artes; se ele é o divo da fecundidade, ou vegetação, é porque a térrea produção, segundo Alain Gheerbrant e Jean Chevalier, sustenta a fonte e a fontana em profundas infernais. Ou aduzindo, e dizendo doutro jeito: no início de todas as teogonias, está o vago e as trevas do Caos; se queres portar, ou transportar, a luz da criação, é do Caos e do magma que deves partir. Buscando, sempre e sempre, a Liberália, os multiplicadores da personalidade. E transmudando pois o Caos em tópica e típica Metaciência. “Se a crítica é a forma da nossa permanência, nós não somos assim contra a ordem, o trabalho, o progresso, a família, a pátria, o conhecimento estabelecido (religioso, filosófico, científico) mas que na e pela Liberdade, Amor e Conhecimento que lhes preside preferimos estes.” Não se trata, aqui, de arrasar a cidade, trata-se, em Lisboa, de “INVENTAR O MUNDO”! À guisa, na quermesse, de Hermes, o três vezes Grande, à guisa de Heráclito, à guisa, outrossim, do médico Paracelso. Paracelso, o grande Mago, o Metacientista, Paracelso, o excelso e sonhador especializado; o Poeta liberto, “O POETA DOS ASTROS”, digamo-lo ora.

Que o Astro é o caminho do holístico estro. Do estro que enflora o estrogénio da estrela. Pois pende e tende, o movimento Surrealista, a ultrapassar o divórcio, divórcio deprimente, entre o sonho e o real. Aduz e diz, o Breton, de facto e de feito: “Creio na resolução futura destes dois estados, na aparência tão contraditórios, que são o sonho e a realidade, numa espécie de realidade absoluta, de surrealidade, se assim se pode dizer.” Quer ele dizer: aquilo que está no alto e aquilo que está em baixo deixam de ser apercebidos contraditoriamente. E nós falamos e aflamos: pra Maria Lisboa, como, também, para António Barahona e António Salvado, o poético ápice ele é, portanto, o “rêve éveillé”. Sendo o “sonho desperto dirigido” um método psicoterapêutico aventado, ou inventado, por o Robert Desoille (1890-1966). Sendo a vida e os sonhos as laudas e folhas de um mesmo, dessarte, e único livro. No paradigma, então, um parentético excurso: se escrevem, colunáveis, livros limitados, homens como o Lisboa, e o Mário Cesariny, eles revelam, e redigem, o Livro do Mundo. E a propósito dos sonhos, aqui eu trago à colação o genésico “Génesis”, e eis a escala, e eis a escola, e eis a escada de Jacob. Ouçamos o que asserta, a talho de foice, o feitor, o Autor, o promotor do “Ossóptico”: “Jarry sabe que o sonho é este que vivemos da forma mais sábia: dormir acordado, estar acordado quando dorme, viver responsavelmente o sonho, não desculpar, não se desculpar, não ter razões nem dar razões, e acontecer com a precisão sucessiva do que acontece é o traço-de-união.” Magnífica lição, magna profissão da poética fé. Sendo o sonho, pra Schopenhauer, uma pequena loucura, a loucura, de feito, um grado e grande sonho. Ou melhor: sendo o sonho, decerto, uma alucinação. Uma obra de Arte, ou mágica lanterna, cuja estrutura se revela, nos tropos, seguindo as metáforas e segundo as metonímias. Que a mania, repetimos, é qual a mancia. De comum com o Poeta, tem, o louco, um caso e um “quid”: é que ele sonha, veramente, acordado. E ouçamos o que asserta, no “Fedro”, o fundador da Academia: “Na verdade, existem duas espécies de delírio, um que é o resultado de doenças humanas, e o outro que é o resultado de uma ruptura – de essência divina – com os hábitos e as suas regras.” Como formas de hieromania, de feito, ou “delírio divino”, alcemos, em Platão, a mania mistérica, que é doada por Dioniso, a mania divinatória, portada por Apolo, a mania poética, inspirada por as Musas e, finalmente, a mania amorosa, por Afrodite insuflada e deveras formada. Ao que nós acrescentamos: a escrita automática, o Tarot, e o transe das espíritas. Que o “songe”, decerto, é “mensonge”. Se a criança é, de feito, o antepassado do homem, se é, do indez, o pensamento selvagem, a imagem, do Vate, é qual a magia, a filogénese se reflecte, e repete, em ontológica ontogénese. Que o artista é, deveras, artilheiro. Que haurimos e fruímos, em António Maria Lisboa, um novo paradigma civilizacional. E a Surrealidade, ela é, alfim, a vida verdadeira, a vera vida da qual nós éramos à parte: não pensava, dessarte, o mítico Rimbaud? É que a Beleza, como em Breton, ela é convulsiva – e é volitiva, apelativa, a lição de João Belo. Se a escritura é automática, é mister, o fantástico, em estado de transe, é o êxtase e estado ministerial. É o carme, e a canção, do ministério menestrel. A “Littératerre”, da “Littérature”. O Mito como apanágio, e Númen, de toda a letradura. Que é explícito, é expedito, o nosso lisboês: “No Amor tudo se passa em bases ilícitas e Pecaminosas que é a única coisa LÍCITA e PURA que nós temos.” E aventamos, na verve: face à multiplicação, dilatação, da humana “persona”, não deveríamos, em vez de inconsciente, falar e parlar do Supra-Consciente? O que está, dessarte, em baixo, como o está também no Alto, a Literatura qual expressão do preternatural. Realçamos e alçamos, na linha de Carlyle e também de Nerval, o super-naturalismo. Aquilo que excede, ultrapassa, e está além da natureza. Sendo, pois, o surrealismo, aquilo que é “meta”, que é além, que está acima do real. E sendo, adrede, a Metaciência, o Éter, o Outro, o real supra-sensível. O mesmo que era, a Metafísica, para o estreme Estagirita. E anda, aqui, o Novalis muito perto: Poesia é sinónimo de “real absoluto”, Poesia convoca o supra-real. Poesia, alfim, como o “alter”, Poesia qual sinal de heterodoxia. Quero eu dizer, de alegoria. Que ao ser radical, vive o Poeta no célico Céu, vive o Surreal em estado de Graça. Da Graça, na gnose, que é vida verdadeira. Que é autêntica, autarca, comunicação. E se é genético o ginete, e se era, o Lisboa, assistido por génios, o que é de facto, e de feito, o Surreal-Abjeccionismo? Ao ser verbal dissociação, ele é, também, desinfecção moral, ele é sangria, é purga, ele é Bertha Pappenheim. A lava, e a lição, do Josef Breuer-brasão. A cura, do amente, através da palavra, a Psicologia, de feito, como a fala da Psique. E pedimos aqui sonata. E pedimos aqui silêncio. E pedimos, nós ora, o re-velar, ocultação, do movimento Supra-Real.


E falámos, aqui, do Surreal-Abjeccionismo. Se o abjecto, portanto, é ejecto, o Poeta moderno é dejectado, enjeitado, arremessado no mundo. E se o escrever é escreviver, o exprimir, dessarte, é qual o espremer – e temos em Lisboa, nós temos, no lance, Poesia como a forma de evacuação. Concordamos, caroalmente, com Cândido Franco: essa abjecção é deveras objecção de consciência. É qual volver, a volição, da lúcida revolta. O liberal Luiz Pacheco, o vocativo, o valorar, do rebelde e do revel. Um pouco como acontecia, há quarenta e tal anos, no café da “Sul-América”. Que a práxis freudiana da associação livre, o acaso objectivo e a Língua das Aves nos conduziam, a nós todos da tertúlia de Agostinho Maldonado, a um feraz alargamento do campo cognitivo; por isso mesmo, cabulávamos, nós éramos cavaleiros, e os relatos de sonhos eram Fonte Cabalina. Se a isso somarmos, na literacia, o cadáver esquisito e o amor por a letra, compreenderemos, nós con-viventes, que o Freud é linguista e que o Freud é letrado. Que ele veio, no brilho, que ele veio inaugurar a clínica do estilo. O frutescer, o encontrar, o trovar e o “trouver”. Pois tal como o Lisboa, e como o Lautréamont, anelávamos, nós outros: a Poesia, preclara, e feita por todos. A Palavra partilhada, o distribuir, a Palavra, por as nossas entranhas. Ou no escólio, aqui, do grande Herberto Helder: a Poesia, afinal, contra todos praticada, a revolta do in-verso assumida até às fezes. O Sol, de feito, na noute, e a Lua nos dias: e essa a lição da Natália Correia. O subverter e o verter, o fazer portanto o pino e como o acrobata. O corso carnavalesco e o “débordement”, o “ironismo”, dessarte, como anagrama de “onirismo”. Ou melhor, como em Pessoa e Kierkegaard, a loucura, da letra, assumida até à cura. Lisboa, como o Pessoa, ele é teléstico, teurgo, ele é psicodramaturgo. A escrita, para ele, é expansão da consciência. Um meio de atingir, na penumbra, o “dark side of the Moon”, o subconsciente e o ego subliminar. Que é nas parábolas, perenes, do Metacientista, uma “Negra Actividade Poética que nos leva a criar entre o Indivíduo e o Cosmos um corredor livre e por ele um movimento incessante de enriquecimento comum.” Dilecto, de facto, e perfeito. E como acontecia no Poeta João Belo, tudo era Teatro, magnete, e mágico-simbólico – e tu não sentes, ó ledor, que a platónica mania era afinal a mancia???

Pois qual herança e aliança do Inconsciente Colectivo, o supra-real é do homem livre, do homem liberto e portanto apaixonado: esse o desatino e eis o destino. E esse, o amante, o amente, outrossim. Aquele que nos fala por os tópicos e tropos. Sendo, pois, o trovador, o estorvador deveras. E sendo, o laurel, o ministério menestrel. E vejamos, no esteta, vejamos a Poesia ligada à “catharsis”: “Acreditamos que jamais o homem será escravo enquanto houver um só Poeta, isolado e ignorado que seja, a reclamar a si mesmo a decisão ou indecisão magníficas.” Ou na esteira de Dostoievski: a Beleza, decerto, como a salvação do mundo. E o livro como o livre, o anarquista supremo. A Poesia, divisamos, impoluta, e sempre à escuta, das vozes recônditas que vêm do Ser. Por isso nós lemos, na “Afixação Proibida”: “Aqui já ninguém busca um séquito, QUER-SE COMPANHIA! Quer-se o Caminho lento e incendiário do Amor” – e não aventava, António Maria Lisboa, o advento e a vinda dos Novos Amorosos? Em nosso Laboratório Mágico, que funcionava e imanizava, nos anos oitenta, na velha e vetusta Avenida de Roma, era a mancia, ou era a Poesia, feita, verbalmente, por todos os convivas, e era o Pão, da campanha, partido em pequeninos. Divisava-se, aqui, a Poesia, qual autêntico Pão da Vida. Na preclara “poiesis”, purificavam-se, em nós outros, as portas da percepção – e o banquete iniciático se dava, não raro, no Café da “Sul-América”. Tudo em crítica acribia. Tudo à volta, em derredor, da tertúlia, figadal, de Agostinho Maldonado. Tal como em Lisboa, Herberto Helder, e, acima de tudo, no Eliphas Levi, ponderosa e poderosa era, para nós, a Kabbalah cantante. Era a “Themura”, afinal, no temor e no tremor; era notória, em Boa Nova, a “Notarikon” nodal; “Guematria” era a “Grammaire” e também o Grimório – e tudo alado, alteado e alterado, e tudo aflante, e falante, em Alquimia do Verbo.


E eis a prova probante do que acabamos de afirmar: no seu poema “Recusa”, do “Ossóptico”, o Autor diz que ele é “Zanoni de Bulwer-Lytton”, sendo, o “Zanoni”, um romance ocultista do século XIX. E sendo o romancista, Edward George Bulwer-Lytton (1803-1873), além de Escritor, figura de proa, ou de peso, da “Societas Rosacruciana in Anglia”. E como aconteceu com Sarmento de Beires, voam juntas e conjuntas, as aves, liliais, da mesma plumagem. Quero eu, aqui, apalavrar: entre Março e Abril de 1949, está, Maria Lisboa, em Paris. E é na Rua Georges Sorel, da cidade parisina, que visita, Lisboa, José Manuel Sarmento de Beires (1892-1974), famoso Autor, e o feitor, de “A Cidade do Sol” (1926). Sendo o mesmo o motor de um livro de versos, “Sinfonia de Vento” (1924). E sendo o subtítulo de “A Cidade do Sol”: o “romance metapsíquico”. Que em missiva escrita de Paris, em Março, deveras, de 1949, Lisboa assim razoa, ele reza destarte: “A grande notícia é talvez a minha iniciação Mágica-Espírita-ocultista-cabalística-ista-ista-ista-ista (…)”. Revertendo a Sarmento, ele fez, em 1920, o primeiro voo nocturno da aviação portuguesa. Ele participou, em 1928 e em 1931, em duas tentativas de derrube, ou derribar, da ditadura militar. Ou melhor: o Sarmento que foi, em verídica verdade, um dos primeiros Irmãos, em Portugal, da Sociedade Teosófica, criada, entre nós, a 05/ 09/ 1921. Fundada originariamente, em Nova Iorque, a 07/ 09/1875, por o Coronel Henry Steel Olcott (1832-1907) e Helena Petrovna Blavatsky (1831-1891) com estes três desiderandos, escopos e objectivos: formar, forte e coeso, um núcleo da Fraternidade universal, sem distinção de sexo, raça, crença, casta ou cor. Fomentar, em segundo lugar, o estudo comparado das religiões, filosofias e ciências. E em sagrado, secreto e terceiro lugar: desenvolver, o ampliar e aumentar os poderes divinos latentes no homem. Mas antes de serem declarados estes três principais objectivos, o escopo da Sociedade foi, no início, a investigação científica dos fenómenos ditos “espíritas”. E fazendo, agora mesmo, um pouco de História: “Teosofia” vem do grego “theosophia” e quer dizer: “Religião da Sabedoria” ou “Sabedoria divina”. Os teósofos, analogistas ou Filaleteus (ou “amigos da Verdade”), vão buscar a sua origem à Escola Neoplatónica de Alexandria, forjada e formada, nessa cidade, por o grado, o grandioso Ammonio Saccas (c. 175-242). Sublinhemos e alcemos, desse escol, os Numes e os nomes de Porfírio (234-305), Plotino (205-270), e de Jâmblico (c. 250-c. 330) e Orígenes (c. 185-253). E foram teosofistas, com todas as veras, Swedenborg (1688-1772), Martines de Pasqually (1727-1774) e Louis Claude de Saint-Martin (1743-1803). Teosofista foi o Schelling (1775-1854), e o foram, entre outros, Fulcanelli (1877-1932), Papus (1865-1916) e também o Robert Fludd (1574-1637). Como o foram, entre nós, o António Telmo (1927-2010), Sampaio Bruno (1857-1915) e o Visconde de Figanière (1827-1908). E revertendo, no signo, a Sarmento de Beires: sempre em busca, o Irmão, da Palavra Perdida, foi iniciado em 1930 na Maçonaria, na Loja Paz, com o simbólico nome de Bartolomeu Dias. Sendo sobremaneira, “A Cidade do Sol”, um país imaginário, uma utópica plaga, insuflada, ou movida, por as ideias de Tolstoi (1828-1910) de Rudolf Steiner (1861-1925) e, além disso, de Helena Blavatsky. A “polis” da Utopia, a plaga de Heliópolis. “Personae” conduzidas, e portanto, seduzidas, por Helena Petrovna Blavatsky: Fernando Pessoa (1888-1935), Butler Yeats (1865-1939) e, ademais, o Délio Nobre Santos (1912-1977). A Pansofia, a Teosofia, a teléstica Saudade. A Poesia, sublinhamos, feita por todos. O estupendo e o estupor, a imagem cultivada como o estupefaciente. O “ek-stático” e o estro, a dinamização da dinamitação. O jogo das imagens, o “ludus”, deveras, da Mitomania. E nas metáforas e Mitos, a mente, mendace, que ensina a mentir. Ou dando a voz, e a vez, ao solerte Pedro Oom: “Que pode fazer um homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos?” Essa, curial, a grande questão. Então lancemos, alcemos, ouçamos, dessarte, Maria Lisboa: “Politicamente a Metaciência ao pronunciar-se dirá que a verdadeira democracia só será possível quando todos os homens forem poetas. Mas a isso não chama ela democracia – mas ANARQUIA!” A anarquia então de Antero, do Gomes Leal e do Percy Bysshe Shelley. E se a noute, desse modo, é o mundo às avessas, a anarquia de Lisboa enfrenta o monarca, o polícia, o patriarca e patrão. Que é mister, para o Poeta, “gritar da janela até que a vizinha ponha as mamas de fora”. O semear a confusão, o atear dessarte o Fogo em sítios sitiados. E é o grado e é o Grade, são “Os Sítios Sitiados” da Luiza Neto Jorge. Pois lavorando, aliás, as lavaredas, a Metaciência do nosso Lisboa é qual projecto iniciático, é tentativa de adunar e unir, a nossa Poesia, às Ciências do Culto e Ciências Ocultas: e tu não sentes, aqui, a veraz Poesia Oculta? O idealismo, mágico, do nauta Novalis? Da Epistolografia, ou Teoria, do Metacientista, inferimos, outrossim: a Kabbalah, o Espiritismo e o analógico jogo, eles são, pra Lisboa, qual sabor e o saber. A Poesia, que se come, o gostar, alfim, da gustação. A Palas Atena, o palato, e por isso o paladar. E sendo, o palavrar, o aratório e amatório, o edível e edule. Na esteira de Yeats, de Herberto e Pessoa, a Poesia, no lance, qual Magia operatória. E prestes, agora, a findar, aquilo que se passou entre o Poeta do “Ossóptico” e José Manuel Sarmento de Beires foi o mesmo que se passou entre o Lisboa e o Cesariny – e nós falamos, aqui, da transferência, do “rapport” ou “transfert”. E quanto a nós outros, eduzimos, portanto, e aduzimos: praticamos, solerte, a Metaciência, desde os anos oitenta do século XX – e eu privava, provençal, com a Letra litoral do Luiz Pacheco leve, e em juventa me juntei às hostes literárias de Fernando Grade, Alexandre O’Neill e António Barahona. Este último, quanto a nós, criticá-lo-emos, em acribia, seguindo o pensamento, e o comento, do fértil, facundo e feraz Criacionismo. Nós faremos, com o Lisboa, o que fez, António Quadros, com a Obra do Pessoa. O aplanar, o erigir, e o preste elucidar. Enquanto isso, aguardamos, em Cesariny, a laboração, circulação, das metas e dos Mitos, o emergir e o surdir do Surreal maravilhoso. Não será, por isso mesmo, que nós poremos, a meia haste, a bandeira e emblema da imaginação. E também da comunhão??? A respiga, e a resposta, a daremos, alfim: já está preste o primaz, já está pronta a Primavera para o próximo jardim do século XXI. 

 

 


PAULO JORGE BRITO E ABREU | (Portugal, 1960). Tem sido Poeta, Ensaísta, Pensador, Conferencista e, ademais, Crítico literário. Licenciado, em 1986, em Estudos Anglo-Portugueses, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Por o seu labor desenvolvido no jornal Artes & Artes, foi nomeado, numinosamente, a 30/ 11/ 1999, Sócio-Correspondente da Academia Carioca de Letras. Por seu admirável labor de intercâmbio cultural, recebe, em 2000, a Medalha Peregrino Júnior da União Brasileira de Escritores. Por o seu contributo para a Cultura Portuguesa, a 14/ 02/ 2006 é agraciado, pela Escola Secundária D. Diniz, em Lisboa, com uma insígnia selecta e a venera simbólica. Alfarrabista e numismata, dedica-se, a fundo, ao Esoterismo, à Literatura Comparada e à Santíssima Kabbalah. Livros principais: Cântico Jovem para a Tua Rebelião, Loas à Lua, O Livre e a Lavra, Duma Oração Portuguesa e, finalmente, Liber Mundi, em co-autoria com Filipe de Fiúza.

 

 


FERNANDO FREITAS FUÃO | Arquiteto, artista e ensaísta b
rasileiro, nascido em 1956. Começou a fazer colagens em 1975, no mesmo ano em que ingressa na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal de Pelotas (1975-81). Em 1987 vai a Barcelona cursar o doutorado na Escuela Técnica Superior de Arquitetura, desenvolve a tese Arquitetura como collage. Em 2011, publica o livro A collage como trajetória amorosa (Editora UFRGS). Possui uma série de artigos e ensaios que giram em torno a Collage, assim como textos publicados sobre alguns collagistas. Articula interlocuções da collage com a filosofia, a arquitetura, a psicologia e a educação. Desenvolveu a pesquisa A collage no Brasil, arquitetura e artes plásticas, sob o viés do surrealismo (1992-1995. CNPq). Pertenceu ao Grupo Surrealista de São Paulo, liderado por Sergio Lima e Floriano Martins durante os anos 1990. Ministrou desde então uma série de cursos e oficinas sobre collage. Mantém o blog http://mundocollage.blogspot.com/ e https://fernandofuao.blogspot.com/

 



Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 11

Número 210 | junho de 2022

Artista convidado: Fernando Freitas Fuão (Brasil, 1956)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS

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