segunda-feira, 25 de julho de 2022

FLORIANO MARTINS | Jorge Camacho e a evocação dos mundos subterrâneos

 


O encontro de Jorge Camacho (1934-2011) com André Breton foi decisivo em duplo sentido, o de abertura do cubano para o riquíssimo ambiente surrealista e para o francês a descoberta de um artista total – poeta, pintor, gravador, designer, fotógrafo –, marcado por um espírito apaixonado e íntegro. O próprio Camacho confessa que o encontro, que se deu em 1959, graças ao amigo comum e escultor cubano Agustín Cárdenas, representou o início de uma nova vida artística e intelectual. A partir daí, aceito o convite a participar do grupo surrealista, se descortina toda uma agenda de maravilhas, que inclui exposições e participações em revistas e livros, dentre eles o seletivo Le surréalisme et la peinture (1965), de Breton. Inteiramente à vontade em sua vida nova, Camacho descobre um mundo singular e profundo envolvendo alquimia e esoterismo, assim como as leituras de Sade, Georges Bataille e Oskar Panizza, compreendendo múltiplo universo que mesclava erotismo e estudos sobre alucinações, o que acentuou a singularidade de uma poética que desde o princípio – tanto na pintura como na poesia – apontava na direção de uma evocação dos mundos subterrâneos.

Em uma entrevista que lhe fez Carmen Elías, em 2007, Jorge Camacho reflete sobre sua relação com o Surrealismo:

 

O surrealismo é uma forma de conceber o mundo. Uma maneira também de vivê-lo e interpretá-lo. Surrealista nasce, não se torna surrealista. É a busca incessante de liberdade, amor e poesia. Não é uma filosofia, nem uma religião, nem uma seita, mas muito pelo contrário. Nem é uma escola pictórica, nem uma cátedra de literatura, nem uma associação cultural. Sua principal vocação é a abertura para o maravilhoso, um olhar permanente para o mundo dos sonhos e do subconsciente. Uma caminhada constante pelos caminhos da rebeldia e do humor… negro.

[…]

Já disse várias vezes que um dos meus desejos quando cheguei em Paris era conhecer André Breton. Já em Cuba eu estava ciente de suas atividades como um dos principais fundadores do Movimento Surrealista. Comecei a conhecer as obras de artistas como Miró, Tanguy, Ernst, Lam e Matta na década de 1950 e percebi a importância desse grupo criativo, que não era apenas pictórico, mas também poético; dele participaram poetas como Éluard, Péret, Arp e Breton. Este último foi um dos espíritos mais curiosos do século XX; buscador incansável do invulgarmente belo, descobridor de mundos imaginários e incentivador de grandes talentos. Foi, portanto, para mim uma grande emoção quando, depois de visitar meu ateliê parisiense em 1961, ele me convidou para participar das atividades do grupo e acolheu meu trabalho de coração. Isso me confirmou no caminho criativo que havia escolhido.

[…]

O acaso desempenha um papel muito importante na criação pictórica e poética do Surrealismo. Muitos artistas o utilizaram e está intimamente relacionado ao automatismo que Breton disse em seu Primeiro Manifesto de 1924: O surrealismo é um puro automatismo psíquico através do qual nos propomos a expressar, verbalmente ou por escrito, o funcionamento real do pensamento. Pintores como Matta, Masson e Michaux, entre outros, fizeram do automatismo um mecanismo fundamental. Outros, como Miró, Tanguy e Dalí, o controlavam e se submetiam aos seus sistemas criativos. Prefiro pertencer a esta família de criadores. Por outro lado, Matta insistiu muito para que o pintor executasse manchas que depois deveriam ser interpretadas, dando origem a novas imagens pictóricas. Ultimamente tenho usado essa experiência em uma série de pinturas e desenhos em papel.

[…]


A ideia de pintar uma série de quadros relacionados a um tema previamente decidido sempre me interessou muito. Esta ideia está muitas vezes relacionada com a escrita. Minha primeira exposição sobre um tema foi em Paris, em 1962, baseada na leitura do livro blasfemo e anticlerical de Oskar Panizza, A Imaculada Conceição dos Papas. Então Breton teve a iniciativa de registrar citações de textos de Rimbaud, ​​Lautréamont, Picabia, Artaud etc. nas paredes da sala de exposições e em pequenos folhetos que foram distribuídos entre os visitantes da exposição. Mais tarde fiz minhas pinturas sobre a obra de Raymond Roussel, Impressões da África, ​​em 1967. Outros temas me acompanharam em meu trabalho pictórico. É indiscutível que a escolha de um tema faz com que o trabalho realizado tome rumos diferentes e constitui uma fonte de inspiração inovadora que pode evitar uma possível monotonia criativa.

 

Reinaldo Arenas disse certa vez que na pintura de Jorge Camacho encontramos toda essa desolação mágica do trópico, e a situa, na companhia de dois outros cubanos, José Lezama Lima e Virgilio Piñera, como uma tríade maior que soube adentrar os mistérios da intempérie e do frio cortante da região. Ao compará-lo a Lezama Lima, observa: A noite insular de Lezama, esses jardins invisíveis, mais previstos que desfrutados, mais intuídos que saboreados, mais inaugurais que certos e, portanto, mais certos. Essa estranha sensação que chega, afogando-os: o desejo de transgredir céus e paisagens, regulamentos e hecatombes, postulados e slogans. Tudo isso também foi capturado pelo pintor.

O mesmo Camacho que em um provérbio lancinante nos diz: Uma gravata vegetal / faca de nuvens, em cujo poema “Feito”, traduz o que Arenas evoca como esse frio cortante que, banhados em suor, nos calcina, o frio dos trópicos:

 

Eu me conserto

ao amanhecer.

 

Garras, palma de fuligem

de meu pescoço soldado.

 

Quando acidália segue a estrela

Fiação

Minha espinha de aço

Veste-se como uma dançarina melodiosa.

 

Cara a cara,

Fúria cortante da avenca.

 

Frágil como o banho.

 

E insisto ainda neste outro fabuloso provérbio: “lábio faminto não tem clareira”, o que dá a sua poesia o mesmo tom cortante, repleto de um humor enigmático, como o que encontramos em sua pintura.


Um capítulo da biografia de Jorge Camacho, sempre ao lado de sua companheira, Margarita Camacho, diz respeito à última viagem do casal a Cuba, em 1957, por ocasião de sua participação no Salão de Maio de Paris em Havana, juntamente com Max Ernst, Wifredo Lam, Pablo Picasso, dentre outros. Na ocasião conhece o escritor Reinaldo Arenas, vítima de perseguição política. Jorge e Margarita tomam a decisão de retirar de Cuba alguns manuscritos de Arenas, graças ao que o escritor se tornou conhecido fora do cenário repressivo de seu país. Anos depois, Camacho envia uma carta a Fidel Castro, não sem, ao mesmo tempo, tratar de torná-la pública, onde condena a repressão e exige justiça para o povo cubano. A única resposta obtida foi o imediato desaparecimento de seus quadros das salas do Museu Nacional de Belas Artes de Havana. Há poucos anos, em afortunado contato que tive com sua viúva, Margarita, recebi diversos catálogos de exposições, além do precioso volume com sua poesia: L’arbre (1968).

Certa vez localizei na Internet uma entrevista a Jorge Camacho realizada por Fernando Martín Martín, em uma revista intitulada Laboratorio de Arte # 14, 2001, sem maiores dados, inclusive sobre seu autor. Consegui seu e-mail e lhe escrevi, porém não houve resposta. Na entrevista, que continha 12 perguntas, Camacho fala acerca de sua atração inicial pelo Surrealismo, assim como as afinidades estéticas, amizades, colaborações e até mesmo a vigência do movimento. Reproduzo aqui algumas passagens:

 

O surrealismo me revelou um mundo profundamente imaginativo, perscrutando o subconsciente; revelador de sonhos e, o que é mais importante, uma busca constante pela liberdade criativa através do automatismo, tanto poético quanto pictórico. Amor, Liberdade, Poesia, são os três postulados fundamentais do Surrealismo. Ideias cheias de atração magnética e com as quais me identifico.

[…]

Acho que o Surrealismo, por sua própria natureza, é atemporal e seus postulados foram e continuam sendo atuais. Prefiro dizer que é o surrealismo que questiona nosso tempo… da mesma forma que questionou a sociedade francesa em 1924, quando Breton escreveu seu primeiro manifesto, dando estrutura à ideia surrealista; e continuará a questionar as sociedades futuras…

O surrealismo é um estado de rebelião contra a realidade, pode-se dizer: você se torna um artista, mas nasce surrealista.

[…]


Os surrealistas deram grande importância às publicações, incluindo poetas e pintores, criando verdadeiras obras de arte bibliófilas. De minha parte, colaborei em várias edições com poetas que foram e são, em grande medida, grandes amigos. É indiscutível que cada colaboração representa um enriquecimento para o trabalho de um pintor. Cada texto ou poema nos confronta com diferentes imagens criativas que influenciam e estimulam nossa criação. O importante para mim é que a obra do poeta, que ilustro, corresponda à minha sensibilidade e que eu a admire profundamente. Atualmente, estou trabalhando, não como ilustrador, mas como tradutor, na obra poética do grande poeta haitiano Magloire Saint-Aude, traduzida para o espanhol pela primeira vez. Este fato constitui mais uma forma de colaboração, que tem sido uma grande experiência para mim. Esta publicação incluirá uma ilustração do pintor Wilfredo Lam e será publicada em edição bilíngue pelo Conselho Provincial de Huelva.

 

Essa atração magnética a que ele se refere é claramente identificável em sua obra, poética e plástica, com aquele ímpeto de uma transgressão de valores, a busca de um maravilhoso que se traduz na voragem aforística, o que por vezes nos leva a Georges Schehadé: Aquele que sonha se mistura com o ar, pelo modo como Camacho encontra os fios de identificação de uma realidade outra em situações díspares, aceita a observação de Louis Aragon, em seu Tratado de estilo (1928), de que o pano de fundo de um texto surrealista é extremamente importante, pois é o que lhe confere seu inestimável caráter de revelação. A chave dessa escala de maravilha encontramos no interior desse belíssimo poema:

 

POTE DE MOUSSE

 

Como um espelho de veludo

Dividido com golpes de reflexões

A mousse traça o brilho

Do gato-lanterna.

 

Aqui estão seus mundos subterrâneos, como Jorge Camacho abre as cortinas do tempo, a matéria proverbial de suas árvores que dançam sobre a linha de um horizonte do qual nos é impossível escapar.

 

 


FLORIANO MARTINS | Poeta, editor, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo), e dirigiu a coleção “O amor pelas palavras” (2017-2021), parceria, de circulação exclusiva pela Amazon, entre ARC Edições e Editora Cintra. A partir de 2022 a coleção, embora mantendo seu nome, passa a ser coproduzida por ARC Edições e a revista Acrobata, destinada então à veiculação gratuita de livros em formato pdf. Curador dos projetos Atlas Lírico da América Hispânica, da revista Acrobata, e Conexão Hispânica, da Agulha Revista de Cultura.

 

 


HÉLIO ROLA | (Brasil, 1936). Pintor, desenhista, escultor, gravador. Estudou na Sociedade Cearense de Artes Plásticas em 1949. Formado em medicina em 1961, cinco anos depois finaliza curso de pós-graduação em Bioquímica pela USP. Entre 1967 e 1970, estuda pintura com Joseph Tobin e Agnes Hart no Art Student’s League, em Nova Iorque (Estados Unidos), período em que aproveita para frequentar a Liga de Estudantes de Arte da cidade e trabalhar como pesquisador no The Public Health Research Institute. Como membro do Grupo Aranha realiza diversos painéis de pintura mural coletiva em Fortaleza e São Paulo. Artista inventivo e destacado no panorama da Arte Postal, que soube transpor para o ambiente digital. Entre suas mais importantes exposições, encontram-se as retrospectivas “Cidades” (Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, Fortaleza, 2005) e “Um Atlas para Hélio Rôla” (Museu de Arte Contemporânea, Fortaleza, 2021), sob a curadoria, respectivamente de Floriano Martins e Flávia Muluc.

 



Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 14

Número 213 | julho de 2022

Artista convidado: Hélio Rola (Brasil, 1936)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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