Em uma entrevista que lhe fez Carmen Elías, em 2007, Jorge Camacho
reflete sobre sua relação com o Surrealismo:
O surrealismo é uma forma de conceber o mundo. Uma maneira também
de vivê-lo e interpretá-lo. Surrealista nasce, não se torna surrealista. É a
busca incessante de liberdade, amor e poesia. Não é uma filosofia, nem uma
religião, nem uma seita, mas muito pelo contrário. Nem é uma escola pictórica,
nem uma cátedra de literatura, nem uma associação cultural. Sua principal
vocação é a abertura para o maravilhoso, um olhar permanente para o mundo dos
sonhos e do subconsciente. Uma caminhada constante pelos caminhos da rebeldia e
do humor… negro.
[…]
Já disse várias vezes
que um dos meus desejos quando cheguei em Paris era conhecer André Breton. Já
em Cuba eu estava ciente de suas atividades como um dos principais fundadores
do Movimento Surrealista. Comecei a conhecer as obras de artistas como Miró,
Tanguy, Ernst, Lam e Matta na década de 1950 e percebi a importância desse
grupo criativo, que não era apenas pictórico, mas também poético; dele
participaram poetas como Éluard, Péret, Arp e Breton. Este último foi um dos espíritos
mais curiosos do século XX; buscador incansável do invulgarmente belo,
descobridor de mundos imaginários e incentivador de grandes talentos. Foi,
portanto, para mim uma grande emoção quando, depois de visitar meu ateliê
parisiense em 1961, ele me convidou para participar das atividades do grupo e
acolheu meu trabalho de coração. Isso me confirmou no caminho criativo que
havia escolhido.
[…]
O acaso desempenha um
papel muito importante na criação pictórica e poética do Surrealismo. Muitos
artistas o utilizaram e está intimamente relacionado ao automatismo que Breton
disse em seu Primeiro Manifesto de 1924: O surrealismo é um puro automatismo psíquico através do
qual nos propomos a expressar, verbalmente ou por escrito, o funcionamento real
do pensamento. Pintores como Matta,
Masson e Michaux, entre outros, fizeram do automatismo um mecanismo
fundamental. Outros, como Miró, Tanguy e Dalí, o controlavam e se submetiam aos
seus sistemas criativos. Prefiro pertencer a esta família de criadores. Por
outro lado, Matta insistiu muito para que o pintor executasse manchas que
depois deveriam ser interpretadas, dando origem a novas imagens pictóricas.
Ultimamente tenho usado essa experiência em uma série de pinturas e desenhos em
papel.
[…]
Reinaldo Arenas disse certa vez que na pintura de Jorge Camacho
encontramos toda essa desolação mágica do trópico, e a situa, na companhia de
dois outros cubanos, José Lezama Lima e Virgilio Piñera, como uma tríade maior
que soube adentrar os mistérios da intempérie e do frio cortante da região. Ao
compará-lo a Lezama Lima, observa: A
noite insular de Lezama, esses jardins invisíveis, mais previstos que
desfrutados, mais intuídos que saboreados, mais inaugurais que certos e,
portanto, mais certos. Essa estranha sensação que chega, afogando-os: o desejo
de transgredir céus e paisagens, regulamentos e hecatombes, postulados e
slogans. Tudo isso também foi capturado pelo pintor.
O mesmo Camacho que em um provérbio lancinante nos diz: Uma gravata vegetal / faca de nuvens, em
cujo poema “Feito”, traduz o que Arenas evoca como esse frio cortante que, banhados em suor, nos calcina, o frio dos
trópicos:
Eu me conserto
ao amanhecer.
Garras, palma de
fuligem
de meu pescoço soldado.
Quando acidália segue a
estrela
Fiação
Minha espinha de aço
Veste-se como uma
dançarina melodiosa.
Cara a cara,
Fúria cortante da
avenca.
Frágil como o banho.
E insisto ainda neste outro fabuloso provérbio: “lábio faminto não
tem clareira”, o que dá a sua poesia o mesmo tom cortante, repleto de um humor
enigmático, como o que encontramos em sua pintura.
Certa vez localizei na Internet uma entrevista a Jorge Camacho
realizada por Fernando Martín Martín, em uma revista intitulada Laboratorio de Arte # 14, 2001, sem
maiores dados, inclusive sobre seu autor. Consegui seu e-mail e lhe escrevi,
porém não houve resposta. Na entrevista, que continha 12 perguntas, Camacho
fala acerca de sua atração inicial pelo Surrealismo, assim como as afinidades
estéticas, amizades, colaborações e até mesmo a vigência do movimento.
Reproduzo aqui algumas passagens:
O
surrealismo me revelou um mundo profundamente imaginativo, perscrutando o
subconsciente; revelador de sonhos e, o que é mais importante, uma busca
constante pela liberdade criativa através do automatismo, tanto poético quanto
pictórico. Amor, Liberdade, Poesia, são os três postulados fundamentais do
Surrealismo. Ideias cheias de atração magnética e com as quais me identifico.
[…]
Acho
que o Surrealismo, por sua própria natureza, é atemporal e seus postulados
foram e continuam sendo atuais. Prefiro dizer que é o surrealismo que questiona
nosso tempo… da mesma forma que questionou a sociedade francesa em 1924, quando
Breton escreveu seu primeiro manifesto, dando estrutura à ideia surrealista; e
continuará a questionar as sociedades futuras…
O
surrealismo é um estado de rebelião contra a realidade, pode-se dizer: você se
torna um artista, mas nasce surrealista.
[…]
Essa atração magnética a que ele se refere é claramente identificável em
sua obra, poética e plástica, com aquele ímpeto de uma transgressão de valores,
a busca de um maravilhoso que se traduz na voragem aforística, o que por vezes
nos leva a Georges Schehadé: Aquele que
sonha se mistura com o ar, pelo modo como Camacho encontra os fios de
identificação de uma realidade outra em situações díspares, aceita a observação
de Louis Aragon, em seu Tratado de estilo
(1928), de que o pano de fundo de um
texto surrealista é extremamente importante, pois é o que lhe confere seu
inestimável caráter de revelação. A chave dessa escala de maravilha
encontramos no interior desse belíssimo poema:
POTE DE MOUSSE
Como
um espelho de veludo
Dividido
com golpes de reflexões
A
mousse traça o brilho
Do
gato-lanterna.
Aqui
estão seus mundos subterrâneos, como Jorge Camacho abre as cortinas do tempo, a
matéria proverbial de suas árvores que dançam sobre a linha de um horizonte do
qual nos é impossível escapar.
FLORIANO MARTINS | Poeta, editor, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo), e dirigiu a coleção “O amor pelas palavras” (2017-2021), parceria, de circulação exclusiva pela Amazon, entre ARC Edições e Editora Cintra. A partir de 2022 a coleção, embora mantendo seu nome, passa a ser coproduzida por ARC Edições e a revista Acrobata, destinada então à veiculação gratuita de livros em formato pdf. Curador dos projetos Atlas Lírico da América Hispânica, da revista Acrobata, e Conexão Hispânica, da Agulha Revista de Cultura.
HÉLIO ROLA | (Brasil, 1936). Pintor, desenhista, escultor, gravador. Estudou na Sociedade Cearense de Artes Plásticas em 1949. Formado em medicina em 1961, cinco anos depois finaliza curso de pós-graduação em Bioquímica pela USP. Entre 1967 e 1970, estuda pintura com Joseph Tobin e Agnes Hart no Art Student’s League, em Nova Iorque (Estados Unidos), período em que aproveita para frequentar a Liga de Estudantes de Arte da cidade e trabalhar como pesquisador no The Public Health Research Institute. Como membro do Grupo Aranha realiza diversos painéis de pintura mural coletiva em Fortaleza e São Paulo. Artista inventivo e destacado no panorama da Arte Postal, que soube transpor para o ambiente digital. Entre suas mais importantes exposições, encontram-se as retrospectivas “Cidades” (Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, Fortaleza, 2005) e “Um Atlas para Hélio Rôla” (Museu de Arte Contemporânea, Fortaleza, 2021), sob a curadoria, respectivamente de Floriano Martins e Flávia Muluc.
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 14
Número 213 | julho de 2022
Artista convidado: Hélio Rola (Brasil, 1936)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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