O Surrealismo inscreve-se
numa tendência de longo alcance, que se origina no movimento romântico, como reação
ao classicismo e ao neoclassicismo, frutifica em poetas simbolistas, que servirão
de referência para os surrealistas em sua invenção de precursores, tais como Baudelaire,
Mallarmé, Rimbaud, até desaguar nas vanguardas históricas do início do século XX.
Muitos de seus representantes são oriundos do dadaísmo, que intentou um gesto radical
de ruptura com a arte institucionalizada: projeto de antiarte que se confunde com
a própria vida revolucionada.
Com fins didáticos,
foi possível ver naquelas vanguardas duas direções conflitantes ou divergentes.
De um lado, na linha direta do romantismo, pelo uso de material quotidiano e menos
nobre, fala coloquial ou que, ao menos, recupera para a poesia as palavras correntes,
usadas pelo povo, na formação do qual convergiriam cultura étnica e natureza espontânea,
e o interesse pela condição humana em seus sentimentos amor, finitude, desastre
e morte, com ênfase no mistério, no instintivo e no irracional. Expressionismo,
dadaísmo, surrealismo. De outro, a preocupação construtiva com a forma nova, instauradora
de uma harmonia afim com os novos tempos de desenvolvimento tecnológico, com incidência
direta – via industrialização – no crescente e, por fim, dominante tecido urbano.
Cubismo, construtivismo, concretismo.
Oposições que precisam
ser matizadas, principalmente em se tratando de um poeta, como Murilo Mendes, que
fará entrecruzar um modo de operar sobre o material linguístico – dito dissonante
ou desarticulado – próximo da descoberta espontânea de palavras em liberdade, com
o cuidado, quase a obsessão, pela construção formal, todavia distante das normas
vigentes na linguagem, seja ela corrente ou poética: busca de um novo dizer por
meio da forma nova. Não é simples, também, descrever a trajetória de Murilo como
a de uma linha reta que levasse do surrealismo inicial ao construtivismo do final
da obra.
Muitos dos procedimentos
propugnados pelos surrealistas já se encontram no dadaísmo. Em artigo de 1961, Anatol
Rosenfeld defendia a atualidade de Dadá:
O dadaísmo é, hoje, mais atual do que o expressionismo e
o surrealismo, visto ser, no campo da revolução linguística, mais radical do que
aquele, sem adotar-lhe o idealismo patético e os gritos extáticos que tornam muitas
vezes obras do expressionismo hoje um tanto indigestas. De outro lado, não faz do
automatismo surrealista um cavalo de batalha, nem cai nos chavões romantizantes
e na exaltação sistemática do inconsciente, tão típicos dos manifestos de Breton. [1]
Voltaremos a esses dois
importantes tópicos: a escrita automática como técnica de produção e a expressão,
por esse meio, das formações inconscientes e de sua linguagem primária, como a do
sonho, anterior à lógica e à consciência vigilante das formações secundárias. Importa,
por ora, lembrar a filiação romântica, bem conhecida, do Surrealismo. Talvez a maior
dívida deste – e de Murilo Mendes – ao Romantismo seja, mais que o uso do fragmento,
toda uma concepção estética em torno dele. Ruptura e descontinuidade geram, no dizer
de Rosenfeld, um estilo prismático.
O recorte linguístico, a descontinuidade e incoerência na
acepção lógico-discursiva, assim como a montagem, já são recursos ocasionais de
Rimbaud e bastante corriqueiros, embora pouco radicais, do primeiro expressionismo.
O fato é que já foram exigidos por Novalis, mais de cem anos atrás, em pleno romantismo.
Com efeito, Novalis já fala da necessidade de escrever poemas “sem sentido e conexão…
meros fragmentos das coisas mais diversas.
Antes da Primeira Guerra
mundial, a descontinuidade ainda não atacara diretamente a sintaxe da frase, embora,
desde Mallarmé, esta sofresse torções inusitadas. A frase aparecia, sem dúvida,
como uma ilha: isolada, mas inteira. A radicalização experimental eliminará artigos,
preposições e conjunções, até o isolamento tipográfico da palavra – que as tendências
construtivas, em especial no design publicitário, vão retomar, bem como, posteriormente,
o concretismo. Em seus começos, a Bauhaus decompõe a palavra em puro material fonético.
Difunde-se o uso da raiz da palavra, liberta de seus prefixos e sufixos. Os verbos
são utilizados sem flexão, logo fora de contexto, transformando-se em objeto, algo
como um ready-made verbal deslocado para um ambiente estranho.
Lacoue-Labarthe sublinha
a importância da escrita fragmentária entre os românticos alemães.
Mais ainda do que o “gênero” do romantismo teórico, o fragmento
é considerado a sua encarnação, a marca mais distintiva de sua originalidade, e
o signo de sua radical modernidade. E é bem, de fato, o que reivindicaram ao menos
os próprios Friedrich Schlegel e Novalis, se bem que cada um de sua maneira diferente.
O fragmento é precisamente o gênero romântico por excelência. [2]
Anatol Rosenfeld observa,
porém, que a experiência de dissolução, de incoerência universal e do fracasso da
linguagem tradicional em poesia era muitas vezes vazada em discurso teórico-crítico
perfeitamente clássico… Tal exigência de formulação clara no interior de um todo
coerente já está presente, segundo Lacoue-Labarthe, nos românticos:
o fragmento está muito longe de ser a única forma de expressão
dos Românticos (…) ou seja, os próprios Românticos estão longe de haverem-se limitado
ao enunciado considerado como “romântico” – o fragmento – da teoria; eles a expuseram
(em todo o caso, os Schlegel) na forma clássica de exposição (…)
Segundo o autor, vários
foram os esboços de um projeto de “exposição completa, inteiramente articulada”,
a “apresentação sistemática da teoria.
Não seria também possível
compreender Freud, no qual se conjugam o ideal da ciência positiva à exploração
romântica das forças elementares, sem seu projeto de rigor no estudo de um objeto
avesso à linguagem estruturada. A fina camada de consciência que encobre o tumulto
das forças é uma conquista da cultura humana. A atividade poética e a clínica psicanalítica,
por outro lado, são tipos de prática cujos resultados o pensamento teórico procura
esclarecer, sem por isso reduzir tais práticas e tais objetos ao ideal de um sentido
unívoco, mesmo que oculto. Debruçar-se sobre o equívoco, o paradoxal e o ambíguo
é também tarefa de pensamento, a que não basta o mero exercício lógico.
É essa tensão entre
as mais diferentes tradições, revisitadas e subvertidas, e um modo de produzir o
novo que, ao caracterizar a postura de Murilo Mendes, antes o aproxima do que o
contrapõe ao surrealismo.
Como vimos em Blanchot
– Agulha Revista de Cultura # 211, junho
de 2022 –, o surrealismo é mais do que uma vanguarda datada. Sua inserção e auto-inserção
na história das ideias e dos movimentos artísticos garantem-lhe um lugar de resistência
à pura intenção de novidade ou a modas passageiras. Segundo Löwy:
O surrealismo não é, nunca foi e nunca será
uma escola literária ou um grupo de artistas, mas propriamente um movimento de revolta
do espírito e uma tentativa eminentemente subversiva de re-encantamento do mundo
(…) que começa em 1924, mas que está longe de ter dito suas últimas palavras. [3]
Re-encantamento do mundo
não pela religião, como o tentaram muitos românticos, mas pela poesia como exercício
da liberdade. Ao comentar Arcane 17, de Breton, afirma o autor:
Na conclusão do livro – um dos mais luminosos
do surrealismo – todas estas figuras míticas correm, como rios de fogo, para uma
imagem que as contém todas e que é, aos olhos de Breton, “a expressão suprema do
pensamento romântico”, e o “símbolo mais vivo que ele nos legou: a estrela da manhã,
caída da fronte do anjo Lúcifer”. Este astro representa assim a mais alta imagem
alegórica da insubmissão: uma imagem que nos ensina que “é a revolta, e somente
a revolta, que é criadora de luz”. E esta luz não pode ser conhecida senão por três
vias: a poesia, a liberdade e o amor.
Para o autor, tal iluminação
é profana. Ao comentar o texto de Walter Benjamin sobre o surrealismo, ele afirma:
Eu insisto em “profana”, pois nada é mais abominável
para os surrealistas do que a religião em geral e a católica apostólica romana em
particular. Benjamin não se engana ao insistir na “revolta amarga e apaixonada contra
o catolicismo a partir do qual Rimbaud, Lautréamont, Apollinaire engendraram o surrealismo”. [4]
Rimbaud foi mesmo, na
França, centro de um debate que opôs Paul Claudel, convertido ao catolicismo, e
André Breton, ateu e anticlerical. Muito jovem, em carta de 1871, Rimbaud, ao abordar
o ensino e a transmissão do saber, Rimbaud se apresenta como empenhado na descoberta
da clareza. Texto célebre, em que o poeta advoga o desregramento de todos os sentidos.
Para Pleynet, não se trata apenas dos cinco sentidos, como se costuma interpretar
a passagem, mas também dos outros sentidos, como o sentido comum cartesiano, da
razão analítica e ordenadora, e também o sentido moral, o sentido da história, o
sentido da liberdade. Indicações úteis para futuros estudos que examinem a incidência
da obra de Rimbaud, mas também de Baudelaire ou de Mallarmé, sobre o poeta brasileiro.
Diz Pleynet:
No começo do século XX, um debate sobre a figura de Rimbaud
opõe dois dos principais e dos mais vigilantes leitores de Rimbaud: o católico Paul
Claudel e o trotskista André Breton. Ambos dão a Rimbaud uma importância quase mística
– Claudel em particular que faz dele, como sabemos, praticamente um dos elementos
constitutivos de sua conversão ao catolicismo. Mas, no que concerne a dificuldade
de converter Rimbaud a qualquer religião que seja, é sem dúvida André Breton quem
diz mais. Este, por razões muito próximas de Guy Debord (que, num certo momento,
chegou a frequentar o Surrealismo) foi certamente quem captou da maneira mais justa
o acontecimento que constitui, no francês, o surgimento da língua de Rimbaud. [5]
Podemos ainda ver no
convertido Murilo Mendes alguém que adere em profundidade ao surrealismo? Claro
está que o poeta brasileiro não poderia concordar com aquela inversão herética da
fonte de luz, do Fiat lux do Criador ao
Lumen Christi do Verbo ressurreto. Mas
a vinculação de Murilo ao Surrealismo, condicionada também por sua amizade com Ismael
Nery e as informações que este trouxe da França, salta as divisórias ideológicas:
para Murilo, o surrealismo não será técnica de escritura, nem mesmo escola ou conjunto
sistemático de princípios, mas modalidade de pensamento. É significativo que aquele
texto de Breton seja do mesmo período em que Murilo escreve os poemas que irão integrar
Poesia Liberdade. (Aliás, o primeiro livro
que Murilo publica, Poemas, é do mesmo
ano de aparição do Segundo Manifesto:
1930) [6]
As três vias apontadas
por Breton estão plenamente assumidas pelo ideário e pela temática do brasileiro.
E os três autores citados são referência importante na obra do poeta juiz-forano.
O exame da economia própria ao pensamento poético de Murilo Mendes, capaz de operar
surpreendentes permutações, permitirá compreender a compatibilidade entre surrealismo,
socialismo e catolicismo, inaceitável na perspectiva dos dogmas como ideias feitas
e excludentes das diferenças entre credos políticos, religiosos ou artísticos. De
Ismael, também ele um precursor em parte inventado, Murilo traz, na primeira fase
de sua obra, a vacina contra o pessimismo da razão, em nome de uma vontade libertária,
ao mesmo tempo anarquista e cristã.
Em outra vertente, T.
S. Eliot pode ser aproximado de Murilo Mendes: também ele católico, embora politicamente
conservador, poeta crítico e crítico poeta, foi ainda referência para o brasileiro.
As palavras de Benedito Nunes sobre a obra do inglês iluminam em parte a próprio
posicionamento de Murilo. Para Nunes,
Eliot também pensa na e com a poesia, ou seja,
é poeta que mobiliza o pensamento na direção do mito, da religião e da filosofia,
fazendo-os confrontar-se. A linguagem poética torna-se, então, uma força de convergência.
(…) É singular que essa força de convergência atue de encontro ao que há de heterogêneo
e dividido na matéria e na forma poética eliotianas – a sua dispersividade – impondo,
afinal, à composição toda uma unidade múltipla, a dos fragmentos, feita de contrastes,
à semelhança da bela harmonia oculta, visada por Heráclito de Éfeso. [7]
Para o autor, a dispersividade
e o fragmentarismo são dois dos principais traços que distinguem a fisionomia da
poesia moderna.
César Leal lembra que
T. S. Eliot lamentou ter o poeta moderno perdido a imaginação visual. Segundo Leal,
San Juan de la Cruz – quase um poeta surrealista – foi dos que contribuíram para
a aceitação por Eliot desse tipo de literatura de visões. Em torno da imagem, o
espiritualismo e o visionarismo marcaram também a poesia moderna, na qual, também
por esse veio, Murilo Mendes plenamente se integra, em outras coisas por sua intimidade
com a lírica barroca espanhola. Para o crítico pernambucano, San Juan de la Cruz
avulta como criador de um simbolismo pessoal
que, ao contrário do simbolismo tradicional, o torna precursor de Baudelaire – e
até certo ponto de Poe – antecipando-se a personalidades poéticas como Rimbaud,
Rainer Maria Rilke, W. B. Yeats, Juan Ramon Jimenez e tantos outros, nos quais não
se pode ocultar a presença de San Juan de la Cruz, por mais que alguns busquem ou
se esforcem em mascarar as ambivalentes categorias do simbolismo particular que
os tornam difíceis, atemporais e estranhos. [8]
O poeta [disse ele] ocupa uma posição difícil
e frequentemente perigosa na intersecção de dois planos cujo gume é cruelmente afiado,
o do sonho e o da realidade. Prisioneiro nas aparências sem espaço neste mundo,
aliás puramente imaginário, com o qual se contenta o vulgo, ele transpõe o obstáculo
para alcançar o absoluto e o real. [9]
À época, Raymond detecta
a vigência de dois vetores que atravessam o movimento: “Teoricamente, no entanto,
uma antítese se delineia entre duas atitudes, entre uma poesia do sensível e do
temporal, e uma poesia do espírito, de tendência onírica, intemporal”. Tendências
que se entrecruzam e se compõem em Murilo Mendes. Para ele, Breton
conduziu seu grupo (…) do subjetivismo anárquico
ao ‘culto do Oriente’, a um certo satanismo matizado de ocultismo, ao materialismo
dialético, a uma doutrina enfim que tenta levar em consideração o universo interior
do espírito e dos objetos. Itinerário bastante desconcertante, pelo menos à primeira
vista. Breton e seus amigos aprovam a frase célebre do Manifesto Comunista onde Marx afirma que é tempo de tentar transformar
um mundo que durante muito tempo, e em vão, se tentou explicar, mas eles não entendem
que a vontade de transformar prejudica a de o conhecer. Esforçam-se para se manter
na crista que separa essas duas atividades, e podemos acreditar que esperam dessa
forma trabalhar e aumentar os poderes e as chances desse Espírito para cuja vinda
alguns deles, por volta de 1925, queriam tudo sacrificar.
A ironia do autor sobre
a nova Parusia – o messianismo da vinda do Espírito em suas formas religiosa, filosófica
ou mesmo política, topos sem dúvida muito
presente em nosso poeta – não esconde o equívoco quanto às relações entre metamorfose
e conhecimento do mundo, que se dão, seja para Marx, os surrealistas ou Murilo Mendes,
por meio de condicionamento mútuo, e não pela prévia contemplação positiva ou positivista
da realidade. A poesia é convocada como ação dinâmica, entre uma vontade de mudança
e a proferição de verdade sobre a irrealidade de um mundo de carência e injustiça,
e isso sem cair no proselitismo da poesia engajada.
Como diz Raymond:
O surrealismo, no sentido amplo, representa
a mais recente [texto
de 1940] tentativa do romantismo para romper
com as coisas que são e para substituí-las por outras, em plena atividade, em plena
gênese, cujos contornos móveis se inscrevem em filigrana no fundo do ser.
É todo um programa que
se delineia e a que Murilo Mendes parece manter-se fiel. Diz o autor, logo a seguir:
O essencial da mensagem surrealista está nesse
apelo à liberdade total do espírito, nessa afirmação de que a vida e a poesia estão
“alhures”, e que é preciso conquistá-las, perigosamente, a uma e a outra, já que
elas, afinal, se juntam e se confundem para negar esse falso mundo, para atestar
que os jogos ainda não foram jogados, que tudo pode ser salvo.
Voltando a Löwy que
explicita, a nosso ver de maneira correta, a posição do surrealismo em meio à onda
vanguardista das primeiras décadas do século passado:
Contrariamente ao que se acredita tantas vezes,
a temporalidade do surrealismo não é da mesma natureza que aquela das ditas ‘vanguardas
artísticas’, que sucederam umas às outras, depois de um efêmero período de florescimento:
fauvismo, cubismo, expressionismo, futurismo, dadaísmo. Ela se assemelha antes àquela,
mais profunda e durável, dos grandes movimentos culturais – ao mesmo tempo artísticos,
filosóficos e políticos – como o barroco ou o romantismo. [10]
A via surrealista parece,
portanto, fornecer a Murilo Mendes – sem imposição de métodos, sem diretrizes ideológicas
fechadas, sem submissão a modismos estrangeiros – uma direção potente para o enfrentamento
do mundo com as armas da poesia, poesia no sentido amplo de fazer criativo, as únicas
que poderia manipular com destreza, sensibilidade crescentemente cultivada e inteligência
linguística tão apurada que se tornava difícil compreendê-la e aceitá-la. Por isso,
ponham-se na conta da juventude rebelde de Mário Faustino essas considerações inoportunas,
escritas em 1957:
O sr. Murilo Mendes andou querendo fazer surrealismo no
Brasil. Não conseguiu. O surrealismo é uma atitude filosófica, antiliterária, um
sistema de vida. O sr. Murilo Mendes é católico. Mas, em passant, escreveu bons
poemas, sobretudo bons versos. O que é muito, se o compararmos com alguns até mais
célebres. Depois escreveu aquelas coisas sobre Ouro Preto. Trata-se de um dos poucos
intelectuais cultos do Brasil. Mostra que nem só de poesia vive o poeta. Sabe de
artes plásticas. Escreve bem sobre uma e outra coisas. Tem exercido salutar influência
sobre alguns jovens. Tem classe de intelectual. Mas também não chega. [11]
Como se posicionou,
mais amplamente, no Brasil, a crítica literária diante da questão surrealista em Murilo Mendes?
Se fôssemos obrigados a reduzir o
modernismo em arte a duas grandes vertentes – como fez Omar Calabrese, ao propor
para toda a história da arte o par clássico/barroco – alinharíamos numa delas, a
partir do romantismo, o expressionismo, o dadaísmo e o surrealismo. A outra ficaria
por conta das tendências construtivas. Como se pode ver no crítico italiano: linha
perpétua da continuidade barroca, linha retilínea da divergência clássica. Nem se
pode descartar certa correspondência entre expressão versus construção, de um lado,
e barroco versus clássico, de Calabrese. Não se estranhe, por isso, a expressão
que Laís Corrêa de Araújo utiliza para indicar certa dimensão da poesia de Murilo
Mendes: surrealístico-barroquizante. [12] Como veremos, híbridos são possíveis,
em aproximações surpreendentes, como entre surrealismo e construtivismo, os dois
polos entre os quais, para alguns, desloca-se a prática poética de Murilo Mendes.
A abrangência do movimento surrealista
cobre o campo da estética, da psicologia, da política e da ética social. A escrita
automática procurava articular sentimento e linguagem e remetê-los ao inconsciente,
que Freud descobrira ou propusera. Escrita transformadora não apenas da linguagem
ou da consciência, mas do mundo moderno, onde vem inscrever-se como gesto de intervenção,
de inspiração socialista, nas lutas históricas. A originalidade do movimento vem
em parte da disjunção criadora entre a presença do duplo ou do “fantasma” na origem
da criação artística – que em alguns adeptos irá evoluir para tendências místicas,
espíritas e esotéricas (lembremos da conversão de Dalí ao catolicismo reacionário
e ao franquismo) – e a adesão ao marxismo e ao comunismo. Utopia de um aqui e agora outro, que atravessa a prática e o pensamento de Murilo Mendes, mesmo
quando explora – ao escavar intervalos entre diferentes direções da prática – a
dicção clássica, seja por sua dedicação ao aperfeiçoamento da forma, mas da forma
nova, seja por seu interesse pelas pesquisas concretistas, na linha construtiva
que, também ela, desde a Bauhaus, procura renovar e espiritualizar a relação dos
homens com a indústria, com a cidade, com a vida enfim, inteiramente transformada
pelas novas tecnologias.
Apresentamos aqui um quadro com algumas das
interpretações correntes da poesia de Murilo Mendes em sua relação com o surrealismo,
com observações do próprio poeta. Longe de ser exaustivo – a questão das relações
da obra e do pensamento de Murilo Mendes com o surrealismo, e também com o dadaísmo,
com o construtivismo, o abstracionismo, a arte cinética e o concretismo, estará
sempre aberta –, esse levantamento tem por finalidade situar certas características
permanentes do modo de o poeta construir o poema, a concepção que tem dessa tarefa
e as imagens daí resultantes, em especial em Poesia Liberdade.
A partir desse rápido panorama, será possível
esclarecer melhor as articulações que propusemos entre o pensamento de Maurice Blanchot
e o de Murilo Mendes, encaminhando desta forma uma leitura e uma tradução – mais uma leitura, mais uma tradução
– da obra do poeta e prosador juiz-forano,
lembrando que, ao que parece, não se registra, entre os dois, conhecimento ou contato.
Devemos fazer, de início, uma observação que
serve também para outros aspectos da obra de Murilo Mendes: é um equívoco tomar
a palavra do poeta sobre si próprio e sobre a própria obra como lei, palavra última
e definitiva. Suas declarações – em prosa, mas também em poesia – sobre a arte poética
que orienta sua produção, bem como sobre dimensões de suas crenças religiosas e
posturas políticas, de seus sentimentos atuais e passados, devem ser (sob pena de
demissão da tarefa crítica) acatadas e compreendidas como aspectos, sem dúvida importantes,
dessa mesma produção. A extensa atividade literária de Murilo Mendes inclui questionamentos
permanentes e justificativas continuadas sobre as diretrizes de seu trabalho. Entre
outras coisas, o poeta exerce a interpretação crítica da própria obra; é característica
sua deslocar-se entre diferentes posições
de sujeito de enunciação, por diversos gêneros discursivos.
A questão das relações
entre Murilo Mendes e o Surrealismo é, desta maneira, exemplar de tais atributos
e pode, mesmo, iluminar aspectos intrínsecos a seu modo de operar e às realizações
textuais daí decorrentes. Mal-entendidos sobre o projeto surrealista foram, por
vezes, veiculados pelo próprio autor e encampados, com ligeireza, por muitos de
seus críticos. Ao lado disso, Murilo mostrava, outras vezes, a profunda compreensão
das diretrizes centrais do movimento como projeto propriamente artístico, mas de
ruptura, e proposta de uma nova articulação entre arte e vida, não apenas vida pessoal
mas, sobretudo, vida social e política – vida coletiva implicando em aspectos consciente
e inconsciente da linguagem. Declarações que mostram a verdadeira dimensão do Surrealismo,
longe de se reduzir, a seus próprios olhos, aos procedimentos – ditos irracionais
e anti-construtivos – da escrita automática.
Em seu importante estudo sobre o poeta – que
é também depoimento e ainda testemunho de compreensão e de amizade fundamental na
preservação e na expansão da memória de Murilo Mendes –, Laís Corrêa de Araújo afirma:
O temperamento vibrátil de Murilo Mendes leva-o às fragmentações,
aos movimentos descontínuos da expressão, às aliterações, à adjetivação áspera e
aos jogos de palavra em choque, procedimento criativo que tem provocado a sua classificação
como poeta surrealista (na verdade, sentiu-se atraído pelo movimento, mas apenas
enquanto possibilidade de libertação ainda maior da linguagem poética). Contudo,
não estamos aqui diante do puro exercício surrealista: a nossa leitura dos poemas
de Os
Quatro Elementos, se atenta, constatará antes
um curioso barroquismo, de fotógrafo de sensações… [13]
A autora defende Murilo,
com acerto, da acusação improcedente de desleixo na forma. Para isso, atribui ao
surrealismo um subjetivismo irracional, que o poeta repudiava e acentua seu apelo
ao barroco, mais nosso, mais mineiro… Seria assim ao mesmo tempo original e, infenso
à influência externa, nacional. Como vimos, o puro exercício surrealista, ninguém,
nem Breton, o teria praticado. [14]
À inegável preocupação
de Murilo com a forma – a forma nova, tal como, por exemplo, aparecia na música
moderna, anti-polifônica e anti-melódica – atribui a autora um perfil clássico.
Se a triagem rigorosa dos sentimentos, a seleção disciplinadora
das ideias, a concatenação ordenada da imagística – concepções de uma diretiva poética
que se deseja clássica no equilíbrio e na severidade – não se encontram nesse livro,
pode-se, não obstante isso, falar em surrealismo aí apenas enquanto provocação,
enquanto assimilação de uma estética aprendida mais por temperamento e instinto
do que pela atitude intelectual de aderir à voga do automatismo psíquico da escrita,
da criatividade poética fora de todo o controle da razão.
O temperamento e o instinto
são, por certo, fatores psicossociais presentes na formação de um poeta, mas não
explicam, por si só, opções formais e ideativas, que se delineiam diante da pauta
de tradições e inovações em confronto no seu tempo.
Parece que se teme, ao detectar a herança surrealista
assumida com entusiasmo pelo primeiro Murilo Mendes, o dos anos vinte e o do impacto
sobre ele da obra de Max Ernst (La femme 100
têtes), [15] segundo depoimento do
próprio autor, encontrar a obsessão pelas vanguardas, e mesmo, como no caso da Geração
de 45, pelas novidades e modismos da hora, como um fator que o desqualifica, uma
influência que faria do poeta juiz-forano um mero epígono de estrangeirismos. Temor
infundado, porque Murilo integra em sua estratégia poética o interesse multifacetado
por diferentes dicções e maneiras de ver a arte e o mundo. Sua originalidade não
é um traço inato de seu temperamento vibrátil – e se o fosse, pouco serviria à crítica
levá-lo em conta –, mas a construção de uma voz poética em confronto com mudanças
radicais trazidas pelo modernismo a concepções e convenções estabilizadas em vários
campos da prática humana.
Como estamos observando, sobre o surrealismo
de Murilo Mendes encontram-se, na crítica, posições antitéticas, que, por vezes,
convivem em um mesmo autor. A influência do movimento surrealista sobre o poeta
brasileiro é inegável – ela nos leva até o dadaísmo quanto a certas operações formais
de ruptura com os cânones eruditos acadêmicos – e, quanto aos temas e conteúdos,
remete a um expressionismo que deita raízes no simbolismo e no romantismo. Por outro
lado, o interesse pela construção do poema, o cuidado na elaboração da forma nova,
parece vacinar Murilo Mendes dos excessos do ideal de uma expressão quase direta
de impulsos inconscientes por meio da linguagem poética. O poeta é, dessa forma,
visto alternativamente como surrealista e não surrealista, barroco e clássico, romântico
e moderno.
A tal questão reúne-se outra: se há ou não uma
evolução na prática poética e na concepção que ela faz dessa prática. Para certos
estudiosos de Murilo Mendes, ele é sempre o mesmo: sua original sensibilidade alia-se
à curiosidade intelectual e produz a obra como montagem poliédrica de experimentos,
um conjunto de variantes de uma tendência que, em seus gestos fundamentais, permaneceria
invariável. Outros falam de maturidade progressiva, de domínio daquela sensibilidade
original no sentido de uma poesia mais responsável e mais bem estruturada. Nessa
linha, o surrealismo é visto ou como algo que Murilo Mendes vai abandonando ou uma
influência que não chegou nunca a ser determinante. Ainda na linha que se utiliza
de um modelo evolutivo para explicar os desdobramentos de sua poética e de seu trabalho,
encontram-se os que veem no rigor construtivo uma causa final, teleológica, que
ilumina todo o trajeto e reconhece no início da obra os sinais precursores do verdadeiro
Murilo Mendes, poeta substantivo, que vai ao encontro de si mesmo, integrando e
potencializando as maiores conquistas de construção da forma obtidas pelas vanguardas
no campo da poesia, mas também das artes plásticas e da música.
Para alguns críticos, o surrealismo de Murilo
Mendes seria muito especial, muito brasileiro e muito modernista: não atende às palavras de ordem do movimento e tende a bagunçar a prática surrealista. Pode ser,
então, meio-surrealista na primeira fase de sua obra, até os anos quarenta, mas
revela-se a cada nova obra – e a cada nova leitura crítica – um construtivista,
tanto que, no final de sua vida, opera uma conversão ao concretismo, embora também
muito singular e rebelde, e mostra como desde sempre foi não um surrealista, mas
um arquiteto de poemas.
Para outros, Murilo Mendes nunca foi surrealista:
ele apenas se teria apropriado de algumas ideias e modos de formar do surrealismo
para afirmar sua visão própria da poesia e de sua relação com as formas sociais,
principalmente a linguagem e a política. Como, aliás, compatibilizar o anticlericalismo
dos franceses com as visadas e aspirações religiosas do poeta, e mais, sua conversão
ao catolicismo, mesmo que por meio de sua amizade com alguém entusiasta do surrealismo,
o católico e essencialista Ismael Nery?
Para os restantes, enfim, Murilo Mendes foi
marcado pela concepção de linguagem de arte e de vida proposta pelos surrealistas
e manteve-se, por isso mesmo, fiel a uma prática artística sempre interessada nos
experimentos de ruptura com as linguagens institucionalizadas e estabelecidas: não
é outra a origem de sua adesão tardia – ou de sua homenagem – ao concretismo brasileiro.
O fato inconteste de não ser ele um seguidor estrito da disciplina surrealista –
se ela existisse… – nem um importador de modismos, ocorre com qualquer poeta de
importância: o viés singular é inerente à prática de uma poesia que não seja a dos
meros seguidores e imitadores. Essa diferença de Murilo Mendes em relação ao surrealismo
(que ele próprio advoga) é irrelevante para a compreensão de sua relação com o surrealismo
e não pode servir de argumento no debate sobre sua dívida para com o movimento.
A disputa em torno da herança de Murilo Mendes
e do surrealismo no Brasil e em sua obra não pode ser compreendida, mesmo que parcialmente,
sem recorrer a uma acepção mais matizada do movimento surrealista, como foi aqui
inicialmente intentado. Na falta deste esclarecimento, os críticos oscilam de uma
posição a outra. Seria árduo, embora instrutivo, fazer o levantamento de posições
sobre o assunto sustentadas sem coerência. Os textos dão a impressão de uma enganosa
abrangência, que se estende a diferentes aspectos da obra do poeta mineiro: este
é um defensor da ordem e da construção, ao mesmo tempo que alguém sensível e mesmo
fascinado pelo informe e pelo caos; é uma alma religiosa e cristã, atenta à transcendência,
ao mesmo tempo que um irreverente e mesmo desesperançado crítico da tragédia sem
saída do mundo moderno, ou, ao contrário, um cristão moderno e atuante, com tendências
socialistas ou de esquerda, anunciador de uma ordem nova, de uma redenção do mundo
histórico pela poesia e pela arte.
Em torno do tema crítico
de permanência na mudança, no caso de
Murilo Mendes, Joana Frias sublinha, com vigor, a importância do surrealismo. Segundo
ela, na poesia de Murilo Mendes
o Surrealismo não é, porque nunca foi, uma moda
histórica a que o poeta tenha aderido por razões circunstanciais, mas sim o lugar
onde se cruzam (sic) uma série de vetores permanentes, transtemporais,
que formam a estrutura profunda de sua obra e de sua poética. [16]
E mais adiante:
Tal como Breton, interessava a Murilo Mendes encontrar o
ponto supremo de superação das antinomias, habitar o texto poético como espaço e
tempo onde os contrários deixassem de ser apreendidos contraditoriamente, onde construção
e destruição se tornassem sinônimos, como resumiu no texto que consagrou a Marcel
Duchamp. E é precisamente nesta tensão dialética, manifesta ao nível do discurso,
no domínio de uma lógica da contradição, que Jorge de Sena vê uma das verdadeiras
inovações do movimento surrealista no sistema literário.
A autora atribui à poesia
de Murilo Mendes características que dificilmente concordam com a discórdia concors, equilíbrio fundado na
oposição: “as imagens obedecem a uma dinâmica de desarticulação e destruição”. Encontra
no poeta um formalismo estetizante, preocupado com a pura manifestação de linguagem
(que, é verdade, atraiu, em alguns momentos, os poetas concretos) completamente
estranho a seu trabalho e à sua concepção de poesia: “mundo que apenas existe efetivamente
na língua”. Mais adiante, compara Murilo a Mallarmé, pelo hermetismo de ambos, quando
este propugna por uma poesia alusiva: “Eu penso que é preciso, pelo contrário, que
haja apenas alusão”.
Cremos, ao contrário,
que o bradar das convicções de Murilo nada tem de hermético ou alusivo. Inclusive
aquelas, quase constrangedoras, se tomadas isoladamente, citadas por muitos críticos:
“Não se trata de ser ou não ser / Trata-se de ser e não ser”, ou “Transformar-se
ou não, eis o problema”. Expressões muito óbvias, reverenciadas como verdades inquestionáveis
sobre o poeta, sua concepção de poesia e, mesmo, sua prática poética. Certos motes
políticos, filosóficos ou religiosos são inseridos, de maneira por vezes infeliz,
sem mediação alguma, no corpo dos poemas. Quando diz “Sou brasileiro, bem sei. /
Mas sou universal…”, a obviedade é tão marcante que Murilo não hesita em anexar
um “bem sei”… Todos nós sabemos e a oposição brasileiro x universal, fora de contexto,
não é das mais instigantes. As oposições binárias, muito simplistas, estão longe
de ser o que de melhor Murilo produziu e nem podem ser tomadas como critérios que
orientem a leitura de sua obra. Fazer o seu registro em nada diminui o porte excepcional
do poeta.
É tarefa da crítica
atualizar sempre as obras fortes, capazes de se deixarem levar pelas novas correntes
de interpretação e pelas novas condições de experiência sem perder substância, para
obter desta maneira uma vida continuada na cultura. A autora investe em um arsenal
imenso, proveniente de horizontes diversos, para defender e produzir a contemporaneidade
de Murilo Mendes, o que é acertadíssimo. Por vezes, porém, dispara simultaneamente
rumo a muitas direções, todas elas legitimadoras, e põe em risco seu intento ao
utilizar, como princípios incontestes de análise, ditos de um poeta que é teórico
e crítico de si próprio. [17]
Davi Arrigucci Jr. começa
texto sobre Murilo Mendes parafraseando as afirmações do poeta em crítica publicada
por este no Suplemento Dominical do Jornal
do Brasil, em 1959, ano em que o concretismo vivia sua fase heroica, polêmica.
O poeta invoca, como definidores de seu trabalho, três elementos: contato da ideia
e do objeto díspares, aproximação de elementos contrários, manifestação dialética
da conciliação. Enfim, a busca da unidade e da totalidade por meio da linguagem
poética, diante de um mundo desconexo e desencontrado.
Cremos que o ideário
crítico do poeta, bem como sua visão de mundo, em seus aspectos religioso, filosófico
e político-social, está conformes a tais afirmações. Resta relacionar tais aspectos
com sua poesia. Não nos parece que nesta reafirmem-se os princípios de unidade,
totalidade e conciliação.
Diz o crítico:
Como assinalou Octavio Paz, a religião secreta das correspondências
inspiradas pela analogia sempre fez parte da tradição esotérica – cabala, gnosticismo,
ocultismo, hermetismo – que vem da noite dos tempos e aflora com o Romantismo para,
por via do Simbolismo, chegar até os modernos. Na fase das vanguardas do início
do século XX, sua afinidade eletiva é decerto com o Surrealismo, o qual, posto diante
das acirradas contradições de um mundo prensado entre duas grandes guerras, encontra
a correspondência universal de tudo. Assim, nos termos de Paul Éluard, “tudo é comparável
a tudo”, pois tudo tem um eco, uma razão de ser, uma semelhança ou oposição, um
devir em toda parte. Menos de cem anos depois de Baudelaire, tudo volta a aludir
a tudo.
[18]
O princípio de correspondência
universal por similitude, que daria estofo a tais princípios, não parece o mais
adequado à compreensão do novo arranjo epistêmico proposto pelo pensamento moderno,
a partir do século XVIII.
O autor fala do Surrealismo
como “vasta empresa totalizadora”. Por certo, é assim que se propõe o movimento
pela voz de seus principais representantes. Mas ela se afirma, tal empresa, diante
da impossibilidade de realização, o que caracteriza sua dimensão utópica. Conteúdos
ideativos – enumerados por uma teoria da poesia ou por alguma doutrina normativa
do fazer poético – devem ser confrontados com aquilo que é efetivamente apresentado
pelas obras poéticas à experiência de leitura, enquanto abertura e escolha de certas
possibilidades.
O surrealismo, enquanto
prática poética – inclusive em Murilo Mendes – revoluciona justamente os princípios
de unidade, totalidade e correspondência universal. A referência princeps à retomada da definição de beleza
proposta por Lautréamont contesta o critério extensivo de similitude, a metáfora
geral como modalidade de comparação generalizável. Entre o guarda-chuva, a máquina
de costura e o lugar do encontro dois – a mesa de dissecação - não há nem conciliação
nem totalização por meio de um princípio de unidade, seja este mítico ou místico,
lógico ou dialético: em sua contiguidade objetiva, atestada, na proximidade e na
distância entre eles, que os torna irredutíveis uns aos outros, reside o princípio
moderno de sua construção, ao mesmo tempo plástico e linguístico. Reunião de impossíveis
que estrutura as imagens mais fortes de Murilo Mendes, o qual, por essa prática,
é plenamente surrealista, o que está longe de significar submissão a preceitos de
escola ou imitação servil de mestres estrangeiros, mas também não significa a realização de um ideal autônomo e formal
de unidade e totalização. Bem viu João
Cabral de Melo Neto, ao tomar todos os poemas de Murilo como um único: fluxo contínuo,
e logo dinâmico, sempre interrompido, e mesmo brutalmente cortado e dispersado por
vezes, e sempre retomado, bem diferente do ideal cabralino de cada poema enquanto
máquina fechada de repetição, capaz de detonar efeitos nos limites precisos de sua
construção.
Por isso, não cremos
necessário regionalizar ou nacionalizar o surrealismo do poeta, o qual foi, ao contrário,
garantia de seu impulso universalizante. Diz Arrigucci, descrevendo em síntese feliz
embora o gesto poético de Murilo:
No caso de Murilo, a junção libertária de realidade com
imaginação, em contextos nítidos mas insólitos, de lúcido desvario, e os curtos-circuitos
do humor, entre a gravidade e a piada, fizeram pensar desde cedo num surrealismo
difuso, tocado de ouvido por um mineiro, na aparência e em princípio circunspecto,
mas aclimatado de fato, pelo ar da graça, em carioca típico.
Segundo o autor, se
Mário de Andrade, como é sabido, apontou a importância da lição surrealista em Murilo
Mendes “Bandeira, depois, soube distinguir o peso do contexto brasileiro na moldagem
diferente desse surrealista singular”.
Interessado em nacionalizar
o surrealismo de Murilo Mendes, o crítico parece supor que o movimento tivesse algum
tipo de essência – essência francesa – a que seria preciso contrapor-se, e que a
mineirice e a carioquice do brasileiro fossem, mais do que contingências, valores…
De acordo com o crítico,
… a vertente surrealista de sua poesia apareceu de corpo
inteiro, com toda a graça erótica e plástica de suas imagens dissonantes, mas desejosas
de unidade. Mantinha sempre, porém, um matiz muito peculiar – “um surrealismo à
moda brasileira”, como ele mesmo diria – que se deixa notar por seu senso de humor,
herdeiro provável de certa tradição popular de malandragem carioca a que esteve
aberto o Modernismo.
A declaração de Murilo
Mendes já está a refletir sua estratégia crítica. O discurso de um poeta sobre a
própria obra tende a conformar-se ou a reagir ao discurso de outros sobre ela. As
apreciações críticas do poeta, neste caso – como vimos repetindo abusivamente –
não pode ser decisivo argumento. Todo poeta surrealista – todo poeta – é singular.
Não se deve estranhar que Murilo nunca tenha sido decerto um surrealista francês.
[19]
Quando Murilo repete
Jorge de Sena, ao afirmar o Brasil como país naturalmente surrealista, está apenas
servindo-se de uma boutade sem maiores
consequências que, na verdade, veicula ilusões críticas sobre identidade e resistência
de uma suposta realidade nacional brasileira e de suas mazelas históricas.
Para Arrigucci, Murilo
Mendes
nunca cedeu de todo aos impulsos do inconsciente
e ao apelo associativo da escrita automática, mantendo o controle racional no domínio
da construção artística, regendo-se, como já se anotou, por uma constante ânsia
de equilíbrio. Por isso mesmo, pôde observar o quanto o surrealismo devia a momentos
anteriores da tradição da arte ocidental e o quanto exigia de “larga ordenação do
espírito”.
É verdade que em artigo
importante, porque trata de sua poética, Murilo critica os poetas modernos por não
aceitarem a teoria essencialista de Ismael Nery, a qual, à luz da Revelação, trata
dos grandes temas necessários à conservação da unidade do homem.
A Igreja de Jesus Cristo, pela sua doutrina, pelos seus
dogmas, pelos seus ritos, é a única entidade capaz de conferir ao homem esse estado
de “supernaturalidade” a que André Breton alude no manifesto do supra-realismo,
e que em vão os poetas desse grupo procuram encontrar na deformação de certas lendas,
nas especulações espíritas e na representação automática das ideias e das imagens.
A Igreja cristã, sim, é completa: na sua concepção do mundo figuram os dois planos,
o realista e o supra-realista. [20]
Mas em seu último período,
Murilo Mendes voltou a reconhecer, como enfatiza Luciana Stegagno Picchio, a importância
que teve o surrealismo, compreendido em sua abrangência e complexidade, na sua maneira
de encarar a tarefa poética e no modo de fazer atritar linguagem e realidade para
anunciar e também promover a utopia de um tempo outro. O poeta, que se opôs a uma concepção redutora da escrita automática,
reconhece a influência que dela recebeu. [21]
Porque, definitivamente,
o surrealismo é mais do que irracionalismo aleatório produzido pelo automatismo
de uma escrita incontrolada. De acordo com Raymond, o surrealismo
é algo mais do que uma certa maneira de deixar correr a
pena. André Breton e seus amigos levaram suas pesquisas e suas investigações para
diversas direções, e pretenderam conferir um imenso alcance a seus empreendimentos.
A seus olhos, romper as associações verbais recebidas é atentar contra as certezas
metafísicas do comum, é escapar de uma visão convencional e arbitrária das coisas. [22]
E ele acrescenta:
De resto, seria falso reduzir todos os modos de expressão
do surrealismo ao procedimento da escrita automática e considerar como “autênticos”
apenas os textos escritos sob ditado e sem nenhum controle. Em 1932, Breton afirmava
que o texto surrealista não pretendia ser exemplo perfeito de automatismo verbal.
“Um mínimo de direção subsiste, geralmente no sentido do arranjo em poema”.
A questão da escrita
automática, porém, pareceu decisiva para enfatizar, por contraposição, o caráter
construído da poesia de Murilo Mendes, sua preocupação com a forma. O par espontâneo/aleatório
e formal/construído orienta, em diferentes direções, a análise crítica.
Em busca de traços gerais
que caracterizam Murilo Mendes, o poeta e ensaísta Júlio Castañon retoma afirmação
de Sebastião Uchoa Leite sobre a vida da linguagem como correlato objetivo da busca
de novas apreensões do real, pouco importando os conteúdos ideativos. A distinção
é importante, mas não deve levar à postulação de independência entre o polo formal
e o polo ideativo da linguagem, mesmo no caso de seu uso poético, pois tal concepção
conduziria ao formalismo e ao esteticismo, que Murilo repudia, justamente porque
o surrealismo não se compraz no trabalho sobre a linguagem como realidade autônoma.
Pelo contrário, segundo Castañon, duas das principiais características da atividade
de Murilo Mendes denotam uma permanente articulação com o que lhe vem de fora: os
diálogos com outros autores e as invasões de outras linguagens artísticas. Distantes
do auto-engendramento, essas técnicas são técnicas de apropriação, à maneira de
Marcel Duchamp. O poeta converte toda essa heterogeneidade de referências a seu
próprio projeto e à sua própria maneira, mas, em algumas de suas produções, ele
parece redesenhar tal projeto e as referências passam de objetos a moduladores.
[23]
Ao traçar um roteiro,
abrangente e instigante, da trajetória de Murilo Mendes, Uchoa Leite considera a
obra do poeta surpreendente por sua atualidade:
A obra de Murilo Mendes abarca direções múltiplas,
deixa no ar contradições e, no final, o autor parece mudar radicalmente sua orientação
estética. Mas, ao embrenhar-se no seu labirinto, o leitor percebe que faces esquecidas
reemergem.
[24]
Para Sebastião, a permanente
preocupação formal, ativa nos procedimentos utilizados por Murilo para elaborar
sua poesia,
por trás do seu singular “desconstrucionismo”, poderia parecer
a construção deliberada de uma des-ordem, mas guardou sempre uma secreta ânsia de
ordem, em todas as suas fases, conseguindo unir, como num grande paradoxo, a essa
obsessão ordenadora, a vertigem e o fascínio pelo caos.
Uchoa Leite desenha,
antes mesmo de apresentar a variedade e multiplicidade de Murilo, essa igualdade
que subjaz a um extraordinário leque de interesses e influências, de fases e de
experimentos (e não é mero acaso se Murilo insiste, em música, no caminho que Stravinsky
percorreu, bebendo primeiro de fontes populares, a seguir estreando uma via neoclássica,
para, na última fase, aceitar o desafio da música serial, sem deixar de ser ele mesmo…):
Estruturalmente, o poeta que estreou em Poemas permanece igual a si mesmo no último livro,
Ipotese, publicado fora do país e escrito
em italiano. E até no último publicado no Brasil, Convergência, repercutem ecos da intensa aventura poética
iniciada com Poemas em 1930.
Também para Irene Franco,
que centra sua análise em Poliedro, de
1972, onde Murilo continua “a empenhar-se na descoberta de ângulos sempre novos
de visão do mundo”, há unidade de propósitos em Murilo Mendes: nele, o projeto ético
articula-se ao fazer poético desde as obras iniciais às finais. A repartição da
obra em duas fases distintas, correspondentes ao surrealismo e ao concretismo, conteúdo
e forma, espontaneidade e construção, deve ser superada.
A crítica costuma ratificar a divisão da obra de Murilo
Mendes em uma primeira etapa de transfiguração do real, ditada pela forte influência
de procedimentos surrealistas e sublinhada pela intenção de doutrinação religiosa;
e uma posterior etapa de maior atenção ao significante como material de manipulação
por excelência, empenhada na representação do real. O poeta teria então se voltado
ao concreto da palavra e ao espelhamento do mundo, passando, segundo a formulação
célebre de Haroldo de Campos, de um mundo adjetivo para um mundo substantivo. [25]
Segundo Arrigucci, mais
do que um estilo ou jeito de dizer, o poeta sempre portou, no mais fundo, a marca
distintiva dos surrealistas, fiel aos movimentos do desejo e do sonho que, segundo
a lição freudiana, é disfarce do desejo. [26]
Para o crítico, as múltiplas
fases do poeta remetem à complexa unidade central de que procedem. E essa unidade
se daria ao buscar a concórdia na discordância, como reza o princípio barroco de
que se serviu Haroldo de Campos para entender Murilo.
O artigo de Haroldo
é de 1963, logo do período de luta em que o movimento concreto se afirma e estabelece
alianças fortes no meio cultural. É nesse contexto que se deve incluir a ausência
de qualquer referência ao surrealismo no texto. No caso, tratava-se de anexar Murilo
ao concretismo e mostrar sua evolução, a partir, como vimos, de um aforismo do próprio
poeta em Os Discípulos de Emaús: “Passaremos
do mundo adjetivo para o mundo substantivo”.
Para Moura, essa passagem
de um livro de caráter oracular e assistemático, não é da ordem do estético, mas
do religioso. [27] Cremos que, embora
de significado cristão, anunciando a redenção e a vida renovada depois da segunda
vinda do Messias, é possível tomá-lo em outras acepções. Luciana Stegagno Picchio
mostrou a importância daquele livro de 1934 para o entendimento da arte poética
de Murilo.
De qualquer forma, no
artigo de Haroldo de Campos, Murilo é chamado a intervir como precursor do concretismo
e seu contemporâneo… Esta oportunidade de atualização é de interesse do poeta mineiro
que, com mais de sessenta anos, vê sua poesia revitalizada pelo contato com novas
experimentações, o que ele sempre explicitamente prezou. Para o poeta e crítico
paulista, Murilo deve ser exaltado por ser de vanguarda.
“Uma vanguarda que,
neste seu último livro – como a de João Cabral – tem, talvez, o pudor das exterioridades
mais gritantes e parece se furtar a politécnica do laboratório experimental, mas
que, de outra parte, é capaz de interiorizar sua própria radicalidade e verticalizá-la
na prospecção profunda dos “cernes e medulas” da linguagem: objetivo primeiro e
empenho fundamental da verdadeira vanguarda poética de nosso tempo”.
A produção mais recente
do poeta na época, Tempo Espanhol, seria
um termo de chegada: há evolução no sentido da construção formal, da ênfase na linguagem
e não no sentimento ou na ideia. Desde o início, desde sempre, Murilo é conduzido
por essa busca de um mundo substantivo, visto como rigoroso, adepto das concreções
e de uma terminologia que se forma em torno da palavra rigor: concisão, enxutez,
severidade, aridez, substantividade, arquitetura, geometria, etc.
Não teriam os concretos
reconhecido em Tempo Espanhol a influência
de Cabral sobre Murilo – e não apenas a influência deste sobre aquele - e em Cabral
seus próprios pressupostos sobre o que era e devia ser poesia? Cabral já era poeta
consagrado em 1963 e mantinha com o mestre Murilo um contato seguro. Mais tarde,
é o próprio Murilo que reconhece a dívida em Convergência, livro que seria o da conversão de Murilo aos puros jogos
linguísticos: Joãocabralizei-me.
Não cremos, porém, que
a ênfase na linguagem, de vezo construtivo ou concreto, seja o essencial da visão
de Murilo Mendes sobre a tarefa do poeta: esta liga-se antes à invenção de um nova
ordem histórica e meta-histórica – que, em comparação com o mundo institucionalizado,
será desordem ou bagunça transcendente
-, de um novo modo de dizer que veicule, em um tempo conturbado, uma linguagem liberada,
essencial no papel de dizer a verdade sobre a moderna condição humana.
Em entrevista de 1961
a Vera Pereira, ao ser perguntado sobre se sentia influenciado pelo concretismo,
Murilo responde, evitando a dependência e reafirmando sua postura universalista:
Não. Mas, de qualquer modo, constato a crise da poesia,
por esgotamento dos esquemas. Neste ponto, minha posição de certo modo, coincide
com a dos concretistas. (…) Entendo que a poesia concreta, ou melhor, o movimento
da poesia concreta, está ligado ao da cultura brasileira. Não é brasileiro só o
poeta que aborda temas tipicamente brasileiros. [28]
Para Arrigucci, o concretismo
final de Murilo Mendes “revela até o fascínio pelo mero charlatanismo de certos
jogos formais”. [29] E continua:
Reduzi-lo, porém, como fazem alguns de seus
críticos, a essa maneira momentânea, e só para vê-lo aproximado de João
Cabral, grande poeta, mas muito diverso, com outras qualidades e outros limites,
equivale a tirar dele toda a complexidade e o mistério que lhe são característicos,
sem lhe acrescentar nada de rigor ou de senso construtivo que lhe fizesse falta.
Mistério não implica perda de rigor ou abandono a um conteudismo informe, de que
se acusa, por incompreensão, a herança surrealista.
De fato, como observamos,
a visão do trajeto de Murilo Mendes como indo de um extremo a outro do espectro
das alternativas artísticas do século vinte – do romantismo surrealista ao construtivismo
concreto – não se mantém. E não se trata apenas de aproximações insólitas, como
entre surrealismo e catolicismo.
Ao falar de Cabral,
em sua relação com Murilo, avança Eucanaã Ferraz:
Há que se notar, no entanto, que o aspecto construtivo,
racional do surrealismo cabralino não era estranho ao próprio surrealismo fundador,
sobretudo nas artes plásticas, bem como era um dos traços marcantes da poesia de
Murilo Mendes.
[30]
Para o autor, não bastam
para a poesia de Cabral o automatismo e a construção aleatória.
“A poética cabralina,
assim como a muriliana, não busca o “automatismo”, rejeita a ideia de que a “experiência”
seja algo desimportante e procura o efeito de contiguidade imprevisível na construção
de algumas de suas imagens mais poderosas, como o “cão sem plumas” e a “faca só
lâmina”, ou mesmo em comparações inusitadas como aquela que aproxima o fazer poético
do ato de catar feijão”.
Mas ele reconhece uma
dimensão fundamental ao surrealismo, ignorada por muitos críticos:
O distanciamento e a vertente construtiva da estética surrealista
são dados fundamentais para compreendermos, em primeiro lugar, que Cabral, ao se
“curar” (a expressão é dele) do surrealismo, não sai de um extremo a outro. Em segundo
lugar, serve para entendermos o próprio distanciamento de Murilo com relação à estética
surrealista e sua posterior aproximação do racionalismo cabralino num livro decisivo
como Tempo
Espanhol.
Para Ferraz, no confronto
permanente com a realidade intramundana, aparece claramente
o fio que mantém tenso e dialético o surrealismo de Murilo
Mendes, que será reforçado a cada livro sem que a pesquisa de certas sutilezas impalpáveis,
a ruptura onírica e a transfiguração desapareçam, convertidas então à circunstância
de fio que manterá dialeticamente hirto o inequívoco realismo do poeta.
Reforça-se, desse modo,
a ideia da tendência surrealista para a construção, e esta é uma construção surpreendente,
que desautomatiza os hábitos da percepção comum, isto é, histórica e socialmente
alienada.
A palavra final vai
ficar com… Mário de Andrade, revisitada por José Guilherme Merquior. Ao constatar
em Murilo o “aproveitamento mais sedutor e convincente da lição surrealista”, em
seu artigo sobre a poesia nos anos trinta, o mestre do modernismo teria dito a palavra
essencial: surrealismo - Murilo introduz na literatura brasileira a prática do surrealismo.
O sintoma mais evidente de semelhante prática seria a “integração da vulgaridade
da vida com a maior exasperação sonhadora ou alucinada”. Mas, ao contrário do que
pensa Mário, diz Merquior, o surrealismo não significa fuga do mundo concreto. A
poesia é ação. “A poesia dos videntes se faz lirismo do gesto e da práxis. Como
o próprio Murilo afirma no poema ‘A marcha da História’, nela “se fundem verbo e
ação”. [31] E ainda:
Essa fidelidade ao caráter complexo e múltiplo da existência
não poderia deixar de abrir-se ao social, em sentido estrito (…) A imaginação surrealista
faz valer, tanto ou mais que o realismo ‘strictu sensu’, seus direitos à firme apreensão
da realidade.
Merquior estabelece,
a nosso ver de maneira definitiva, o diagnóstico da contaminação do poeta pelo surrealismo.
A apreciação do surrealismo como modalidade de ação e pensamento e não como escola
é aplicada por Merquior ao próprio modernismo brasileiro em literatura: “Nosso modernismo
literário seria, ainda mais que o plástico, e sem dúvida bem mais que o musical,
um complexo estilístico. Não foi por acaso
que só pôde ter a unidade de um movimento,
jamais a uniformidade de uma escola”. [32]
Embora o surrealismo,
do ponto de vista estilístico, possa ser visto como um aspecto do modernismo, alerta-nos
o autor: há evidente inadequação em tomar o surrealismo como um estilo entre outros.
Na origem suas intenções eram mais amplas: “patenteadas pela maioria de seus ritos
semióticos, o surrealismo não se queria um estilo a mais, e sim uma autêntica “revolução
cultural”. Um movimento quiliástico-anarquista, inspirado no lema da Saison en enfer: changer de vie”.
Nesta gesta utópica
é que vamos encontrar Murilo Mendes, para fazê-lo coincidir com o que há de mais
nodal no surrealismo, na rede de articulações que este propôs entre arte, vida,
política, história e sociedade. Merquior afirma com justeza: “Essa tremenda carga
utópica é a essência do surrealismo-movimento, a sua grande originalidade face ao
niilismo dadá; e foi a isso – e não às receitas de escola, tipo escrita automática
– que Murilo jurou uma fidelidade nunca desmentida”.
A referência ao quiliasmo,
doutrina que afirma que os predestinados ficariam ainda
na Terra durante mil anos após o julgamento final, no gozo de todos os prazeres,
estabelece a ponte, em Murilo, entre erotismo e cristianismo, sexo e misticismo,
a mulher e a Igreja. E, mais do que na tensão entre pólos ou na fusão destes, o
poeta confunde e justapõe, deslocando-se em espiral, pontos de vivência e de observação
diferentes, o que a mente cartesiana resolve em lúcidas dicotomias. Murilo não chega
ao real partindo de uma visão transcendente: ele se mescla ao real, por vezes ao
mais quotidiano desejo, ao lugar e ao momento mais comuns, para arrastá-lo em palavras
ao delírio e ao sonho.
No dizer de Merquior,
tal poética é
delirantemente sonhadora, portanto – mas enamorada do real,
até porque estranha amante erótica. Libertarismo e libido aí se dão aos mãos, e
situam em Murilo umas das realizações mais poderosas – a meu ver, mais consistente
do que seus pares franceses, Éluard ou Aragon – do anarco-erotismo surreal.
O próprio iconoclasta
surrealista, ateu e anti-clerical, inspirou em parte a insolência religiosa, por
vezes doutrinariamente herética, por vezes politicamente indignada, do poeta.
Em Murilo, poesia, obra
e existência estão continuamente inspiradas não apenas por procedimentos e operações
formativas centrais no surrealismo, mas por um ideário presente em sua dimensão
estética, ético-política, e até mesmo espiritual, mística e messiânica.
A crítica social, via
surrealismo, ganha, a partir de 1934, o incentivo do cristianismo. Para Murilo Marcondes
de Moura, em As Metamorfoses, de 1944:
O surrealismo mantém sua plena atualidade, sobretudo no
que se refere à valorização da imagem e à criação do insólito. Por seu lado, o cristianismo
fornece uma visão de mundo e de história que vai balizar o alcance e o significado
das imagens e das atmosferas criadas pelos poemas. [33]
Longe de ser apenas
crítica destrutiva ou arbitrariedade sem rumo, o surrealismo é também forma e construção.
Do surrealismo é imperativo dizer-se que, para Murilo, ele
foi principalmente (por paradoxal que pareça) uma disciplina, um rigor – uma ascese
poética. Tanto mais gratuita soa, por isso, a longa reticência com que foi, até
duas décadas atrás, recebida a natureza estilhaçada e fragmentária do seu verso
deliberadamente imelódico e inarmônico.
O áspero e mesmo o grotesco
podem incomodar, mas fazem parte de uma estratégia em vistas de produzir o novo.
Diz Merquior:
No fundo, a poética muriliana do áspero e da ruptura convergia
perfeitamente com o antiesteticismo fundamental do projeto surrealista. (…) o surrealismo
ortodoxo mobilizava dialeticamente o kitsch
em nome de um puritanismo antiesteticista. A teimosa recusa do melodioso, das transições
amaciadas, no verso de Murilo não tem outra intenção: em última análise, é uma forma
de garantir a pureza dos cortes e repentes, dos efeitos de distanciamento, mediante
os quais essa lírica de choque se constrói.
À aspereza de seu verso,
some-se a clareza do quer dizer, ou mesmo proclamar. Se em certo período, a classicização
do verso, tendência dominante na poesia brasileira na passagem para os anos 50,
seduziu Murilo, este manteve-se modernista e surrealista, longe de um hermetismo
que não decorresse diretamente de seus princípios de construção. Infenso à tentação
romântica de melancolia e derrotismo, sua crença na palavra poética, na palavra
enquanto forma, se o abandonou, em seus últimos anos, não afetou de modo decisivo
sua produção. Para Merquior, seu surrealismo é meridiano:
Em definitivo, subjacente à garra libertária de seus livros,
nutriz dessa arte verbal colocada sob o signo maior da Poesia Liberdade, pulsa um
orfismo invariavelmente escatológico, um orfismo de ressurreição. (…) A dionisação
do motivo órfico, tão patente na última poesia de Murilo veio enfim dramatizar e
consumar aquele saturnalismo que perpassa no utoipismo a sua religiosidade, o seu
desrespeito básico por toda sacralização da “renúncia” libidinal.
Para resumir. Encontramos,
no trabalho crítico, dedicado à vida e obra de Murilo Mendes, posições muito diferentes
sobre as relações entre o movimento surrealista e a atividade poética, política
e religiosa do poeta, suas diretivas teóricas, seu valores e crenças: sua poesia
seria essencialmente surrealista, sua
poesia não seria mais que circunstancial, superficial e momentaneamente surrealista.
A diversidade de avaliações
não resulta de incapacidade dos críticos, mas da própria complexidade daquelas relações,
bem como nos critérios selecionados para dar conta delas e na maneira de compreender
o surrealismo. O próprio poeta forneceu, por meio de declarações ao longo da vida
e dos textos, argumentos para o imbróglio.
Alguns obstáculos podem,
contudo, ser evitados de maneira simples e arqui-sabida. Por um lado, é necessário
não reduzir o surrealismo, em termos de operações formais, à escrita automática
e, em termos de princípios diretores, a um irracionalismo descabelado e descomprometido.
Por outro lado, trata-se de não confundir influência com minoridade criativa e intelectual,
plágio ou submissão a modelos importados. Para ficar no exemplo da música erudita,
tão a gosto de Murilo, especificamente, no âmbito germânico e na passagem do barroco
ao clássico (outra antinomia que irá perseguir a leitura crítica da produção muriliana),
Johan Sebastian Bach foi influenciado por Corelli; Mozart, por Johan-Christian Bach;
Beethoven, por Clementi; e não deixaram por isso de ser grandes.
Nosso complexo de colônia
provoca, por vezes, reações extremadas: esquecimento para aqueles que se afastam
de nós, inveja dirigida aos que se consagram no exterior, acompanhados por uma admiração
secreta. Duplicidades de um suposto, e literalmente improvável, caráter nacional
brasileiro da intelectualidade pátria? Drummond, com leveza e humor de cronista,
esclarece, a propósito do prêmio internacional de poesia que Murilo recebera na
Itália, em 1972:
Ora, direis, o Murilo anda distante de nós uma fieira de
mares e anos, e quem está longe, taca-se silêncio nele. Se estivesse aqui fazendo
o corso das exposições de arte e antiarte, das noites uisqueiras de autógrafos,
dos bares ao Sul plantados, isto sim, que o carregaríamos no andor, e havia de ser
curtição por uma semana. [34]
E mais adiante:
Engraçada, nossa faculdade de arquivar o companheiro, logo
que ele dobra a esquina; se vai de jato ou de avião, então, desabam séculos de esquecimento.
A verdade é que Murilo levou na bagagem para a Itália (onde ensina Brasil, vende
Brasil, mercadoria intelectual) sua alma brasileira, sua poesia brasileira cheia
de novidades.
Mais do que brasileira,
poder-se-ia falar de sua alma universal (“católica”). Melhor, não: a novidade de
Murilo está em possuir, no júbilo e também na angústia, uma alma culturalmente plural,
que explorou os limites da subjetividade social e psicológica para mover-se entre
a mais densa tradição ocidental das linguagens simbólicas e a abertura, a surpresa
mesmo de um tempo novo – tempo da poesia e tempo da história humana – no qual se
confrontam desastre e esperança.
NOTAS
1. Rosenfeld,
Anatol. “Dadá não está gagá”. Texto/Contexto
II. São Paulo: Perspectiva, 1993.
2. Lacoue-Labarthe, Philippe e Nancy, Jean-Luc. “A exigência fragmentária”.
Terceira Margem, nº 10, 2004.
3. Löwy,
Michel. A estrela da manhã. Surrealismo
e marxismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 2002.
4. Idem.
Cf.tb. Benjamin, Walter. “O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia”.
Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense,
1985, v.1.
5. Pleynet,
Marcelin. A liberdade livre. In Novaes, Adauto (org.) Poetas que pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
6. Em
Löwy, M., op.cit., diz Sergio Lima, em suas Notas acerca do movimento surrealista
no Brasil (da década de 1920 aos dias de hoje): “Benjamin Péret mora no Brasil de
fevereiro de 1929 a dezembro de 1931, tem contato com a Revista de Antropofagia e desenvolve pesquisa sobre nossas artes e raízes
afro-índias (…) Mas mesmo antes dessa visita, artistas e escritores como Ismael
Nery, Aníbal M. Machado, Murilo Mendes e Mário Pedrosa se interessam pelo surrealismo,
como o fizeram, na década de 1930, Cícero Dias, Fernando Mendes de Almeida e Jorge
de Lima”. O autor acentua o caráter universalista do Surrealismo contra os nacionalismos
em voga no período.
7. Nunes,
Benedito. A poesia confluente. In Novaes, Adauto (org.) Poetas que pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
8. Leal,
César. San Juan de la Cruz. Dimensões temporais
na poesia & outros ensaios. Rio de Janeiro: Imago, Brasília, DF: Infraero,
2005. É possível lembrar também o maneirismo de El Greco, outra das admirações de
Murilo Mendes e de sua “estética da metamorfose e do descentramento, a que subjaz
um formante barroco ou maneirista iniludível”. Cf. Frias, Joana Matos. O erro de Hamlet: poesia e dialética em Murilo
Mendes. Rio de Janeiro: 7Letras; Juiz de Fora: Centro de Estudos Murilo Mendes-UFJF,
2002.
9. Raymond,
Marcel. De Baudelaire ao surrealismo.
São Paulo: EDUSP, 1997.
10. Löwy,
op.cit.
11. Faustino,
Mário (Boaventura, Maria Eugenia, org.). De
Anchieta aos concretos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
12. Araújo,
Laís Corrêa de. Murilo Mendes: ensaio
crítico, antologia, correspondência. São Paulo: Perspectiva, 2000, a respeito de
Metamorfoses: “Nesse sentido, não há mudança
em Murilo Mendes, que continua a agredir
a “boa poesia” com sua voz altissonante, a sua impulsividade verbal, a contextura
surrealístico-barroquizante, a mitologia e o onirismo de suas imagens”.
13. Araújo,
Laís Corrêa de. Murilo Mendes: ensaio crítico,
antologia, correspondência. São Paulo: Perspectiva, 2000.
14. “Não
é pacífica a questão se Murilo Mendes deve ser caracterizado como surrealista ou
não. Nem é preciso proceder a uma extensa revisão da crítica sobre o autor para
perceber que existem posições antagônicas. O abismo entre, por exemplo, as posições
de José Guilherme Merquior e Laís Corrêa de Araújo é, neste respeito, emblemático”.
Ponge, Robert. Murilo Mendes, Maria Martins e o Surrealismo. Cecília Meireles & Murilo Mendes (1901-2001).
Porto Alegre: Instituto de Letras UFRGS, Uniprom Ed., 2001.
15. Expressão
escrita cuja pronúncia admite dois significados: cent têtes e sans tête.
16. Frias,
Joana Matos, op. cit.
17.
Ronda a autora o perigo de abandonar-se a uma hagiografia com roupagem erudita.
Mas o livro, rico em sugestões – talvez até em excesso – tem como projeto um entendimento
real e aprofundado do poeta.
18. Arrigucci
Jr., Davi. O cacto e as ruínas. São Paulo:
Duas Cidades/Editora 34, 2000.
19. Cf.
idem p.103: “Murilo nunca foi decerto um surrealista francês”.
20. Mendes,
Murilo. Ismael Nery, poeta essencialista. In Guimarães, Júlio Castañon (org.). Murilo Mendes – 1901-2001. Juiz de Fora:
CEMM/UFJF, 2001.
21. Picchio,
Luciana Stegagno. Murilo Mendes 1932: a História do Brasil revisitada. Revista Metamorfoses 2. Rio de Janeiro: Faculdade
de Letras – UFRJ, set., 2001.
22. Raymond,
M., op. cit.
23. Cf.
Guimarães, Júlio Castañon. Apontamentos sobre algumas aproximações e alguns procedimentos
em Murilo Mendes. In Ribeiro, Gilvan Procópio e Neves, José Alberto Pinho (org.)
Murilo Mendes: o visionário. Juiz de Fora:
EdUFJF, 1997.
24. Leite,
Sebastião Uchoa. A meta múltipla de Murilo Mendes. Crítica de ouvido. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
25. Franco,
Irene Miranda. Murilo Mendes: pânico e flor.
Rio de Janeiro: 7Letras; Juiz de Fora: Centro de Estudos Murilo Mendes, UFJF, 2002.
26. Cf. Arrigucci, D., op. cit.
27. Cf.
Moura, Murilo Marcondes de. A poesia como
totalidade. São Paulo: EDUSP: Giordano, 1995.
28. Mendes,
Murilo. Murilo Mendes: toda boa e aut~entica poesia é de vanguarda. Entrevista a
Vera Pereira. In Guimarães, Júlio Castañon. Murilo
Mendes – 1901-2001. Juiz de Fora: CEMM/UFJF, 2001.
29. Arrigucci,
op,cit.
30. Ferraz,
Eucanaã. Murilo Mendes e João Cabral: o sim contra o sim. Ipotesi – revista de estudos literários. Universidade Federal de Juiz
de Fora, v.6, nº 1, jan/jun 2002.
31. Merquior,
José Guilherme. Razão do poema. Rio de
Janeiro: Topbooks, 1996.
32. Merquior,
José Guilherme. “Notas para uma Muriloscopia” (1978). In Mendes, Murilo. Poesia Completa e Prosa. (Org., preparação
do texto e notas de Luciana Stegagno Picchio). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
33. Moura,
Murilo Marcondes de. A poesia como totalidade.
São Paulo: EDUSP: Giordano, 1995.
34. Andrade,
Carlos Drummond de. Murilo Mendes – Prêmio Etna-Taormina (1972). In Mendes, Murilo.
Poesia Completa e Prosa. (Org., preparação
do texto e notas de Luciana Stegagno Picchio). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
ROGERIO LUZ | Professor aposentado da ECO-UFRJ, publicou artigos e livros nas áreas de arte e psicanálise. Analyse Structurale du Récit Filmique. Mons: Editions Ciné-Jeunes, 1969. Expressão Corporal: uma Política do Corpo. Rio: Centro de Documentação e Pesquisa, Funarte, 1979. Espace Potentiel et Expérience Filmique. Louvain-la-Neuve: Ciaco, 1987. Filme e Subjetividade. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2002. Em coautoria, com Roberto Machado, Angela Loureiro e Kátia Muricy: Danação da Norma (Medicina social e constituição da Psiquiatria no Brasil). Rio: Graal, 1978; com Ivone Lins: D. W. Winnicott: Experiência Clínica e Experiência Estética. Rio de Janeiro: Revinter, 1998; com Flávia Martins, Santeiros da Bahia – arte popular e devoção. Recife: Caleidoscópio, 2010; com Flávia Martins e Pedro Belchior. Escultores Populares de Pernambuco. Recife: Caleidoscópio, 2013. E mais oito coletâneas de poemas, dentre elas: Escritas (Prêmio de Poesia do Concurso Literário da Universidade Federal do Goiás). Goiânia: Ed. UFG, 2011, e Os Nomes (Prêmio de Poesia do Governo do Estado de Minas Gerais). Rio de Janeiro: Ed. Circuito, 2014. Publicou ainda um livro de contos: Aeroplano (Prêmio Uirapuru). Belém: Editora Folheando, 2020.
TRAVIS SMITH (Estados Unidos, 1970) | Artista gráfico conocido por diseñar carátulas de álbumes para bandas de heavy metal. El periódico Chronicles of Chaos lo considera sin duda uno de los artistas gráficos más talentosos del heavy metal actual. Entre 1998 y 2022 ha realizado más de 100 proyectos gráficos completos (no solo las portadas) para varias bandas de heavy metal, incluyendo Devin Townsend, Katatonia, Nevermore, Opeth, Anathema, Black Crown Initiate, Soilwork, King Diamond, Novembre, Avenged Sevenfold, Strapping. Young Lad, Perséfone, Riverside y Overkill. La base de su trabajo consiste principalmente en la creación completa del arte de cada álbum. Es conocido por un estilo oscuro e introspectivo que se basa en gran medida en la fotografía, compuesta digitalmente con varios otros medios. También se utilizan texturas acrílicas, así como acuarelas, pasando por un proceso de digitalización y posterior superposición sobre matrices fotográficas. Tenerlo con nosotros como artista invitado es una forma de reconocer la belleza de su creación. En una breve conversación, nos autorizó a utilizar todo este material.
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 13
Número 212 | julho de 2022
Artista convidado: Travis Smith (Estados Unidos, 1970)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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