1.
O presente
artigo dá prosseguimento ao que examinei em uma palestra na Unifesp, [1] subsequentemente publicada. [2] Meu ponto de partida, naquela ocasião,
foi a frase de André Breton no prefácio de Nadja:
“Subjetividade e objetividade travam, ao longo de uma vida humana, uma série de
combates, nos quais a primeira costuma sair-se inteiramente mal” (2006).
Associei
a uma observação de Baudelaire, em um texto de 1859, inacabado e publicado postumamente,
A Arte Filosófica: “O que é a arte
pura segundo a concepção moderna? É criar a magia sugestiva que contenha ao mesmo
tempo o objeto e o sujeito, o mundo exterior ao artista e o próprio artista” (1995).
Na
ocasião, examinei o tratamento dado por Breton à questão do sujeito em várias de
suas obras. Dentre as narrativas, comentei Nadja,
O amor louco, Os vasos comunicantes. Dentre os artigos e transcrições de palestras
do surrealista, escolhi dois. Um deles, “Situação surrealista do objeto”, palestra
de 1935 que integra o conjunto Posição política
do Surrealismo, por sua vez adicionado a edições dos Manifestos do Surrealismo. [3]
O outro, “Le Message automatique”, de 1933, subsequentemente publicado na coletânea
Point du jour.
Através
dos dois, e especialmente de “Le Message automatique”, é exposto o que Breton preconizava
para que a subjetividade não se saísse tão mal em seus combates com a objetividade.
São procedimentos que, certamente, Baudelaire teria adotado como “magia sugestiva”.
Um deles é olhar para as nuvens, lugar de encontro do desejo e da realidade: “levantar
os olhos daqui de baixo, da terra, para uma nuvem, é a melhor forma de interrogar
nossos mais íntimos desejos”, disso o
surrealista em O amor louco (1971); pois
“toda a questão da passagem da subjetividade à objetividade se encontra aqui implicitamente
solucionada”.
Baudelaire
– que Breton cita em O amor louco – já
havia tomado o partido das nuvens em um poema capital, “A viagem”, que encerra As flores do mal e no qual proclamou sua
adesão incondicional ao novo:
As
maiores regiões, a mais pujante aldeia,
Não
continham jamais os encantos secretos
Dessas
que o acaso com as nuvens delineia.
E
eis que o desejo nos fazia mais inquietos! (1995)
A
estrofe de Baudelaire pode até mesmo ser lida como sinopse do pensamento de Breton,
pela presença de dois termos ou categorias fundamentais para o surrealista: acaso e desejo.
Outros
procedimentos surrealistas para que a subjetividade prevalecesse ou tivesse chances
perante a objetividade: um correlato de olhar nuvens, olhar manchas na parede até
se delinearem formas, conforme recomendado por Leonardo da Vinci; a “flânerie”,
caminhar ao acaso, também na esteira de Baudelaire; a escrita automática, o ditado
não controlado do pensamento; as frases entreouvidas ao acaso ou captadas durante
os sonhos; olhar espelhos, bolas de cristal, gotas d’água; registrar atos involuntários,
delírios, sintomas psiquiátricos, dando atenção a seu valor estético. O conjunto
das proposições levou-me a caracterizar o surrealismo como poética da alucinação
ou do delírio.
2.
“Situação
surrealista do objeto”, a palestra de 1935, é um exame filosófico, em primeira instância,
do que Breton entendia como “crise fundamental do objeto”:
Jamais
insistirei demasiado no fato de que, em sua Estética, Hegel atacou todos os problemas
que atualmente podem ser considerados os mais difíceis no plano da poesia e da arte
e que, com lucidez inigualável, resolveu a maior parte deles.
Sendo
a poesia, para Hegel, “a verdadeira arte do espírito”, “ela manifesta mais e mais
a necessidade de atingir, 1º por seus próprios meios, 2º por meios novos, a precisão
das formas sensíveis.” Contudo, Breton vê uma “fusão das duas artes”, pintura e
poesia, a partir do momento em que as artes visuais passam a mostrar entidades ou
coisas da esfera “interior”, do sujeito:
Não
existe, no momento atual, nenhuma diferença de ambição fundamental entre um poema
de Paul Éluard, de Benjamin Péret, e uma tela de Max Ernst, de Miró, de Tanguy.
Libertada da preocupação de reproduzir formas tomadas ao mundo exterior, a pintura,
por sua vez, tira partido do único elemento exterior que arte alguma pode dispensar,
a saber, a representação interior, a imagem presente ao espírito. Ela confronta
esta representação interior com a das formas concretas do mundo real, tenta, por
sua vez, como fez Picasso, captar o objeto em sua generalidade e, uma vez atingido
esse fim, tenta o supremo procedimento, que é o procedimento poético por excelência:
excluir (relativamente) o objeto exterior como tal e só considerar a natureza em
sua relação com o mundo interior da consciência.
Valem,
penso, como reapresentação das ideias expostas por Breton em “Situação surrealista
do objeto”, observações de Octavio Paz, feitas quase duas décadas depois, em sua
palestra de 1954 sobre surrealismo, mais tarde publicada na coletânea La búsqueda del comienzo:
Paz,
avesso a detalhar citações e expor referências bibliográficas, não cita o artigo
aqui examinado de Breton, e tampouco Hegel, paradigma oculto ou implícito dessa
argumentação. Mas, claramente, é disso que trata o surrealista; e não só no texto
aqui citado, porém ao longo de toda a sua obra: da subjetivização do objeto; de uma resposta do sujeito ou revanche da
subjetividade ao tratamento que lhe é dado, em nossa civilização, pela objetividade.
Complementada pela destruição do “eu”, pela “objetivização do sujeito”, categoria
também apresentada por Paz, que é alcançada através da escrita automática e demais
procedimentos surrealistas
Cabe
perguntar: o que faltou a Baudelaire para que considerações dessa ordem estivessem
em seus textos como crítico de arte, desde “Salão de 1846”? Obviamente, o intervalo
de 89 anos entre um e outro texto. Faltaram obras como essas que Breton cita, de
Picasso, Ernst, Miró, Tanguy. A releitura da crítica de arte por Baudelaire mostra
que tais obras viriam realizar o ataque do poeta ao naturalismo, ao realismo, à
identificação do valor artístico à representação do objeto ou de um tema. A exclusão
do “objeto exterior” e a consagração do “objeto interior” – ou, nos termos de Paz,
a “subjetivização do objeto” e a “objetivização do sujeito” – foram antecipadas
por ele. Não dispondo de obras de Ernst, Tanguy e Miró, escreveu sobre Delacroix
(de um modo que provocou perplexidade no pintor). Provavelmente, se já existisse,
Baudelaire teria se maravilhado com o “art nouveau” ou modern style, cuja exuberância desafiou a funcionalidade, a subordinação
ao útil, justificando Salvador Dalí tê-las como “verdadeiras realizações de desejos
solidificados”, conforme cita Breton.
Talvez
as categorias de Paz já tivessem sido antecipadas e sintetizada por Lautréamont
em Os cantos de Maldoror, na frase citada
por Breton: “É um homem ou uma pedra ou uma árvore que vai começar o quarto canto.”
(Lautréamont, 1997) Ou seja, um ser híbrido, uma síntese e não uma aberração, ao
mesmo tempo coisas, objetos, e sujeito a expressar-se.
Breton
ainda cita ou transcreve uma sucessão de ataques à relação de significação. Escolhendo
a dedo o que fosse à primeira vista obscuro, hermético, delirante, a começar pelo
“triunfo absoluto do delírio panteístco” do derradeiro poema de Rimbaud, “Sonho”.
É seguido pela transcrição de “O músico de Saint-Merry” de Apollinaire (“Tenho,
enfim, o direito de saudar seres que não conheço”), e pelo encadeamento de sintagmas
de “Segunda feira na Rua Cristina” (“Isto parece rimar”). Entre um e outro, a apresentação
satírica por Alfred Jarry do pensamento analógico e das correspondências de Baudelaire
em “Fábula”, sobre a atração de uma lata de “corned beef” por uma lagosta, “vivente
caixinha automotriz de conservas”. E, mostrando a continuidade com relação àqueles
antecessores, a rica imagética de Paul Éluard em “Os mestres” e de Benjamin Péret
em “Fala-me”. A culminância ou fim da série é um poema de Salvador Dalí, “Brochura
ninada”, introduzindo, entre outras coisas, uma xícara assemelhada “a uma doce antinomia
municipal árabe”: certamente, um exemplo radical de imagem poética surrealista feita
de aproximações de realidades diversas e distantes
Para
Breton, todo “o esforço técnico do surrealismo” para alcançar a vidência preconizada
por Rimbaud “consistiu em multiplicar as vias de penetração das camadas mais profundas
da mente”:
Na
primeira linha desses meios, cuja eficácia ficou plenamente comprovada nos últimos
anos, figuram o automatismo psíquico sob todas as suas formas (ao pintor se oferece
um mundo de possibilidades, que vai do abandono puro e simples ao impulso gráfico
até a fixação em trompe
l’oeil de imagens oníricas), bem como a atividade
crítico-paranoica definida por Salvador Dalí: “método espontâneo de conhecimento
irracional baseado na objetivação crítica e sistemática das associações e interpretações
delirantes”.
Breton
ainda adiciona páginas de transcrição do depoimento de Max Ernst sobre a gênese
das “colagens” [4] e “frotagens”, além
de manifestar o devido reconhecimento ao tratamento que Marcel Duchamp já vinha
dando aos objetos, apresentados como “ready made”.
O conjunto dessas menções a artistas visuais é
importante, entre outras razões, por desautorizar a crença, tão frequentemente enunciada,
em uma “estética surrealista” ou um “estilo surrealista”. Caso se adotassem categorias
comuns entre os críticos e no mercado de artes, distinguindo, por exemplo, abstracionistas
líricos, geométricos, expressionistas, figurativos etc., os artistas mencionados
teriam que ser localizados em escaninhos diferentes. Embora na criação e expressão
poética as imagens feitas de aproximações de realidades distantes sejam uma tônica
dominante, quase uma constante, o exame mais atento mostrará diversidade equivalente.
Incluirá obras que, descontextualizadas, passariam por construtivistas. Em comum
aos surrealistas, não a forma, o “estilo”, porém uma atitude: a postura rebelde,
a categórica rejeição da ordem estabelecida. E uma fundamentação filosófica, na
qual o confronto de subjetividade e objetividade é central.
Dali
ainda volta a ser citado em “Situação surrealista do objeto”, a propósito do objeto
surrealista “que se baseia nos fantasmas e representações suscetíveis de serem provocados
pela realização de atos inconscientes”. Para o catalão, tais objetos, “correspondendo
a fantasias e desejos eróticos claramente caracterizados, só dependem da imaginação
amorosa de cada um e são extraplásticos”. Aplica-se, portanto, a eles, ao conjunto
de tais objetos, o modo como ele já havia caracterizado as obras arquitetônicas
do “art nouveau”, especialmente de Gaudí, conforme aqui citado, como “desejos solidificados”.
3.
Em “Situação
surrealista do objeto” Breton empreendeu uma discussão filosófica, que não está
ausente do precedente “Le Message automatique”, de 1933, no qual ataca, de modo
mais enfático, a separação entre subjetividade e objetividade, ao dispor-se a:
[...]
esboçar a história da crise que, nessas condições, a atitude surrealista, no que
diz respeito ao grau de realidade a conceder ao objeto, não pode deixar de fazer
sofrer o pensamento puramente especulativo. Poetas e artistas, teólogos, psicólogos,
doentes mentais e psiquiatras estão de todo modo desde sempre à procura de uma linha
de demarcação válida que permita isolar o objeto imaginário do objeto real, sendo,
contudo, admitido que, até nova ordem, o segundo pode facilmente desaparecer do
campo da consciência e o primeiro aparecer lá, que subjetivamente suas propriedades
se mostrem intercambiáveis. A escrita automática, praticada com algum fervor, conduz
diretamente à alucinação visual, eu fiz pessoalmente a experiência, e basta reportar-se
à “Alquimia do verbo” para constatar que Rimbaud o havia feito bem antes de mim.
Assim, visões e alucinações ganham o estatuto
de percepções íntegras: o visionário alucinado efetivamente vê; no automatismo verbal,
de fato ouve. E tanto a alucinação como a escrita automática seriam aqueles momentos
em que é superada a contradição de sujeito e objeto, ou de subjetividade e objetividade.
Trata-se de um evidente ataque à tradição racionalista, às heranças de Aristóteles
e de Descartes, fundada, me parece, muito mais em uma exacerbação da filosofia romântica,
das ideias de Fichte, Schelling, Novalis e dos irmãos Schlegel, do que em Hegel.
Breton completa sua argumentação lembrando
uma mística, Santa Tereza d’Ávila, que relatou haver visto sua cruz de madeira transformar-se
em crucifixo de pedras preciosas. Considera essa visão ao mesmo tempo imaginada
e sensorial; ou seja, uma síntese. O exemplo o leva a uma tirada de humor, a meu
ver injusta: “Tereza d’Ávila pode passar como alguém que comanda essa linha na qual
se situam os médiuns e os poetas. Infelizmente, ainda não passa de uma santa”.
Se me fosse dado estabelecer uma hierarquia
pessoal de textos bretonianos, ordenados pela preferência, “Le Message automatique”
ocuparia posição de destaque. É, para mim, Breton total, em estado puro, radicalmente
visionário. Certamente, sob o ponto de vista filosófico, não apenas sua argumentação,
porém os exemplos nos quais a fundamenta são a expressão de um idealismo extremado.
Por exemplo, ao afirmar que o astrônomo William Herschel, descobridor do planeta
Urano e outros corpos celestes,
[...] em 1816 “alcança a “produção involuntária
de imagens visuais cuja regularidade constituía o caráter principal, e isso em condições
que tornariam absolutamente inútil toda explicação extraída da regularidade possível
na estrutura da retina e dos nervos ópticos.
Para desafiar o positivismo, menciona também
James Watt, o matemático e engenheiro escocês, não propriamente inventor das máquinas
a vapor, porém aquele que as aperfeiçoou, possibilitando a construção de locomotivas
e de outros equipamentos, contribuindo para desencadear a revolução industrial.
Para Breton, a invenção não é mais apenas resultado do cálculo, do planejamento:
tem um componente visionário, pois Watt, “em um quarto escuro, contempla a futura,
a próxima máquina a vapor”.
Há observações que poderiam ter sido subscritas
por um autor tão antagônico com relação ao surrealismo como Jorge Luis Borges:
A expressão “Tudo está escrito” deve, me
parece, ser entendida ao pé da letra. Tudo está escrito sobre a página em branco,
e são maneiras bem inúteis que se fazem os escritores para qualquer coisa como uma
revelação e um desenvolvimento fotográficos.
Faltaria apenas adicionar, nessa afronta
ao modo construtivista de pensar a criação, com todos os seus depoimentos sobre
“o desafio da página em branco”, que todos esses escritos preexistentes, à espera
da revelação, já estão na Biblioteca de Babel imaginada pelo genial escritor argentino.
Antecipando O amor louco, Breton também cita o procedimento recomendado por Leonardo
da Vinci, de olhar manchas na parede. Mas não o equipara, ainda, a olhar para as
nuvens.
Dentre
os tópicos recorrentes em Breton e no surrealismo, há, ainda, a homenagem a Charcot,
por haver originado “esse magnífico debate sobre a histeria”, e Schrenck-Notzing
por haver chamado a atenção em 1889 para “o valor artístico dos movimentos de expressão
da histeria e da hipnose”. De fato, uma gênese do surrealismo está na estada de
Breton, já como residente (ele terminou o curso de medicina mas recusou o diploma)
em instituições psiquiátricas, durante a Primeira Guerra Mundial; isso, enquanto
tinha aulas com Charcot, Pierre Janet e outros expoentes da psiquiatria, e descobria
Freud.
O
mais característico de “Le Message automatique”, se comparado a outros textos bretonianos,
é o modo como parece deixar de lado a fundamentação freudiana, dirigindo o foco
para a psicologia da percepção e para aquilo que William James denominou “psicologia
gótica”; ou seja, a incipiente parapsicologia. Comenta Myers e Flournoy, iniciadores
dessa disciplina. E boa parte do artigo é sobre paranormalidade, mediunidade, produção
de visões, vidência, premonição. Ideias fixas de Breton, temas recorrentes, como
se vê pelos relatos de visitas a médiuns videntes e cartomantes em Nadja e na “Carta às videntes” – mas sempre
objetando à separação do médium e da mensagem mediúnica. Enquanto aquilo que registravam
sessões espíritas e práticas correlatas corresponderia a uma divisão, a escrita
automática e todas as demais práticas de alucinação voluntária ou delírio proposital
preconizadas pelo surrealismo resultariam em uma integração; uma síntese, conforme
o quadro de referências filosófico por ele adotado.
4.
Dentre
todos os autores citados e casos relatados em “Le Méssage automatique” – esse texto
que, tratando de surrealismo, é, de modo consistente, surreal – observo uma ausência.
Não cita Dalí, que ganharia especial atenção a seguir, em “Situação surrealista
do objeto”. Isso, não obstante a argumentação bretoniana ser, de modo evidente,
um exemplo de aplicação do método paranoico-crítico, entendido como manifestação
do delírio interpretativo.
Os fundamentos do método paranoico-crítico
haviam sido expostos por Dalí em um texto de 1930, intitulado “L’Âne pourri” (o
asno apodrecido ou podre):
Eu acredito que esteja próximo o momento
em que, por um processo de caráter paranoico e ativo do pensamento, será possível
(simultaneamente ao automatismo e outros estados passivos) sistematizar a confusão
e contribuir para o descrédito total do mundo da realidade.
O “ditado do pensamento”, fundamento do surrealismo
conforme o primeiro Manifesto do surrealismo,
seria, então, passivo; o delírio interpretativo proposto por Dalí seria ativo. Contudo,
ao equiparar ao automatismo procedimentos como enxergar formas em nuvens e manchas
na parede, além de contemplar bolas de cristal ou espelhos, Breton incorpora as
proposições de Dalí. Ambos falam da mesma coisa; da “imagem dupla” resultante do
“processo nitidamente paranoico”. Há, portanto, relação de complementaridade entre
as ideias desenvolvidas por Dalí e a formulação mais ampla do que seria o automatismo
psíquico por Breton. Olhar para as nuvens e paredes, recomendado em “Le Message
automatique” e, em maior detalhe, em O amor
louco, são a mesma coisa que a “imagem dupla” resultante da paranoia, para
Dalí:
A obtenção de uma tal imagem dupla foi possível
graças á violência do pensamento paranoico que se serviu, com estratagema e destreza,
da quantidade necessária de pretextos, coincidências etc., aproveitando-se disso
para fazer aparecer a segunda imagem que nesse caso toma o lugar da ideia obsedante.
Tais imagens não são apenas duplas, porém
múltiplas, prossegue Dalí: pode haver uma terceira imagem, por exemplo de um leão,
“e assim por diante até a ocorrência de um número de imagens limitado unicamente
pelo grau de capacidade paranoica do pensamento”. Todas são “simulacros”; até mesmo,
e aqui atacando diretamente o materialismo de Georges Bataille, “se um desses estados
adotar a aparência de um asno apodrecido e mesmo que um tal asno esteja realmente
e horrivelmente apodrecido, coberto por milhares de moscas e de formigas”; pois
“nada pode me convencer que essa cruel putrefação do asno seja outra coisa senão
o reflexo ofuscante e duro de novas pedras preciosas.”
Da produção de textos de Dalí sobre o método
paranoico-crítico, destaca-se aquele de 1933 sobre a “imagem obsedante” do Ângelus,
o quadro de Millet, assim demonstrando que um chavão das artes visuais podia ser
visto como representação de outras coisas, também publicado sob o título de “Novas
considerações gerais sobre o mecanismo do fenômeno paranoico do ponto de vista surrealista”.
É o artigo no qual proclama que suas observações sobre paranoia crítica “nada fazem
senão confirmar-se de maneira rigorosa à leitura da admirável tese de Jacques Lacan
“Da Psicose paranoica em suas relações com a Personalidade”; assim, remetendo ao
futuro autor de novas e ousadas observações sobre a subjetividade e a constituição
do sujeito.
Nesse artigo, reafirmando sua disposição
de promover o descrédito da realidade (entenda-se: da objetividade), confronta os
dois delírios, aquele passivo na escrita automática e outro ativo na paranoia crítica,
dialetizando sua relação:
O “drama poético” do surrealismo residia
nesse momento para mim no antagonismo (chamando á conciliação dialética) dos dois
tipos de confusões que implicitamente estavam previstos nessa declaração: de uma
parte a confusão passiva do automatismo; de outra parte a confusão ativa e sistemática
ilustrada pelo fenômeno paranoico.
5.
Poderia
estender consideravelmente uma coletânea dos ataques surrealistas ao princípio da
identidade e não-contradição de Parmênides, fundamento da lógica na tradição ocidental;
das reafirmações da analogia; das reiterações de que uma coisa é outra, de que a
objetividade é instável ou precária, de que a subjetividade nos mostra muito mais
sobre o real.
Cabe, porém, perguntar, recortando o exemplo
de Dalí, do asno apodrecido, reflexo de “novas pedras preciosas”: qual grande poeta
já havia tratado desse modo da podridão? Sim, Baudelaire, que em vez de um asno
apodrecido, em “Uma carniça”, havia poetizado um cão morto, reduzido a “uma carniça
repugnante” (1995, assim como as citações a seguir). E o fez de modo rigorosamente
conforme aos ditames de Dalí sobre a paranoia crítica.
Sabemos que Baudelaire se indignou por seus
censores, os magistrados que proibiram As
flores do mal em 1857, haverem classificado seus poemas como “realistas”. De
fato, em seu impecável verso clássico, não poupa detalhes do estado em que estava
o animal apodrecido: [5]
Ardia
o sol naquela pútrida torpeza,
Como a cozê-la em rubra pira
E
para ao cêntuplo volver à Natureza
Tudo o que ali ela reunira.
Pode-se imaginar o poeta, um provocador,
antegozando a expressão do leitor ao defrontar-se com este detalhamento do estado
em que se encontrava a “esplêndida carcaça”:
Zumbiam
moscas sobre o ventre e, em alvoroço,
Dali saiam negros bandos
De
larvas, a escorrer como um líquido grosso
por entre esses trapos nefandos.
E
tudo isso ia e vinha, ao modo de uma vaga,
Ou esguichava a borbulhar,
Como
se o corpo, a estremecer de forma vaga,
Vivesse a se multiplicar.
Contudo, a ambivalência de Baudelaire se
faz presente. Dando ao poema um fecho platônico, a última estrofe nega as precedentes
ao dirigir-se à “deusa da beleza”, “Estrela dos meus olhos, sol da minha vida”:
Então
querida, dize à carne que se arruína,
Ao verme que te beija o rosto,
Que
eu preservei a forma e a substância divina
De meu amor já decomposto!
Um dos muitos exemplos, portanto, do contraste
do abjeto e do sublime em Baudelaire; do modo, já tão estudado, como provocava choques
desses extremos, e ao mesmo tempo promovia um trânsito entre eles. A carniça é abjeta;
a poesia, que preserva “a forma e a substância divina”, sublimes, incorpora e supera
a abjeção.
Mas o paralelo entre o genial poema de Baudelaire
e o artigo de Dalí, apresentando o método paranoico-crítico, possibilita ver mais;
localizar a “imagem dupla” resultante da paranoia. Em Dalí, a putrefação do asno
é reflexo de “novas pedras preciosas”; em Baudelaire, a carniça oferece formas que
“fluíam como um sonho além da vista”, sobre “a tela esquecida, e que concluir o
artista / apenas de memória um dia.” Recortadas, fariam parte de uma tela abstrata;
do abstracionismo que Baudelaire profetizou em sua crítica de arte.
Tais duplas imagens, nas quais o belo emerge
do horror, ou ambos se confundem, podem ser localizadas em outros poemas de Baudelaire;
e em suas prosas poéticas. Há muito mais, em sua enorme contribuição, a ser visto
como antecipação ou aplicação do método paranoico-crítico. Como exemplo de delírio
interpretativo, certamente, suas observações sobre a modernidade em “O pintor da
vida moderna”; especialmente, sobre a moda e maquiagem como expressões máximas do
bem, por serem artificiais – isso, projetando a premissa de que o natural é regido
pelo mal, e tudo o que é bom é artificial. Igualmente, de sua crítica literária,
o artigo sobre Madame Bovary de Flaubert:
saúda-a como heroína moderna por ser um andrógino, uma mulher antinatural ao assumir
atitudes e tomar iniciativas masculinas – além de inverter, no mesmo artigo, outra
narrativa de Flaubert, As tentações de Santo
Antão, tomando-a como erótica e não mais piedosa.
A “magia sugestiva” proposta por Baudelaire
foi praticada pelos surrealistas, de modo não só deliberado, mas programático. E
também incorporada. Conforme mostra Henri Béhar, o importante biógrafo e estudioso
de Breton, após O amor louco ele abandona
o termo “acaso objetivo”, filosoficamente fundamentado (uma derivação do “humor
objetivo de Hegel”, conforme argumenta em “Situação surrealista do objeto”) e em
seu lugar passa a falar em “magia”; a ponto de um de seus últimos artigos, de 1955,
ser intitulado “Magie quotidienne” (Béhar, 2012). Retorno a Baudelaire? Ou, antes,
a uma tradição que Baudelaire também soube assimular e incorporar a sua poesia e
poética?
A bibliografia mostrando o quanto o poeta
de As flores do mal foi precursor – do
simbolismo, do parnasianismo, do surrealismo, de formalismos, da arte não-figurativa,
em alguma medida até mesmo dos beats –
pode preencher uma estante, ou até mesmo uma biblioteca. Nestas observações, a intenção
não foi apenas reafirmar a importância do poeta de As flores do mal como precursor e profeta; porém inverter a sequência,
a série histórica, mostrando que o exame de surrealistas possibilita enxergar mais,
não apenas em nuvens, paredes, bolas de cristal, objetos encontrados ao acaso, mas
em Baudelaire – e em Rimbaud, Lautréamont, Germain Nouveau, Alfred Jarry; ou em
autores nossos como Sousândrade, Cruz e Souza, Campos de Carvalho ou Manoel de Barros
– e tantos outros.
NOTAS
1.
A crítica filosófica e a questão do
sujeito no surrealismo, palestra na II Jornada de Filosofia e Literatura da
Unifesp, Departamento de Filosofia da Unifesp, Guarulhos, SP, dia 09 de
dezembro de 2013
2.
Em Academia.edu, “Sobre surrealismo e filosofia”: www.academia.edu/6542416/Sobre_surrealismo_e_filosofia.
3.
A edição de bolso da Gallimard dos manifestos bretonianos, de maior circulação
traz apenas seus quatro manifestos. A edição da Jean-Jacques Pauvert, mais
completa e a meu ver mais fiel à intenção do próprio Breton, adiciona a série
de prosas poéticas Peixe solúvel, o
depoimento Carta às videntes e o
conjunto intitulado Posição política do
surrealismo. Na escassa oferta editorial brasileira de surrealismo, o
leitor tem à disposição as duas versões: aquela da Brasiliense, de 1985, que
segue a da Gallimard; e a da Nau Editora, de 2001, que segue a da Pauvert. Mais
completa, portanto – no entanto, com um problema editorial a meu ver grave: as
notas de rodapé de Breton foram transformadas em notas de fim, o que interfere
na leitura e trai a intenção do autor. Tanto é que na edição das obras completas
de Breton pela coleção Pleiade, suas notas de rodapé, algumas extensas,
caudalosas digressões com mais texto do que no corpo da página, são mantidas
como tais; e as notas preparadas pela organizadora, Marguerite Bonnet, vêm ao
final de cada volume.
4.
Autores brasileiros, notadamente Sergio Lima, preferem o termo “collage” para
designar os procedimentos desenvolvidos por Max Ernst, assim diferenciando-os
do que já vinham fazendo cubistas e outros vanguardistas. Limito-me, sem entrar
na discussão da necessidade dessa distinção, a seguir os textos que estou
citando ou transcrevendo.
5.
Lembrando que, nessa ótima coletânea de Baudelaire organizada por Ivo Barroso,
a tradução de As flores do mal é de
Ivan Junqueira.
Bibliografia
BAUDELAIRE, Charles, Charles Baudelaire, Poesia e Prosa, organizada por Ivo Barroso, diversos tradutores,
Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995,
BÉHAR, Henri (org.), Dictionnaire
André Breton, Paris: Classiques Garnier, 2012;
BRETON, André, “Le Message automatique”, em Point du jour, Paris: Gallimard, 1970;
___., “Situação
surrealista do objeto”, em Manifestos do Surrealismo,
tradução e notas de Sergio Pachá, Rio de Janeiro: Nau editora, 2001;
___., Nadja, tradução de Ivo Barroso, São Paulo:
Cosac Naify, 2006;
___., O Amor Louco, tradução de Luiza Neto Jorge,
Lisboa: Editorial Estampa, 1971.
DALÍ, Salvador, “L’Âne pourri”; “Nouvelles considérations
génerales sur Le mécanisme du phénomène paranoiaque du point de vue surréaliste”;
em CHÉNIEUX-GENDRON, Jacqueline, “Il y aura une fois”, Une anthologie du surréalisme,
Paris: Gallimard (Folio), 2002;
LAUTRÉAMONT, Os Cantos de Maldoror, Poesias, Cartas (obra completa) São Paulo: Iluminuras, 1997; reedições, edição revista
e ampliada, em 2005 e 2008; nova edição em 2014
PAZ, Octavio, La búsqueda
del comienzo, Madri, Editorial Fundamentos/ Espiral, 1974.
CLAUDIO WILLER | Nasceu em São Paulo, em 1940. Poeta, ensaísta e tradutor. Bacharel em Psicologia (USP) e Sociologia (Escola de Sociologia e política), doutorou-se em Letras em 2008 pela Universidade de São Paulo, com a tese Um Obscuro Encanto: Gnose, gnosticismo e a poesia moderna (em livro: Civilização Brasileira, 2010). Pós-doutorado na USP completado em 2011, com o tema Religiões Estranhas, Misticismo e Poesia, do qual resultou o livro Os rebeldes: Geração Beat e anarquismo místico (L&PM, 2014). Vários trabalhos publicados tratando de surrealismo. Mais em http://claudiowiller.wordpress.com/about e https://pt.wikipedia.org/wiki/Claudio_Willer .
NICOLAU SAIÃO (Portugal, 1946) | Poeta, ensaísta, tradutor e artista plástico, com atividades ligadas ao Surrealismo desde o princípio, quando participou de várias mostras internacionais de arte postal. Em 1984, juntamente com Mário Cesariny (1923-2006) e Fernando Cabral Martins (1950), organizou a exposição O Fantástico e o Maravilhoso. Estudioso e tradutor da obra de H. P. Lovecraft, em 2002 organizou a primeira edição integral em todo o mundo de Fungi From Yuggoth (1943), tendo também a ilustrado. Dentre seus livros: Os objetos inquietantes (1992), Flauta de Pan (1998) e Olhares perdidos (2006).
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 15
Número 214 | agosto de 2022
Artista convidado: Nicolau Saião (Portugal, 1946)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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