terça-feira, 9 de agosto de 2022

FLÁVIA FALLEIROS | Notas sobre o mito literário de Paris: de Restif de la Bretonne aos surrealistas

 


L’art ne reproduit pas le visible, il rend visible.


PAUL KLEE

Histoire Naturelle et infinie, Écrits sur l’art II

 

Uma reflexão sobre a representação de Paris no panorama da história literária francesa – e consequentemente sobre o mito literário de Paris – conduz, inevitavelmente, ao final do século XVIII. Os nomes de dois grandes escritores daquele século estão intimamente ligados à gênese da “escritura” da cidade: Sébastien Mercier e Restif de la Bretonne. O primeiro é o autor do Tableau de Paris, publicado em 1781, e o segundo escreveu Les Nuits de Paris, obra publicada em 16 volumes, de 1788 a 1793. As duas obras formam uma bela parelha, e a complementaridade entre as duas está de fato estampada no título de uma edição organizada por dois universitários franceses (Michel Delon e Daniel Baruch), reunindo os textos integrais de ambos os autores: Paris le jour, Paris la nuit (coleção “Bouquins”, Paris: Robert Laffont, 1990). À obra de Mercier corresponderia uma visão diurna da capital, ao passo que à de Restif, corresponderia uma Paris noturna. Seja como for, ambas inauguram uma nova maneira de apreender e representar a cidade, até então totalmente inédita.

Mas por que o século XVIII teria criado condições tão especiais para a gênese de uma “escritura” de Paris? É sabido que o Estado burguês moderno nasceu com a grande Revolução de 1789; a partir de então, como notou Jean Baudrillard, introduziu-se na vida social uma dimensão de desestruturação dos costumes e da cultura tradicional, resultante do progresso contínuo das ciências e das técnicas. A contribuição da filosofia iluminista para a instalação desse desejo de ruptura com o passado foi de primeira importância, à medida que ela pregou vigorosamente a eliminação de todos os vestígios de feudalidade: assim nascia a modernidade, com sua lógica própria, fundamentada sobre a mudança permanente, seja na esfera do político, seja no domínio da criação artística. E assim nascia, ao mesmo tempo, com as obras de Restif e de Mercier, o mito literário de Paris – ao qual nos referimos acima pelo galicismo “escritura” da cidade –, que adquiriria nos séculos posteriores proporções gigantescas, e estabeleceria um ponto comum entre autores tão diversos quanto Charles Baudelaire, Emile Zola, Victor Hugo, Honoré de Balzac e, mais tarde, Louis Aragon, André Breton, Léon-Paul Fargue, Philippe Soupault, Blaise Cendrars, Guillaume Apollinaire, Jean-Paul Clébert, e tantos outros, todos eles, “escritores de Paris”.

No que diz respeito à história da capital francesa, é preciso dizer que no final do século XVIII, ela contava entre 600.000 e 700.000 habitantes (em seu Tableau de Paris, Mercier avalia a população em 900.000), e continuava atraindo centenas de novos moradores, em razão do êxodo rural. O período foi marcado, portanto, pelo crescimento demográfico e pela expansão da concentração urbana. Ora, uma das consequências mais notáveis do aumento da população sobre a imaginação dos habitantes de uma grande cidade é a sensação de anonimato, causa de um sentimento de liberdade individual desconhecido nas pequenas aglomerações. A expansão urbana cria as condições de movimento e de deslocamento contínuo que caracterizam as metrópoles, o que acaba originando uma nova forma de percepção do espaço e do tempo citadinos. É bem verdade que o aspecto insalubre da capital francesa naquela época ainda não convidava muito à flânerie (ao passeio urbano), tal como a praticariam outros ilustres flâneurs parisienses nascidos nos séculos XIX e XX. Mas o fluxo intenso das cenas pitorescas, resultante do aumento da população, essa espécie de transbordamento da vida citadina, tudo isso também criava as condições ideais para o aparecimento de obras tendo como centro de interesse o cotidiano da capital francesa e sua descrição atenta por pedestres tão especiais quanto Restif e Mercier.

Outro elemento essencial na gênese da “escritura” de Paris foi o desenvolvimento de massa da imprensa, que tomou um extraordinário impulso durante a crise do Antigo Regime [1]. Tal fenômeno provocou consideráveis mudanças nas concepções estéticas dos artistas daquele tempo. Sendo os jornais um suporte singularizado sobretudo por sua fugacidade, eles propiciaram as condições para uma relativização – e até mesmo uma individualização – da escrita. A própria noção de “efêmero”, que no século XIX assumiria uma importância central na teoria da modernidade de Baudelaire, apareceu durante a segunda metade do século XVIII.

Os textos de Mercier e de Restif têm em comum com o jornalismo as características seguintes: são coletâneas (bastante extensas) de narrativas curtas, numerosas, ligadas de uma maneira ou de outra à autobiografia, ancoradas no tempo em que foram escritas e nos detalhes da experiência vivida. Ambos inauguraram um gênero para o qual ainda não existia um nome, e que só receberia um quase um século mais tarde, derivado de um vocábulo inglês: reportagem (do verbo to report). As Noites e o Tableau têm assim em comum o fato de serem sequências sem fim, descrevendo o movimento do descontínuo. Elas se assemelham a um canteiro de obras permanente… exatamente como a grande cidade… E exatamente como a própria modernidade, que se caracteriza, como dissemos, pela mudança permanente. Assim, o Tableau de Paris e As Noites têm algo de enciclopédico devido a essa ambição de dar conta de tudo o que se passa na grande metrópole: as duas obras compõem um inventário completo da vida, dos comércios, dos costumes parisienses da Paris pós-revolucionária, e são nesse sentido tão completas, que se tornaram fontes historiográficas de primeira importância para várias gerações de historiadores da capital francesa, tanto no século XIX, quanto no século XX. Porém diferem essencialmente do projeto dos enciclopedistas, posto que nas duas coletâneas o acaso é primordial: tanto numa como noutra, o narrador não tenta reduzir a cidade a um sistema de classificação, ao contrário: em ambas constata-se a importância da desordem e da discontinuidade. Utilizando o acaso, Restif e Mercier põem lado a lado coisas que não têm absolutamente nada a ver entre elas, a não ser o fato de existirem, todas, em Paris.

Essas observações feitas, concentremo-nos agora em alguns temas próprios ao mito literário de Paris, mas sobretudo do ponto de vista d’As Noites de Restif (temas que serão relacionados mais adiante com a Paris surrealista). Antes de mais nada, alguns dados biográficos sobre este autor, esta sua obra e o tempo em que viveu parecem úteis. Nicolas Edme Restif nasceu em 1734, na Borgonha, e morreu na capital, em 1806. Em 1755, ainda muito jovem, foi para Paris. Lá, esse curioso personagem – verdadeiro “camponês de Paris” – tomou gosto pela literatura trabalhando como tipógrafo-ajudante, nas Oficinas Tipográficas Reais do Louvre. As Noites de Paris começaram a ser publicadas em 1788, quando apareceram os volumes 1 a 12. No ano seguinte publicaram-se os volumes 13 e 14, em 1790 a parte intitulada “A Semana noturna”, e em 1793 o volume 16, conhecido como as XX noites de Paris ou As Noites revolucionárias [2].


A articulação da coletânea se dá em torno de três eixos [3]. Primeiro: um narrador, personagem central – que é o próprio Restif – exerce a função de unificador numa obra de ficção composta por toda uma série de pequenas narrativas: ele é quem vem, todas as noites, contar histórias supostamente verídicas a uma certa Marquesa de M…, personagem também supostamente verídica. Segundo: essa ficção não deixa de ser obra de cunho autobiográfico, antes de mais nada porque Restif afirma que teria ouvido de alguém as narrativas que conta, e depois, porque ele mistura a essas narrativas suas próprias aventuras noturnas, povoadas por personagens reais de suas relações, como o célebre Augé, seu genro detestado. E finalmente: As Noites são uma crônica detalhada do cotidiano de Paris, verdadeira reportagem do dia a dia – ou melhor, do “noite a noite” – de uma grande cidade, com todos seus milhares de figurantes: bêbados, prostitutas, pequenos comerciantes, vigaristas de toda a sorte, lavadeiras, sapateiros, vigias noturnos, cegos, violadores de sepulturas, e os famosos chiffonniers (trapeiros) e crieurs [4] de Paris. Restif é esse extraordinário personagem central, capaz de reunir a um só tempo as qualidades de autor de ficção, de cronista e de biógrafo de si mesmo. E é precisamente a intersecção destes três eixos que faz dessa narrativa um texto em que se realiza a fusão entre o real e o imaginário, fusão que seria tão cara, no início do século XX, aos surrealistas, e que já prenunciava, na obra de Restif, a importância vindoura da mitologia parisiense.

N’As Noites, é com efeito a abundância de real que desencadeia o devaneio e o onirismo. Aliás, o próprio Restif considerava a cidade não só como “natureza raciocinativa” (nature raisonnante), mas também como “natureza delirante” (nature délirante). Isso, entre outras coisas, pode explicar porque o mito moderno da capital francesa deve tanto a esse autor, e porque textos como Nadja (1928) e L’Amour fou (1937) de André Breton, O Camponês de Paris (1926) de Louis Aragon, Les Dernières nuits de Paris (1928) (aqui o título deixa clara a intertextualidade) de Philippe Soupault, O Spleen de Paris (1869) de Baudelaire ou Aurélia (1865) de Gérard de Nerval (século XIX), têm sido frequentemente comparados às Noites de Paris. O narrador d’As Noites anda em busca do desvendamento de um mistério: o da vida noturna de uma grande capital. E é isso que o autoriza até mesmo a invadir intimidades, quer se trate da intimidade dos complôs ou dos casais (Restif é na verdade um tanto voyeur…). Mas é preciso dizer que a escolha de Restif recai sempre sobre uma Paris popular, regada a aguardente barata, uma Paris que é completamente desprezível para o mundo das Belas Artes e da cultura.

Trata-se da mesma opção que fariam bem mais tarde, nas primeiras décadas do século XX, os surrealistas, que perambularam sobretudo pelos bairros das margens direitas do Sena (rive droite), pelo norte populoso da cidade e pelo bairro do antigo mercado central (les Halles), como se vê em Nadja, em O Camponês de Paris, em As Últimas noites de Paris, em L’Amour fou… Tanto no caso de Restif quanto no dos surrealistas, a escolha é clara, e demonstra uma preferência pela Paris da energia coletiva, em detrimento da Paris da História, do pensamento e das artes, do passado monárquico.

“Tudo é ação numa cidade grande!”, exclamava Restif, justificando assim o interesse do passeio urbano, da errância. Da mesma forma que a própria cidade, o tema literário da perambulação errante por Paris não parou de evoluir até o século XX. A fisionomia da capital, sobretudo, transformou-se de forma inestimável entre o final do século XVIII e o início do século XX. No meio dessa linha temporal coloca-se, quase como transição, a destruição-reconstrução de Paris pelo barão Eugène Haussmann, empreendida desde o início da segunda metade do século XIX (ele foi administrador da capital francesa de 1853 a 1870). O grande traumatismo imposto aos parisienses por este administrador da região do Sena criou as condições para um “emburguesamento” da errância. A capital, que conservara até então uma fisionomia medieval, com suas ruelas sórdidas e mal-cheirosas, seus esgotos a céu aberto, deu lugar a essa outra Paris saneada, recortada por grandes avenidas (os boulevards) que tornavam fácil a circulação, respondendo assim às necessidades de segurança do Segundo Império de Napoleão III.

Haussmann, que tinha alma de higienista e atribuía a si mesmo a sugestiva alcunha de “artista-demolidor”, criou também vários jardins. Ele transformou, por exemplo, os fétidos outeiros de Chaumont, até então um depósito de lixo, num magnífico parque, primeiro “pulmão verde” da capital, cujo exotismo encantaria mais tarde os surrealistas, nas primeiras décadas do século seguinte (v. o capítulo III d’O Camponês de Paris, “O sentimento da natureza no parque Buttes-Chaumont”). Entre as tantas transformações de Paris operadas pela gestão de Haussmann, é preciso assinalar também o fato de que foi com sua obras que se estabeleceu uma diferenciação entre os bairros burgueses e os bairros operários da capital.

O tema da perambulação pela cidade, que tinha em Restif e Mercier seus iniciadores, ganhava assim todas as condições para se desenvolver de maneira extraordinária. Ao lado dele, outros elementos relevantes para o mito de Paris devem ser aqui lembrados. Refiro-me a tudo aquilo que diz respeito às ruínas, aos descombros, ou seja, tudo aquilo que é possível agrupar sob o nome genérico de tema da “morte”. Ele tem uma importância central porque é um tema da modernidade por excelência. Esta, em ruptura permanente, nasceu e sempre viveu sob o signo da morte. Uma das variantes do tema da “morte” é o efêmero. Ele nos permite seguir algumas pistas que levam de Restif até o século XX que, como sabemos, é testemunha de um devotado culto ao efêmero, pelo menos no que diz respeito aos surrealistas.


A cidade se impõe, de fato, como motivo, ou como material privilegiado na construção do culto do efêmero desde Restif, que já a considerava como “natureza viva” (“nature vivante”), em oposição ao campo, “natureza vegetante” (“nature végétante”). A capital parisiense aparece, pois, em sua obra, como profusão de vida: ela é abundância, renovação contínua de movimentos diversos, quadro multicolorido que cativa os olhos do espectador. Mas é da ordem natural das coisas que a vida oculte em seu seio a morte, que espreita a todo instante. Ora, o sentimento do efêmero é um elemento privilegiado para encarnar o movimento dialético que se produz continuamente entre vida e morte. Restif dizia das ruas da capital francesa: “Com efeito, as ruas de Paris assemelham-se às óperas que aí se levam: o palco muda a cada instante. Esse estágio numa cidade imensa produz diferentes aventuras”. Estava ali, já, a percepção do caráter fugaz do moderno, encarnado pelas grandes aglomerações urbanas, que daria origem, mais de meio século mais tarde, à teoria da modernidade de Baudelaire, tal como foi formulada no célebre texto sobre Constantin Guys, O Pintor da vida moderna (1863). E cerca de oitenta anos mais tarde, podemos encontrar em Aragon um “grande ataúde de vidro” chamado “passagem da Ópera”, reino, a um só tempo, do efêmero e da morte que, para não se impacientar, pede “amendoins, e todo um bairro de boulevards para amolar seus graciosos dentes”.

O tema do efêmero – poderosa alegoria da modernidade – remete às vezes à morte das próprias cidades. Pierre Citron observou que o motivo da morte de Paris aparecera desde o final do século XVIII, abordado por diversos poetas que compararam a capital francesa a cidades desaparecidas como Cartago, Sodoma, Gomorra, Nínive, Persépolis, Tebas, Pompéia e outras (a consciência europeia estava profundamente abalada pelo terrível terremoto de Lisboa, de 1755, que destruíra toda a cidade baixa). E como não citar aqui o tema da fugacidade da vida nas grandes cidades, tal como ele aparece no século seguinte, sob a marca da profunda melancolia baudelairiana, nos famosos versos do poema “O Cisne” (poema da parte intitulada Tableaux Parisiens, in Les Fleurs du mal, 1840-1857):

 

Le vieux Paris n’est plus (la forme d’une ville

Change plus vite, hélas! que le cœur d’un mortel)

 

O motivo literário dos detritos pode ser relacionado com o tema geral da morte. Sua afinidade com a modernidade também é evidente, e o tema pode ser seguido do século XVIII até o século XX. Assim, na representação literária de Paris, o personagem do limpador de detritos aparece com frequência. Restif já traçava o retrato de um singular “descolador de cartazes” que tirava sua subsistência desta atividade, exclusivamente. O dinheiro que ele obtinha da venda dos cartazes usados lhe servia para comprar comida, e a comida que ele comprava de vendedoras de rua era também restos. Restif inventaria outras curiosas “profissões” que só poderiam existir na grande cidade, todas elas relacionadas ao motivo do detrito, do resto: o recolhedor de garrafas quebradas, os célebres trapeiros e os gratte-ruisseaux, tipos urbanos que vasculhavam as inúmeras valetas cheias de imundícies que abundavam na Paris de então, tentando encontrar algo que tivesse algum valor. No século seguinte, Baudelaire iria bem mais longe que Restif, identificando o personagem do trapeiro ao próprio poeta. Lê-se em As Flores do mal:

 

On voit un chiffonnier qui vient, hochant la tête,

Butant et se cognant aux murs comme un poète,

Et, sans prendre souci des mouchards, ses sujets,

Epanche tout son cœur en glorieux projets” [5]

 

Na perspectiva deste poema, a cidade é percebida como um universo de objetos descartáveis, no qual o poeta encontra o alimento para sua arte. Este é um universo que conhece uma expansão vertiginosa com o aparecimento do Estado burguês moderno, que tem como uma de suas características mais importantes esta impressionante capacidade de transformar os objetos em ruínas. E eis que assim nos deparamos novamente com uma variante daquele tema chamado, há pouco, de tema geral da morte. Este universo urbano de objetos descartáveis torna-se rapidamente amontoado de fragmentos e, por essa razão, passa a convidar tentadoramente o colecionador.

Nos textos surrealistas encontram-se variantes desse tema. Em L’Amour fou, por exemplo, André Breton relata seu impressionante passeio, em companhia de Giacometti, ao Marché aux Puces de Saint-Ouen (norte de Paris): ambos passeiam ao acaso naquele mercado de velharias, em busca do elmo mágico ou do maravilhoso sapatinho de vidro que jorrarão, como faíscas inesperadas, de um amontoado de dejetos. Esses objetos-trapos, insólitos, portadores de um sentido único, cumprem assim a função de desvendar uma outra realidade, que é a do inconsciente dos dois amigos errantes.

A Paris surrealista oferece, com efeito, todas as possibilidades do insólito: da passagem no limiar da morte, descrita por Aragon às vésperas de sua demolição, com toda sua fauna de atrizes, passantes, prostitutas e frequentadores ordinários, aos Mercados das Pulgas, nos quais se encontra exposto um amontoado de “objetos fora de moda, fragmentados, inutilizáveis, quase incompreensíveis, perversos, enfim”, como diz Breton em Nadja, Paris abriga inúmeros lugares no seio dos quais os objetos estão desviados de seu uso habitual: eles podem se tornar, assim, objetos mágicos. Do jardim público, aberto à visitação durante o dia, subvertido por Aragon, Noll e Breton por um passeio noturno (ver O Camponês de Paris), às ruas repletas de palavras “alucinatórias”, “Bois-charbons” (ver Nadja), a cidade se transforma, com os surrealistas, nesse inesgotável campo de experiências no qual a errância, auxiliada pela mão do acaso, pode conduzir às situações mais extraordinárias, entre elas, o encontro capital.


Em Les Dernières nuits de Paris, Philippe Soupault também se entrega à cidade, ao acaso da errância noturna, exatamente como fizera bem antes dele Restif de la Bretonne, a fim de desvendar o enigma de suas próprias obsessões. Ele atribui ao acaso um papel preciso: “Mais uma vez o acaso expulsava o esquecimento e dava novamente uma realidade ao que eu considerava de bom grado como sonho”. Dar novamente uma realidade aos sonhos: eis aí o papel do acaso, fruto da errância urbana. Na Paris de Soupault, as ruas estão povoadas de signos e sinais que podem conduzir à realização dessa transformação do mundo. Note-se bem que se trata de “dar novamente realidade aos sonhos”, o que confere a estes um estatuto de realidade primordial (ver a esse respeito o ensaio de Octavio Paz, “André Breton ou la búsqueda del princípio”, in Los Signos en rotación, Barcelona: Seix Barral, 1982).

Há um elo entre o tema do dejeto e o da errância. O flâneur erra ao acaso em busca do objeto-trapo que vai transformar a realidade ordinária. Nesse sentido, os dois motivos estão igualmente relacionados ao personagem do colecionador. As Noites de Restif já pareciam animadas por um impulso de colecionador. O próprio autor explicou o princípio de composição de sua obra:

 

No decorrer de vinte anos, isto é, desde 1767, depois que o autor é espectador noturno, ele tem observado durante 1001 noites o que se passa nas ruas da capital; no entanto, durante esses vinte anos ele viu somente 366 vezes coisas interessantes.

 

Podemos ver aí certo gosto da coleção: o autor confessa sua preocupação em escolher, entre tudo “o que se passa nas ruas da capital”, aquilo que ele vê de surpreendente, de extraordinário. Qual é o sentido desta escolha? Escolher o extraordinário, ou seja, aquilo que está fora do domínio do comum, ou fora da vida levada sob a luz do dia implica um interesse por uma Paris misteriosa, que habitualmente escapa ao olhar dos homens diurnos, prisioneiros de um cotidiano banal e banalizante. Essa atitude determina a eleição de certos temas, como a prostituição, o mundo do jogo, os amores ilícitos, as situações equívocas de todos os tipos, bem como a escolha de personagens singulares, oriundas das camadas mais populares da cidade.

Na verdade, todos esses temas – tema geral da morte, tema da errância – participam de uma construção que faz de Paris, algumas vezes, mais um personagem dotado de corpo e alma, do que propriamente um cenário dos acontecimentos narrados (o que vem a ser, aliás, um traço distintivo do mito de Paris). As imagens que mostram a capital como um ser vivo são numerosas. Restif a viu como uma “amante querida, um pouco vaidosa”, uma “distribuidora de prazer”, capaz de fazer feliz qualquer um que recorresse a ela. Philippe Soupault, em Les dernières nuits de Paris faz com que o “corpo” da capital francesa coincida com o da personagem Georgette, uma prostituta que é Paris. E para Aragon, n’O Camponês…, o “vasto corpo de Paris” é tão mais sedutor quanto ele oculta inúmeros segredos, entre os quais o mais importante é a existência de uma Paris verdadeira, uma Paris que é ao mesmo tempo real e extraordinária.

Assim, a exemplo de Restif, os surrealistas colocam em evidência certos espaços da cidade por aquilo que eles podem oferecer de equívoco, de dissimulado, de secreto. É que a cidade-corpo tem um poder de sedução tão mais eficaz quanto ela possui espaços ocultados, exatamente como um corpo feminino velado pelas vestimentas. Quer se trate dos subterrâneos de uma grande cidade, nos quais circulam “milhares de existências flutuantes” e dos quais já falava, no século XIX, Baudelaire (Salon de 1846), quer se trate das passagens parisienses, estes “corredores ocultados do dia” dos quais falava Aragon n’O Camponês, lugares urbanos há que seduzem muito mais porque são reveladores dos segredos ocultos da cidade-corpo, assim como é reveladora “a claridade repentina duma perna que se descobre sob uma saia que se levanta “. A Paris “oculta” – quer seja ela noturna ou não – constitui assim, em si mesma, uma categoria de lugares, já que, no que diz respeito à textura de uma certa topografia no interior de uma narrativa, não têm valor somente as descrições de paisagens, mas absolutamente todos os elementos que compõem o “meio-ambiente” em questão. Daí que esta Paris cuja claridade é a da luz artificial dos subterrâneos ou a da iluminação noturna, possui suas próprias relações espaciais e sua própria estrutura topográfica [6].

Fecharemos essas breves notas apontando para a importância de pensar a representação literária da capital francesa conjugada à história da própria cidade. O mito literário de Paris mostra que História e representação não são elementos antinômicos mas que, ao contrário, conjugam-se constantemente na escritura de Paris. Nela, a fusão entre realidade e ficção faz com que a capital – enquanto objeto de representação literária – transforme-se numa paisagem composta pelo amálgama de duas topografias que se fundem: uma real, outra onírica. Real, porque sempre palco inalienável da História; onírica, porque passível de se metamorfosear em espacialização de imagens, experiências e lembranças múltiplas.


 

NOTAS
1. Embora os primeiros jornais tivessem começado a circular no século XVII, foi só a partir de então que seu número aumentou consideravelmente.

2. Uma oposição interessante pode ser estabelecida entre As Noites de Paris de Restif e outro famoso texto do século XVIII: enquanto Cloderlos de Laclos se consagrava às Ligações perigosas (Les Liaisons dangereuses, 1782) existentes no seio da aristocracia francesa, Restif, o “espectador noturno” – ele se autodenominava assim – consagrava-se, sob o Antigo Regime e durante a Revolução, às ligações perigosas do povo.

3. ROUANET, Sérgio Paulo, O Mal-estar da modernidade, S. Paulo: Cia. das Letras, 1993 e, do mesmo autor, As Razões do Iluminismo, S. Paulo: Cia. das Letras, 1987.

4. Sabe-se da importância que teve o chiffonnier para Baudelaire, que o comparou ao próprio poeta. Walter Benjamin analisou essa metáfora baudelairiana em Charles Baudelaire, un poète lyrique à l’apogée du capitalisme (Paris: Payot, 1979). Quanto ao crieur, figura típica da capital francesa e hoje desaparecida, é emblema de um certo pitoresco da vida parisiense.

5. O sentido de seus versos é aproximadamente o seguinte: o poeta diz que vê chegar um trapeiro, balançando a cabeça, encostando-se e batendo-se contra um muro como um poeta; o trapeiro, sem se preocupar com os espiões da polícia, abre seu coração em gloriosos projetos.

6. LOTMAN, Iouri, “Le problème de l’espace artistique”, in La Structure du texte artistique, Paris: Gallimard, 1973.

 

 


FLÁVIA FALLEIROS | Brasil, 1959. Autora de Paris dans la littérature française des années 20: contribution à l’histoire de la représentation (1998). Publicou também, na França e no Brasil, diversos ensaios sobre narrativas francesa, portuguesa e brasileira. Traduziu O Camponês de Paris, de Louis Aragon (1996), Alá e as crianças soldados, de Ahmadou Kourouma (2003), As cores da infâmia, de Albert Cossery (2004). Contato: flavianafalleiros@gmail.com.

 

 


NICOLAU SAIÃO (Portugal, 1946) | Poeta, ensaísta, tradutor e artista plástico, com atividades ligadas ao Surrealismo desde o princípio, quando participou de várias mostras internacionais de arte postal. Em 1984, juntamente com Mário Cesariny (1923-2006) e Fernando Cabral Martins (1950), organizou a exposição O Fantástico e o Maravilhoso. Estudioso e tradutor da obra de H. P. Lovecraft, em 2002 organizou a primeira edição integral em todo o mundo de Fungi From Yuggoth (1943), tendo também a ilustrado. Dentre seus livros: Os objetos inquietantes (1992), Flauta de Pan (1998) e Olhares perdidos (2006).

 



Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 15

Número 214 | agosto de 2022

Artista convidado: Nicolau Saião (Portugal, 1946)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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