PAUL KLEE
Histoire Naturelle et infinie, Écrits sur l’art II
Uma reflexão sobre a representação de Paris no panorama
da história literária francesa – e consequentemente sobre o mito literário de Paris
– conduz, inevitavelmente, ao final do século XVIII. Os nomes de dois grandes escritores
daquele século estão intimamente ligados à gênese da “escritura” da cidade: Sébastien
Mercier e Restif de la Bretonne. O primeiro é o autor do Tableau de Paris,
publicado em 1781, e o segundo escreveu Les Nuits de Paris, obra publicada
em 16 volumes, de 1788 a 1793. As duas obras formam uma bela parelha, e a complementaridade
entre as duas está de fato estampada no título de uma edição organizada por dois
universitários franceses (Michel Delon e Daniel Baruch), reunindo os textos integrais
de ambos os autores: Paris le jour, Paris la nuit (coleção “Bouquins”, Paris:
Robert Laffont, 1990). À obra de Mercier corresponderia uma visão diurna da capital,
ao passo que à de Restif, corresponderia uma Paris noturna. Seja como for, ambas
inauguram uma nova maneira de apreender e representar a cidade, até então totalmente
inédita.
Mas por que o século XVIII
teria criado condições tão especiais para a gênese de uma “escritura” de Paris?
É sabido que o Estado burguês moderno nasceu com a grande Revolução de 1789; a partir
de então, como notou Jean Baudrillard, introduziu-se na vida social uma dimensão
de desestruturação dos costumes e da cultura tradicional, resultante do progresso
contínuo das ciências e das técnicas. A contribuição da filosofia iluminista para
a instalação desse desejo de ruptura com o passado foi de primeira importância,
à medida que ela pregou vigorosamente a eliminação de todos os vestígios de feudalidade:
assim nascia a modernidade, com sua lógica própria, fundamentada sobre a mudança
permanente, seja na esfera do político, seja no domínio da criação artística. E
assim nascia, ao mesmo tempo, com as obras de Restif e de Mercier, o mito literário
de Paris – ao qual nos referimos acima pelo galicismo “escritura” da cidade –, que
adquiriria nos séculos posteriores proporções gigantescas, e estabeleceria um ponto
comum entre autores tão diversos quanto Charles Baudelaire, Emile Zola, Victor Hugo,
Honoré de Balzac e, mais tarde, Louis Aragon, André Breton, Léon-Paul Fargue, Philippe
Soupault, Blaise Cendrars, Guillaume Apollinaire, Jean-Paul Clébert, e tantos outros,
todos eles, “escritores de Paris”.
No que diz respeito à história
da capital francesa, é preciso dizer que no final do século XVIII, ela contava entre
600.000 e 700.000 habitantes (em seu Tableau de Paris, Mercier avalia a população
em 900.000), e continuava atraindo centenas de novos moradores, em razão do êxodo
rural. O período foi marcado, portanto, pelo crescimento demográfico e pela expansão
da concentração urbana. Ora, uma das consequências mais notáveis do aumento da população
sobre a imaginação dos habitantes de uma grande cidade é a sensação de anonimato,
causa de um sentimento de liberdade individual desconhecido nas pequenas aglomerações.
A expansão urbana cria as condições de movimento e de deslocamento contínuo que
caracterizam as metrópoles, o que acaba originando uma nova forma de percepção do
espaço e do tempo citadinos. É bem verdade que o aspecto insalubre da capital francesa
naquela época ainda não convidava muito à flânerie (ao passeio urbano), tal
como a praticariam outros ilustres flâneurs parisienses nascidos nos séculos
XIX e XX. Mas o fluxo intenso das cenas pitorescas, resultante do aumento da população,
essa espécie de transbordamento da vida citadina, tudo isso também criava as condições
ideais para o aparecimento de obras tendo como centro de interesse o cotidiano da
capital francesa e sua descrição atenta por pedestres tão especiais quanto Restif
e Mercier.
Outro elemento essencial
na gênese da “escritura” de Paris foi o desenvolvimento de massa da imprensa, que
tomou um extraordinário impulso durante a crise do Antigo Regime [1]. Tal fenômeno
provocou consideráveis mudanças nas concepções estéticas dos artistas daquele tempo.
Sendo os jornais um suporte singularizado sobretudo por sua fugacidade, eles propiciaram
as condições para uma relativização – e até mesmo uma individualização – da escrita.
A própria noção de “efêmero”, que no século XIX assumiria uma importância central
na teoria da modernidade de Baudelaire, apareceu durante a segunda metade do século
XVIII.
Os textos de Mercier e de
Restif têm em comum com o jornalismo as características seguintes: são coletâneas
(bastante extensas) de narrativas curtas, numerosas, ligadas de uma maneira ou de
outra à autobiografia, ancoradas no tempo em que foram escritas e nos detalhes da
experiência vivida. Ambos inauguraram um gênero para o qual ainda não existia um
nome, e que só receberia um quase um século mais tarde, derivado de um vocábulo
inglês: reportagem (do verbo to report). As Noites e o Tableau
têm assim em comum o fato de serem sequências sem fim, descrevendo o movimento do
descontínuo. Elas se assemelham a um canteiro de obras permanente… exatamente como
a grande cidade… E exatamente como a própria modernidade, que se caracteriza, como
dissemos, pela mudança permanente. Assim, o Tableau de Paris e As Noites
têm algo de enciclopédico devido a essa ambição de dar conta de tudo o que se passa
na grande metrópole: as duas obras compõem um inventário completo da vida, dos comércios,
dos costumes parisienses da Paris pós-revolucionária, e são nesse sentido tão completas,
que se tornaram fontes historiográficas de primeira importância para várias gerações
de historiadores da capital francesa, tanto no século XIX, quanto no século XX.
Porém diferem essencialmente do projeto dos enciclopedistas, posto que nas duas
coletâneas o acaso é primordial: tanto numa como noutra, o narrador não tenta
reduzir a cidade a um sistema de classificação, ao contrário: em ambas constata-se
a importância da desordem e da discontinuidade. Utilizando o acaso, Restif e Mercier
põem lado a lado coisas que não têm absolutamente nada a ver entre elas, a não ser
o fato de existirem, todas, em Paris.
Essas observações feitas,
concentremo-nos agora em alguns temas próprios ao mito literário de Paris, mas sobretudo
do ponto de vista d’As Noites de Restif (temas que serão relacionados
mais adiante com a Paris surrealista). Antes de mais nada, alguns dados biográficos
sobre este autor, esta sua obra e o tempo em que viveu parecem úteis. Nicolas Edme
Restif nasceu em 1734, na Borgonha, e morreu na capital, em 1806. Em 1755, ainda
muito jovem, foi para Paris. Lá, esse curioso personagem – verdadeiro “camponês
de Paris” – tomou gosto pela literatura trabalhando como tipógrafo-ajudante, nas
Oficinas Tipográficas Reais do Louvre. As Noites de Paris começaram a ser
publicadas em 1788, quando apareceram os volumes 1 a 12. No ano seguinte publicaram-se
os volumes 13 e 14, em 1790 a parte intitulada “A Semana noturna”, e em 1793 o volume
16, conhecido como as XX noites de Paris ou As Noites revolucionárias
[2].
N’As Noites, é com
efeito a abundância de real que desencadeia o devaneio e o onirismo. Aliás, o próprio
Restif considerava a cidade não só como “natureza raciocinativa” (nature raisonnante),
mas também como “natureza delirante” (nature délirante). Isso, entre outras
coisas, pode explicar porque o mito moderno da capital francesa deve tanto a esse
autor, e porque textos como Nadja (1928) e L’Amour fou (1937) de André
Breton, O Camponês de Paris (1926) de Louis Aragon, Les Dernières nuits
de Paris (1928) (aqui o título deixa clara a intertextualidade) de Philippe
Soupault, O Spleen de Paris (1869) de Baudelaire ou Aurélia (1865)
de Gérard de Nerval (século XIX), têm sido frequentemente comparados às Noites
de Paris. O narrador d’As Noites anda em busca do desvendamento de um
mistério: o da vida noturna de uma grande capital. E é isso que o autoriza até mesmo
a invadir intimidades, quer se trate da intimidade dos complôs ou dos casais (Restif
é na verdade um tanto voyeur…). Mas é preciso dizer que a escolha de Restif
recai sempre sobre uma Paris popular, regada a aguardente barata, uma Paris que
é completamente desprezível para o mundo das Belas Artes e da cultura.
Trata-se da mesma opção
que fariam bem mais tarde, nas primeiras décadas do século XX, os surrealistas,
que perambularam sobretudo pelos bairros das margens direitas do Sena (rive droite),
pelo norte populoso da cidade e pelo bairro do antigo mercado central (les Halles),
como se vê em Nadja, em O Camponês de Paris, em As Últimas noites
de Paris, em L’Amour fou… Tanto no caso de Restif quanto no dos surrealistas,
a escolha é clara, e demonstra uma preferência pela Paris da energia coletiva, em
detrimento da Paris da História, do pensamento e das artes, do passado monárquico.
“Tudo é ação numa cidade
grande!”, exclamava Restif, justificando assim o interesse do passeio urbano, da
errância. Da mesma forma que a própria cidade, o tema literário da perambulação
errante por Paris não parou de evoluir até o século XX. A fisionomia da capital,
sobretudo, transformou-se de forma inestimável entre o final do século XVIII e o
início do século XX. No meio dessa linha temporal coloca-se, quase como transição,
a destruição-reconstrução de Paris pelo barão Eugène Haussmann, empreendida desde
o início da segunda metade do século XIX (ele foi administrador da capital francesa
de 1853 a 1870). O grande traumatismo imposto aos parisienses por este administrador
da região do Sena criou as condições para um “emburguesamento” da errância. A capital,
que conservara até então uma fisionomia medieval, com suas ruelas sórdidas e mal-cheirosas,
seus esgotos a céu aberto, deu lugar a essa outra Paris saneada, recortada por grandes
avenidas (os boulevards) que tornavam fácil a circulação, respondendo assim
às necessidades de segurança do Segundo Império de Napoleão III.
Haussmann, que tinha alma
de higienista e atribuía a si mesmo a sugestiva alcunha de “artista-demolidor”,
criou também vários jardins. Ele transformou, por exemplo, os fétidos outeiros de
Chaumont, até então um depósito de lixo, num magnífico parque, primeiro “pulmão
verde” da capital, cujo exotismo encantaria mais tarde os surrealistas, nas primeiras
décadas do século seguinte (v. o capítulo III d’O Camponês de Paris, “O sentimento
da natureza no parque Buttes-Chaumont”). Entre as tantas transformações de Paris
operadas pela gestão de Haussmann, é preciso assinalar também o fato de que foi
com sua obras que se estabeleceu uma diferenciação entre os bairros burgueses e
os bairros operários da capital.
O tema da perambulação pela
cidade, que tinha em Restif e Mercier seus iniciadores, ganhava assim todas as condições
para se desenvolver de maneira extraordinária. Ao lado dele, outros elementos relevantes
para o mito de Paris devem ser aqui lembrados. Refiro-me a tudo aquilo que diz respeito
às ruínas, aos descombros, ou seja, tudo aquilo que é possível agrupar sob o nome
genérico de tema da “morte”. Ele tem uma importância central porque é um tema da
modernidade por excelência. Esta, em ruptura permanente, nasceu e sempre viveu sob
o signo da morte. Uma das variantes do tema da “morte” é o efêmero. Ele nos permite
seguir algumas pistas que levam de Restif até o século XX que, como sabemos, é testemunha
de um devotado culto ao efêmero, pelo menos no que diz respeito aos surrealistas.
O tema do efêmero – poderosa
alegoria da modernidade – remete às vezes à morte das próprias cidades. Pierre Citron
observou que o motivo da morte de Paris aparecera desde o final do século XVIII,
abordado por diversos poetas que compararam a capital francesa a cidades desaparecidas
como Cartago, Sodoma, Gomorra, Nínive, Persépolis, Tebas, Pompéia e outras (a consciência
europeia estava profundamente abalada pelo terrível terremoto de Lisboa, de 1755,
que destruíra toda a cidade baixa). E como não citar aqui o tema da fugacidade da
vida nas grandes cidades, tal como ele aparece no século seguinte, sob a marca da
profunda melancolia baudelairiana, nos famosos versos do poema “O Cisne” (poema
da parte intitulada Tableaux Parisiens, in Les Fleurs du mal, 1840-1857):
Le vieux Paris n’est plus (la forme d’une ville
Change plus vite, hélas! que le cœur d’un mortel)
O motivo literário dos detritos
pode ser relacionado com o tema geral da morte. Sua afinidade com a modernidade
também é evidente, e o tema pode ser seguido do século XVIII até o século XX. Assim,
na representação literária de Paris, o personagem do limpador de detritos aparece
com frequência. Restif já traçava o retrato de um singular “descolador de cartazes”
que tirava sua subsistência desta atividade, exclusivamente. O dinheiro que ele
obtinha da venda dos cartazes usados lhe servia para comprar comida, e a comida
que ele comprava de vendedoras de rua era também restos. Restif inventaria outras
curiosas “profissões” que só poderiam existir na grande cidade, todas elas relacionadas
ao motivo do detrito, do resto: o recolhedor de garrafas quebradas, os célebres
trapeiros e os gratte-ruisseaux, tipos urbanos que vasculhavam as inúmeras
valetas cheias de imundícies que abundavam na Paris de então, tentando encontrar
algo que tivesse algum valor. No século seguinte, Baudelaire iria bem mais longe
que Restif, identificando o personagem do trapeiro ao próprio poeta. Lê-se em As Flores do mal:
On voit un chiffonnier qui vient, hochant la tête,
Butant et se cognant aux murs comme un poète,
Et, sans prendre souci des mouchards, ses sujets,
Epanche tout son cœur en glorieux projets” [5]
Na perspectiva deste poema,
a cidade é percebida como um universo de objetos descartáveis, no qual o poeta encontra
o alimento para sua arte. Este é um universo que conhece uma expansão vertiginosa
com o aparecimento do Estado burguês moderno, que tem como uma de suas características
mais importantes esta impressionante capacidade de transformar os objetos em ruínas.
E eis que assim nos deparamos novamente com uma variante daquele tema chamado, há
pouco, de tema geral da morte. Este universo urbano de objetos descartáveis torna-se
rapidamente amontoado de fragmentos e, por essa razão, passa a convidar tentadoramente
o colecionador.
Nos textos surrealistas
encontram-se variantes desse tema. Em L’Amour fou, por exemplo, André Breton
relata seu impressionante passeio, em companhia de Giacometti, ao Marché aux
Puces de Saint-Ouen (norte de Paris): ambos passeiam ao acaso naquele mercado
de velharias, em busca do elmo mágico ou do maravilhoso sapatinho de vidro que jorrarão,
como faíscas inesperadas, de um amontoado de dejetos. Esses objetos-trapos, insólitos,
portadores de um sentido único, cumprem assim a função de desvendar uma outra realidade,
que é a do inconsciente dos dois amigos errantes.
A Paris surrealista oferece,
com efeito, todas as possibilidades do insólito: da passagem no limiar da morte,
descrita por Aragon às vésperas de sua demolição, com toda sua fauna de atrizes,
passantes, prostitutas e frequentadores ordinários, aos Mercados das Pulgas, nos
quais se encontra exposto um amontoado de “objetos fora de moda, fragmentados, inutilizáveis,
quase incompreensíveis, perversos, enfim”, como diz Breton em Nadja, Paris
abriga inúmeros lugares no seio dos quais os objetos estão desviados de seu uso
habitual: eles podem se tornar, assim, objetos mágicos. Do jardim público, aberto
à visitação durante o dia, subvertido por Aragon, Noll e Breton por um passeio noturno
(ver O Camponês de Paris), às ruas repletas de palavras “alucinatórias”,
“Bois-charbons” (ver Nadja), a cidade se transforma, com os surrealistas,
nesse inesgotável campo de experiências no qual a errância, auxiliada pela mão do
acaso, pode conduzir às situações mais extraordinárias, entre elas, o encontro capital.
Há um elo entre o tema do
dejeto e o da errância. O flâneur erra ao acaso em busca do objeto-trapo
que vai transformar a realidade ordinária. Nesse sentido, os dois motivos estão
igualmente relacionados ao personagem do colecionador. As Noites de Restif
já pareciam animadas por um impulso de colecionador. O próprio autor explicou o
princípio de composição de sua obra:
No decorrer de vinte anos, isto é, desde 1767, depois
que o autor é espectador noturno, ele tem observado durante 1001 noites o que se
passa nas ruas da capital; no entanto, durante esses vinte anos ele viu somente
366 vezes coisas interessantes.
Podemos ver aí certo gosto
da coleção: o autor confessa sua preocupação em escolher, entre tudo “o que
se passa nas ruas da capital”, aquilo que ele vê de surpreendente, de extraordinário.
Qual é o sentido desta escolha? Escolher o extraordinário, ou seja, aquilo que está
fora do domínio do comum, ou fora da vida levada sob a luz do dia implica um interesse
por uma Paris misteriosa, que habitualmente escapa ao olhar dos homens diurnos,
prisioneiros de um cotidiano banal e banalizante. Essa atitude determina a eleição
de certos temas, como a prostituição, o mundo do jogo, os amores ilícitos, as situações
equívocas de todos os tipos, bem como a escolha de personagens singulares, oriundas
das camadas mais populares da cidade.
Na verdade, todos esses
temas – tema geral da morte, tema da errância – participam de uma construção que
faz de Paris, algumas vezes, mais um personagem dotado de corpo e alma, do que propriamente
um cenário dos acontecimentos narrados (o que vem a ser, aliás, um traço distintivo
do mito de Paris). As imagens que mostram a capital como um ser vivo são numerosas.
Restif a viu como uma “amante querida, um pouco vaidosa”, uma “distribuidora de
prazer”, capaz de fazer feliz qualquer um que recorresse a ela. Philippe Soupault,
em Les dernières nuits de Paris faz com que o “corpo” da capital francesa
coincida com o da personagem Georgette, uma prostituta que é Paris. E para
Aragon, n’O Camponês…, o “vasto corpo de Paris” é tão mais sedutor quanto
ele oculta inúmeros segredos, entre os quais o mais importante é a existência de
uma Paris verdadeira, uma Paris que é ao mesmo tempo real e extraordinária.
Assim, a exemplo de Restif,
os surrealistas colocam em evidência certos espaços da cidade por aquilo que eles
podem oferecer de equívoco, de dissimulado, de secreto. É que a cidade-corpo tem
um poder de sedução tão mais eficaz quanto ela possui espaços ocultados, exatamente
como um corpo feminino velado pelas vestimentas. Quer se trate dos subterrâneos
de uma grande cidade, nos quais circulam “milhares de existências flutuantes” e
dos quais já falava, no século XIX, Baudelaire (Salon de 1846), quer se trate
das passagens parisienses, estes “corredores ocultados do dia” dos quais falava
Aragon n’O Camponês, lugares urbanos há que seduzem muito mais porque são
reveladores dos segredos ocultos da cidade-corpo, assim como é reveladora “a claridade
repentina duma perna que se descobre sob uma saia que se levanta “. A Paris “oculta”
– quer seja ela noturna ou não – constitui assim, em si mesma, uma categoria de
lugares, já que, no que diz respeito à textura de uma certa topografia no interior
de uma narrativa, não têm valor somente as descrições de paisagens, mas absolutamente
todos os elementos que compõem o “meio-ambiente” em questão. Daí que esta Paris
cuja claridade é a da luz artificial dos subterrâneos ou a da iluminação noturna,
possui suas próprias relações espaciais e sua própria estrutura topográfica [6].
Fecharemos essas breves notas apontando para a importância de pensar a
representação literária da capital francesa conjugada à história da própria cidade.
O mito literário de Paris mostra que História e representação não são elementos
antinômicos mas que, ao contrário, conjugam-se constantemente na escritura de Paris.
Nela, a fusão entre realidade e ficção faz com que a capital – enquanto objeto de
representação literária – transforme-se numa paisagem composta pelo amálgama de
duas topografias que se fundem: uma real, outra onírica. Real, porque sempre palco
inalienável da História; onírica, porque passível de se metamorfosear em espacialização
de imagens, experiências e lembranças múltiplas.
NOTAS
1. Embora os primeiros jornais tivessem começado a circular no século XVII,
foi só a partir de então que seu número aumentou consideravelmente.
2. Uma oposição interessante
pode ser estabelecida entre As Noites de Paris de Restif e outro famoso texto
do século XVIII: enquanto Cloderlos de Laclos se consagrava às Ligações perigosas
(Les Liaisons dangereuses, 1782) existentes no seio da aristocracia francesa,
Restif, o “espectador noturno” – ele se autodenominava assim – consagrava-se, sob
o Antigo Regime e durante a Revolução, às ligações perigosas do povo.
3. ROUANET, Sérgio Paulo,
O Mal-estar da modernidade, S. Paulo: Cia. das Letras, 1993 e, do mesmo autor,
As Razões do Iluminismo, S. Paulo: Cia. das Letras, 1987.
4. Sabe-se da importância
que teve o chiffonnier para Baudelaire, que o comparou ao próprio poeta.
Walter Benjamin analisou essa
metáfora baudelairiana em Charles Baudelaire, un poète lyrique à l’apogée du
capitalisme (Paris: Payot, 1979). Quanto ao crieur,
figura típica da capital francesa e hoje desaparecida, é emblema de um certo pitoresco
da vida parisiense.
5. O sentido de seus
versos é aproximadamente o seguinte: o poeta diz que vê chegar um trapeiro, balançando
a cabeça, encostando-se e batendo-se contra um muro como um poeta; o trapeiro,
sem se preocupar com os espiões da polícia, abre seu coração em gloriosos projetos.
6. LOTMAN, Iouri, “Le problème de l’espace artistique”,
in La Structure du texte artistique, Paris: Gallimard, 1973.
FLÁVIA FALLEIROS | Brasil, 1959. Autora de Paris dans la littérature française des années 20: contribution à l’histoire de la représentation (1998). Publicou também, na França e no Brasil, diversos ensaios sobre narrativas francesa, portuguesa e brasileira. Traduziu O Camponês de Paris, de Louis Aragon (1996), Alá e as crianças soldados, de Ahmadou Kourouma (2003), As cores da infâmia, de Albert Cossery (2004). Contato: flavianafalleiros@gmail.com.
NICOLAU SAIÃO (Portugal, 1946) | Poeta, ensaísta, tradutor e artista plástico, com atividades ligadas ao Surrealismo desde o princípio, quando participou de várias mostras internacionais de arte postal. Em 1984, juntamente com Mário Cesariny (1923-2006) e Fernando Cabral Martins (1950), organizou a exposição O Fantástico e o Maravilhoso. Estudioso e tradutor da obra de H. P. Lovecraft, em 2002 organizou a primeira edição integral em todo o mundo de Fungi From Yuggoth (1943), tendo também a ilustrado. Dentre seus livros: Os objetos inquietantes (1992), Flauta de Pan (1998) e Olhares perdidos (2006).
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 15
Número 214 | agosto de 2022
Artista convidado: Nicolau Saião (Portugal, 1946)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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