terça-feira, 9 de agosto de 2022

FLORIANO MARTINS | Joyce Mansour e as gavetas do mistério

 


Durante as primeiras décadas de eclosão do Surrealismo, no centro radiante que era Paris, as mulheres eram idealizadas de todas as formas possíveis, porém raramente foram vistas ou aceitas como artistas. Sequer participaram das reuniões e enquetes – a eloquente enquete sobre sexualidade comete o ato inadmissível de não incluir a opinião de nenhuma mulher. Em geral quando se fala de Joyce Mansour (Egito, 1928-1986), ela é mencionada como uma exceção. Embora admirasse o Surrealismo à distância, em seu Egito natal, somente em 1953 a poeta se muda para Paris, e seu primeiro encontro com Breton, com quem já se correspondia, data de três anos depois, quando o Surrealismo começa a enfrentar desgastes e necessita beber novos horizontes que o revitalizem.

A poesia de Joyce, que enfatizava a violência sofrida pela mulher, suas imagens dilacerantes, o ímpeto revolucionário da linguagem, causou um impacto eficaz e decisivo à sua recepção no movimento. Sua natureza sempre independente a leva, ao passo de poucos anos, a compreender que a escritura automática trazia em si como elemento essencial o impulso vital de implodir eventuais travas da criação. Sua poética passou então a lidar mais intensamente com outras técnicas surrealistas, de um modo bastante peculiar, como o recurso onírico, presente em muitos cenários e personagens de sua prosa, de seus densos relatos que se mantinham direcionados a tratar da violência contra a mulher, assim como o humor negro, que põe em cheque as instituições e dá à sua obra uma alta expressividade que a situa como uma das mais importantes poetas de seu tempo.

Ao conversar com Leila Ferraz, a surrealista brasileira que foi uma das organizadoras da Exposição Internacional do Surrealismo, realizada em São Paulo, em 1967, ela recordou uma passagem de sua residência em Paris: Conheci a belíssima e enigmática Joyce, com seu charuto perfumava a todos nós. Inebriante e misteriosa. Elegantíssima e rica. Encantava-me a cor de sua pele, voz rouca e cabelos negros com franja curta e exalando óleos orientais. Boca pintada, ela soltava baforadas de fumaça lentamente – e espalhava seus pensamentos como quem revela enigmas. Ah! JOYCE MANSOUR. Também morava no 16º Arrondissement, entre Trocadero e Bois de Boulogne. Vestia-se de marrom e negro. Às vezes trajava um chapéu. Uma pausa e então seguia: Falta-me falar de seu sorriso de mulher feita e fière. Seus longos silêncios, olhos semicerrados. Surgia e desaparecia sem alardes. Era casada com alguém de rara importância. E todos se calavam para escutar sua voz de profundeza oriental declamar seus poemas ou acolher suas opiniões sages. Ela era da época de Breton e assim como ele erguia a cabeça com austeridade de quem sabe fazer história.


Poeta e prosadora, a sua obra completa foi publicada em 1991: Prose et poésie, œuvre complète (Actes Sud, Paris). Na poesia cabe o destaque de livros como Cris (1953), Rapaces (1960), Les Damnations (1967), Pandemonium (1976) e Flammes immobiles (1985). De igual modo que na prosa é imperativo citar Les Gisants satisfaits (1958) e Ça (1970), assim como a peça de teatro Le Bleu des fonds (1968).

Em um ensaio comparativo que dedicou Maité Noeno Carballo à poesia de Gisèle Prassinos e Joyce Mansour, acerca desta última recorto uma passagem:

 

Mansour não só se esforça para mostrar a deformidade física, a feiura do corpo, mas também mostra a transformação do erotismo em patologia, acabando por transformar seus personagens em vítimas de si mesmos, com comportamentos monstruosos. Joyce Mansour transporta-nos para os impulsos freudianos, uma análise mais exaustiva do conto permite-nos detectar o complexo de Édipo, pois em Clara, ele não encontra apenas o objeto de desejo, mas também a mãe e o amante. O escritor com esse microcosmo de seres desviantes nos leva às profundezas da psique do ser humano. Com tudo isso podemos fazer uma leitura freudiana, pois na literatura de Joyce Mansour encontramos todos aqueles temas que interessaram ao psicanalista. O tema da mãe, do qual já foram introduzidos alguns esboços, especialmente o complexo de castração de Édipo, do qual nenhum Freud neurótico está isento em seu desenvolvimento vital.

 

Maité trata especificamente do conto “Le cáncer”, destacando como este

 

capta de uma forma muito original o comportamento desviante das personagens mansourianas. Narrado em primeira pessoa, o protagonista desta história é apaixonado por Clara, uma heroína deformada devido a um proeminente corcunda. Isso se torna a obsessão sexual do protagonista e narrador, que desenvolve um fetiche feroz pela protuberância da menina e acaba esfaqueando a menina uma vez que ela está morta.

 


O erotismo que se vincula com facilidade à poesia de Joyce Mansour vai além de uma oposição à moral formulada por uma sociedade cujo exercício da sexualidade atende aos preceitos masculinos. Aquela interpretação da doutrina genital, ou do sacramento cujos desígnios do desejo eram inscritos em uma tábua de pecados. O sexo fortalecia a natureza humana, ampliava o sentido de uma vida dada, permitindo que ela fundasse a sua própria alegoria ou ressonância emotiva. O sexo não era da autoria do caos, mas antes uma atividade que mesmo que restrita ao ambiente carnal, não se sujeitaria jamais ao empório de suas limitações. Não era uma coleção de tendências naturais. Tampouco um acervo das ressonâncias do amor. O sexo deveria nos fazer compreender que toda uma via de interrogações estava se formando a cada toque, que a palavra divina não significa nada antes do toque, que o toque fundamenta tudo etc. Ou seja não há descoberta do outro em um plano espiritual. As infrações psicológicas, aquelas que tornam o homem subalterno dos desequilíbrios religiosos, são as que contaminam a sacralidade do desejo. Dois corpos saem pela paisagem – a noite, o aterro espiritual, a experiência religiosa – a buscar as possibilidades opostas de sua imaginação.

O verbo guardado na gaveta do mistério. Sua viagem sempre no sentido contrário. A ideia de que o mundo fala sozinho, de que o homem se manifesta através de sua ideia distorcida da solidão, o contraste pleno com um poema seu:

 

Ninguém ouve ninguém

O deserto sempre grita sob um céu impassível

O olho fixo paira sozinho

Como a águia ao amanhecer

A morte engole o orvalho

A cobra sufoca o rato

O nômade sob sua tenda ouve o tempo gritando

No cascalho da insônia

 

Quando leio os poemas de Joyce Mansour sempre recordo Bataille ao dizer que “falar das intenções da natureza não deixa de ser absurdo, não obstante, os movimentos inevitáveis em que a vida é levada ao desperdício de sua substância nunca são apenas isto”. Uma ideia do desperdício que nos leva a pensar em tanta poesia que roçou o hímen do absurdo ou do desgaste do ser, sem que um último grão de sal se pusesse a rasgar o portal de entrada em outro mundo. Qual mundo? O Surrealismo por mais arbitrariedades que tenha denunciado deixou escapar uma que que se encerrava em si mesmo, a noite surpreendente em que a própria loucura teria que deixar-se seduzir para entrar. O surrealismo só se reconhecia diante daquela máxima de Breton, que em 1938 deixou escapar: “Liberdade, cor de homem”. Em 1946 volta a tocar no tema, a liberdade, e não a percebe como um imperativo além do ambiente político, ou seja, mesmo quando sai em defesa dos trabalhadores ou da conquista de direitos sociais, jamais considera as contrações sociais que puseram a mulher em um palco quando menos depreciativo. Um ano depois e lemos em Breton:

 

A liberdade não pode subsistir mais do que em estado dinâmico e se desnaturaliza e contradiz quando se acredita poder fazer dela um objeto de museu. E basta de discussões bizantinas sobre sua natureza: não apenas seria vão, mas de todo perigoso estabelecer um debate a fundo sobre a liberdade, no qual se apressariam a participar todos aqueles que podem ter interesse em embrulhar a questão.

 


Esta curiosa afirmação de Breton, de 1947, é muito interessante, na medida em que revela um homem que não aceita ser contestado. A sua ideia de um princípio moral que pode se exceder a toda forma de captura inexata do desejo, suas limitações, os jogos incidentais de certa mística em torno do amor, da poesia e da liberdade, como alguém que faz do outro uma leitura tolerante de suas fraquezas ou excessos, as rotinas conservadoras ou as imposições ideológicas que o Surrealismo deveria condenar, mas que foram tão oscilantes no movimento, ao sabor dos desacordos profundos que seu líder mal digeria em relação à sua personalidade.

 

Me deixa te amar

Gosto do sabor de teu sangue espesso

Que eu tanto o conservo em minha boca desdentada.

Seu ardor me queima a garganta.

Gosto de teu suor.

Gosto de acariciar tuas axilas

Gotejantes de felicidade.

Me deixa te amar

Me deixa lamber teus olhos fechados

Me deixa perfurá-los com a minha língua pontiaguda

E preencher a lacuna com a minha saliva triunfante

Me deixa te cegar.

 

Joyce Mansour era uma mulher de fogo, cuja sexualidade era uma representação singular da soma do que trazia em seu íntimo e o modo como ela desafiava o mundo. A transgressão para ela era uma repetição natural do que vibrava em seu íntimo. O erotismo não considera uma antecipação de suas exigências mais profundas. Não quer propriamente ressurgir, mas antes criar um movimento em que a consciência não se reprima ou se desenvolva alheia ao instinto. Inúmeros versos cadenciadamente nos levam pela geografia mágica de seus arrebatamentos. Ela, a pequena deusa egípcia dos momentos exasperados em que o homem, a despeito da fuga, não buscava senão reconhecer a si mesmo. 

 

 


FLORIANO MARTINS | Poeta, editor, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo), e dirigiu a coleção “O amor pelas palavras” (2017-2021), parceria, de circulação exclusiva pela Amazon, entre ARC Edições e Editora Cintra. A partir de 2022 a coleção, embora mantendo seu nome, passa a ser coproduzida por ARC Edições e a revista Acrobata, destinada então à veiculação gratuita de livros em formato pdf. Curador dos projetos Atlas Lírico da América Hispânica, da revista Acrobata, e Conexão Hispânica, da Agulha Revista de Cultura.

 


NICOLAU SAIÃO (Portugal, 1946) | Poeta, ensaísta, tradutor e artista plástico, com atividades ligadas ao Surrealismo desde o princípio, quando participou de várias mostras internacionais de arte postal. Em 1984, juntamente com Mário Cesariny (1923-2006) e Fernando Cabral Martins (1950), organizou a exposição O Fantástico e o Maravilhoso. Estudioso e tradutor da obra de H. P. Lovecraft, em 2002 organizou a primeira edição integral em todo o mundo de Fungi From Yuggoth (1943), tendo também a ilustrado. Dentre seus livros: Os objetos inquietantes (1992), Flauta de Pan (1998) e Olhares perdidos (2006).



 

Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 15

Número 214 | agosto de 2022

Artista convidado: Nicolau Saião (Portugal, 1946)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS

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