A poesia de Joyce, que enfatizava a violência
sofrida pela mulher, suas imagens dilacerantes, o ímpeto revolucionário da
linguagem, causou um impacto eficaz e decisivo à sua recepção no movimento. Sua
natureza sempre independente a leva, ao passo de poucos anos, a compreender que
a escritura automática trazia em si como elemento essencial o impulso vital de
implodir eventuais travas da criação. Sua poética passou então a lidar mais
intensamente com outras técnicas surrealistas, de um modo bastante peculiar,
como o recurso onírico, presente em muitos cenários e personagens de sua prosa,
de seus densos relatos que se mantinham direcionados a tratar da violência
contra a mulher, assim como o humor negro, que põe em cheque as instituições e
dá à sua obra uma alta expressividade que a situa como uma das mais importantes
poetas de seu tempo.
Ao conversar com Leila Ferraz, a surrealista
brasileira que foi uma das organizadoras da Exposição Internacional do
Surrealismo, realizada em São Paulo, em 1967, ela recordou uma passagem de sua
residência em Paris: Conheci a belíssima e enigmática Joyce, com seu charuto
perfumava a todos nós. Inebriante e misteriosa. Elegantíssima e rica.
Encantava-me a cor de sua pele, voz rouca e cabelos negros com franja curta e
exalando óleos orientais. Boca pintada, ela soltava baforadas de fumaça
lentamente – e espalhava seus pensamentos como quem revela enigmas. Ah! JOYCE
MANSOUR. Também morava no 16º Arrondissement, entre Trocadero e Bois de
Boulogne. Vestia-se de marrom e negro. Às vezes trajava um chapéu. Uma
pausa e então seguia: Falta-me falar de seu sorriso de mulher feita e fière.
Seus longos silêncios, olhos semicerrados. Surgia e desaparecia sem alardes.
Era casada com alguém de rara importância. E todos se calavam para escutar sua
voz de profundeza oriental declamar seus poemas ou acolher suas opiniões sages.
Ela era da época de Breton e assim como ele erguia a cabeça com austeridade de
quem sabe fazer história.
Em um ensaio comparativo que dedicou Maité
Noeno Carballo à poesia de Gisèle
Prassinos e Joyce Mansour, acerca desta última recorto uma passagem:
Mansour não só se
esforça para mostrar a deformidade física, a feiura do corpo, mas também mostra
a transformação do erotismo em patologia, acabando por transformar seus
personagens em vítimas de si mesmos, com comportamentos monstruosos. Joyce
Mansour transporta-nos para os impulsos freudianos, uma análise mais exaustiva
do conto permite-nos detectar o complexo de Édipo, pois em Clara, ele não
encontra apenas o objeto de desejo, mas também a mãe e o amante. O escritor com
esse microcosmo de seres desviantes nos leva às profundezas da psique do ser
humano. Com tudo isso podemos fazer uma leitura freudiana, pois na literatura
de Joyce Mansour encontramos todos aqueles temas que interessaram ao
psicanalista. O tema da mãe, do qual já foram introduzidos alguns esboços,
especialmente o complexo de castração de Édipo, do qual nenhum Freud neurótico
está isento em seu desenvolvimento vital.
Maité trata especificamente do conto “Le cáncer”,
destacando como este
capta de uma forma
muito original o comportamento desviante das personagens mansourianas. Narrado
em primeira pessoa, o protagonista desta história é apaixonado por Clara, uma
heroína deformada devido a um proeminente corcunda. Isso se torna a obsessão
sexual do protagonista e narrador, que desenvolve um fetiche feroz pela
protuberância da menina e acaba esfaqueando a menina uma vez que ela está
morta.
O verbo guardado na gaveta do mistério.
Sua viagem sempre no sentido contrário. A ideia de que o mundo fala sozinho, de
que o homem se manifesta através de sua ideia distorcida da solidão, o
contraste pleno com um poema seu:
Ninguém
ouve ninguém
O
deserto sempre grita sob um céu impassível
O
olho fixo paira sozinho
Como
a águia ao amanhecer
A
morte engole o orvalho
A
cobra sufoca o rato
O
nômade sob sua tenda ouve o tempo gritando
No
cascalho da insônia
Quando leio os poemas de Joyce Mansour
sempre recordo Bataille ao dizer que “falar das intenções da natureza não deixa
de ser absurdo, não obstante, os movimentos inevitáveis em que a vida é levada
ao desperdício de sua substância nunca são apenas isto”. Uma ideia do
desperdício que nos leva a pensar em tanta poesia que roçou o hímen do absurdo
ou do desgaste do ser, sem que um último grão de sal se pusesse a rasgar o
portal de entrada em outro mundo. Qual mundo? O Surrealismo por mais
arbitrariedades que tenha denunciado deixou escapar uma que que se encerrava em
si mesmo, a noite surpreendente em que a própria loucura teria que deixar-se
seduzir para entrar. O surrealismo só se reconhecia diante daquela máxima de
Breton, que em 1938 deixou escapar: “Liberdade, cor de homem”. Em 1946 volta a
tocar no tema, a liberdade, e não a percebe como um imperativo além do ambiente
político, ou seja, mesmo quando sai em defesa dos trabalhadores ou da conquista
de direitos sociais, jamais considera as contrações sociais que puseram a
mulher em um palco quando menos depreciativo. Um ano depois e lemos em Breton:
A
liberdade não pode subsistir mais do que em estado dinâmico e se desnaturaliza
e contradiz quando se acredita poder fazer dela um objeto de museu. E basta de
discussões bizantinas sobre sua natureza: não apenas seria vão, mas de todo
perigoso estabelecer um debate a fundo sobre a liberdade, no qual se
apressariam a participar todos aqueles que podem ter interesse em embrulhar a
questão.
Me deixa te amar
Gosto do sabor de teu sangue espesso
Que eu tanto o conservo em minha boca desdentada.
Seu ardor me queima a garganta.
Gosto de teu suor.
Gosto de acariciar tuas axilas
Gotejantes de felicidade.
Me deixa te amar
Me deixa lamber teus olhos fechados
Me deixa perfurá-los com a minha língua pontiaguda
E preencher a lacuna com a minha saliva triunfante
Me deixa te cegar.
Joyce Mansour era uma mulher de fogo,
cuja sexualidade era uma representação singular da soma do que trazia em seu
íntimo e o modo como ela desafiava o mundo. A transgressão para ela era uma
repetição natural do que vibrava em seu íntimo. O erotismo não considera uma
antecipação de suas exigências mais profundas. Não quer propriamente ressurgir,
mas antes criar um movimento em que a consciência não se reprima ou se
desenvolva alheia ao instinto. Inúmeros versos cadenciadamente nos levam pela
geografia mágica de seus arrebatamentos. Ela, a pequena deusa egípcia dos
momentos exasperados em que o homem, a despeito da fuga, não buscava senão
reconhecer a si mesmo.
FLORIANO MARTINS | Poeta, editor, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo), e dirigiu a coleção “O amor pelas palavras” (2017-2021), parceria, de circulação exclusiva pela Amazon, entre ARC Edições e Editora Cintra. A partir de 2022 a coleção, embora mantendo seu nome, passa a ser coproduzida por ARC Edições e a revista Acrobata, destinada então à veiculação gratuita de livros em formato pdf. Curador dos projetos Atlas Lírico da América Hispânica, da revista Acrobata, e Conexão Hispânica, da Agulha Revista de Cultura.
NICOLAU SAIÃO (Portugal, 1946) | Poeta, ensaísta, tradutor e artista plástico, com atividades ligadas ao Surrealismo desde o princípio, quando participou de várias mostras internacionais de arte postal. Em 1984, juntamente com Mário Cesariny (1923-2006) e Fernando Cabral Martins (1950), organizou a exposição O Fantástico e o Maravilhoso. Estudioso e tradutor da obra de H. P. Lovecraft, em 2002 organizou a primeira edição integral em todo o mundo de Fungi From Yuggoth (1943), tendo também a ilustrado. Dentre seus livros: Os objetos inquietantes (1992), Flauta de Pan (1998) e Olhares perdidos (2006).
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 15
Número 214 | agosto de 2022
Artista convidado: Nicolau Saião (Portugal, 1946)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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