Seus passos são descalços, caminhando ao corpo nu. O olho faminto se volta
ao erotismo, por vezes em busca da “Fêmea Fácil – “uma grande borboleta negra com
espartilho carmesim portando em um triângulo de neve o fogo perpétuo” [1] –, por outras revelando “A Vida Amorosa
dos Espumíferos”, bestas apegadas à nudez feminina, que gozam primitivamente de
impulsos libidinosos como identidade. Sua expressão é provocante pelos materiais
que possam amar-se pelos papéis, palavras, imagens e objetos sentidos.
A marca que o surrealismo deixou
Hugnet anda pela
floresta triangular até a clareira, livre ao olhar selvagem pela brecha da abóboda
celeste, onde descola, decola e se fixa entre as estrelas surrealistas que brilham
céu diurno. Dessas que não revelam à primeira vista o brilho galáctico. É como parte
de constelações maiores, que por vezes poderia não estar lá, mas mantém-se pulsante.
Hugnet era discreto, aluava nos recantos da estranha beleza, onde abria seu leque
imaginário de mulheres nuas acorrentadas em neblina, com homens castos em espanto
ao espiar árvore aberta. Robert Benayoun lembra, em L’Érotique du surréalisme,
que o “erotismo é a magia da vitalidade, expressa principalmente da potência sexual
cuja finalidade é a união”.
André Breton interessou-se por Georges Hugnet após a leitura do artigo “Espírito
de Dadá na Pintura” (L’Esprit Dada dans la peinture) – depois expandido em
“A Aventura Dadá 1916-1922” (L’Aventure Dada) –, seu primeiro estudo crítico
voltado ao dadaísmo. Tristan Tzara formalmente apresentou Breton a Hugnet, cuja
adesão ao Grupo Surrealista de Paris ocorreu pelos anos de 1932 e 1939, até romper
por optar pela amizade que nutria por Paul Éluard, este que foi se desgastando politicamente
com Breton por décadas – anteriores e subsequentes.
A debandada se estendeu pelos próximos anos até reaparecer em 1941, em publicações
de La Main à Plume (1941-1944), como “a mão de penas vale a mão do arado”
(Arthur Rimbaud), grupo que expressava o surrealismo entre os não exilados que permaneceram
em Paris durante a ocupação alemã na II Guerra. Mesmo grupo de onde Hugnet foi expulso
em 1943 sob as bofetadas de Noël Arnaud e o repúdio de outros membros por conta
de sua guinada política ao gaullismo. Seu livro A Aventura Dadá foi agressivamente criticado por Benjamin Péret, de
quem Hugnet guardou rancor até contra-atacá-lo em um artigo (Arts, nº 89,
nov/1962), 3 anos após sua morte. Péret foi “vingado” por Vincent Bounoure, Jean
Schuster e Jehan Mayoux, que bateram à porta de Hugnet até desmaiá-lo em bofetões,
o que rendeu queixas à polícia, julgamento e a assembleia que resultou na criação
da Associação dos Amigos de Benjamin Péret (Association des amis de Benjamin
Péret). Tal situação gerou repercussão midiática a favor de Hugnet, que escreveu
nos meses seguintes dois artigos [2]
contra Breton, responsabilizando-o pelo declínio do movimento e pela agressão. Mesmo
assim, Hugnet seguiu com contribuições entre amizades e exposições coletivas, como
a parceria com Marcel Duchamp no catálogo da Exposição Internacional do Surrealismo
de 1947, cuja capa trazia uma teta de borracha acompanhada da legenda “por favor
toque”.
De volta à passagem de Hugnet pelo movimento surrealista, o poeta plástico
deixou estampadas duas principais, magníficas e “canônicas” contribuições: os avanços
no campo da collage e – junto com Óscar Domínguez e Max Ernst – a co-criação da
decalcomania, técnica de pintura em que se aplica (ou calca) uma superfície contra
outra, gerando novas possibilidades automáticas entre os caminhos tomados por abstrações
automáticas.
Na revista Minotaure (n8, 1936), foi publicado um dossiê nas decalcomanias,
com a apresentação “De uma decalcomania sem objeto preconcebido (decalcomania do
desejo)” (D’une décalcomanie sans objet préconçu [décalcomanie du dési])”,
de André Breton. Nesse ensaio, “como uma “nova fonte de emoção”, a técnica foi comparada
ao hábito das crianças borrarem folhas de papel com tinta e dobrá-las em dois. O
resultado pode se limitar a um desenho “que sofre de certa monotonia resultante
da repetição de formas simétricas em ambos os lados de um eixo”. Mesmo assim, a
atividade de dobrar folhas borradas para produzir a ilusão de entidades/crescimentos,
animais/vegetais, é técnica que não esgota os recursos do processo. Uma janela pode
se abrir às mais lindas paisagens de um mundo novo. Então, após o estudo da imagem
resultante em aplicações secas, o observador deve encontrar um título que transmita
a mais-realidade descoberta. É aí onde nasce/brota a certeza de tal expressão.
No texto, conforme Breton, a surrealidade dependerá do desejo de expatriação
completa de tudo, onde realidades banais (um guarda-chuva e uma máquina de costura)
escapam de seus destinos ingênuos e vão a um espaço (a mesa de dissecação) onde
revelam-se em um novo absoluto – verdadeiro e poético. A transmutação dos elementos
é seguida de “um ato puro como o do amor”, que ocorre sempre em condições favorecidas
pelo efeito dado: o “acoplamento de duas realidades aparentemente desacopladas em um plano que
aparentemente não lhes convém”.
Timothy Baum, escritor, editor e marchand em dadá e surrealismo, divide as
collages de Hugnet em três categorias: as “figuras sem palavras”, peças extraídas
de uma multiplicidade de fontes que vão de revistas a almanaques; “obras que associam
palavras e figuras”, collages-poemas de força evocativa sem limites; e “associações
de collages com tinta” (decalcomanias ou guaches). Se examinarmos as definições
técnicas de Ernst que Hugnet colocou no “Dicionário”, a collage está em “o elemento
fotográfico colado em um desenho ou pintura; o elemento desenhado ou pintado sobreposto
a uma fotografia; a imagem recortada e incorporada a uma pintura ou outra imagem;
e a fotografia pura e simples de um arranjo de objetos tornados incompreensíveis
pela fotografia”.
Diante do espelho, Hugnet definiu um “poeta sem saber, inventei personagens,
inventei paisagens, inventei um mundo sem nenhuma sorte de lei onde o impossível
não existia.” De sua manufatura, nasceram livros de collages, como A sétima face do dado (La septième face
du dé, 1936, com capa de Duchamp), uma coletânea de 20 poemas-recortes, e Oito
dias em Trébaumec (Huit jours à Trébaumec, publicado em 1969),
livro com textos escritos à mão e 82 collages que se apresenta como Guia
Rose Micheline, sátira de uma mulher Michelin servindo como guia turística conduzindo
o leitor pela fictícia Trébaumec, “a pequena cidade perdida na Bretanha, o paraíso
reconquistado”.
Dentre os trabalhos
mais notáveis de Hugnet estão as bestas pintadas em guache entre 1947-48 sobre postais
eróticos de mulheres fotografadas no começo dos anos 1920 e acompanhadas de textos
umorados – sem h, ou “um sentido de inutilidade teatral (e sem alegria) de
tudo”, como Jacques Vaché dizia –, escritos no começo da década de 1960. Estas collages
através do tempo resultam no delicioso livro A vida amorosa dos Espumíferos (La vie amoureuse des spumifères),
somente publicado em 2011.
Na França do pós-guerra, Hugnet viveu um período duplo: à noite ia aos clubes
que decorava a trabalho, onde desenhava, nas horas livres, em toalhas de mesa, das
quais levava para seu ateliê pedaços virgens para pintar seus guaches selvagens
durante o dia. É nesse momento que avança o pensamento em curso de mundos fantásticos.
Ao se bastar das bestas, passa a experimentar em postais antigos com fotos de jovens
mulheres despidas – ou pouco vestidas. Ele intervém com guache, desenvolvendo novas
e refinadas técnicas para obter o efeito desejado nessas superfícies brilhantes
que absorviam menos tinta que as toalhas de mesa. Logo, o imaginário é povoado pelas
aparições dos Espumíferos, esses portadores de espuma, cobertos de penugem colorida,
como pássaros machos dançando em libido. Uma “festa selvagem onde se espraia o maravilhoso”,
como Sergio Lima coloca a collage em A Aventura
Surrealista (1996).
Cosana Eram, pesquisadora, viu nos Espumíferos antepassados que desenharam
tormentos às mulheres, como alguns demônios desenhados por Félicien Rops, os espectros
negros ilustrados por Alfred Kubin, algumas das gravuras de Max Klinger e criaturas
sombrias pintadas por Odilon Redon. Nas collages com Espumíferos, Hugnet confronta
o feminino gris com criaturas policromáticas. Seriam monstros, desejos, sentimentos
reprimidos? São como parte externa do corpo, não necessariamente outro. Há amor
e união entre criatura e criação, enamoradas nos corpos como amantes de poucas horas.
Grifos vestem-nas com asas, como se fossem biombos. Algumas mulheres expõem tetas
bélicas, mas não são todas descobertas. O desejo explícito não é do próprio autor,
mas através desses femininos recortados, atracados e exibidos.
Na década de 1960, Georges Hugnet retornou aos Espumíferos para escrever textos paralelos, em que esculpia cada um “como uma joia”, ou pérola, atendo-se ao filme La Perle que fez em 1929, com ecos de O Cão Andaluz (filme de Buñuel e Dali, do mesmo ano), em busca do “eterno feminino” a partir de uma margarita içada do oceano, que se purifica, torna-se parte de um colar que pula de mãos em mãos como gato no telhado evitando cair em patas mesquinhas, até pôr-se em concha escura como o sol dizendo adeus.
A etimologia de Spumifères (traduzido aqui como Espumíferos), vem
do latim spuma, que deriva até espuma, como algo remetente a sperme/esperma,
cujos som e intenções ejaculatórias das criaturas, ou suas descrições gozadas, propiciam
esse caminho de interpretação, além do próprio salto dialético até a origem de Vênus
– nascida da espuma do mar onde os genitais de Urano, castrados pela foice de Saturno,
caíram. “A collage é por excelência a linguagem do excesso, (...) vinculada ao desperdício,
o escândalo do gozo” (Lima, 1995), pensamento que se encaixa em cada Espumífero,
que existe à sua forma bizarramente luxuriosa, se envolve em corpos femininos e
dá as caras sarapintadas. Os textos, de linguagem espontânea e repletos de neologismos,
dão o tom da personalidade com pitadas do umor que herdam do dadá que Hugnet levou
consigo. Os Espumíferos precisam de mulheres para existirem, “são formas nascidas
do acaso, em composições policromáticas que parecem miriápodes abstratos, alongados,
de esqueletos angulares”.
Matricol Odorant chama atenção ao ronronar seu
hino de amor profano, enquanto agita o suave odor de seus “sublimes sacramentos”
(tantumergots) pela pelagem. Quando os primeiros arrepios tomam forma, joga
sobre o corpo adorado enormes punhados de confetes, até que mexem, borbulham e soltam
um segundo Matricol, filho do primeiro, que logo se torna adulto e vai embora tremendo
como o próprio Georges Hugnet busca a Fêmea Fácil (“La Femme Facile”, 1942),
aquela de vigor impossível, vestindo o veludo da modéstia e dominada pelo brilho
das lâminas afiadas no olhar.
Hugnet perseguia essa perspectiva do homem que não entende o que o derrota,
aquele que se assusta com as maravilhas nos afagos da desordem em solidão dormente
e juvenil. Foi assim, nessa polução noturna, agarrado aos desejos tortuosos nos
travesseiros de espuma, que Hugnet libertou-se da realidade banal e sonolenta. É
então que o poeta acorda e arma a barraca com tenda celeste, em gozo de via láctea,
até colar no branco além das nuvens seu decalque de estrela pulsante. Ali, permanece
nas constelações do corpo amado onde ama ocultar-se, como a própria natureza.
NOTAS
1. “un grand papillon noir corseté de cramoise portant sur un triangle de neige
le feu perpétuel”
2. “Lettre à mes agresseurs” (Carta aos meus agressores) e “Considérations et commentaires suscités par la lecture du témoignage écrit d’André Breton” (Considerações e comentários suscitados pela leitura do testemunho escrito de André Breton).
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CORRALES, Miguel Pérez. Caleidoscopio
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LIMA, Sergio. A Aventura Surrealista – Tomo 1. Campinas, SP: Editora
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SABOT, Magalie. “Quand les mots et les images se mêlent : le photocollage à l’épreuve des cliniques somatiques extremes”. Dans Cliniques méditerranéennes 2015/1 (n° 91).
RODRIGO QOHEN (São Paulo, 1993) | Poeta, escritor, editor. Com o coletivo Baboon, cria impressões entre livros, plaquetes, revistas, panfletos, ações, gravuras e exposições. A formação em jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero termina com o texto-reportagem experimental “Semente de luz em terra ofuscada: a formação do Grupo Surrealista de São Paulo” (2008). Expôs collage e fotografia na Unicamp (Campinas, BRA), Galerie Amarrage (Saint-Ouen, FRA) e Maison André Breton (Paris, FRA). Tem ensaios (Benjamin Péret, Maria Martins, Man Ray, Leonilson, Zuca Sardan) nas revistas VIDRO, Ideia, Pessoa, Jacobin, Dasartes; e poemas no blog Quimera Delirante. Dentre os livros: O Parricídio, (2016), Em cantos do plasma noturno (2018), Entre a vertiginosinagem (2018) e Dente Desperta (2019).
EMILIO BOLINCHES | (Uruguai, 1960). Em 1973 iniciou seus estudos de desenho com o aquarelista Esteban R. Garino por três anos. Em 1980 fundou o “Taller 2”, o primeiro workshop privado de formação em Design Gráfico que dirigiu durante nove anos e que entregou ao Designer Gráfico Osvaldo Ruso, que continuou até ao final dos anos 1990. Entre 1982 e 1987 integrou e partilhou o atelier do pintor Carlos Prunell onde deu aulas juntamente com ele. Trabalha como professor de desenho na escola secundária desde 1982 e há dez anos. Desde 1976, expôs o seu trabalho em mais de 400 exposições coletivas e 23 individuais, duas das quais nos EUA. Foi destacado e premiado nos mais importantes Salões de Arte dos anos 80 a nível Oficial e Privado, em Montevidéu e interior do País em treze oportunidades. Aos 22 anos, sua obra passa a fazer parte do Patrimônio Artístico Nacional. Suas obras estão em Museus Nacionais e Coleções Particulares em mais de trinta países (a partir de 2010, uma obra da Série “Céus Mágicos” está registrada no Palácio do Governo Chinês). Atualmente desenvolve suas Oficinas de Artes Plásticas no Centro Cultural Carlos Brussa, SUA Sociedade Uruguaia de Atores. Realiza Workshops para Empresas, com uma proposta vinculativa entre as Artes Plásticas e o Cotidiano, assim como palestras de integração às Artes, para incorporação à Nossa Dieta Diária.
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 16
Número 215 | agosto de 2022
Artista convidado: Emilio Bolinches (Uruguai, 1960)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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