quarta-feira, 24 de agosto de 2022

MÁRCIO CATUNDA | Os verbos oníricos de Gérard de Nerval



Gérard de Nerval (pseudônimo artístico de Gérard Labrunie) nasceu na rue Saint-Martin, nr 168, próximo a Les Halles, e foi batizado na igreja de Saint-Merri, a duas quadras de sua casa.

O menino Gérard Labrunie teve que esperar seis anos para rever o pai, oficial-médico, que o deixou aos cuidados do tio-avô Antoine Boucher, em Mortefontaine e partiu em campanha, recrutado pelos exércitos de Napoleão, numa aventura trágica, em que faleceu sua esposa, Marie Antoinette, em 1810, na remota e fria Silésia, entre a Alemanha e a Polônia. O Dr. Labrunie volta a Paris, depois de sofrer um ferimento de guerra, em 1814 e torna a se instalar, com seu filho, na rue Saint-Martin, mas desta feita no número 72. Quando seu pai o vê, depois de longa ausência, abraça-o, e o filho grita – “mon pére!... tu me fais mal”. A orfandade de mãe, da qual não lhe restou imagem, certamente afetou emocionalmente, por toda a vida, o menino sensível que se tornou um adulto psiquicamente abalado.

Gérard foi aprendiz de tipógrafo, de 1823 a 1830, e aluno de Medicina, em 1834. Não viria a ser o médico que seu pai desejou. Seria o andarilho de muitas ruas e muitas cidades e o escritor inquieto e prolífico, autor de algumas das mais belas páginas da literatura francesa.

Na trilha de Nerval, desço a rue Montmarte, na direção do Châtelet. Depois de passar em frente à antiga sede do Journal du Soir, onde também funcionou L’Aurore (no qual Zola escreveu os famosos artigos “J’accuse”), avisto o torreão de Saint-Jacques sobre as estruturas metálicas de Les Halles e, mais próximo, o pináculo de Saint-Eustache. A tonalidade escura do grande bloco de pedras ocres de Saint-Eustache atribui-lhe um aspecto sinistro. Contemplo as altas farpas, assimétricas e heterogêneas, do espantoso templo que Nerval tantas vezes contemplou.

Faço o trajeto pelas ruas Rambuteau e Berger, contornando as vitrines do Forum Les Halles. Cruzo o boulevard Sebastopol, rutilante de comércios e multidões, e vejo as vidraças do Centro Georges Pompidou. Como reagiria Nerval, se visse agora o quartier onde nasceu, assim transformado?

Embora o prédio de número 168, da rue Saint-Martin, onde nasceu o poeta de Les Chimères, tenha aspecto antigo, os seus seis andares mostram que é demasiado alto para os padrões da época de Nerval. A casa original do poeta era outra. O edifício foi todo reconstruído. A placa na parede, no entanto, faz referência ao nascimento do poeta, em 1808, no dia 22 de maio, (o mesmo em que nasci, 149 anos depois).

O ambiente do quartier des Halles evoca o tempo de outrora, com a antiguidade dos bulevares de Saint-Martin e Saint-Denis, e da velha torre de Saint-Jacques. Passo em frente à vetusta igreja de Saint-Merri, onde Nerval foi batizado no dia seguinte ao de seu nascimento. A igreja, construída entre 1500 e 1550, é o monumento mais antigo da rue Saint-Martin. Vizinho a esse templo impregnado de história, existia, na esquina com a rue des Lombards, o lugar onde Nerval morou, após o regresso de seu pai da missão militar.

Existem hoje, no térreo da mencionada esquina, um “supermarché” e uma “boulangerie”. Mudaram todos os semblantes das vivendas da rua do poeta, exceto o relevo de filigranas gótico-flamígeras da igreja que remonta ao século XV.

Nerval foi um andarilho de muitos países. Foi o poeta do idílico Jardin des Tuileries, cantado no soneto em que ele narra um passeio com sua prima, num domingo de inverno:

 

 L’hiver a ses plaisirs, et souvent le dimanche,

 quand un peu de soleil jaunit la terre blanche,

 avec une cousine on sort se promener.

– Et ne vous faites pas atteindre pour diner,

 dit la mère. Et quand on a bien, aux Tuileries,

 vu sous les arbres les toilettes fleuries,

 la jaune fille a froid et vous fait observer

 que le brouillard du soir commence à se lever.

 

Constato que, efetivamente, os espaços mais aconchegantes de Paris são os jardins, entre os quais Tuileries oferece o panorama atraente da vegetação, das estátuas, das aves, das crianças que brincam ao redor dos círculos de água e do colosso do Louvre, com seus fantásticos pavilhões, decorados com torres e arcanos baluartes. O caminhante descansa numa cadeira metálica, na certeza de que vale a pena enfrentar a jornada extenuante, pela aventura de desvendar tantos enigmas e respirar, deliciosamente, entre a multidão ambulante, o ar limpo, entre as florações dos canteiros. Sinto que Nerval se identificava com aquela área de Paris e sua grande avenida, quando sentia, na beleza do pôr do sol, ensimesmado em seus sonhos, a noite expandir o véu no quadro que emoldura o Arco da Estrela.

O melhor amigo de Nerval era Gautier, que, por sua vez, era amicíssimo de Baudelaire. Nerval e Gautier foram colegas na infância no collège Charlemagne, instituído pelos jesuítas, na rue Saint-Antoine. Os dois assistiram, em 1830, à estréia de Hernani, drama de Victor Hugo, na Comédie-Française.

Sempre inquieto, na ânsia de novas peregrinações, prolífero na criatividade, Nerval dilapidava a fortuna herdada de seu avô materno. Andava com os bolsos cheios de poemas. Quando viajou à Itália, em 1934, disse ao pai, para não preocupá-lo, que só iria até Provence. Em Nápoles e Pompeia, andarilho e apaixonado viu em todas as beldades que avistou a imagem de Jenny Colon, a santa do abismo, a rainha do Théâtre des Varietés, por quem se apaixonara, sem ser correspondido. Diante do precipício, quis pedir contas a Deus de sua existência, mas adiou o momento do sacrifício.

Foi o bon Théo quem o apresentou a Baudelaire. Na companhia de Gautier, Nerval frequentou, a partir de 1828, a residência de Victor Hugo, na place des Vosges, de charmosos arcos e fachadas, onde Théophile Gautier e Victor Hugo foram vizinhos. Ali, Nerval conversava com o autor de Les contemplations sobre seus estudos esotéricos, e suas ideias encontravam ressonância em Hugo, que acreditava na verdade do espiritismo.

As pequenas odes de Nerval, escritas à maneira de Ronsard, Anacreonte e Horácio, foram publicadas em 1832, sob o título de Odelettes. Entre elas constam duas que evocam paisagens de Paris: Une allé du Luxembourg e Notre-Dame de Paris, editadas, posteriormente, em Petits chateaux de bohême.

Nos versos de precoce nostalgia de Une allé du Luxembourg, o jovem poeta lamenta a brevidade do instante de êxtase. A glória dos sentidos é fugaz, assim reza o ideário romântico, que antecede o existencialismo pessimista, constatando os paradoxos da vida humana. O Jardim do Luxemburgo contribui para a arte de sonhar. O formoso palácio, o tanque redondo, espelhando a luz da atmosfera, as copas vegetais que tornam o ar saudável, as gaivotas que sobrevoam em círculos e a tarde que turva o céu de tintas crepusculares suscitam profunda melancolia no coração do poeta solitário e contemplativo:

 

Elle a passé, la jeune fille

Vive et preste comme un oiseau:

À la main une fleur qui brille,

À la bouche un refrain nouveau.

 

C’est peut-être la seule au monde

Dont le coeur au mien répondrait,

Qui venant dans ma nuit profonde

D’un seul regard l’éclaircirait!

 

Mais non, ma jeunesse est fini...

Adieu, doux rayon qui m’as lui, –

Parfum, jeune fille, harmonie...

Le bonheur passant, – il a fui!

 


Na ode Notre-Dame de Paris, Nerval medita sobre as transformações que o tempo impõe a todas as coisas. Como um lobo devora um boi, com férreos nervos, em silêncio o tempo roerá os velhos ossos pétreos de Notre-Dame. Os pósteros virão contemplar as ruínas austeras da velha basílica e a verão levantar-se como a sombra de um morto. Se não realizou uma profecia de acontecimento ainda mais longínquo, parece haver assim vislumbrado a imagem fantasmagórica da recuperação da catedral, depois do incêndio que a assolou em 2019:

 

Notre-Dame est bien vieille: on la verra peut-être

Enterrer cependant Paris qu’elle a vu naître;

Mais, dans quelque mille ans, le temps fera broncher

Comme un loup fait un boeuf, cette carcasse lourde,

Tordra ses nerfs de fer, et puis d’une dent sourde

Rongera tristemente ses vieux os de rocher!

Bien des hommes, de tous les pays de la terre

Viendront, pour contempler cette ruine austère,

Rêvenus, et relisant le livre de Victor:

– Alors ils croiront voir la vieille basilique

Toute ainsi qu’elle était, puissante et magnifique,

Se lever devant eux comme l’ombre d’un mort.

 

Nerval acompanhou Théophile Gautier, quando este se mudou da place des Vosges, em 1834, para o impasse du Doyenné, no local onde existe hoje o pavilhão Mollien, do Louvre, do lado direito de quem entra na place du Carrousel, pelo jardin des Tuileries. Ali moravam também Arsène Houssaye, poeta e romancista, e o pintor Camille Rogier. Gautier instalou no Impasse du Doyenné o seu pequeno ateliê para se dedicar às artes plásticas. Ali Gérard dormia num colchão sobre o solo, porque jamais considerou o sono como um repouso. Foi esse o lugar onde Nerval permaneceu mais tempo, cerca de dois anos, de 1834 a 1836. Sua vida foi, como se sabe, um constante viajar e mudar de residência. (Na lista não-exaustiva de residências do poeta constam 24 domicílios, sendo, alguns destes, casas de amigos onde se hospedou).

A respeito do Doyenné, ele recorda, em Petits château de bohême, o tempo feliz em que Gautier lia seus poemas em voz alta, enquanto as musas Cydalise, Lorry ou Victoire se balançavam “nonchalamment dans le hamac de Sarah la blonde, tendu à travers l’immense salon”. E ele lamenta que “notre palais est rasé. J’en ai foulé le débris l’automne passé. Les ruines mêmes de la chapelle du Doyenné, qui faisait partie de Saint-Thomas-du-Louvre, qui se découpaient si gracieusement sur le vert des arbres... n’ont pas été respectés”. As festas ruidosas no Doyenné lhe valeram, certa ocasião, uma prisão por tumulto noturno.

No livro que escreveu a respeito de Nerval, Gautier relata que eles redigiram juntos a peça de teatro intitulada La dame de Carouge, que Gérard perdera em suas divagações boêmias. Recorda-lhe as andanças, com os bolsos sempre cheios de manuscritos, que reescrevia em mesas de bares e cafés. Elogia-lhe a bondade, as maneiras polidas e a linguagem reservada. Gautier comenta ainda as lembranças do Impasse du Doyenné, onde havia a velha casa da qual se avistava uma igreja em ruínas, cujo resto de cúpula fazia belo efeito sob o plenilúnio. Segundo Gautier, embora de perturbado equilíbrio mental, seu grande amigo conservava as faculdades intelectuais intactas. No dia em que, na casa de Hugo, Nerval dissertou, de maneira imparcial, sobre os paraísos e infernos de diversos cultos, alguém perguntou se ele mesmo não tinha religião. E a resposta foi que ele tinha, pelo menos, dezessete.

Ele viaja à Bélgica com Théo em julho de 1836. Os artigos escritos na estada em Bruxelas foram publicados em La Chronique de Paris, jornal fundado por Balzac. Em 1837, começa a escrever para La Presse e a colaborar com Alexandre Dumas. O primeiro fruto dessa parceria foi a ópera-cômica Piquillo, que teve 27 repetições no Opéra-Comique em 1838.

Sua paixão por Jenny Colon se incrementa nesse período, quando a atriz desempenhou o papel de Sylvie, na peça Piquillo. Os amigos se riram do fato de o poeta haver comprado uma grande cama, com intenções específicas de aprofundar seu intercâmbio sentimental com a sedutora Jenny. Num soneto a ela dedicado, ele a chamará de Dafne, a ninfa da qual Apolo se enamora e é transfigurada num loureiro. Apolo a reverencia e traz consigo a coroa de louros, que na Antiguidade era concedida aos heróis como galardão de triunfo apoteótico.

Como seu jornal Le Monde Dramatique havia falido, causando-lhe grande prejuízo, Nerval passa a trabalhar em distintos periódicos. Assim, foi redator, simultaneamente, do Figaro, do La Presse e do La Charte.

Em seus passeios vespertinos, Nerval percorria a grande aleia de Tuileries, mergulhado em devaneios, e ia contemplar o poente emoldurado no Arco da Estrela. No café Divan, na rue le Peletier, número 3, próximo ao Opéra Comique, bebia o licor da saúde.

Passei algumas vezes diante do espaço onde existiu o tradicional café Divan, frequentado por toda a boemia dos poetas de então, situado entre o boulevard Haussmann e o boulevard des Italiens. Desse modo, confirmei que foi substituído pelo atual edifício do BNP Paribas, monstro financeiro que devorou todo um bloco onde havia residências e restaurantes.

O grande peregrino, tradutor de Goethe, dizia haver adotado o nome de Nerval por ser descendente do imperador Nerva. Um de seus hábitos era ir ao mercado dos pássaros, em Les Halles, conversar com os papagaios e comprar passarinhos para libertá-los das gaiolas.

Dizia-se dotado de certa vocação para a diplomacia: “Sou quase um diplomata. Sei falar com as autoridades”. Seu pai, o Dr. Labrunie, queria fazer dele um médico. Ajudava-o com algum dinheiro e se preocupava com o filho que, em sua compreensão, andava em má companhia. O amigo Eugene Stader, generoso e conhecedor do seu talento, arranjava-lhe subvenções do Ministério da Instrução Pública para custear-lhe as viagens.

Nerval dissipara a herança no investimento do jornal Le Monde Dramatique, de curta existência. Noctâmbulo, transitava de Madeleine à Bastille, naquela Paris iluminada por lampiões de gás. “Sa vraie maison, c’était le café”, atestou Arsène Houssaye.

Nerval viajou, em 1838, a Frankfurt, na companhia do amigo Alexandre Dumas, com o propósito de escreverem juntos a peça Léo Burckart, estreada no Théâtre de la Renaissance, em novembro de 1838, e continuada no Théâtre de la Porte de Saint-Martin, em janeiro de 1839. A peça foi, todavia, interrompida pela censura, que a julgou uma incitação à violência.

O Théâtre de la Renaissance daquele tempo não é o atual teatro que tem esse nome, localizado na vizinhança da Porte de Saint-Martin. O Théâtre de la Renaissance coetâneo de Nerval ficava na quadra formada pelas ruas Delayrac, Montigny e Marsollier. É atualmente um velho prédio pardacento, com aspecto de coisa abandonada, local que pertence ao Banque de France. A ele cheguei, procedente da rue des Petits Champs, depois de passar pela passage Choiseil, de teto transparente, onde Jacques Offenbach teve seu Théâtre des Bouffes-Parisiens, o livreiro Alphonse Lemerre teve sua editora e Ferdinand Celine viveu sua infância.

Ao regressar da Alemanha, em 1839, Gérard arranjou logo outra viagem. Com ajuda econômica de seu pai e do Ministério da Instrução Pública, conseguida por intervenção de Victor Hugo, ele passa três meses em Viena. Manteve encontros com Franz Liszt e com a pianista Marie Pleydel, da qual se enamorou. O resultado de suas experiências em Viena foram relatados no livro La Pandora.

Quando volta a Paris, em março de 1840, o poeta de La bohême galante continua suas perambulações noturnas, escrevendo em transe, noctâmbulo impenitente, pelos recantos da boemia de então. Ao acompanhar a trajetória existencial de Gautier, aloja-se no domicílio de seu amigo, na rue de Navarin, 14, nas proximidades da place Pigalle, no período de 1840 a 1841. Um ano depois, teve a primeira crise de delírio.


Fui à rue de Navarin duas vezes. Na primeira e na quarta viagem. Na mais recente, pude recordar alguns detalhes daquela curta e pitoresca rua, entrecortada pela rue Henri Monnier e pela rue des Martyrs, que marcam o seu começo e o seu fim, em apenas uma quadra. É, ainda hoje, uma rua relativamente tranquila. Imagino como seria nos tempos de Nerval e Gautier. A rua tem dois endereços importantes: o número 14, onde Gautier morou inicialmente um prédio alto, de janelas brancas, sem varandas – e o de número 22, que tem varandas grandes. Imagino ambos os poetas perambulando em direção aos locais da boemia galante, fustigados pelo spleen e dialogando sobre os temas mais relevantes da vida.

Certa noite, em fevereiro 1841, Gérard saiu do café Le Divan, na rue Le Peletier e foi em direção à igreja de Notre-Dame-de-Lorette. Viu uma estrela vermelha, circundada por uma auréola azulada, que acreditou ser Saturno.

Pelo caminho, foi-se desfazendo das roupas e andou nu, anunciando que viajaria ao Oriente. De repente, viu-se cercado de uma patrulha de soldados. Houssaye e Gautier o conduziram à “maison de santé” da rue Picpus, nº 7, clínica de Madame Marcela de Sainte-Colombe.

A crise de 1841 durou nove meses, ao cabo dos quais, ele teve alta. Suas afecções psíquicas o perseguiram durante os derradeiros 14 anos de vida, entre intermitências de absoluta lucidez e momentos terrivelmente depressivos.

Acreditei que, porventura, ao hospedar-me num hotel na avenida Daumesnil, próximo à rua de Picpus, onde Gautier e Houssaye acharam por bem internar Nerval, encontraria rapidamente o lugal exato.

Do ponto do metrô Michel Bizu até o número sete da rua Picpus, inauguro o dia, exercitando-me na subida do boulevard de Reuilly, no 12º arrondissement. Caminhei, longamente, ora na sombra ora sob o sol. A distância era maior do que pensei. Por fim, já extenuado, avisto, na esquina do boulevard Diderot, a velha casa de dois andares, com o aspecto fantasmagórico que o tempo e a falta de cuidados atribuem a suas paredes externas.

Segui caminhando e me vi diante da place des Nations, arborizada, espaçosa, decorada de duas colunas paralelas e a estátua alegórica da República, como deusa da liberdade, como heraldo, em pé, sobre uma carruagem transportada por leões. A estação do metrô está a 20 metros. Inclino-me na descensão de suas escadas.

Nerval tardou pouco ali. Recebeu alta, mas teve que se internar de novo, desta feita na clínica do Dr. Blanche, na rue Norvins, 22. Diagnóstico: “mania aguda”. A diretora da Revue des Deux Mondes, Madame de Girardin, pediu ajuda ao Ministério da Instrução Pública para custear-lhe a estada na clínica psiquiátrica, e o poeta recebeu, para tanto, recursos no valor de 300 francos.

Passei ao largo da paisagem predileta de Gérard de Nerval (moinhos, cabarets e ruelas bordadas de jardins e chaminés de Montmartre), subindo à colina campestre, de panorama encantador. Do fantástico mirante, em frente ao fabuloso bloco de pedras polidas da basílica de Sacré-Coeur, avistei a grandeza da cidade. Depois, tornei a descer. Vim pela rue de l’Abrevoir, onde Verlaine degustava seu absinto. Delícia de respirar em plena “butte”, apesar dos ruídos ambulantes da Babel de turistas. Para chegar à rua Norvins, faço uma curva na rue Girardon, na esquina do Château des Brouillards, lugar que Nerval apreciava, segundo a placa indicativa: “ce qui me séduit dans ce petit espace abrité de grands arbres, c’était d’abord ce reste de vignoble lié au souvenir de Saint-Denis”. A mesma placa esclarece que Saint-Denis (São Dionísio), missionário do papa Clemente e mártir de fé cristã, foi decapitado em 273.

Logo encontro, nas alturas de Montmartre, o número 22 da inclinadíssima rue Norvins, onde Nerval esteve hospitalizado em duas ocasiões. A clínica do Dr. Blanche está no alto da rua, que subi, respirando fundo. A velha mansão branca guarda todo o fulgor das características que teve nos tempos de Nerval.

A placa histórica explica tudo: o doutor Prost inaugurou no local sua clínica de tratamento de doenças mentais em 1806. O Dr. Esprit Blanche assumiu em 1820 a direção do asilo e deu seguimento às terapias sugeridas pelo Dr. Pinel, que defendia a necessidade de relaxar-se um pouco o rigor do tratamento dos alienados, porquanto a tradição anterior os mantinha acorrentados em muitos casos. Diversos escritores e outros artistas, fatigados ou depressivos, acorreram à guarida do doutor Blanche, sendo o mais ilustre deles Gérard de Nerval, que ingressou ali em 1841: “Ici a commencé pour moi ce que j’appellerai l’épanchement du songe dans la vie réele…”

Tratado pelo alienista Blanche, sem aparelhos de terror nem rigor corporal, tão logo Nerval recuperou a saúde, confessou que perdera o pouco de poesia que se havia despertado em sua cabeça: “eu falava em versos todos os dias e eram versos excelentes”, lamentava, embora sentisse alívio, depois da crise que ele definia como “uma febre quente, complicada dos médicos”. Segundo revelou em carta a Ida Dumas, esposa de Alexandre Dumas, havia um carnaval de filosofias e deuses em sua cabeça e ele se sentia Deus, porém aprisionado em sua triste encarnação.

Nerval magoou-se com a publicação de um artigo, de autoria do jornalista Jules Janin, no Journal des Débats, que expôs publicamente sua condição de saúde, ao comentar a sua crise como um fato consumado de alienação mental.

No estado que Nerval definiu como de “rêverie supernaturaliste”, ele escreveu os primeiros sonetos de Les Chimères, publicados mais de dez anos depois. A literatura de Nerval, nascida dessa espécie de esquizofrenia sublime, qualifica-o como um precursor dos estudos teosóficos, desenvolvidos, posteriormente, por Helena Blavatsky.

Eu não imaginava que a clínica do Dr. Blanche fosse tão próxima à igreja de Sacré-Coeur e à place du Tertre, na encruzilhada das ruas Saint-Rustique e des Saules. Sinto uma espécie de saudade da figura de Nerval. Tenho a impressão estranha de que o conheci em outros tempos. “Que, dans une autre existence peut-être, j’ai déjà vue…et dont je me souviens!”, dizia ele. Quem sabe? Quem decifra tanto mistério? De resto, era caminhar descendo até a place de Clichy. Já ganhei o dia, disse a mim, quando passou um micro-ônibus e o peguei. Fui descendo até avistar, numa esquina, o fantástico Lapin Agile, que tanto significado tem para Toulouse Lautrec, Francis Carco, Aristide Bruant e outros grandes artistas. O micro-ônibus me deixa junto a Mairie du 18º arrondissement, onde entro no portal em declive do metrô Jules Joffrin.

Em 1842, o poeta nômade se transfere para o número 10 da rue Saint-Hyacinthe-Saint Michel, que começava na interseção da rue de la Harpe com a rue d’Enfer (hoje rue Denfert-Rochereau) e terminava na rue Saint-Jacques. A rua para onde Nerval se transferiu foi suprimida e rebatizada de rue Paillet, na metade do século XIX, sendo, posteriormente, incorporada à rue Malebranche.

         A morte prematura de Jenny Colon, aos 32 anos, em junho de 1842, o abala. Para aliviar a angústia do falecimento de sua musa (então casada com um flautista) e redimir-se dos vexames que vivera durante a internação no manicômio, ele empreende, em dezembro de 1842, a sonhada viagem de um ano ao Oriente.

A viagem começa poucos dias depois de ele sair da clínica de Montmartre. Embora fatigado, sentia-se em perfeito estado de saúde. Ele embarca em Marseille, no dia 1º de janeiro de 1843. Victor Hugo obteve um reforço de 300 francos da parte do Ministro Villemain para as despesas da viagem. Mais uma vez, o Ministério da Instrução Pública foi generoso com Nerval. Gérard percorreu Malta, Egito, Síria, Líbano, Grécia e Turquia, tendo escrito a respeito de tudo quanto viu.


No Egito, visitou as pirâmides, admirou a dança dos dervixes e frequentou a biblioteca da Sociedade Egípcia. Achou a “Ville de Mille et une Nuits” um tanto degradada e poeirenta. Passou três meses no Egito. Circulou no anedotário que os muçulmanos quiseram casá-lo com uma menina síria de 12 anos, o que ele obviamente recusou, por considerar a noiva demasiado jovem.

No Líbano, passou também três meses. Conviveu com os maronitas durante um mês, em cidades assediadas pelos drusos. Por pouco, não se casou com a filha de um Sheik. Acometido de febre, desistiu de casar-se e embarcou para Constantinopla, onde, com o pintor Camille Rogier, seu velho amigo dos tempos do Impasse du Doyenné, viu as luzes grandiosas do Ramadã e fumou “narguilé” nos cafés. Apreciou as margens do Bósforo, “como uma grande rua bordada de palácios”. A cena mais chocante da peregrinação foi a de um armênio, jazendo no chão, a quem os turcos haviam cortado a cabeça. O livro, objeto das observações que anotou nesses países, veio a lume com o título de Voyage en Orient, em 1851.

Em janeiro de 1844 ele está de volta. Pouco tempo depois de regressar do grande trajeto oriental, viaja, ainda em 1844, com Arsène Houssaye para a Holanda e para a Bélgica, escrevendo reportagens para jornais e revistas, sobre os museus e teatros que visitou.

O ano de 1845 foi vivido, em grande parte, na clínica do Dr. Esprit Blanche. Quando, porém, saiu do hospital psiquiátrico, substituiu Gautier, na redação do folhetim de La Presse, escrevendo crônicas sobre teatro, nos meses de julho a setembro, quando seu amigo viajou para a Argélia.

Modesto, benevolente, gentil e afetuoso, a profunda qualidade humana de Gérard se detecta pelos testemunhos dos que o conheceram. Enquanto esteve no manicômio, teve consciência de que jamais perdera o bom senso. Queixava-se, portanto, de haver sido forçado a reconhecer sua demência, como se fazia antigamente com os feiticeiros e os hereges.

Em 1846 vai a Londres, onde escreve artigos para a revista L’Artiste. A atividade dramatúrgica prossegue indelevelmente, com os bons auspícios do Théâtre de l’ Odéon, onde suas peças Les Monténégrins e Le Chariot d’enfant (esta, em parceria com Joseph Méry) são representadas, respectivamente, em 1849 e em 1850. Ainda naquele ano, o inquieto Nerval viajou em agosto outra vez à Alemanha, onde visitou seu amigo Franz Liszt, com quem falou sobre o projeto de trabalharem, em parceria, numa ópera em que adaptaria o Fausto, com libreto de Alexandre Dumas.

Nerval não tardou a mudar de endereço, indo morar na rue Saint-Thomas-du-Louvre, onde permaneceu até o final de 1850. Teve de abandonar o local, que foi demolido pelas autoridades públicas, para a construção do prolongamento da rue Rivoli. Ainda em 1850, em uma de suas incansáveis andanças, o poeta notívago caiu de uma escada em Montmartre e machucou o joelho e o peito. Os biógrafos atribuem esse acidente ao fato de que Nerval caminhava ébrio nas noites peregrinas. Ele perambulava, em rondas noturnas pela cidade, na fantasia de buscar algum mistério. Como ir a um templo egípcio, que existira no lugar onde existe a igreja de Saint-Germain-des-Prés. Ou encontrar uma mandrágora da perfeição, nas raízes das vinhas de Montmartre.

Nerval narra, em Les nuits d’octobre, seu trajeto noturno do Château-Rouge até Les Halles. Ele ia viajar a Meaux e a Strasbourg, porém encontrou um amigo, com qual passou a noite bebendo nas tabernas e nos cabarets de Les Halles. Viu então o Château-Rouge, (que ficava na rue Galande, nº 57, nas proximidades da place Maubert e foi demolido em 1882), como um templo druída, com altos pilares sustentados por cúpulas quadrangulares. Naquele antro bolorento de vagabundos e prostitutas, mergulhado nas profundezas, Nerval tremia de ver sair Ésus ou Thor ou Cérunnos, “les dieux redoutables de nos pères”.

A narrativa continua. Após o jantar no “rôtisseur” da rue Saint-Honoré, foram pela rue de Valois, ao antigo Athénée, de luminosa fachada, com uma dúzia de janelas. Ele descreve a fachada de Saint-Eustache, a armadura gótica, os desenhos corretos da Renascença e deplora que “un si rare vaisseau soit deshonoré, à droite par une porte de sacristie à colonnes d’ordre ionique, et à gauche par un portail dans le goût de Vignole”. Daquele ambiente festivo, de cafés e cabarets abertos toda a noite, elogia o restaurante Maison d’Or e as «caves des charniers, au pied de la fontaine de Pierre Lescot e de Jean Goujon, les marchandes de fruits et fleurs». Confessa também sua inclinação por uns goles de prazer: «Il est bon de boire un verre de cidre ou de poiré. C’est rafraichissant». Dentre as iguarias que mais apreciava no velho mercado, “c’est la soupe à l’oignion, qui s’exécute admirablement à la Halle, et dans laquelle les raffinés sèment du parmesan râpé”.

Os amigos admiravam a disciplina dissoluta e a genialidade do grande viajante, o tradutor do Fausto, elogiado por Goethe. Gérard de Nerval se autointitulava o “tenebroso”, no famoso poema El Desdichado.

Entre a angústia e a euforia, Nerval estudava, criteriosamente, os sonhos, como vínculo entre o mundo externo e o mundo interno. Imergia, visceralmente, nos domínios misteriosos das dimensões oníricas, buscando uma vida nova, além das condições materiais do tempo e do espaço, semelhante à que nos espera após a morte. Ao confessar: “Je crois et j’espère sincerement en la mort, je veux dire en la vie future”, deixa transparecer a tentação do suicídio.

Gérard não temia as visões trágicas de suas eufóricas alucinações. Descrevia em seus textos as imagens subterrâneas e aparições fantásticas, atemporais, em que comparava a atriz Jenny Colon ora com a deusa Isis, ora com a deusa Dafne.

Os psiquiatras não entenderam o psiquismo inquieto de Gérard, homem dócil, afável e sempre bem-humorado, cuja fervorosa dedicação à literatura o fazia delirar com os temas místicos e esotéricos. Seu talento imbatível se revelou numa maravilhosa obra literária, no profundo conhecimento dos grandes poetas alemães (que ele traduziu melhor do que ninguém), nas encantadoras narrativas de suas viagens, bem como nos arrebatadores sonetos de Les Chimères, que abrem portas místicas para a compreensão de mitos e lendas de antigas civilizações.

Ao chegar ao boulevard Saint-Denis, surpreendo-me com a beleza da Porte Saint-Denis, decorada de alegorias e signos heráldicos. Na parte superior, sobre o arco, está bordada uma batalha de cavaleiros. Ludovico Magno tem seu nome estampado no alto e reluzem, dentro do arco vazado, os edifícios, com suas varandas de grades, que o sol areja de claridade. A poucos metros dali, fica a Porte Saint-Martin, composta de três arcos, menor e menos ornamentada do que a Porte Saint-Denis. Fica no cruzamento do boulevard Saint-Martin com a rue du faubourg Saint-Martin, num ambiente animado, com muitos restaurantes e bares.

Circundei o impressionante monumento de Saint-Denis, em busca do número 111 da rue du faubourg Saint-Denis, onde, de janeiro a fevereiro de 1852, Nerval esteve internado, numa crise de fatiga intensa, na denominada Maison Dubois (do Dr. Antoine Dubois), para curar-se não das faculdades mentais, mas de uma erisipela, decorrente, talvez, do estresse causado por suas divagações noturnas e pela ingestão excessiva de substâncias alcoólicas.

 


Encontrei uma infinidade de restaurantes de “kebab” e num deles almocei. Descobri a passage de l’Industrie, com lojas e residências no pátio interior, e a passage Brandy, de teto transparente, cheia de restaurantes indianos, que ocupam todo o longo corredor até a outra quadra. Ao cruzar a rue du Château d’eau, a rue Jarry e a rue de la Fidelité, constatei que o lado ímpar da rue du faubourg Saint-Denis acaba no número 105. No lugar onde existiu a Maison Dubois, há o hospital Fernand-Widal, ao lado do Square Alban Satragne. 

Ao sair da maison Dubois, onde se curou da erisipela, decorrente de sua instabilidade emocional, dos prejuízos e do estresse de tanto trabalho, Nerval se instala na rue du Mail, nº 9, em fevereiro de 1852.

Fui, pela rue Notre-Dame des Victoires, na direção das pontes. Passei pelo bloco pardacento da velha igreja, cujo nome é o mesmo da rua. Vi, à esquerda, o início da rue du Mail. A 50 metros dali, encontro o prédio que fica no número 9, que tem uma fachada de dois andares e o resto da construção um pouco recuada, por trás dessa frente que liga os números 9 e 11 num só edifício. Percebi que o prédio já não tinha o aspecto dos tempos de Gérard de Nerval, tendo-se, em sua reforma, acrescentado outros andares à estrutura do primeiro. O poeta ali viveu apenas uns meses.

Em novembro de 1850, a peça L’Imagier d’ Harlem foi encenada no teatro de la Porte de Saint-Martin. Em fevereiro de 1853, está ele, outra vez, na maison Dubois, com febre. Nesse ano, são publicados Les illuminés, livro esotérico, La Bohême galante, Lorely e Sylvie, este na Revue des Deux Mondes.

Gérard seguia o seu ritual de rondas noturnas, quando, mais uma vez, foi internado. Desta feita, de 27 de agosto de 1853 a 27 de maio de 1854, no asilo de Passy, na rue de Seine, hoje rue de Ancara (onde se encontra atualmente a residência da Embaixada da Turquia). Achava-se em estado de “delírio furioso”, no dizer do Dr. Émile Blanche, filho do Dr. Esprit Blanche, que fora seu terapeuta. Alguns de seus móveis foram transportados da rue du Mail a Passy. Nerval se diagnostica, afirmando que tivera uma “bizarra exaltação nervosa”. No prefácio de Les filles du feu, dedicado a Alexandre Dumas, diz ele já não mais estar “montado no hipogrifo”, referindo-se a seus assédios de delírio.

Em maio de 1854, quando ele sai da clínica do Dr. Émile Blanche, viaja à Alemanha. Bebeu cerveja, copiosamente, com estudantes e fez estardalhaço, cantando em voz alta, de noite, no hotel de Strasbourg. De regresso, dedicou-se a retocar o seu magnífico Aurélia, repleto de vertigens oníricas, e alucinações de seu amor místico por Jenny Colon. A ansiedade e a penúria em que vivia, naqueles meses terminais, o levariam ao desespero.

Narrativa de insólitas revelações, “Aurélia, qui paraissait n’être que la lutte d’un seul, le drame unique d’un cas original, s’élève à la grandeur d’une épopée métaphisique”, observa, pertinentemente, Albert Béguin, um dos estudiosos da vida e da obra do nosso poeta.

Aurélia é um documento autobiográfico que revela a trajetória vertiginosa de Nerval pelas atmosferas mágicas de seu encantamento. É o seu testamento espiritual e a sua despedida do mundo. Ele revive o mito de Orfeu, viajando pelo subterrâneo dos sonhos em busca do espírito de Aurélia.

Nessa trajetória insólita, as visões místicas dos sonhos vão-se tornando experiência cotidiana, mas sua conduta terrenal não se compatibiliza com seu transporte aos incandescentes orbes multidimensionais. Ele se achava em dois lugares ao mesmo tempo e acreditou que foi o seu duplo que seguiu escoltado pelos soldados, na primeira vez em que o internaram na maison de santé.

Nas primeiras frases de Aurélia, ele define o sonho como um acesso ao mundo dos espíritos:

 

Le rêve est une seconde vie. Je n’ai pu percer sans frémir ces portes d’ivoire ou de corne qui nous séparent du monde invisible. Les premiers instants du sommeil sont l’image de la mort; un engourdissement nébuleux saisit notre pensée, et nous ne pouvons déterminer l’instant précis ou le “moi”, sous une autre forme, continue l’oeuvre de l’existence. C’est un souterrain vague qui s’éclaire peu à peu, et où se dégagent de l’ombre et de la nuit les pâles figures, gravement immobiles, qui habitent le séjour des limbes. Puis le tableau se forme, une clarté nouvelle illumine et fait jouer ces apparitions bizarres: le monde des Esprits s’ouvre pour nous.

 

Ele transita entre os dois planos da vida e atesta a realidade tangível do mundo da imaginação. Constata que, tanto na vigília quanto no sono, tudo se transfigurava. Assim, os acontecimentos terrestres podiam coincidir com os do mundo sobrenatural: “La seule différence pour moi de la veille au sommeil était que, dans la première, tout se transfigurait à mes yeux; chaque personne qui m’ approchait semblait changée, les objets matériels avaient comme une pénombre qui en modifiait la forme, et les jeux de lumière, les combinaisons des couleurs se décomposaient, de manière à m’entretenir dans une série constante d’impressions qui se liaient entre elles, et dont le rêve, plus dégagé des éléments extérieurs, continuait la probabilité” (Aurélia, primeira parte, capítulo três).

Na persecução do fluxo de suas percepções alteradas, ele escuta acima de um relógio um pássaro que lhe fala como uma pessoa. Numa viagem noturna às atmosferas sobrenaturais, caiu num abismo que atravessava o globo. Assim, foi transportado por uma infinidade de rios de metal fundido que surcavam a terra como barcos e veias entre os lóbulos do cérebro.

Num sonho de um minuto, percebeu a sequência ininterrupta de homens e mulheres que foram ele em vidas passadas e pisou sobre as camadas sucessivas dos edifícios de distintos países, em diferentes idades. Num jogo de luz em que se confundiam as tintas de um prisma, estabelecera contato com parentes e amigos. Era uma família primitiva e celeste que lhe dava a certeza de sua existência eterna. Chorava, no entanto, ao ver suas formas vibrantes se volatizarem.

Com gestos e fenótipos simultâneos, três mulheres que viviam a mesma vida se unificavam na dama que ele seguia, a qual era composta das três. De pronto, as árvores se tornaram as rosáceas do vestido dela e o corpo da mulher imprimiu seus contornos nas nuvens. Ele viu então três Elohins com os espíritos de suas raças, fundando vastos reinos no meridiano da Terra. Em seguida, a constelação do Orion abriu ao céu as cataratas das águas.

O preço dessa extralucidez era uma nostalgia deseperada. De um terraço elevado, no por do sol, ao avistar o cemitério onde se encontrava o túmulo de Aurélia, desejou morrer para unir-se a ela. Peregrinou ao campo santo à procura da sepultura de sua musa, cuja última carta levava consigo num pequeno cofre. Viu o cemitério de Montmartre fechado e chorou, ouvindo a voz de Aurélia desde o mundo invisível em que ele próprio estava imerso. Sabia que a morte não existia e, no entanto, Aurélia estava morta.

Uma contrição imensa o atormentava com os pesadelos de um sentimento de culpa e de remorso. Perdera a chance de entender o segredo da vida. Implorava o perdão de Deus, quando as sombras irritadas fugiam, lançando gritos e traçando no ar círculos fatais como os pássaros ante à aproximação de uma tempestade.

Pensou que o espírito de Aurélia estivesse numa mulher que cantou no restaurante de um vilarejo.

Foi pela barrière de Clichy, viu um homem carregando sobre os ombros uma criança e os identificou como sendo São Cristóvão levando o Cristo.


Ao assistir ao ofício na igreja de Notre-Dame de Lorette, teve a impressão de que as palavras do sacerdote eram pronunciadas em sua única intenção. Ao deixar a igreja, percebeu que a paisagem parisiense se metamorfoseara. Caminhou até a place de la Concorde, tomou a direção da rue Saint-Honoré, e no trajeto até o Louvre, avistou diversas luas velozes que pareciam desgovernar a Terra, numa visão semelhante à que tivera Van Gogh ao pintar a noite:

 

Arrivé vers le Louvre, je marchais jusqu’à la place et, là, un spectacle étrange m’attendait. À travers des nuages rapidement chassés par le vent, je vis plusieurs lunes qui passaient avec une grande rapidité. Je pensai que la terre était sortie de son orbite et qu’elle errait dans le firmament comme un vaisseau démâté, se rapprochant ou s’éloignant des étoiles qui grandissaient ou diminuaient tour à tour.

 

Pensou então em matar-se, quando viu as estrelas se extinguirem como as velas de uma igreja, e o sol negro do Apocalipse surgir como um globo sanguíneo sobre Tuileries, anunciando o início da noite eterna: “je croyait voir un soleil noir dans le ciel désert et un globe rouge de sang au dessus des Tuileries”.

Na manhã seguinte, estava sob as arcadas do Palais- Royal. Todas as noites velava, até o nascer do sol, na colina de Montmartre. Ajoelhou-se diante do altar da Virgem na igreja de Saint-Eustache, pensando em sua mãe. Choveu muito. Ele, acreditando que fosse o dilúvio universal, jogou seu anel na correnteza e o Sol voltou a brilhar.

Os amigos o hospitalizaram de novo. Foi recolhido, mais uma vez, à maison de santé de Passy, no período de 6 de agosto a 19 de outubro de 1854.

Na clínica, ele impunha as mãos em alguns enfermos. Um dia, bebeu um frasco de éter que encontrou sobre a mesa. Passava horas inteiras cantando para um pobre rapaz que não podia ver nem falar e, porque esse rapaz se recusava a se alimentar, davam-lhe nutrição por um tubo introduzido em seu estômago. Em sua generosa devoção, Nerval conseguira fazer com que o enfermo dissesse algumas palavras. Contudo, seu colega de hospício mantinha-se na recusa de comer, porque estava morto e vivia no purgatório.

Ao perceber que as pessoas tinham influência sobre os astros e que os espíritos celestes haviam tomado formas humanas, Nerval tinha consciência de que sua missão era restaurar a harmonia universal pela arte cabalística e pelas forças ocultas de diversas religiões.

As lembranças de suas viagens se mesclavam com episódios da história universal. Ele reviu em sonho a Áustria e a Alemanha. Em São Petersburgo, cidade para a qual jamais viajara, viu as imperatrizes Catarina e Santa Helena, acompanhadas de princesas radiantes e divinas, cujos olhares dirigidos à França aproximavam o espaço por meio de longos telescópios.

Uma estrela cresceu e se personalizou para lhe falar de perdão. Era a “pauvre Marie”, rainha dos céus cuja cabeleira exalava perfumes do Iêmen. Em seu vestido de jacinto e em seu corpo cintilavam diamantes e rubis. O céu então se abriu em toda a sua glória e ele viu a palavra perdão assinalada pelo sangre de Jesus Cristo.

Aurélia é, no sentido amplo, mais que um simples estudo esotérico. Configura-se como um tratado de teosofia onírica. A linguagem visionária acentua o tom de exortação à proporção que o texto se aproxima do epílogo. A narrativa dessas espantosas experiências conclui-se com Nerval tendo a convicção de que as provações de sua descida aos infernos o purificaram de suas faltas.

Ao julgar-se curado, o poeta escreveu aos amigos da Société des Gens de Lettres, para que o ajudassem a convencer o Dr. Blanche a liberá-lo. Sua tia, Jeanne Lamaure, viúva do irmão de seu pai, comprometeu-se a acolhê-lo em sua casa. Nerval relatou aos amigos que se sentia feliz pelas convicções adquiridas nas provações que atravessou naquela “descente aux enfers”. Pôs-se a perambular de novo por seus lugares prediletos. Anunciava que cumpriria sua missão de restabelecer a harmonia universal, evocando as forças ocultas de diversas religiões. 

A morte da mulher de Arsène Houssaye, Stephanie Bourgeois, que não cessava de auxiliar Nerval, abalou-lhe mais ainda os nervos, provocando-lhe nova crise de ansiedade.

Continuo a caminhada, pela rue do Louvre, até Les Halles, em face da grandiosa igreja de Saint-Eustache, de um lado gótica e do outro românica. A três quadras dali está a casa onde nasceu Nerval. Les Halles é hoje uma praça com bancos de cimento e um grande shopping de sofisticadas lojas. No tempo do poeta, era um grande mercado popular, cheio de bares e restaurantes, que ele descreve com tanta argúcia e graça.

Num bem-aventurado transe, atravessei a pé as agitadas ruas de Montmartre e cheguei às beatíficas emanações aquáticas do Sena. Inebriante luz. Água sedativa. Sereno encantamento. Lua de fevereiro. Prateada cordilheira.

 Estou de novo, como ontem, no quai de l'Horloge, diante das torres cônicas da Conciergerie, imenso prédio que abriga hoje o Palácio da Justiça francês. Na esquina do boulevard du Palais, vejo o relógio arcangélico de áureos frisos, coroado de miríficas figuras. Do outro lado da extensão fluida do rio de Paris, diviso os pináculos da tour Saint-Jacques, de caprichosos relevos, a place du Châtelet, com o anjo dourado, de asas e braços abertos e o Théâtre de la Ville, que fica onde existira a rue de la Vielle-Lanterne, o covil fatídico onde Gérard de Nerval se matou, enforcando-se num poste, numa escura madrugada fria, aos 47 anos de idade.

Gautier o encontrou, em janeiro de 1855, uma semana antes de sua morte, na redação da Revue de Paris. Ao vê-lo mal agasalhado, ofereceu-lhe um paletó. Nerval agradeceu, dizendo: “duas camisas me bastam, e o frio é tônico... Os lapões nunca ficam doentes”.

No dia 25 de janeiro de 1855, ele deixou escrito um bilhete à sua tia, para que não o esperasse, pois a noite seria “noire et blanche”: “Ma bonne et chère tante, dis à ton fils qu’il ne sait pas que tu es la meilleure des mères et des tantes. Quand j’aurai triomphé de tout, tu auras ta place dans mon Olympe, comme j’ai ma place dans ta maison. Ne m’attends pas ce soir, car la nuit sera noire et blanche”.

Em seguida, pediu emprestados sete “sous” a seu amigo Asselineau e, no fim da tarde, tentou, em vão, encontrar Arsène Houssaye, no Théâtre Français (também conhecido por Comédie-Française). Jantou num cabaret de Halles. Revia as provas de Aurélia, naquela gelada e fatídica madrugada de 26 de janeiro de 1855, quando foi encontrado naquele beco escuro e sórdido da Vielle-Lanterne, onde se refugiavam os mendigos, pendendo num poste. Trajava casaco preto, calças verdes e polainas cinzas. Tinha 47 anos de idade e levava no bolso algumas páginas manuscritas do seu fabuloso livro Aurélia. Seu corpo foi velado na Notre-Dame e o enterro, no Père Lachaise, foi pago por Gautier e Houssaye.

Quando de minha primeira viagem de estudos, visitei o Théâtre de la Ville para saber se havia ali algum resquício de lembrança do triste acontecimento. Um funcionário do teatro me informou, gentilmente: “il n’y a aucun repère”.

Quando Gautier publicou o perfil biográfico de Nerval, doze anos depois do trágico episódio, a triste ruela da Velha Lanterna já não existia, fato que, para Théophile Gautier, constituía um alívio, pois chorava sempre, ao passar em frente ao macabro lugar. Hoje ninguém mais se recorda de que, no exato local da autoinflição de Nerval, encontra-se o Theâtre de la Ville. Ponho-me a refletir, angustiosamente, sobre a força terrível que destruiu o maravilhoso Gérard num covil de horrores, na madrugada do seu desespero, ali diante da torre Saint-Jacques, símbolo dos peregrinos, guia dos poetas.

Nerval nos legou extraordinário tesouro literário, cuja escrita nunca se interrompeu, nem mesmo nas mais agudas crises. Sua existência e sua obra questionam o conceito de doença mental. Ele tornou inseparáveis a noção de poderes psíquicos e desequilíbrio mental. Eliminou a fronteira entre as visões do sonho e a imortalidade da alma.  

 



MÁRCIO CATUNDA | Escritor e diplomata. Nascido em Fortaleza em 1957. É membro da Associação Nacional de Escritores de Brasília, da Academia de Letras do Brasil, do Pen Clube do Brasil, com sede no Rio de Janeiro e da União Brasileira de Escritores. Escreveu cinquenta livros de poesia e prosa, alguns dos quais no idioma castelhano. Editou também diversos discos com seus poemas musicados e cantados por vários parceiros. Autor de um livro fundamental: Paris e seus poetas visionários (2021).

 

 

EMILIO BOLINCHES | (Uruguai, 1960). Em 1973 iniciou seus estudos de desenho com o aquarelista Esteban R. Garino por três anos. Em 1980 fundou o “Taller 2”, o primeiro workshop privado de formação em Design Gráfico que dirigiu durante nove anos e que entregou ao Designer Gráfico Osvaldo Ruso, que continuou até ao final dos anos 1990. Entre 1982 e 1987 integrou e partilhou o atelier do pintor Carlos Prunell onde deu aulas juntamente com ele. Trabalha como professor de desenho na escola secundária desde 1982 e há dez anos. Desde 1976, expôs o seu trabalho em mais de 400 exposições coletivas e 23 individuais, duas das quais nos EUA. Foi destacado e premiado nos mais importantes Salões de Arte dos anos 80 a nível Oficial e Privado, em Montevidéu e interior do País em treze oportunidades. Aos 22 anos, sua obra passa a fazer parte do Patrimônio Artístico Nacional. Suas obras estão em Museus Nacionais e Coleções Particulares em mais de trinta países (a partir de 2010, uma obra da Série “Céus Mágicos” está registrada no Palácio do Governo Chinês). Atualmente desenvolve suas Oficinas de Artes Plásticas no Centro Cultural Carlos Brussa, SUA Sociedade Uruguaia de Atores. Realiza Workshops para Empresas, com uma proposta vinculativa entre as Artes Plásticas e o Cotidiano, assim como palestras de integração às Artes, para incorporação à Nossa Dieta Diária.

 



Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 16

Número 215 | agosto de 2022

Artista convidado: Emilio Bolinches (Uruguai, 1960)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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