Constatei que a numeração da rua Notre-Dame des Victoires
é caótica, saltando números, mas encontrei o edifício que fica no encontro triangular
entre a rue Notre-Dame des Victoires, a rue Montmartre e a rue Saint-Marc. Creio
que o local foi reformado, pois tem a fachada sem ornamentos, diferentemente dos
prédios vizinhos, que têm molduras com frisos ao redor das janelas, estilo de decoração
mais antigo e mais característico do século XIX.
Isidore Ducasse escrevia todas as noites, até de
madrugada, depois de dedilhar alguns acordes nas teclas do piano. Era alto, magro
e moreno, cultivava um bigode fino e vestia-se com roupas escuras. Tinha profundas
olheiras, causadas pelas horas irregulares de sono, em razão do consumo de ópio.
Publicou, em 1868, 20 exemplares do Canto
Primeiro das confissões do espantoso Maldoror,
que lhe valeram o epíteto de discípulo de Baudelaire e o efusivo elogio de Victor
Hugo. Depois do seu primeiro endereço parisiense, Isidore mudou-se diversas vezes
para lugares próximos uns dos outros, no mesmo quartier.
Em fevereiro de 1870, estabeleceu-se no faubourg
Montmartre, 32. Um mês depois, foi morar na
rue Vivienne, nº 15, e, finalmente, no faubourg Montmartre nº 7, seu último domicílio.
A morada do número 32, esquina com a rue Richer,
é um edifício de cinco andares, com balcão e grades no segundo pavimento. Apresenta
um aspecto decadente e janelas empoeiradas, carentes de pintura. Funciona, no térreo,
uma farmácia, e, no segundo andar, o hôtel Jeff, de duas estrelas. Está localizado
quase em frente à passage Verdeau.
Algumas quadras acima, na direção norte de Montmarte,
situa-se a igreja de Notre-Dame-de-Lorette, de onde foi conduzido o féretro do poeta
para sepultamento. Lautréamont faleceu aos 24 anos de idade, depois de escrever
os assustadores Cantos de Maldoror.
Isidore Ducasse frequentou os prostíbulos e as tabernas
extravagantes que havia nas imediações. Foram também seus refúgios, no mesmo bairro
de Montmartre, o café des Varietés, na esquina da passage des Panoramas, e o café
Vernon, entre a rue Vivienne e a passage des Panoramas. Naquela área encontrou seus
editores, dois cidadãos belgas que possuíam uma grande livraria na rue Vivienne.
Desse endereço, escreveu carta, no dia 12 de março de 1870, ao Sr. Darasse, gerente
da conta bancária de seu pai, indagando se teria chegado o dinheiro com que pagaria
ao livreiro Lacroix, no valor de 1200 francos, referentes à edição completa de Les chants de Maldoror, que ele assinaria
com o pseudônimo de Conde de Lautréamont. Nessa missiva, ele se declara leitor de
Corneille e de Racine e critica a literatura de Lamartine, Hugo e Musset. Considera
que tais autores se metamorfosearam em “femmelettes” e os chama de “Les Grandes-Têtes-Molles
de notre époque”. Afirma que reformou o seu estilo e promete que, doravante, só
escreverá sobre a esperança, a calma, a felicidade e o dever. Essas declarações
constam também em seus cadernos inéditos, sob o título de Poésies.
Depois de registrar a sua noturna peripécia imaginária,
o poeta passeava pelo magnífico jardim, cujo palácio é a sede do Senado da França.
Sentia o aroma das plantas e deslizava o olhar pela folhagem dos castanheiros, bebendo,
à límpida luz, os matizes verdes. Só assim curava a sua revolta de cantor das dores
do mundo. Sua repugnância geral foi expressa nos Cantos de Maldoror, esse anti-herói, indignado, que defendia apenas
as prostitutas e um hermafrodita.
Ele gostava igualmente do jardin des Tuileries, onde
concebeu, no segundo canto de Maldoror, o encontro do seu sinistro personagem com
um menino de oito anos. Nesse trecho, o insidioso Maldoror sentou-se ao lado da
criança para tentar persuadi-la de que só pela astúcia e pela violência, condutas
que a sociedade nos obriga a adotar, é que se pode obter êxito na vida. E, com tais
insólitos argumentos, desnorteia a criança, aconselhando-a a roubar e, quando tiver
a força necessária à prática do crime, manipular com destreza um punhal.
Depois de escrever os seis cantos, que narram, com
indignação e ironia grotescas, as proezas macabras de Maldoror, Lautréamont renegou
a verve blasfematória e violenta. Escreveu os fragmentados poemas em prosa, intitulados
Poésies, reiterando que mudara de temática,
trocando a maldade pelo bem, o ceticismo pela fé e o orgulho pela modéstia.
Vou, pela passage Verdeau, um longo corredor coberto, com livrarias, lojas
e galerias de quadros e fotos antigas e um café-bistrot. Começa, na mesma reta,
após cruzar uma rua, o segundo túnel comercial, passage Jouffroy, onde continuam
lojas semelhantes às da primeira galeria. A sequência da passage Jouffroy segue
através da passage des Panoramas, à qual chego, após cruzar o boulevard Montmartre.
Atravesso essa avenida e entro na terceira galeria sequenciada, que é uma linha
paralela à rue Vivienne. Percorridas as três galerias, numa extensão de três quadras,
tomo a direção da rue Vivienne, na qual Maldoror sentiu a terra tremer e partiu
para capturar Mervyn, o louro filho da Inglaterra, e lançá-lo pelos ares, numa arremetida
inaudita. Foi diante da grandiosa e monumental Bourse que o estranho terremoto aconteceu.
Depois de uma pausa para tomar um café e uns
goles d’água, continuo, pela rue Notre-Dame des Victoires, na direção das pontes,
com a intenção de rever as paisagens do Sena antes do poente.
Foi na rue du faubourg Montmartre, nº 7 que o encontraram
morto, presumivelmente de overdose de beladona, no dia 24 de novembro de 1870, aos
24 anos de idade. Cessaram, assim, os conflitos de sua luta com o Criador. Seu corpo
foi conduzido ao cemitério de Montmartre e o féretro passou pela igreja de Nôtre-Dâme-de-Lorette.
Há controvérsias quanto à causa mortis de Lautréamont: se foi por dose letal
de beladona, febre tifoide ou assassinato por pretextos políticos, às vésperas da
queda do Império de Napoleão III.
Na primeira vez em que estive em Paris, com o propósito
de localizar as residências do grande poeta maldito, divisei, do lado esquerdo do
pátio, na mesma entrada do restaurante Chartier, a velha escada que acolheu os passos
taciturnos de Isidore Ducasse, e na parede, uma citação dos fabulosos Chants de Maldoror: “Qui ouvre la porte de ma chambre funeraire? J’avais dit que personne n’entrât. Qui que vous soyez,
eloignez-vous”.
Na segunda vez em que viajei a Paris, com esse propósito
de estudar a vida dos poetas, estranhei o fato de terem retirado a placa.
No ensaio “Lautréamont et la Banalité”, publicado
nas Obras completas de Lautréamont, em
edição da Bibliothèque de la Pléiade, diz Albert Camus que as orações fúnebres de
Maldoror revelam uma vontade de expiação e de ultrapassagem das fronteiras humanas.
Em sua revolta contra a injustiça, ao sentir-se incapaz de edificar a justiça, ele
a naufraga numa injustiça ainda mais geral, que se confunde com o aniquilamento.
Na esquina da rue de La Bruyère com rue La Rochefoucault,
encontrei uma farmácia homeopática onde comprei o remédio Causticum CH 30, receitado
pelo amigo Dr. Agamenon Honório. Em seguida, me encaminhei pela rue Notre-Dame-de-Lorette
até me deliciar com a fachada da Igreja Notre-Dame-de Lorette, vista da rue Laffitte:
as quatro colunas coríntias e o triângulo frontal, ornado de gloriosas alegorias
como as basílicas romanas.
Medito, no silêncio da sua guarida, diante do altar.
Foi perante esse oratório que, em 1841, Gérard de Nerval assistiu, de joelhos, ao
ofício cujo sermão do sacerdote parecia pronunciado em sua intenção. E, ao deixar
a igreja, o poeta viu a paisagem de Paris metamorfoseada. Na place de la Concorde,
viu o sol negro do Apocalipse, como um globo sanguíneo, surgir sobre Tuileries,
anunciando a noite eterna.
27 anos depois da traumática passagem de Nerval pela igreja, trouxeram ali
o corpo de Isidore Ducasse, o incrível Lautréamont, morto precocemente aos 24 anos,
no dia 24 de novembro de 1870.
Gaston Bachelard, em seu ensaio editado pela Editions
Corti, diz que Lautréamont escreve uma fábula inumana, vivendo os impulsos brutais
dos homens. De fato, segundo as próprias palavras do criador de Maldoror: “(...)
moi, je fais servir mon génie à peindre les délices de la cruauté”. Bachelard faz
o elogio da forma nervosa que é a poesia da agressão do “lautréamontisme”. Admira
o trabalho da imaginação com que Lautréamont transfigura energias elementares numa
sinfonia de formas vivas e dinâmicas, com tal variedade de frenesis, metamorfoses
e signos de um psiquismo cinético, que nos oferece uma síntese harmoniosa das forças
obscuras e das forças disciplinadas do nosso ser.
A imaginação violenta de Lautréamont, sua alucinante
exasperação, na modalidade de blasfêmias escabrosas e perversidades absurdas revela
uma torrente de ressentimentos de sua permanência forçada no internato escolar,
durante cinco anos, entre a vigilância de um bedel iletrado e a perseguição de um
professor de retórica hostil à criatividade do aluno imaginativo.
Suas orações fúnebres conotam uma sede insaciável de infinito como o uivo dos cães que Maldoror escuta em seu leito. Suas palavras insensatas, suas blasfêmias, plenas de infernal grandeza, são uma denúncia das taras do homem que ele protagoniza. O surrealismo beberá na fonte de Ducasse, que fez escola com sua dicção colérica, irônica, agressiva e sedutora.
MÁRCIO CATUNDA | Escritor e diplomata. Nascido em Fortaleza em 1957. É membro da Associação Nacional de Escritores de Brasília, da Academia de Letras do Brasil, do Pen Clube do Brasil, com sede no Rio de Janeiro e da União Brasileira de Escritores. Escreveu cinquenta livros de poesia e prosa, alguns dos quais no idioma castelhano. Editou também diversos discos com seus poemas musicados e cantados por vários parceiros. Autor de um livro fundamental: Paris e seus poetas visionários (2021).
EMILIO BOLINCHES | (Uruguai, 1960). Em 1973 iniciou seus estudos de desenho com o aquarelista Esteban R. Garino por três anos. Em 1980 fundou o “Taller 2”, o primeiro workshop privado de formação em Design Gráfico que dirigiu durante nove anos e que entregou ao Designer Gráfico Osvaldo Ruso, que continuou até ao final dos anos 1990. Entre 1982 e 1987 integrou e partilhou o atelier do pintor Carlos Prunell onde deu aulas juntamente com ele. Trabalha como professor de desenho na escola secundária desde 1982 e há dez anos. Desde 1976, expôs o seu trabalho em mais de 400 exposições coletivas e 23 individuais, duas das quais nos EUA. Foi destacado e premiado nos mais importantes Salões de Arte dos anos 80 a nível Oficial e Privado, em Montevidéu e interior do País em treze oportunidades. Aos 22 anos, sua obra passa a fazer parte do Patrimônio Artístico Nacional. Suas obras estão em Museus Nacionais e Coleções Particulares em mais de trinta países (a partir de 2010, uma obra da Série “Céus Mágicos” está registrada no Palácio do Governo Chinês). Atualmente desenvolve suas Oficinas de Artes Plásticas no Centro Cultural Carlos Brussa, SUA Sociedade Uruguaia de Atores. Realiza Workshops para Empresas, com uma proposta vinculativa entre as Artes Plásticas e o Cotidiano, assim como palestras de integração às Artes, para incorporação à Nossa Dieta Diária.
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 16
Número 215 | agosto de 2022
Artista convidado: Emilio Bolinches (Uruguai, 1960)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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