…está claro que as ações da
experiência estão em baixa, e isso numa geração que entre 1914 e 1918 viveu uma
das mais terríveis experiências da história. Talvez isso não seja tão estranho quanto
parece. Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado silenciosos
do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos.
(…) Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada,
sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro,
num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo
corpo humano. [1]
De
fato, em 1914, com a eclosão da Primeira Guerra, chegava ao fim a belle époque (1871-1914),
e começava na Europa um conflito cuja violência destrutiva fora, até então, sem
precedentes na história da humanidade: mais de 8.500.000 mortos, num total de 3
milhões de hectares devastados. Com essa guerra, a civilização ocidental inaugurava
um novo tipo de morte, a morte maciça, por meio da qual o homem, enquanto indivíduo,
desaparecia, dando lugar apenas ao número. A própria maneira de contar os mortos
testemunhava isso: “10.000 homens mortos por quilômetro”, ou “x homens mortos por
minuto.” [2] A França, segundo país mais
atingido em perdas humanas (depois da Sérbia), pagou um pesado tributo a essa guerra:
1,4 milhão de mortos e desaparecidos, ou seja, 10% da população ativa do país, 3
milhões de feridos, entre os quais 750.000 inválidos de guerra, além de 125 mil
mutilados. [3] Grande parte dos desaparecidos
faziam parte das elites francesas, sendo o grupo dos profissionais liberais o mais
atingido pelas perdas (depois dos camponeses). Muitos mobilizados eram intelectuais,
professores secundários, universitários, e o número de escritores franceses mortos
durante a primeira guerra é mais do que eloquente: numa Anthologie des écrivains morts à la guerre, publicada pela Association
des écrivains combattants (fundada em 1919), encontram-se repertoriados os nomes
de 450 escritores mortos durante o conflito! Que sejam lembrados aqui alguns dos
mais conhecidos: Alain Fournier e Charles Péguy, aos quais se deve acrescentar o
do poeta Guillaume Apollinaire, falecido logo após o término da guerra, devido às
sequelas de um ferimento na têmpora sofrido em 1916; acrescente-se ainda a amputação
do braço de Blaise Cendrars, também ocorrida devido a um ferimento recebido no front.
O passaporte de entrada para a vida adulta de escritores como Jacques Vaché, André
Breton, Tristan Tzara, Louis Aragon e Philippe Soupault foi a mobilização no exército
(os três primeiros nasceram em 1896, os dois outros em 1897, e tinham portanto apenas
dezoito ou dezessete anos em 1914).
A
experiência da guerra influenciaria fortemente os caminhos tomados pela arte ocidental
no pós-guerra, período que se caracterizou por uma extraordinária efervescência
criativa, e cujo centro mais importante foi Paris. Toda a reflexão estética, bem
como grande parte da produção artística dos anos vinte, traz a marca do dilaceramento
resultante daquele terrível momento histórico, de que resultou uma profunda ruptura
no campo da criação artística. A memória coletiva associaria para sempre a Paris
dos anos vinte à imagem dos “anos loucos”, vividos sob o signo da liberação dos
costumes – cuja efígie mais célebre talvez seja a garçonne de Coco Chanel – e ao
ambiente libertino de festas, cafés e bailes de Montparnasse, com todo o seu pitoresco
cortejo de artistas vindos dos quatro cantos do mundo. Tal imagem, que se restringe
ao desejo imperioso de ruptura em todos os domínios, quer se trate de arte ou de
costumes, é, no entanto, deformante. “Anos loucos”, sem dúvida, sobretudo talvez
por terem ocultado tão profundas contradições: na França dos anos vinte, o cosmopolitismo
andava, na verdade, lado a lado com o egoísmo nacional, o liberalismo dos costumes
com a intolerância das ideias, e a exaltação à revolta com uma rigorosa chamada
à ordem.
Tais
contradições tornam-se evidentes quando se examinam as duas grandes tendências opostas
que compartilham o palco da criação artística francesa do pós-guerra, ambas concebidas
como respostas originais ao violento choque que acabara de viver a consciência europeia:
1)
de um lado, uma tendência radicalmente niilista que levou muitos dos jovens artistas
dos anos vinte à experimentação e à provocação sem limites, como no caso dos dadaístas,
movimento no qual todas as energias estavam concentradas na recusa radical do passado,
de que se queria fazer tábula rasa; ou ainda, no desencanto em relação aos esquemas
lógicos da cultura ocidental, expresso pela defesa do primado do irracional, tal
como aparece na primeira fase do movimento surrealista, influenciado pela leitura
de Freud; [4]
2)
no extremo oposto, uma tendência caracterizada por um desejo de ordem a serviço
da reconstrução, patente nos esforços de artistas que optavam pela busca formal
rigorosa e pela unidade de estilo; essa tendência, que aparece por exemplo na pintura
de um De Chirico, com suas imitações de estátuas gregas, seria dominante na grande
exposição parisiense das Artes decorativas de 1925, e seus nomes mais expressivos
estiveram reunidos em torno da revista L’Esprit nouveau, fundada em 1920 pelos pintores
Amédée Ozenfant e Charles-Édouard Jeanneret [5] e pelo poeta Paul Dermée.
Qualquer
reflexão sobre os anos vinte deve passar pela avaliação dessas contradições profundas.
Walter Benjamin chegou a dizer que “compreender ao mesmo tempo Breton e Le Corbusier
(…) significaria esticar o espírito da França de hoje (dos anos vinte) como um arco
que permitisse ao conhecimento atingir o próprio instante em pleno coração.” [6] Uma análise exaustiva desse período especialmente
rico da história da arte não é possível, evidentemente, aqui. Limitase o presente
artigo, pois, ao exame de algumas dessas contradições manifestas na representação
da Paris dos anos vinte. Para fazê-lo, propõe-se ao confronto entre o discurso urbanista
sobre a cidade, tal como ele aparece num texto de Le Corbusier (L’Urbanisme, 1925), e um conjunto de crônicas
sobre a capital publicadas pelo jornal L’Art
vivant (1925), ao lado das quais também figurarão referências a algumas narrativas
literárias publicadas no pós-guerra (O Camponês
de Paris, de Louis Aragon, e Nadja,
de André Breton, publicadas respectivamente em 1926, e 1928). Uma precisão se faz
aqui necessária sobre a utilização da palavra “discurso”: ela deve ser compreendida
como um longo enunciado que expressa formalmente uma visão idealizada da cidade.
O discurso urbanista sobre Paris, embora se proponha como prescritivo – o que não
é o caso das crônicas e narrativas citadas – é igualmente tomado como representação
da capital, embora às avessas, posto que implica uma visão negativa da cidade: a
fim de dizer o que deve ser Paris, é necessário partir da representação do que é
a cidade, coincidente, para os urbanistas, como o que ela não deve ser.
No
que diz respeito à escolha das crônicas, é preciso dizer que elas contêm a repercussão
das discussões da época sobre a cidade – conduzidas precisamente pelos urbanistas
–, que tinham então um interesse, até certo ponto, popular. O aparecimento da própria
palavra “urbanista” tinha se dado, na França, em 1910, seguido pela criação da Sociedade
francesa de urbanismo, em 1911. [7] Resta
dizer que a aventura dos anos vinte constituiu um fenômeno essencialmente urbano.
[8]
O
discurso dos urbanistas e a herança de Haussmann
Nosso mundo, como um ossuário,
está coberto de detritos de épocas mortas. Uma tarefa nos cabe: construir o quadro
de nossa existência. Tirar de cima de nossas cidades as ossadas que nelas apodrecem
e construir as cidades de nosso tempo.
LE CORBUSIER, L’Urbanisme
Mas
a chave para compreender a perspectiva prescritiva de Le Corbusier talvez seja sua
concepção do “sentimento do moderno”. Ele o definia como “um espírito de geometria,
um espírito de construção e de síntese”, cujas condições essenciais seriam a “exatidão”
e a “ordem”. Em suma: “É um sentimento nascido do mais árduo dos labores, das mais
racionais investigações”, é “um espírito de construção e de síntese guiado por uma
concepção clara.” [9] Tal concepção do
moderno (situada no extremo oposto da concepção do moderno baudelairiana, por exemplo,
ou mesmo surrealista) serviu de orientação básica para o projeto de Le Corbusier
para Paris.
Na
verdade, o discurso do arquiteto, que aparecia como radicalmente revolucionário
no pós-guerra, era herdeiro de concepções urbanísticas bem consagradas no decorrer
do século XIX. Para ele, do mesmo modo que para os higienistas daquele século, “a
cidade é um turbilhão; é preciso classificar suas impressões, reconhecer suas sensações
e escolher para ela métodos curativos e benfazejos.” [10] Para seus predecessores do século XIX, os três grandes males do
tempo – a tuberculose, a sífilis e o alcoolismo [11] – apelavam para a urgência de desventrar a cidade por meio de demolições,
único método capaz de acabar com tais males, saneando o espaço citadino pela expulsão
de sua população pobre (operária, em sua grande maioria), e levando à sua aeração.
De
maneira semelhante, Le Corbusier considerava que, desde o século XIX, a besta negra
do urbanismo era o aumento de circulação, para o qual as grandes cidades não estavam
preparadas (este era particularmente o caso da capital francesa). Por isso, tal
como fizera o barão Haussmann na segunda metade do século XIX, ele propunha medidas
para “descongestionar a cidade e conquistar para ela uma imensa superfície acessível,
dotada das melhores condições de higiene.” [12]
Assim,
em 1925, na Exposição Internacional das Artes Decorativas, Le Corbusier apresentava
ao grande público suas teorias sobre o urbanismo, contidas no projeto intitulado
“plano Voisin de Paris” (ao qual se refere no livro aqui citado). Pelo interesse
da anedota, eis uma pequena digressão: o título do plano era uma homenagem a Gabriel
Voisin, da sociedade Aéroplanes G. Voisin, que financiara as pesquisas do arquiteto.
Com seu irmão Charles, Gabriel foi o primeiro construtor de aviões em escala industrial
na França, mas consagrou-se a partir de 1918 sobretudo à fabricação de automóveis.
Vê-se que a relação entre as concepções urbanísticas da época e a nascente indústria
automobilística eram bastante estreitas. Le Corbusier conta, na obra supracitada,
como havia tentado em vão obter financiamento junto a outros fabricantes de automóveis
que, pouco visionários, não tinham se sentido sensibilizados por suas ideias. No
projeto em questão, o arquiteto propunha a destruição de todos os imóveis de habitação
parisienses, a fim de que fossem conservados apenas os testemunhos arquitetônicos
de um passado prestigioso – note-se que o peso do passado monárquico da cidade era
preponderante entre os monumentos que ele pretendia conservar – como o Louvre, o
Palais-Royal, a place Vendôme, e outros. Bairros inteiros, como o Marais, os bairros
dos Archives ou o do Temple deveriam ser destruídos. No lugar deles, seria criada
uma “cidade dos negócios” e uma “cidade de residência”. A primeira deveria se estender
“sobre uma zona especialmente vetusta e insana de Paris – da praça da República
até a rua do Louvre, e da estação ferroviária do Leste (gare de l’Est) até a rue
de Rivoli, e a segunda iria da rue des Pyramides ao balão dos Campos Elíseos, e
da estação ferroviária de Saint-Lazare até a rue de Rivoli, acarretando a demolição
de bairros em grande parte saturados e repletos de habitações burguesas que, segundo
Le Corbusier, abrigavam então escritórios. [13]
Le
Corbusier era um fervente admirador da estatística, vista por ele, de um lado, como
um instrumento de conhecimento e, de outro, como um “trampolim para o lirismo, pedestal
do qual o poeta pode alçar-se rumo ao futuro e ao desconhecido, com os pés solidamente
apoiados em cifras e curvas, verdades humanas.” [14] Assim, é a esta ciência matemática que ele recorre para conceber
sua reestruturação da capital francesa. Ele analisa, nos serviços competentes da
prefeitura de Paris, todos os dados relativos à densidade populacional por hectare,
cujos gráficos indicam com um sombreado intenso os focos de tuberculose nos bairros
em que existe um excedente populacional. Daí à conclusão da necessidade de demolir
todos os espaços representados pelas manchas escuras há apenas um passo, e o arquiteto
indica, enfim, que do mesmo modo que a estatística guia a mão do demolidor, ela
também deverá guiar a do construtor.
As
ideias de Corbusier aqui resumidas desvendam, de forma irrefutável, a herança do
século XIX, pontuado por discussões e temas malthusianos, e por um debate razoavelmente
popular sobre o assunto, em parte provocado pela publicação abundante de estudos
estatísticos sobre a cidade de Paris, por vários administradores públicos da capital,
tais como Rambuteau (que governou de 1833 a 1848) e Haussmann (de 1853 a 1870),
[15] o que fez daquele século uma era
privilegiada da estatística. Como se sabe, foi precisamente sob o comando do barão
Eugène Haussmann, a pedido de Napoleão III, que se realizaram os grandes trabalhos
de saneamento de Paris. Haussmann se auto-definia, sugestivamente, como “artista
demolidor”: suas reformas profundas e terrivelmente traumatizantes para os parisienses
modificaram por completo a fisionomia da capital, que aumentou de tamanho devido
à anexação de vários arrondissements, [16]
“aburguesando-se” sensivelmente, exatamente por causa da expulsão de populações
pobres. [17]
Quanto
a Le Corbusier, ele louva, além do mais, os meios recentemente adquiridos pelo progresso
e pelo desenvolvimento da técnica, em termos que chegam a lembrar também, em certos
aspectos, o discurso dos futuristas italianos, por exemplo no que diz respeito ao
elogio das máquinas e da velocidade (“a cidade que conta com a velocidade conta
com o sucesso – verdade dos tempos”). [18]
Le
Corbusier era partidário da taylorização da mão-de-obra da construção civil, e preconizava
a “industrialização da construção” para que as casas pudessem ser construídas exatamente
como, naquela época, começavam a ser fabricados os automóveis: em série. Vê-se que
o arquiteto defendia a taylorização da própria cidade. Seu formalismo, traduzido
por um desígnio extremo de ordem e classificação, acabava negando a rede extremamente
complexa das funções dos diferentes lugares citadinos, tal como eles se acumulam
no tecido urbano ao longo dos séculos, resultantes da história vivida pelos homens.
Resta
dizer que, em linhas gerais, as concepções de Le Corbusier eram amplamente compartilhadas
por outros arquitetos seus contemporâneos: Auguste Perret (1874-1954), por exemplo,
que aliás o inspirou, foi autor de um projeto de “cidades-torres” (1922), que viria
rodear Paris de um cinturão de prédios de vinte andares, convenientemente espaçados.
Cite-se ainda o arquiteto holandês Theo van Doesburg (1883-1931), que expôs em Paris,
em 1923, seu projeto de uma “cidade da circulação”, na qual as casas seriam elevadas
para não atrapalhar os automóveis. E ainda Henri Sauvage (1873-1932), que havia
concebido, já antes da guerra, o sistema de prédios em degraus e desenvolvido um
projeto de “habitações populares higiênicas” [19] (um exemplo desse tipo de habitação pode ainda hoje ser apreciado
em Paris, rue Vavin: trata-se de um prédio em degraus, revestido de lajotas de faiança,
construído em 1911).
No extremo oposto
do discurso urbanista sobre a cidade, encontra-se a representação de Paris contida
nas crônicas de L’Art vivant (1925), publicação
bimestral das Nouvelles Littéraires, da qual eram diretores-fundadores os escritores
Jacques Guenne e Maurice Martin du Gard. O periódico, que se autodenominava “revista
dos amadores e artistas”, caracterizava-se por um tom que não era nem excessivamente
acadêmico, nem demasiado vanguardista, e oferecia um conjunto razoavelmente diversificado
de artigos e opiniões sobre o mundo das letras, das artes, dos espetáculos, em suma,
da atualidade cultural da época. Por isso, essa revista pode ser tomada aqui como
exemplo de publicação de grande vitalidade, posto que nela podia ser ouvido o eco
das discussões sobre os temas mais debatidos da década, tratados em colunas como
“Sports féminins” ou “L’Art urbain”. Nessa segunda coluna, Maximilien Gauthier publicava
em fevereiro de 1925 o artigo “Henri Sauvage ou l’air pur pour tous”, no qual se
estampam o elogio à taylorização da construção e as obsessões mais frequentes dos
urbanistas da época, tal como foram resumidas acima.
Mas
as contradições da época aparecem na sessão intitulada “Plan de Paris”, que é publicada
a partir do número 8 da revista, em abril de 1925. A ideia, nesse “mapa” (plan)
da capital, é a seguinte: a cada número, pede-se a uma diferente personalidade da
época – em meio a escritores, pintores, cronistas – que escreva sobre um determinado
arrondissement parisiense. Esse propósito
subentende, em si mesmo, uma concepção muito anti-haussmanianna da cidade, já que
parte do princípio que Paris é uma coleção de pequenas aldeias.
O
pressuposto de uma grande cidade dividida em diversas aldeias não é desmentido pelo
conteúdo que o leitor encontrará na série de artigos. Coube ao literato Edmond Jaloux
começá-la, escrevendo sobre o primeiro arrondissement.
Seu texto é uma espécie de devaneio no qual são louvados os mistérios noturnos do
Palais-Royal e a vivacidade efervescente dos Halles, o grande mercado central todo
construído em ferro fundido (hoje não mais existente): tendo envelhecido, o autor-narrador
passeia pelos bairros desse arrondissement
e nele realiza encontros inusitados, deparando-se com personagens desaparecidos
que viveram em épocas diversas: assim é que ele cruza no 1.º arrondissement com Gérard de Nerval, Stendhal,
Balzac, Alexandre Dumas, Paul Morand, e outros escritores, entrelaçando desse modo
o tempo presente e o passado, o que sugere uma temporalidade da cidade regida pela
literatura, fonte de sua eternidade.
Numa
crônica posterior, reforçando a concepção do arrondissement-aldeia, Vanderpyl acrescenta a tais reflexões a nostalgia
provocada pela constatação do desaparecimento de uma certa Paris. Em junho de 1925,
ele escreve o que segue sobre o terceiro arrondissement:
A maioria dos vinte arrondissements de Paris são como pequenas cidades, cada qual possuindo suas especialidades
e seu caráter. O terceiro não tem nada disso; trata-se antes de um portefeuilles [sic] da antiguidade, cheio de águas-fortes,
mas do qual os demolidores já retiraram peças importantes. (…) Apertado entre o
Sébastô e a República, [20] ele parece querer emprestar aos espaços da cidade
moderna um ar de atualidade. Entretanto, exatamente onde um canto antigo desapareceu,
um nome evocador permaneceu. [21]
Veja-se
ainda um último exemplo extraído desse conjunto de crônicas. Dessa vez, trata-se
do vigésimo arrondissement, visto por
Guy-Charles Cros. Este louva os aspectos insólitos de alguns quartiers desse arrondissement parisiense, no qual observa
“as belas placas” de comércio que fazem a alegria dos flâneurs, por exemplo: Au
Galant parrain (“Ao Galante padrinho”, nome de uma confeitaria), Au Rêve (“Ao Sonho”,
loja de roupas de cama) e o que ele considera como a “flor rara” do bairro, Au Gênet
blanc des Pyrenées (“À Giesta branca dos Pireneus”). O que faz o cronista acrescentar
a seguinte advertência ao leitor: “Atenção, vocês que sonham acordados! São ritmos
como esses que inoculam em suas veias as piores nostalgias!” [22]
O
olhar de Guy-Charles Cros aproxima-se muito do olhar surrealista sobre a cidade.
Em Nadja, por exemplo, André Breton faz
referência à placa de um hotel situado em Pourville, chamado de Maison Rouge, e
que poderia ser lida, segundo o ângulo de observação, também como Maison Police.
Breton relaciona essa “ilusão de ótica” com um fato que lhe acontece no mesmo dia
em que descobre tal placa, duas horas mais tarde. [23] Na mesma narrativa, ele evoca o poder das placas das lojas BOIS-CHARBON,
com “aquelas achas de lenha que se apresentam cortadas, pintadas sumariamente por
pequenos grupos nas fachadas, dos dois lados da entrada, e de cor uniforme, com
um setor sombrio.” [24]
De
maneira semelhante, em O Camponês de Paris
Louis Aragon entrega-se à colagem, integrando à narrativa diversas placas comerciais
das lojas da passagem da Ópera então condenada à demolição –, bem como o quadro
de bebidas do café Certa, as inscrições do Théâtre Moderne, os panôs dos comerciantes
da passagem fixados às paredes dos comércios, e até mesmo as inscrições contendo
informações diversas sobre o décimo nono arrondissement
da cidade de Paris, minuciosamente copiadas de uma coluna do parque Buttes Chaumont.
Esse
procedimento, ao lado da descrição exaustiva de personagens que vagueiam pela passagem
ou que dela fizeram seu “quartel general”, serve de meio heurístico para chegar
ao conhecimento de si mesmo, posto que o que vê o narrador são seus próprios “limites
interiores”, “vistas ideais” que ele tem de suas “leis” ou de suas “maneiras de
pensar.” [25] Eis porquê, quase no final
do capítulo “A passagem da Ópera”, ele invoca o “verdadeiro” nome daquele local,
rogando ao governo municipal para que nele venha colocar a placa seguinte:
Passagem
Da
ÓPERA ONÍRICA [26]
Todo
esse material urbano verbal faz dessas peças multicoloridas verdadeiros “ruídos”
– tanto em Breton, quanto em Aragon ou nos cronistas de L’Art vivant. Parece de fato interessante utilizar aqui esse conceito
oriundo da teoria da informação: nessa acepção, o “ruído” pode significar uma “intervenção
de stimuli visuais perturbadores que mascaram
a imagem que se quer fazer chegar ao destinatário, sejam eles introduzidos pelo
acaso ou pelos defeitos do canal físico tipográfico impresso” [27] etc. O “ruído” pode ser, assim, um material
surrealista por excelência: ele serve de trampolim para a imaginação, como sugere
aliás Cros, ao falar dos que “sonham acordados”. O tratamento dispensado aos ruídos
demonstra que a postura surrealista diante da intervenção do acaso na cidade encontra-se
no extremo oposto daquela adotada pelos urbanistas.
Os
exemplos que acabam de ser dados remetem a uma existência da cidade pelo verbo.
Quer seja por meio das palavras escritas outrora por outros escritores cuja obra
esteve intimamente ligada à capital e cuja presença continua assombrando a cidade
(no caso da crônica de Jaloux), quer seja pelo poder de evocação dos nomes presentes
na cidade (Vanderpyl), ou pelo poder de sugestão de outras palavras espalhadas pelo
espaço urbano (Cros, Aragon, Breton), a Paris desses cronistas e escritores está
no extremo oposto da cidade de Le Corbusier. À diferença deste, que via na estatística
o “trampolim para o lirismo”, o “pedestal do qual o poeta pode se lançar rumo ao
futuro e seu desconhecido”, tais escritores encontravam-se em busca de um pitoresco
urbano dependente também, sobretudo, do passado da cidade, na direção do qual eles
voltavam de fato, num gesto de recuperação, para não dizer de reparação. A consciência
da historicidade é transformada nessas representações de Paris em experiência estética,
muito ao contrário do que ocorre com o discurso urbanista prescritivo “demolidor”.
O olhar dos cronistas e escritores de Paris lembra, sem dúvida, o “cosmos linguístico”
de que falava Walter Benjamin em sua obra inacabada sobre a capital francesa:
A cidade deu a todas as palavras,
ou pelo menos a um grande número delas, uma possibilidade que estava até então reservada
apenas a um pequeníssimo número, a uma classe privilegiada de palavras: ser enobrecida,
entrar para a aristocracia do nome. Essa revolução da linguagem cumpriu-se pelo
que há de mais comum: a rua. Graças aos nomes das ruas, a cidade é um cosmos linguístico. [28]
Por meio da confrontação
entre a representação literária da cidade e o discurso dos urbanistas toma forma
uma oposição que remete, à sua maneira, às contradições gerais dos anos vinte, tal
como foram descritas na introdução desse artigo. De um lado, um desejo de ordem
expresso pela preocupação com o saneamento do espaço urbano e pela destruição das
marcas de um passado considerado obsoleto. De outro, uma profunda fascinação por
tudo aquilo que, no tecido urbano, pode fazer apelo às forças latentes de um passado
irrevocável, em especial os nomes, que aparecem como ecos de uma realidade soterrada
que emerge na “escritura” [29] de Paris.
As
contradições da representação da Paris dos “anos loucos” podem assim ser traduzidas
por uma polarização essencial: uma cidade nascente em oposição a uma cidade moribunda.
O leitor talvez ache essa afirmação discrepante em relação ao que foi dito, no início
desse artigo, sobre as duas tendências gerais em que se dividiram os caminhos da
arte no pós-guerra: de um lado, desejo de ordem, de outro, de ruptura radical com
o passado. Mas não seria possível ver aí, precisamente, o quanto esse período se
caracterizou por profundas contradições?
As
prescrições urbanísticas de Le Corbusier, herdeiras do higienismo hausmanniano característico
do Segundo Império, têm como ambição levar ao nascimento de uma nova cidade. Em
ruptura radical com o passado, elas partem do princípio de que o tecido urbano deve
compor um conjunto de funcionalidades numa totalidade indivisível, daí a preocupação
com a circulação sem entraves, com a comunicação sem obstáculos entre todas as partes
do corpo urbano.
No
extremo oposto, encontra-se a concepção “ante” e anti-haussmanniana da cidade, tal
como aparece nas crônicas de L’Art vivant
e em várias narrativas da época. Não é apenas certo quê de nostalgia que a caracteriza.
Em sua maneira de apreender o espaço urbano, esses escritores – arquitetos, pelo
verbo, de uma cidade imaginária – esboçam ainda outro gesto de grande importância:
o do colecionador. O colecionador parte da fragmentação do espaço citadino, negando
assim uma concepção “totalizante” do mesmo: a sessão “Mapa de Paris”, como se viu,
parte do pressuposto de uma cidade-coleção de arrondissements-aldeias. O tema do colecionador é caro à modernidade.
Ele remete à metáfora baudelairiana do “trapeiro” (chiffonnier), colecionador, ele
também, de restos e dejetos. [30] Tal
noção se aparenta à de colagem, compreendida como construção da obra de arte a partir
da aproximação de elementos díspares extraídos da realidade tangível (“res”, diria
Walter Benjamin), a fim de fazer despertar uma realidade que, de outro modo, passaria
despercebida: veja-se o surpreendente relato de André Breton de uma visita ao Marché
aux Puces de Saint-Ouen, em companhia de Giacometti. [31] Do trapeiro do poema de Baudelaire – colecionador de restos – ao
cronista da cidade moribunda ou à colagem de Aragon n’O Camponês de Paris e à exploração do mercado de objetos-detritos por
Breton, há apenas um passo para desvendar um verdadeiro “culto barroco das ruínas.”
[32] Observação que bem poderia se aplicar
a muitas outras representações modernas da capital francesa no domínio literário.
De fato, nelas muito amiúde se constata o gosto pelas ruínas, cujo sentido mais
profundo é a tomada de consciência, por parte do sujeito, da historicidade das coisas
e, portanto, da morte e do fim inevitável de tudo, inclusive das próprias cidades.
NOTAS
Este ensaio inspirou-se em trechos de um
capítulo da tese de doutorado que defendemos na Universidade Paris X Nanterre: Paris
dans la littérature française des années vingt: contribution à l’histoire de la
représentation, impr. e dif. Presses Universitaires de Lille, 1997.
1. BENJAMIN, 1987.
2. CHRÉTIEN-GONI, 1988.
3. DUBY, 1987.
4. Ver, a esse respeito, BRETON (1924), 1994
(primeiro Manifesto surrealista).
5. Jeanneret é o verdadeiro nome de Le Corbusier
que, antes de arquiteto, foi pintor. A revista L’Esprit Nouveau foi publicada até
1925, com uma interrupção em 1923. Em seu primeiro número, continha um “programa
do Espírito novo”, que dava o tom de suas concepções estéticas: “A necessidade de
ordem é a mais elevada das necessidades humanas; ela é a própria causa da arte.”
Persuadidos de que a arte era regida por leis, exatamente como a física ou qualquer
outra ciência, os autores propunham o estabelecimento de uma relação fecunda entre
a arte e a aparelhagem técnica do mundo moderno. Cf. OZENFANT; JEANNERET, citados
por COLLOMB, 1987.
6. BENJAMIN, 1989.
7. A própria palavra “urbanismo” só apareceu
então em francês, importada do espanhol. Na língua de Cervantes, o vocábulo aparecera
bem antes, com a obra do arquiteto-engenheiro Ildefonso Cerda, Teoría general de la urbanizacion, publicada
em 1867. Na França, foi também no pós-guerra, em 1919, que se criou em Paris a École
des hautes études urbaines, transformada, em 1924, em Institut d’urbanisme, depois
de ter sido encampada pela Universidade de Paris. Ver DUBY, 1980.
8. E, diga-se de passagem, de alcance mundial:
veja-se, por exemplo, a São Paulo dos modernistas.
9. LE CORBUSIER (1925), 1994.
10. Ibid.
11. Os higienistas, verdadeiros especialistas
sociais do século XIX, consideravam a cidade como o “túmulo da raça”, para utilizar
a expressão da historiadora Michelle Perrot pronunciada em sua comunicação “Amour
des villes et sensibilité ouvrière”, durante o colóquio “La Ville”, organizado pelo
Centro Georges Pompidou, em maio de 1994, durante o qual redigimos esta nota.
12. LE CORBUSIER, 1994.
13. Para uma descrição completa desse espantoso
plano, ver LE CORBUSIER, 1994.
14. Ibid., cf. o capítulo “Statistique”.
15. CHEVALIER, 1984.
16. O arrondissement – “distrito”, em português
– é uma circunscrição administrativa intermediária entre o departamento e o cantão,
que existe apenas nas grandes cidades francesas (Paris, Marselha, Lyon). Cada qual
conta com sua prefeitura (mairie) própria, e é dividido em unidades menores, os
quartiers, palavra que se traduz por “bairros”, embora os quartiers sejam, em regra
geral, bem menores do que os bairros das cidades brasileiras. Sobre a anexação feita
por Haussmann, ver a nota seguinte.
17. Os trabalhos de Haussmann desventraram
impiedosamente a cidade e provocaram uma enorme especulação imobiliária. A expulsão
dos mais pobres deu-se em duas etapas: antes de 1860, com as demolições realizadas
nos bairros centrais, a população desfavorecida teve que se mudar e concentrou-se
em volta da capital, na periferia próxima, formando uma espécie de anel do outro
lado das fortificações de Paris, onde a vida era menos cara, pois inúmeros produtos
eram ali isentos de impostos (a chamada “cintura vermelha”, periferia operária).
Todas as mercadorias que entravam em Paris, isto é, que atravessavam as fortificações,
tinham que pagar impostos, daí porque as populações residentes do outro lado, onde
se concentrava aliás a produção de víveres que alimentava a capital, estavam livres
de tais tributos. Em 1860, porém, Haussmann decidiu anexar toda essa periferia,
estendendo a barragem de impostos mais adiante, o que expulsou uma segunda vez a
população desfavorecida que ali viera se refugiar. Assim, a partir de 1860, com
a anexação, o número de arrondissements de Paris passou de 12 a 20 (permanecendo
o mesmo até hoje). A população parisiense quase dobrou (de 1 milhão para 1,7 milhão),
e a arrecadação de impostos aumentou consideravelmente, pois a cidade foi amputada
de seus pobres. O que restava das antigas fortificações foi demolido precisamente
nos anos 20. Ver MARCHAND, 1993.
18. LE CORBUSIER, 1994.
19. Segundo as notas que tomamos durante
a exposição La Ville, art et architecture en Europe, 1870-1993, realizada em 1994,
pelo Centro Georges Pompidou. Um catálogo dessa exposição foi publicado com o mesmo
título, ver “Referências” no final deste artigo.
20. Respectivamente, bulevar Sébastopol e
praça da República.
21. L’Art vivant, n. 11.
22. L’Art vivant, n. 22.
23. Ver o relato completo em BRETON (1928),
1991.
24. Ibid.
25. ARAGON (1926), 1996.
26. ARAGON (1926), 1996.
27. MOLES, 1973.
28. BENJAMIN, 1989.
29. Desculpo-me pela utilização desse galicismo
que, aqui, parece-me inevitável.
30. Assimilado, no poema
de Baudelaire (“Le vin des chiffonniers” in Tableaux Parisiens), ao próprio poeta:
“…On voit un chiffonnier qui vient, hochant la tête/, Butant, et se cognant aux
murs comme un poète,/ Et, sans prendre souci des mouchards, ses sujets,/ Épanche
tour son cœur en glorieux projets.” BAUDELAIRE, 1980.
31. BRETON (1937), 1993.
32. Ver, a esse respeito,
SONTAG, 1979.
Referências
ANTHOLOGIE des écrivains morts à la guerre. Amiens: E. Malfère, 1924-1926. ARAGON, L.
O camponês de Paris. Tradução, apresentação
e notas de: Flávia Nascimento. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
BAUDELAIRE, C. Oeuvres complètes. Paris: R. Laffont, 1980.
BENJAMIN, W. Paris, capitale du XIXe siècle, Le livre des
passages. Paris: Les Éditions
du Cerf, 1989.
___. Experiência
e pobreza. In: BENJAMIN, W. Magia e técnica,
arte e política – ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense,
1987. v. 1.
BRETON, A. L’Amour fou (1937). Paris: Gallimard, 1993.
___. Nadja (1928). Paris: Gallimard, 1991.
___. Manifestes surréalistes (1924, 1930, 1942).
Paris: Gallimard, 1994.
CHEVALIER, L. Classes laborieuses et classes dangereuses à
Paris pendant la première moitié du XIXe siècle. Paris: Hachette, 1984.
CHRÉTIEN-GONI, J-P.
La mise à mort des masses. Masses et Politique,
Hermès, n. 2, 1988.
COLLOMB, M. La Littérature Art déco. Paris: Méridiens
Klincksieck, 1987.
DUBY, G. Histoire de la France de 1852 à nos jours.
Paris: Larousse, 1987.
___. Histoire de la France urbaine – la ville de l’âge
industrielle. Paris: Seuil, 1980.
LE CORBUSIER. L’Urbanisme (1925). Paris: Flammarion, 1994.
MARCHAND, B. Paris, histoire d’une ville: XIX et XX siècles.
Paris: Seuil, 1993.
MOLES, A. (Org.). La Communication et les mass média. Les Dictionnaires
MaraboutUniversité, 1973.
SONTAG, S. Sob o signo de Saturno. In: SONTAG, S. Sob o signo de Saturno. Porto Alegre: L&PM, 1979.
FLÁVIA FALLEIROS | Brasil, 1959. Autora de Paris dans la littérature française des années 20: contribution à l’histoire de la représentation (1998). Publicou também, na França e no Brasil, diversos ensaios sobre narrativas francesa, portuguesa e brasileira. Traduziu O Camponês de Paris, de Louis Aragon (1996), Alá e as crianças soldados, de Ahmadou Kourouma (2003), As cores da infâmia, de Albert Cossery (2004). Contato: flavianafalleiros@gmail.com.
Nossa artista convidada nesta edição da Agulha Revista de Cultura é a fotógrafa francesa Agnès Geoffray. Uma valiosa leitura crítica de Eva Wittocx situa sua obra como um ideal equilíbrio entre realidade e ficção, entre situações cotidianas e impensáveis. Suas fotografias, instalações e vídeos combinam o desconhecido com o aterrorizante, como nos contos de fadas populares. Um fascínio pelos vestígios visíveis e invisíveis de desordem, ou mesmo desastre, em situações e eventos cotidianos está subjacente aos textos, fotografias, vídeos e apresentações de slides em STUK. Em fotografias quase inteiramente brancas, composições horríveis inspiradas em imagens da mídia, ou composições com as quais estamos familiarizados da iconografia tradicional, escapam aos olhos do público. Outra importante voz crítica, a da curadora belga Katerina Gregos, destaca que todas as fotografias de Geoffray podem ser vistas como lugares latentes de devir e equivalentes espaciais que representam nossos medos infantis ou nossos piores pesadelos adultos. Mas, além de seu impacto visual sinistro e imersivo, as fotografias de Geoffray acabam abrindo um espaço para a imaginação e para a ficção e, nesse espaço, as possibilidades de interpretação são ilimitadas. Agradecemos à fotógrafa sua imediata aceitação de participar da presente edição.
Agulha Revista de Cultura
Número 216 | setembro de 2022
Artista convidada: Agnès Geoffray (França, 1973)
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