quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Agulha Revista de Cultura # 215 | agosto de 2022

 

∞ editorial | Algumas incríveis formas da linguagem

 


00 | Com a presente edição atingimos a marca de 160 ensaios sobre criadores ligados direta ou indiretamente ao Surrealismo, dentro da série intitulada precisamente “Surrealismo Surrealistas”. Durante os meses de setembro/outubro daremos uma pausa, a Agulha Revista de Cultura deve tirar dois meses de férias, as primeiras em 21 anos de existência. Mesmo assim, no início de setembro ainda publicaremos uma edição, priorizando ensaios de nossos colaboradores que não tratam de Surrealismo. A partir de 10/11 retornamos à série, com a pretendida meta de 200 ensaios. Nossos colaboradores, neste sentido, podem seguir enviando seus textos. Abraxas

 

01 | As luzes sopram sua poeira de fascínios, uma relojoaria montada no centro do universo, onde ondulam as nuvens se preparando para seguir os passos da orquestra. Todos os olhos são epígrafes prenunciando uma vertigem de grafites no céu. O carvão cintilante em favor de um templo com suas estratégicas reveladoras de deuses por toda as artes. Nós mesmos somos vislumbres de uma aparição divina esculpida com sua vestimenta invisível e representamos a elegância curva em que os moldes se reconhecem, os verossímeis detalhes de criaturas que exploram a fantasia e a força terrena de cada palavra. Nós somos a geografia desconhecida que consiste na irredutibilidade dos sonhos e nos detalhes irrequietos da natureza humana. Caminhamos com as equivalências desordenadas e manifestas de um sol. E uma multidão de descuidos a contrapelo da grandeza dos faróis que por vezes são furtivamente injustos.

 

02 | [Trechos de entrevista concedida a Jorge Ariel Madrazo, 2003.]

 

JAM | Em teu livro O Começo da Busca – O Surrealismo na poesia da América Latina (2001) lidas com mais de uma dezena de autores e rejeitas qualquer fossilização do Surrealismo como mera escola ou grupo historicamente datado. Que características permitem hoje, então, tal atribuição? Fidelidade à fascinante utopia de apagar as fronteiras entre arte e vida, ou mesmo mudar a vida? O poeta – e o poema – como eixos de uma alma subversiva individual-coletiva em chamas? A priorização do automatismo psíquico? Perseguir o ponto onde real e imaginário, sono e vigília, razão e loucura se unem?

 

FM | Em carta remetida a Osiris Troiani, disse Aldo Pellegrini que o surrealismo não é a criação de um homem só e em sua formação têm confluído todas as correntes que apontam a insurreição essencial do homem do século XX. Naturalmente que essa insurreição requer uma fidelidade a si mesma – a fidelidade ao outro é um sofisma cristão – e o homem é livre para cometer suas contradições. O que se passa com o Surrealismo é que parte de uma aposta muito profunda e ampla onde o dogma pode levar a certos prejuízos ou riscos. Como apagar as fronteiras entre arte e vida hoje? Como mudar a vida em meio a essa dinâmica estática que rege nossa época? É possível como sempre o foi: na fluidez solitária e silenciosa de uma obsessão. O anúncio de qualquer coisa sempre privilegiou o superficial, o leviano. A comunicação de massas não passa de customização de massas. Com isto percebemos que a melhor maneira de ser surrealista é recusar-lhe o dogma. As experiências com sonho hipnótico em Robert Desnos de alguma maneira se entrelaçam com a busca de iluminação em René Daumal, e penso que os dois casos podem ser aqui lembrados por um único motivo consistente: a fidelidade a si mesmo. Esta me parece a maior contribuição do Surrealismo: a afirmação insubornável do mais íntimo em nós, a grande convulsão do ser. Não é preciso tirar carteira de clube para isto, ou restringir-se a um tempo dado, histórico.

 

JAM | É válido chamar surrealistas, sem reservas, a poetas até da relevância de Enrique Molina, cofundador com Pellegrini de A Partir de Cero, que reconheceu fervorosamente a marca surrealista, mas com relutância – exceto talvez em trechos de Amantes Antípodas e Las Bellas Furias – à alogicidade e à devassidão associativa do surrealismo (distanciamento ainda mais acentuado, creio, em Olga Orozco, por sua vez mais próxima do gnosticismo e da nostalgia de um absoluto religioso)? E o que aconteceria com os poetas cuja obra majoritária se afastava dessa corrente? Ou aqueles que se conformaram com o sistema? Por que rejeitar as expressões para-surrealismo, relacionadas ao surrealismo etc.?

 

FM | Aldo Pellegrini era possuidor dessa mescla de visão e revelação que somente cabe aos grandes espíritos. É admirável esse momento na história de nosso continente em que se pode contar com um antagonismo confluente da ordem do que regiam Pellegrini e Raúl Gustavo Aguirre. Creio que devemos considerar do Surrealismo, em suas origens, a inúmera possibilidade de expansão. Lamentavelmente no Brasil havia uma presunção em curso que impedia perceber a ideia central já oferecida por Lautréamont de uma poesia feita por todos. O gnosticismo de Olga Orozco ou o orfeísmo de Rosamel del Valle devem ser considerados como identificações valiosas. Definem-se por uma liberdade intensa e aportam com imagens surpreendentes. As religiões sempre possuíram um caráter restritivo, no que difere o sentido do religioso. Ainda hoje cabem cuidados para que o Surrealismo não seja confundido com uma doutrina. As denominações aproximativas que sugeres são quimicamente inaceitáveis. Mas não há um sistema surrealista que se imponha como a desejada escola cultuada por alguns equívocos. Cabe deixar-se tomar por essa fúria valiosa do contato de realidades à volta, a maneira como estou dentro e fora do mundo.

 


JAM | É possível resgatar, como postula o poeta espanhol Ángel Pariente, no diálogo que transcreves em O Começo da Busca, que o surrealismo seria essencialmente liberdade e contradição, e querer delimitá-lo é um vão desejo escolástico, ou que bem pode ser encontrado em certas fases de um poeta e ausente em outras? E seria surreal apenas nessas obras? Isso não invalida, nesses casos, sua inclusão como poetas surrealistas?

 

FM | Ángel Pariente é um estudioso sério do Surrealismo e sua antologia publicada na Espanha é um momento admirável de busca de integração entre as duas margens do Atlântico, Espanha e América Hispânica. Tem minha completa admiração por isto. Entende que o fogo surrealista não estava fadado a queimar, mas antes a iluminar. Foi Artaud exatamente a dizer que o surrealismo é antes de tudo um estado de ânimo, e não há como por em dúvida o estado de ânimo de um poeta como Artaud. Há uma presença do Surrealismo na obra de um poeta como o chileno Enrique Gómez-Correa que vai além de qualquer declaração do próprio poeta em sua defesa.

 

JAM | O que opinas da observação de Louis Aragon, na entrevista a F. Cremiéux em 1963: Há uma ideia equivocada de considerar o surrealismo apenas em termos de uma de suas atividades experimentais, à qual demos o nome de escrita automática, o que em tua opinião seria um entre outros motores de partida das grandes caçadas interiores?

 

FM | Breton disse em 1952, a respeito de Aragon, que o único perigo que corre é seu grande desejo de agradar. Sempre achei curiosa esta observação e confesso que me levou a não considerar muito os ditos de Aragon. Percebo agora que era mais dado a declarações coletivas do que pessoais. Mesmo sua poesia da juventude surrealista não possui grande substância – apesar da rara beleza de um poema como Licantropia contemporânea. No entanto, Aragon está correto: o Surrealismo propôs uma abrangência inabarcável e teve como resultado o esfatiar-se produzido por aplicadas restrições a essa amplitude.

[…]

JAM | Como entendes o mistério e a magia poéticos? Achas que palpite tanto na maçã que cobre, ou risca, o rosto de um homem de cartola – para evocar a famosa pintura de Magritte –, como na aparentemente sem mistério pedra no meio do caminho de Drummond?

 

FM | Paul Nougé já observou, a respeito de Magritte, que uma constante meditação crítica sobre as relações do mundo exterior com o homem, no modo dialético em que o homem e o mundo exterior constituem os termos em perpétuo devir, trouxe esta pintura à unidade viva e à expressão eficaz. A pintura de Magritte e o poema de Drummond hoje se encontram convertidos em ícones, naturalmente repletos de excessos de leitura, do oportunismo à idealização. Não são bons exemplos nem para a magia nem para o mistério. A peça de Magritte converteu-se em uma fonte de lucros para a indústria da propaganda (aí incluindo o cinema). A de Drummond dilacera-se entre leituras de menor influência. Talvez originariamente as duas tenham sido obras de um ouvido interno, porém ditadas pela entrega ou pela busca? Aí temos a distinção entre magia e mistério. Aliás, Magritte já dizia que o mistério é absolutamente necessário para que exista o real. Não me parece que Drummond tenha recorrido ao mistério em sua poética. Entregou-se por completo em cada poema, crisol de suas expectativas, sim, mas distanciando-se da ideia de assumi-lo. Me parece que há um abismo intencional entre ser e obra, um racionalismo que o aproxima mais de Valéry, por exemplo. Ainda que tivesse em Verlaine uma clara fonte de identificação.

 

JAM | Também trabalhas com a colagem. Quais são tuas relações com a imagem visual? Quais os laços com o feitiço dos sonhos? Como isso afeta a tua poesia e a tua vida?

 

FM | Não compartilho a ideia de segmentações estéticas. Isto quer dizer que não vejo diferença alguma entre meus poemas, colagens, ensaios. A menor frequência de colagens se dá em função de uma exigência maior no plano ensaístico, onde tenho que abranger uma área muito extensa (tradução, edição, conferências). No Brasil não temos uma tradição nessa área de colagens. Há casos isolados – Jorge de Lima, Tereza d’Amico, Sérgio Lima –, compreendidos justamente pela recusa de toda uma casta intelectual a admitir a presença do Surrealismo em nossa cultura. Há dois entendimentos que se distanciam entre si em relação à imagem. Fujamos dos lugares-comuns. A imagem é uma bifurcação de interesses, como sugere a propaganda, ou então uma afirmação de novas perspectivas existenciais. Não posso mais falar em feitiço onírico, como sugeres, porque vivemos em uma época de feitiços construídos, onde nos arrastamos sofregamente a caminho de uma falsa ideia de nós mesmos.

 

03 | Nosso artista convidado é Emilio Bolinches (Uruguai, 1960). Em 1973 iniciou seus estudos de desenho com o aquarelista Esteban R. Garino por três anos. Em 1980 fundou o “Taller 2”, o primeiro workshop privado de formação em Design Gráfico que dirigiu durante nove anos e que entregou ao Designer Gráfico Osvaldo Ruso, que continuou até ao final dos anos 1990. Entre 1982 e 1987 integrou e partilhou o atelier do pintor Carlos Prunell onde deu aulas juntamente com ele. Trabalha como professor de desenho na escola secundária desde 1982 e há dez anos. Desde 1976, expôs o seu trabalho em mais de 400 exposições coletivas e 23 individuais, duas das quais nos EUA. Foi destacado e premiado nos mais importantes Salões de Arte dos anos 80 a nível Oficial e Privado, em Montevidéu e interior do País em treze oportunidades. Aos 22 anos, sua obra passa a fazer parte do Patrimônio Artístico Nacional. Suas obras estão em Museus Nacionais e Coleções Particulares em mais de trinta países (a partir de 2010, uma obra da Série “Céus Mágicos” está registrada no Palácio do Governo Chinês). Atualmente desenvolve suas Oficinas de Artes Plásticas no Centro Cultural Carlos Brussa, SUA Sociedade Uruguaia de Atores. Realiza Workshops para Empresas, com uma proposta vinculativa entre as Artes Plásticas e o Cotidiano, assim como palestras de integração às Artes, para incorporação à Nossa Dieta Diária. Sua presença nesta edição de Agulha Revista de Cultura se deve a sugestão do poeta uruguaio Jorge Palma, a quem sinceramente agradecemos. 

Floriano Martins

 

CODA | Querido Floriano Martins:

Como editores actuales de la revista, queremos aclarar las especulaciones que viene haciendo Luis Fernando Cuartas en torno a su llamada expulsión de la revista Punto Seguido, que se incluye en Agulha Revista de Cultura # 214, del 10 de agosto del presente año, en el artículo intitulado: “Punto Seguido, un camino que tiene corazón”, en el que él, afirma que: “(…) Lamento mucho el haber sido expulsado como en los viejos tiempos de las militancias sectarias, donde no siempre mediaba el diálogo y los correctivos concertados."

Queremos aquí mismo, sí así lo permites, aclarar que Luis Fernando Cuartas, no ha sido expulsado de la Planta de Creación de la revista Punto Seguido, él lo sabe, tiene consciencia sobre ello, dado que fue uno de los iniciadores de la revista, que estuvo en sus comienzos (primeras torsiones); que nunca hemos sido un Grupo, Movimiento Cultural o Político o Poético o Intelectual, o una Asociación o Sociedad Anónima o Partido Político. Por lo tanto, es evidente que no hay MILITANCIA ni muchos menos, MILITANTES. Cada uno de los miembros decide la manera de intervenir, desde sus inquietudes y sus principios estéticos, como se indicaba sin indicarse desde el principio mismo de la publicación de Punto Seguido (1979). Por lo que nunca ha sido un GRUPO O MOVIMIENTO O ASOCIACIÓN, se puede deducir, como él deduce que ha sido expulsado. No hay nada firmado, no hay firmas que así lo indiquen o lo demuestren, ni se ha expedido resolución ni existe, si ello es de lo que se trata para él, entonces es así. No tenemos ni tendemos, en consecuencia, a crear y continuar una controversia innecesaria sobre ello.

Consideramos así resuelto en esta perspectiva, lo que pueda suscitar esta afirmación de Luis Fernando Cuartas. De tal manera, que no se puede disentir de lo que cada uno decide hacer, ya que sería disentir sobre sí mismo, sobre lo que hace o no hace al exterior y al interior de sus intereses en cada movimiento que realice en su vida o su mundo del arte. No hay compromisos ni responsabilidades que aquí, en el Punto Seguido, se establezcan como Militancia, CADA UNO MILITA EN LO QUE QUIERA y CON LO QUE PUEDA. O se mueve hacia donde se lo indique su Rosa de los Vientos.

 

John Sosa

Oscar Jairo González Hernández

Pablo Carrillo 

 

 

 

∞ índice

 

ANA PUYOL LOSCERTALES | Referencias crípticas en el film L’étoile de mer, de Man Ray: Hortus malabaricum

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CARLOS M. LUIS | Antonin Artaud entre cacas y gritos

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ENRIQUE PICHÓN RIVIÉRE | Lautréamont, Los Cantos de Maldoror y el poema IX del primer Canto

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FLORIANO MARTINS | Nikos Stabakis y su visión crítica del Surrealismo

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FLORIANO MARTINS | Stelios Karayanis y el Surrealismo en Grecia

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JORGE ORDÓÑEZ-BURGOS | Sobre el erotismo en la obra de Salvador Dalí

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MÁRCIO CATUNDA | Conde de Lautréamont e a grande árvore do maravilhoso

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MÁRCIO CATUNDA | Os verbos oníricos de Gérard de Nerval

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RODRIGO QOHEN | As collages de Georges Hugnet: decalcomania do gozo pulsante nas espumas de Vênus

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/08/rodrigo-qohen-as-collages-de-georges.html

 

TATIANA OROÑO | Selva Márquez: la ciudad del tiempo en cautiverio

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/08/tatiana-orono-selva-marquez-la-ciudad.html 

 

Emilio Bolinches




Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 16

Número 215 | agosto de 2022

Artista convidado: Emilio Bolinches (Uruguai, 1960)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS

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