Helder Macedo, no pequeno
memorial que dedica ao grupo, “Raposa branca num campo de neve” (revista Relâmpago,
n.º 26, 2010, p. 140) fala do congelador, acertada figuração de muitas coisas.
Em primeiro lugar o café do lado ocidental do Rossio, que se chamava Gelo. Não podemos
deixar de tomar esta coincidência por uma objectivação casual, isto em época em
que Cesariny punha em cena o jovem mágico de Pena Capital (1957). Depois
o gelo era o país estrangulado pela mão cínica dum homem de sacristia, severo como
o nome da terra onde nascera e se criara, antes de pegar beca na não menos bolorenta
universidade de Coimbra. Havia ainda o mundo congelado pelo medo do pugilato atómico
das duas potências. Por fim, mais do que todos os outros, mas em concordância com
eles, fora do contexto, no centro desses círculos concêntricos, como núcleo, estão
os versos do Poeta, feitos também eles com o fogo gelado do gelo. Não há o mínimo
visco nos versos de Manuel de Castro. Os seus versos e a sua prosa transvasam um
frio polar que incendeia e gela no mesmo passo. São versos hialinos e finos, incolores
e límpidos, que cortam como o vidro. Glosando de forma diferente o que poeta António
Barahona diz dos versos de Manuel de Castro noutra página desta revista, não nos
parece haver em portuguesa língua versos tão (ardentemente) gelados como estes.
Têm a transparência do vidro, a finura da lâmina, ao mesmo tempo que irradiam a
repulsiva rigidez da morte.
Nenhum outro grupo da época
em Portugal, entre todos os que surgiram nas décadas de 50 e de 60, assegura uma
universalidade tão ampla e tão representativa como o grupo do Gelo, pese embora,
também aqui, a magra atenção que tem merecido. E talvez nenhum outro poeta do grupo,
que os tem em bom número e de excelente qualidade, se tenha adiantado como ele,
Manuel de Castro, a escrever uma poesia tão representativa da geração e do grupo.
Na verdade nenhum outro poeta do grupo escreveu como ele os versos com um pedaço
de gelo. Há muito ardor em geral nos poetas que o rodeiam, ardor e fúria, e basta
para isso pensar nos versos de Herberto Helder, nos de António José Forte ou nas
linhas de Ernesto Sampaio ou até nas de Virgílio Martinho, mas todos eles tiram
o ardor mais do fogo e menos do gelo. Os versos e as linhas de Manuel de Castro
são os únicos que vão buscar o estado de ardor ao gelo e não ao fogo ou ao álcool.
Abro o livro de estreia
de Manuel de Castro e leio o primeiro poema, “Paralelo W”, que dá nome ao livro,
e nele encontro símbolos geracionais fortes, como a geração angélica e terrível.
A locução é forte e aderente – além de ardente. Apetece perguntar: que geração é
esta? Reponde por um lado a história do Grupo do Gelo e por outro o poema: aquela
que se vai iniciar e ter um nome diferente e que surge no tempo em que
morrem os Príncipes/ e se iniciam os ritos bárbaros da Grande Velocidade. Se
os príncipes que morrem podem deixar a pairar no ar, em poesia tão pouco referencial,
uma dúvida sobre quem são, já os ritos bárbaros da Grande Velocidade, com
facilidade se captam a partir duma situação técnica, que, efeito ainda da guerra,
se espalhou no dia-a-dia do Ocidente. É ela a névoa glacial do pesadelo gelado a
que se chamou Guerra Fria. Ritos bárbaros da Grande Velocidade,
diz ele. Eis um verso escrito a gelo, um verso que, não perdendo ardor e incêndio,
gela. Não se trata dum verso frio – como os do autor de Morte e Vida de Severina – mas dum verso gelado. Com a mesma matéria
hialina se escreve a locução, belíssima de resto, a geração angélica e terrível,
o mais directo e certeiro apodo que o grupo do Rossio lisboeta para si tomou, mas
que não deixa de produzir um calafrio. Quer a Guerra Fria, quer os versos de Manuel
de Castro concebem um inferno de gelo e não de fogo. O que queima, o que castiga,
não é a labareda mas o grau zero do frio. Inferno, inverno. Logo em vez da tristeza
e do seu incêndio, rigidez hirta, sincelo, petrificação, que não é porém parnasiana
ou ática. Há aqui uma transparência que só pode ser ligada à transcendência (imanente)
ou uma metáfora da morte abissal que toca o renascimento oculto. Nada pois de estatuária
realista mas poesia inspirada pelo real absoluto.
Para se saber o que é um
rito bárbaro pense-se na facilidade com que se passou a ter nessas décadas
uma máquina de lavar, um frigorífico, ou qualquer outro electrodoméstico. O momento
em que Manuel de Castro escreve é aquele em que as proezas técnicas entraram dum
dia para o outro pelas nossas casas dentro. As aparências desses objectos metálicos
e mortos são inócuas, apesar de frias. Ainda assim foram eles afinal o contraponto
da corrida ao armamento desses anos, assentes que estavam na mesma base da bomba
atómica, a fissão do átomo nas sinistras centrais nucleares que o pós-guerra trouxe
à paisagem do mundo, e de que hoje Fukushima, depois de Chernobyl, nos dá a ver
o lado de rito bárbaro, o estado de glaciação em que vida caiu. É o brilho
cortante do aço fino que o gelo tem. Tal brilho reverbera bem naquele emblemático
lugar na esquina do Rossio que um acaso muito objectivo quis que fosse isso mas
com maiúscula universal – Gelo. É possível aqui cruzar duas gerações geograficamente
distintas e até distantes, coincidentes porém no tempo e no espírito, a que se desenvolveu
em Times Square ou na Six Gallery de São Francisco e a que se acantonou na parte
ocidental do Rossio lisboeta, no café Gelo. Tal cruzamento pode porém constituir
uma das mais ricas linhas de leitura para entender a situação axiológica da geração
portuguesa.
Como não ligar isto a outra
das grandes representações geracionais do grupo do Gelo, o abjeccionismo? De todos
os companheiros de geração ou de grupo, ao menos entre os que escreviam, talvez
o Luiz Pacheco da mendicidade e da abjecção, o Pacheco como encarnação do anjo da
queda, seja aquele que mais próximo está do autor de Paralelo W e da autodestruição
sistemática a que se entregou. Só esse Pacheco parece ter escrito algumas das suas
linhas com o mesmo gelo infernal de Manuel de Castro. Aquilo que lhe sobra em miséria,
em frieza, em cinza e até em transparência, tão nítida, falta-lhe porém em ardor,
esse que tanto chispa, e até em irisada policromia fabulosa, no verso do companheiro
de geração, a quem de resto prestou comovida homenagem (“Os Poetas Sonegados”, com
carta inédita de M. de Castro, in Literatura Comestível, 1972; primeira publicação
em República, 19-10-1972).
Um outro poema significativo
de Manuel de Castro do ponto de vista geracional é “Equidistante e Neutro”, do mesmo
livro, enunciado em registo distanciado mas colectivo, com recurso à terceira pessoa
do plural, o mesmo que se encontra no poema que abre o livro, “Paralelo W”. O poema
abre com uma imagem forte e enigmática, os jovens loucos transformaram a meta,
e prossegue com uma atmosfera veemente de rejeição e repulsa, o planeta se confundirá
em nojo ou o puzzle vai ser reconstituído/ com a caveira dos nossos pais,
a concordar por inteiro com aquilo que se lê no curto poema antes comentado. Primeiro
a identidade do poema com uma situação histórica geral, que tanto é a do salazarismo
como a da Guerra Fria, como ainda a situação familiar mais restrita mas não menos
catastrófica do poeta, órfão de mãe desde criança e a cargo dum pai que era funcionário
da administração colonial salazarista, além de católico praticante. Os pais tanto
são os pais do mundo, como os pais do país, como os pais duma geração – incompreendida,
primeiro, traída e maltratada, logo depois. Variante para tanto pai: os governantes
da guerra, os ditadores do bafio, os progenitores da hipocrisia, os professores
de Coimbra. Acercamo-nos aqui da condição interior da alma, pela qual o poeta é
e não é o mundo. Por um lado a frieza duma alma pura que congelou num vaso de terra
que lhe repugna – e daí os imundos e os impuros. Por outro, e sempre
recorrendo ao mesmo poema, eis os últimos habitantes da Terra, por certo antes da
sua destruição, os que coroam jardins e impérios, não porque estes existam
mas porque os sonham no ardor da alma gelada mas não corrompida Eis então a labareda
do sonho como presença dum lugar de fuga à condição comum, ao nojo, à caveira, ao
mundo tal como ele foi legado pela geração anterior, por todas as gerações anteriores,
até ao Criador inicial de todas elas e onde reside a primeira culpa da corrupção
– a caveira dos nossos pais.
A questão da repulsa visceral
pelo mundo material que se encontra na poesia em verso de Manuel de Castro, e que
se repete no texto de 1970, merece atenção cuidada. Por um lado ela faz causa comum
com todo um segmento da criação geracional do Grupo do Gelo, a começar no Luiz Pacheco
já referido mas que se continua e desenvolve em outros autores como António José
Forte e Virgílio Martinho, onde o desgosto, a náusea do mundo, e a sua rejeição,
não é menor. Ainda assim não é com gelo que o primeiro escreve os seus versos e
o segundo as suas linhas. O primeiro tem consigo uma faca ou um ácido corrosivo,
e não apenas uma lâmina ou um pedaço ardente de gelo; o segundo, tem com ele o poder
incendiário do álcool puro. Por outro lado a repulsa de Manuel de Castro, em conjunto
com a sua necessidade de trocar o mundo sensível pelo real absoluto, que não é do
plano dos sentidos, parece dar a medida da situação pessoal desta poesia.
A definição de dois patamares
em confronto, tal como os encontrámos em poemas como “Paralelo W” ou “A Erc Josamu
Erc”, leva-nos a pensar nos dois planos conhecidos, o do real sensível e o do real
absoluto, o do real do dia a dia e o do real autêntico, o da experiência e o da
inocência, para usar aqui os termos dum antigo poeta inglês que apontou this
heavy chain/ that freeze my bones around (W. Blake, “Earth’s Answer”, in Songs
of Experience), e ainda a colocar para uma obra assim dualista, entre o branco
e o negro, as trevas e a luz, o real e o surreal, na linha de outras de idêntica
tradição, a questão da espiritualidade gnóstica, tal como foi vivida por dentro
da filosofia operativa de Pitágoras a Proclus e Plotino ou nas margens das religiões
reveladas. Que a poesia de Manuel de Castro não passa sem uma atenção cuidada às
fontes religiosas, parece-me seguro para quem escreveu o poema “Imunidade” de Paralelo
W e até para quem responde, na carta de 17 de Maio a Helder Macedo, à questão
do budismo de forma tão decidida e ao mesmo tempo tão evasiva, como se dissesse
não sou mas sou. Fala aí duma situação espiritual minha, presente no livro
Estrela Rutilante, que convirá ligar à prospecção gnóstica que numa
outra carta, desta vez a António Barahona, ele faz equivaler à Poesia, com maiúscula,
enquanto estilo de vida (v. Raspar o fundo da gaveta e enfunar uma gávea,
Lisboa, Averno, 2011). Estilo de vida? Sim, por certo. Assim se entenderá
melhor o último verso de “Paralelo W” – iniciar-se e ter um nome diferente
– como sinal vivido duma passagem ritualística e secreta na direcção do plano que
o poeta sobrepõe ao mundo material, qualquer que ele seja. Assim o Sul de que se
fala nesse poema, ou o Oriente que cintila em outros de Estrela Rutilante,
não são para ser tomados à letra mas como figuras desse outro mundo absoluto e autêntico,
não corrompido, senhor de todos os poderes originais, em cuja descoberta o poeta
digno desse nome deve empenhar a vida e o talento.
Na segunda carta a Helder
Macedo, adianta-se a hipótese de uma longa viagem à Ásia, talvez Macau, talvez
a Índia, que nunca chegou a acontecer, deixando de lado, é claro, os anos que
ele passou na infância, antes da morte da mãe, em Goa, e depois em Moçambique, por
causa do trabalho do pai. É suficiente porém a hipótese, junto àquela outra
afirmação na terceira carta, de 7 de Abril de 1960, de que bem sabes que na Europa
já não há lugar para a aventura, a não ser a pequena aventura de torna-viagem,
para lhe prestarmos atenção. Também a afirmação, na carta final, de 17 de Maio de
1960, de que não é budista mas vive uma situação espiritual singular, ajuda a esclarecer
a condição geral em que estes poemas gelados foram criados.
Manuel de Castro dá um rosto
ao Gelo, ao gelo do seu tempo, ao gelo internacional, ao gelo da Guerra Fria, ao
gelo da técnica apocalíptica, ao gelo da sua geração lisboeta e portuguesa, ao gelo
da sua vida pessoal, marcada por alguns desastres funestos, ao gelo da sua alma
atormentada e magoada por uma condição metafísica que ultrapassa a História, qualquer
História pessoal ou geral, e se vê desde e para sempre como anjo expulso do Paraíso,
expiando, sem memória sensível da sua criação primeva, o duro e escuro exílio da
Terra, que segundo o poeta inglês gela os ossos. Eis aqui o poeta da geração
angélica e terrível, o poeta que escreveu como nenhum outro os versos do Gelo.
ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | Ensaísta e editor. Nasceu e cresceu em Lisboa, num dos mais vetustos bairros da cidade, a Graça, em 1956. Aos sete anos foi aluno de Alice Gomes. Há quase quatro décadas que está ligado ao ensino público, onde se esforça por desaprender muito do que lhe ensinaram. Coordena, edita e dirige desde 2012 a revista de “cultura libertária” A Ideia, que se publica desde 1974 e onde Mário Cesariny colaborou em vida. Tudo o que procura é poder inscrever no seu registo o que um inspirado escritor francês mandou gravar na sua lápide: Je cherche l’or du temps.
AGNES ARELLANO (Filipinas, 1949). Escultora conocida por sus agrupaciones escultóricas surrealistas. Una tragedia familiar ocurrida en 1981 determinó el rumbo de su carrera y los temas principales de su arte. Sus padres, su hermana Citas y una empleada doméstica murieron en un incendio que arrasó la casa ancestral de los Arellano en San Juan, Metro Manila. Arellano recibió la noticia del incendio mientras estaba de vacaciones en España. En memoria de sus difuntos padres y hermana, decidió establecer las Galerías Pinaglabanan sin fines de lucro en el sitio de la casa ancestral. Allí se exhibirían muchas obras de arte filipinas y extranjeras inusuales, y también se otorgaron subsidios a artistas talentosos. Arellano conmemoró la trágica muerte de sus padres y su hermana 7 años después con un evento multimedia llamado “Fuego y muerte: un laberinto de arte ritual”. Creó una instalación única que consiste en un laberinto de santuarios temáticos en el jardín Arellano, combinando esculturas, poesía, fotografías, esculturas sonoras, plantas y recuerdos familiares. Esto demostró el profundo sentido del precario equilibrio entre la muerte y la vida del que había tomado conciencia después de la tragedia. Este tema también encontraría su camino en muchas de sus otras obras. Agnes Arellano es la artista invitada de esta edición de Agulha Revista de Cultura. A ella agradecemos por su cariño y complicidad.
Agulha Revista de Cultura
Número 217 | novembro de 2022
Artista convidada: Agnes Arellano (Filipinas, 1949)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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