Embora Ashbery (Rochester, 1927-Hudson,
2019) tenha declarado que sua biografia está ausente do que escreve, as lembranças
de infância permeiam seu trabalho em alusões indiretas. A natureza nos poemas terá
sempre algo dos bosques, córregos e pomares da propriedade familiar de Sodus. Adolescente,
tem o temperamento de quem participa de programas de perguntas e respostas sobre
cultura geral na estação de rádio local. Quer ser pintor e frequenta aulas semanais
no museu de Rochester. Sua tese de graduação em Harvard versa sobre a poesia de
Auden, que influencia seus primeiros escritos.
No início dos anos 50 é atraído pelo expressionismo
e participa da New York School, um grupo informal de artistas, coreógrafos, músicos
e poetas. A arte clássica e a moderna foram influências iniciais que o acompanharam
pela vida. Toma quadros por motivo de poemas e olhares de pintores sobre a realidade
como técnica narrativa. É um poeta que procura ser original inclusive em relação
às próprias formulações, em um esforço deliberado para ouvir outro tom na sua voz
dizendo o que ele pensa. Assim, os French Poems, escritos em francês enquanto morava
em Paris, são publicados em inglês. Usar a tradução como original tem o propósito,
segundo Ashbery, de evitar modelos verbais e associações costumeiras.
Minha
poesia reproduz a maneira como o conhecimento chega a mim, que é aos trancos e barrancos
e indiretamente. Não acho que a poesia organizada em padrões perfeitos refletiria
essa situação. Minha poesia é disjunta, mas a vida também é.[…]
Suas
fontes são Auden, Stevens, Perse, Roussel, Hölderlin, algo da poesia popular épica
e muita poesia americana e inglesa dos anos trinta e quarenta, não sei ao certo
até que ponto tudo isto é evidente. Elipses, mudanças frequentes de tom, de voz
(isto é, a voz do narrador), de pontos de vista, para dar uma impressão de fluxo
estão entre as minhas características. Poucas vezes uso a métrica. […]
Um
poema é só um punhado de impressões. Se fosse decifrado deixaria de ser um mistério.
Os poemas são uma “tela verbal” sobre a
qual o poeta aplica técnicas da pintura abstrata. A afirmação tem certo efeito e
traz uma meia verdade. Embora imagens e ideias se movam sem continuidade, como um
pincel expressionista, sua poesia evoluiu sob uma variedade de influências que vai
além desse lugar-comum. O estilo multifacetado, polifônico, inacabado, reflexivo
e inundado pela cultura pop, tornou-se tão influente que seus imitadores são uma
legião, observa Helen Vendler.
O que Ashbery ofereceu para alguns poetas
americanos como Hass, Glück e Strand foi outra forma de expressão, sua originalidade
nasce da liberdade e a transmite. A correnteza de pensamentos intercalada pela cena
que a contextualiza cria uma realidade subjetiva e objetiva ao mesmo tempo, sem
ser uma nem a outra. Uma realidade semi-abstrata, para usar a definição de Elizabeth
Bishop.
Esse retrato das percepções e do que as
provoca deriva, de acordo com Paul Auster, da capacidade que Ashbery possui de minar
certezas ao articular as zonas ambíguas de nossa consciência. Outros leitores, não
tão seduzidos pelo seu virtuosismo maneirista, apontam um hermetismo premeditado
feito de tudo – ou de qualquer coisa – para significar nada em específico ou algo
vago em forma genérica. Refletindo sobre esse viés interpretativo, Ashbery comentou
estar
bastante intrigado com o seu trabalho também. Criar uma obra de arte sobre a qual
o crítico não consiga nem mesmo falar deveria ser a principal preocupação do artista.
Com frequência mudo de opinião sobre minha poesia. Não penso que tenha que ver com
pintura, embora tenha declarado antes o contrário. Prefiro não ter um objetivo concreto,
para não me ver obrigado a programar a mim mesmo.
Boutades à parte, a recusa em ordenar um
universo de fluxo e caos passa o entendimento convencional do poema a um segundo
plano. Em muitos casos, o próprio “eu” do narrador se dissolve. O sujeito pode ser
o próprio poeta, estar em terceira pessoa, ou ser alguém com quem o poeta dialoga.
Poesia para ser lida mais que para ser ouvida, dado que a voz única de um declamador
uniformiza a polifonia do original.
Sobre
a diluição do sujeito, argumenta com a pérola não-dualista: Somos todos, de alguma
forma, aspectos de uma consciência que faz nascer o poema.
THE IVORY TOWER
Another season, proposing a name and a distant resolution.
And, like the wind, all attention. Those thirsting ears,
Climbers on what rickety heights, have swept you
All alone into their confession, for it is as alone
Each of us stands and surveys this empty cell of time. Well,
What is there to do? And so a mysterious creeping motion
Quickens its demonic profile, bringing tears, to these eyes at least,
Tears of excitement. When was the last time you knew that?
Yet in the textbooks thereof you keep getting mired
In a backward innocence, although that too is something
That must be owned, together with the rest.
There is always some impurity. Help it along! Make room for it!
So that in the annals of this year be nothing but what is sobering:
A porch built on pilings, far out over the sand. Then it doesn't
Matter that the deaths come in the wrong order. All has been so easily
Written about. And you find the right order after all: play, the street shopping,
time flying.
A
TORRE DE MARFIM
Outra estação, propondo um nome
e uma distante resolução
e, como o vento, toda a atenção.
Estes sedentos ouvidos
alpinistas de que ruinosas alturas,
te jogaram
na sua confissão sozinho, tão
sozinho quanto
cada um de nós vigiando esta
cela vazia de tempo. Bem
o que mais se pode fazer? E
assim um misterioso rastejar
acentua seu perfil demoníaco,
trazendo lágrimas, ao menos a estes olhos,
lágrimas de emoção. Quando foi
a última vez que o soubeste?
No entanto, te atolas outra
vez nos mesmos livros didáticos
em uma inocência ultrapassada,
embora também isso seja algo
que deve ser cuidado, junto
com o resto
Sempre há alguma impureza. Faz
com que siga! Dá lugar!
Para que nos anais deste ano
não haja nada além de sobriedade:
uma galeria erguida em colunas
longe, sobre a areia. Então
não importa se as mortes chegam
na ordem errada. Sobre isso tudo
já foi escrito. E encontras
a ordem certa afinal: o jogo, a rua, ir de compras, perder tempo.
O fato é que o leitor procura identificar
formas, mas só encontra borrões. Suportar a abstração com palavras é um desafio,
especialmente quando o poema é tão indefinido que impede a identificação do seu
motivo mais concreto. Pois, nem toda metalinguagem funciona. E escrever sobre poemas
sendo escritos, mais que maestria exige um repertório de contravenenos -ele os possui-
para a monotonia e a dispersão. Ou quase. É ao que Roger Shattuck se refere ao dizer
que dessa forma cada poema se torna uma arte poética da sua própria condição.
WHAT IS POETRY?
The medieval town, with frieze
Of boy scouts from Nagoya? The snow
That came when we wanted it to snow?
Beautiful images? Trying to avoid
Ideas, as in this poem? But we
Go back to them as to a wife, leaving
The mistress we desire? Now they
Will have to believe it
As we believed it. In school
All the thought got combed out:
What was left was like a field.
Shut your eyes, and you can feel it for miles around.
Now open them on a thin vertical path.
It might give us – what? – some flowers soon?
O
QUE É A POESIA?
Um burgo medieval, com friso
dos escoteiros de Nagoya? A
neve
que veio quando queríamos que
nevasse?
Belas imagens? Tentar evitar
as ideias, como neste poema?
Mas
voltamos a elas como a uma esposa,
abandonando
a amante desejada? Agora eles
terão que admitir
como nós o admitimos. Na escola
todo o pensamento foi desenredado:
Um descampado é o que restou
Fecha teus olhos para senti-lo
longe e ao redor
Agora os abres em uma fina linha
vertical
Nos daria – o quê? – algumas flores de repente?
O verso de Ashbery é feito com hipóteses
em processo. Sua sofisticada incerteza, sempre in media res, conduz o leitor a um
lugar incômodo. É uma linguagem do desconforto. Se quando acerta sua poesia encanta
através do próprio hermetismo, quando fracassa no lugar de ser autêntica e enigmática
é apenas incompreensível. O limite é tênue e ele não se importa.
AT
NORTH FARM
Somewhere someone is traveling furiously toward you,
At incredible speed, traveling day and night,
Through blizzards and desert heat, across torrents, through narrow passes.
But will he know where to find you,
Recognize you when he sees you,
Give you the thing he has for you?
Hardly anything grows here,
Yet the granaries are bursting with meal,
The sacks of meal piled to the rafters.
The streams run with sweetness, fattening fish;
Birds darken the sky. Is it enough
That the dish of milk is set out at night,
That we think of him sometimes,
sometimes and always, with mixed feelings?
NA
FAZENDA DO NORTE
Em algum lugar alguém viaja
com fúria na tua direção
em uma velocidade incrível,
viajando dia e noite
por nevascas, no calor do deserto,
atravessando correntezas e desfiladeiros
Mas, ao chegar, saberá onde
estás?
E ao te encontrar, saberá quem
és? Dará o que traz para ti?
Aqui quase nada cresce
mesmo assim, os celeiros estão
repletos
Se amontoam até o teto os sacos
de farinha
E com doçura correm os riachos,
engordando os peixes
Pássaros escurecem o céu. Bastará
servir o prato com leite a cada
noite
pensar nele de vez em quando
de vez em quando e sempre, com
sentimentos confundidos?
Self-Portrait
in a Convex Mirror,
ganhou o Pulitzer, o prêmio Nacional do Livro e o do Círculo dos Críticos, em 1975.
Esta obra-prima do pós-modernismo, é uma digressão a partir da pintura homônima
do maneirista emiliano Francesco Parmigianino (1503–1540).
Lendo Vassari, mas ouvindo antes o timbre
de Vassari:
além
da beleza angelical do pintor e da novidade sugestiva da invenção do espelho convexo,
é possível captar uma manifestação da nova sensibilidade maneirista, graças à presença
da visão anamórfica da mão deformada pelo formato do espelho.
e a dicção do comentário
de Argan sobre Parmigianino:
Francesco
adverte que a história não é mais a experiência fundamental e que o presente se
confunde com o eterno em uma dimensão atemporal, irreal. Sua beleza é o sinal da
negatividade de todos os outros valores, e dessa negatividade, que em certo sentido
denuncia, recebe o seu esplendor misterioso, lunar.
Escutamos com clareza a mesma voz mental
de Ashbery em seu poema. O tom ensaístico torna a leitura desta composição menos
hermética que outros trabalhos do autor. A pintura é um pretexto para o poeta dispersar
e reagrupar digressões em torno do autorretrato distorcido e paralisado de Parmigianino.
O tempo detido da imagem passando pelo pensamento que a contempla é o núcleo do
poema e o modelo da sua estrutura fluida.
A reflexão avança em fragmentos, redemoinha
em blocos discursivos para emergir em um aforismo luminoso, que ora vacila na imagem
convexa e seu mundo aprisionado, ora hesita na mente volátil do poeta. O efeito
paira entre o sonho e a realidade. O que nos remete à própria vida, pois como o
poeta diante do quadro, cada leitor está entre a página e o seu próprio fluxo de
associações. O estranhamento criado por essas camadas de dissociações, essa galeria
de realidades, aumenta quando o leitor percebe que, apesar de tanta potência reflexiva,
o narrador do poema transmite quietude, como se ele vibrasse em um diapasão e o
vigor da sua inteligência em outro.
É correta a afirmação que Ashbery não se
acomodou às fórmulas do próprio sucesso. Foi um poeta regido pelo risco e, muito
em função disto, será menos lido do que deveria. Importa pouco que a crítica mais
convencional o considere o último canônico, equiparável a Yeats ou Stevens. Ele
seria, não fosse a contradição conceitual, o primeiro clássico do pós-modernismo.
Bom, talvez seja, justamente por ela.
THOMAZ ALBORNOZ NEVES (Brasil, 1963). É advogado, cineasta, tradutor, ensaísta e poeta. Ao longo de quase quarenta anos, tornou-se um dos mais ativos tradutores de poesia contemporânea para o português. Viveu na Itália, França e Espanha durante seus anos de formação. Fixou-se então no Rio de Janeiro, no norte do Uruguai e finalmente em Livramento. Publicou vários livros, entre eles Renée (1987), Poemas (1990), Golfe (2012), À espera de um igual (2020), Oriente (2021) e 24 verbetes (2022).
ROBERT EDMOND JONES (Estados Unidos, 1887-1954). Cenógrafo, iluminador e figurinista, conhecido por incorporar a nova encenação ao drama americano, este notável criador buscou sempre integrar elementos cênicos à narrativa, em vez de mantê-los separados e indiferentes da ação da peça. Seu estilo visual, muitas vezes referido como realismo simplificado, combinava o uso ousado e vívido de cores e iluminação simples, mas dramática. Seus projetos inovadores para a American Opera Company de Vladimir Rosing em 1927 e 1928 foram elogiados pela crítica. Jones também trouxe seu estilo expressionista para muitas produções realizadas pelo Theatre Guild, com designs inovadores para The Philadelphia Story (1937), Othello (1943) e The Iceman Cometh (1946). O maior sucesso comercial de Jones foi com The Green Pastures (1930), que, se incluirmos seu renascimento em 1951, teve um total de 1.642 apresentações. Seu livro The Dramatic Imagination é considerado a obra definitiva sobre a cenografia moderna da primeira metade do século XX. Robert Edmond Jones é o artista convidado da presente edição da Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 247 | janeiro de 2024
Artista convidado: Robert Edmond Jones (Estados Unidos, 1887-1954)
editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
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Excelente artigo!
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