segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

THOMAZ ALBORNOZ NEVES | John Lawrence Ashbery, um autorretrato

 


Embora Ashbery (Rochester, 1927-Hudson, 2019) tenha declarado que sua biografia está ausente do que escreve, as lembranças de infância permeiam seu trabalho em alusões indiretas. A natureza nos poemas terá sempre algo dos bosques, córregos e pomares da propriedade familiar de Sodus. Adolescente, tem o temperamento de quem participa de programas de perguntas e respostas sobre cultura geral na estação de rádio local. Quer ser pintor e frequenta aulas semanais no museu de Rochester. Sua tese de graduação em Harvard versa sobre a poesia de Auden, que influencia seus primeiros escritos.

No início dos anos 50 é atraído pelo expressionismo e participa da New York School, um grupo informal de artistas, coreógrafos, músicos e poetas. A arte clássica e a moderna foram influências iniciais que o acompanharam pela vida. Toma quadros por motivo de poemas e olhares de pintores sobre a realidade como técnica narrativa. É um poeta que procura ser original inclusive em relação às próprias formulações, em um esforço deliberado para ouvir outro tom na sua voz dizendo o que ele pensa. Assim, os French Poems, escritos em francês enquanto morava em Paris, são publicados em inglês. Usar a tradução como original tem o propósito, segundo Ashbery, de evitar modelos verbais e associações costumeiras.

 

Minha poesia reproduz a maneira como o conhecimento chega a mim, que é aos trancos e barrancos e indiretamente. Não acho que a poesia organizada em padrões perfeitos refletiria essa situação. Minha poesia é disjunta, mas a vida também é.[…]

Suas fontes são Auden, Stevens, Perse, Roussel, Hölderlin, algo da poesia popular épica e muita poesia americana e inglesa dos anos trinta e quarenta, não sei ao certo até que ponto tudo isto é evidente. Elipses, mudanças frequentes de tom, de voz (isto é, a voz do narrador), de pontos de vista, para dar uma impressão de fluxo estão entre as minhas características. Poucas vezes uso a métrica. […]

Um poema é só um punhado de impressões. Se fosse decifrado deixaria de ser um mistério.

 

Os poemas são uma “tela verbal” sobre a qual o poeta aplica técnicas da pintura abstrata. A afirmação tem certo efeito e traz uma meia verdade. Embora imagens e ideias se movam sem continuidade, como um pincel expressionista, sua poesia evoluiu sob uma variedade de influências que vai além desse lugar-comum. O estilo multifacetado, polifônico, inacabado, reflexivo e inundado pela cultura pop, tornou-se tão influente que seus imitadores são uma legião, observa Helen Vendler.

O que Ashbery ofereceu para alguns poetas americanos como Hass, Glück e Strand foi outra forma de expressão, sua originalidade nasce da liberdade e a transmite. A correnteza de pensamentos intercalada pela cena que a contextualiza cria uma realidade subjetiva e objetiva ao mesmo tempo, sem ser uma nem a outra. Uma realidade semi-abstrata, para usar a definição de Elizabeth Bishop.

Esse retrato das percepções e do que as provoca deriva, de acordo com Paul Auster, da capacidade que Ashbery possui de minar certezas ao articular as zonas ambíguas de nossa consciência. Outros leitores, não tão seduzidos pelo seu virtuosismo maneirista, apontam um hermetismo premeditado feito de tudo – ou de qualquer coisa – para significar nada em específico ou algo vago em forma genérica. Refletindo sobre esse viés interpretativo, Ashbery comentou

 

estar bastante intrigado com o seu trabalho também. Criar uma obra de arte sobre a qual o crítico não consiga nem mesmo falar deveria ser a principal preocupação do artista. Com frequência mudo de opinião sobre minha poesia. Não penso que tenha que ver com pintura, embora tenha declarado antes o contrário. Prefiro não ter um objetivo concreto, para não me ver obrigado a programar a mim mesmo.

 

Boutades à parte, a recusa em ordenar um universo de fluxo e caos passa o entendimento convencional do poema a um segundo plano. Em muitos casos, o próprio “eu” do narrador se dissolve. O sujeito pode ser o próprio poeta, estar em terceira pessoa, ou ser alguém com quem o poeta dialoga. Poesia para ser lida mais que para ser ouvida, dado que a voz única de um declamador uniformiza a polifonia do original.

Sobre a diluição do sujeito, argumenta com a pérola não-dualista: Somos todos, de alguma forma, aspectos de uma consciência que faz nascer o poema.

 

THE IVORY TOWER

 

Another season, proposing a name and a distant resolution.

And, like the wind, all attention. Those thirsting ears,

Climbers on what rickety heights, have swept you

All alone into their confession, for it is as alone

 

Each of us stands and surveys this empty cell of time. Well,

What is there to do? And so a mysterious creeping motion

Quickens its demonic profile, bringing tears, to these eyes at least,

Tears of excitement. When was the last time you knew that?

 

Yet in the textbooks thereof you keep getting mired

In a backward innocence, although that too is something

That must be owned, together with the rest.

There is always some impurity. Help it along! Make room for it!

 

So that in the annals of this year be nothing but what is sobering:

A porch built on pilings, far out over the sand. Then it doesn't

Matter that the deaths come in the wrong order. All has been so easily

Written about. And you find the right order after all: play, the street shopping, time flying.

 

 



A TORRE DE MARFIM

 

Outra estação, propondo um nome e uma distante resolução

e, como o vento, toda a atenção. Estes sedentos ouvidos

alpinistas de que ruinosas alturas, te jogaram

na sua confissão sozinho, tão sozinho quanto

 

cada um de nós vigiando esta cela vazia de tempo. Bem

o que mais se pode fazer? E assim um misterioso rastejar

acentua seu perfil demoníaco, trazendo lágrimas, ao menos a estes olhos,

lágrimas de emoção. Quando foi a última vez que o soubeste?

 

No entanto, te atolas outra vez nos mesmos livros didáticos

em uma inocência ultrapassada, embora também isso seja algo

que deve ser cuidado, junto com o resto

Sempre há alguma impureza. Faz com que siga! Dá lugar!

 

Para que nos anais deste ano não haja nada além de sobriedade:

uma galeria erguida em colunas longe, sobre a areia. Então

não importa se as mortes chegam na ordem errada. Sobre isso tudo

já foi escrito. E encontras a ordem certa afinal: o jogo, a rua, ir de compras, perder tempo.

 

O fato é que o leitor procura identificar formas, mas só encontra borrões. Suportar a abstração com palavras é um desafio, especialmente quando o poema é tão indefinido que impede a identificação do seu motivo mais concreto. Pois, nem toda metalinguagem funciona. E escrever sobre poemas sendo escritos, mais que maestria exige um repertório de contravenenos -ele os possui- para a monotonia e a dispersão. Ou quase. É ao que Roger Shattuck se refere ao dizer que dessa forma cada poema se torna uma arte poética da sua própria condição.

 

WHAT IS POETRY?

 

The medieval town, with frieze

Of boy scouts from Nagoya? The snow

 

That came when we wanted it to snow?

Beautiful images? Trying to avoid

 

Ideas, as in this poem? But we

Go back to them as to a wife, leaving

 

The mistress we desire? Now they

Will have to believe it

 

As we believed it. In school

All the thought got combed out:

 

What was left was like a field.

Shut your eyes, and you can feel it for miles around.

 

Now open them on a thin vertical path.

It might give us – what? – some flowers soon?

 

 

O QUE É A POESIA?

 

Um burgo medieval, com friso

dos escoteiros de Nagoya? A neve

 

que veio quando queríamos que nevasse?

Belas imagens? Tentar evitar

 

as ideias, como neste poema? Mas

voltamos a elas como a uma esposa, abandonando

 

a amante desejada? Agora eles

terão que admitir

 

como nós o admitimos. Na escola

todo o pensamento foi desenredado:

 

Um descampado é o que restou

Fecha teus olhos para senti-lo longe e ao redor

 

Agora os abres em uma fina linha vertical

Nos daria o quê? algumas flores de repente?

 

 

O verso de Ashbery é feito com hipóteses em processo. Sua sofisticada incerteza, sempre in media res, conduz o leitor a um lugar incômodo. É uma linguagem do desconforto. Se quando acerta sua poesia encanta através do próprio hermetismo, quando fracassa no lugar de ser autêntica e enigmática é apenas incompreensível. O limite é tênue e ele não se importa.

 

AT NORTH FARM

 

Somewhere someone is traveling furiously toward you,

At incredible speed, traveling day and night,

Through blizzards and desert heat, across torrents, through narrow passes.

But will he know where to find you,

Recognize you when he sees you,

Give you the thing he has for you?

Hardly anything grows here,

Yet the granaries are bursting with meal,

The sacks of meal piled to the rafters.

The streams run with sweetness, fattening fish;

Birds darken the sky. Is it enough

That the dish of milk is set out at night,

That we think of him sometimes,

sometimes and always, with mixed feelings?

 

 


NA FAZENDA DO NORTE

 

Em algum lugar alguém viaja com fúria na tua direção

em uma velocidade incrível, viajando dia e noite

por nevascas, no calor do deserto, atravessando correntezas e desfiladeiros

Mas, ao chegar, saberá onde estás?

E ao te encontrar, saberá quem és? Dará o que traz para ti?

 

Aqui quase nada cresce

mesmo assim, os celeiros estão repletos

Se amontoam até o teto os sacos de farinha

E com doçura correm os riachos, engordando os peixes

Pássaros escurecem o céu. Bastará

servir o prato com leite a cada noite

pensar nele de vez em quando

de vez em quando e sempre, com sentimentos confundidos?

 

Self-Portrait in a Convex Mirror, ganhou o Pulitzer, o prêmio Nacional do Livro e o do Círculo dos Críticos, em 1975. Esta obra-prima do pós-modernismo, é uma digressão a partir da pintura homônima do maneirista emiliano Francesco Parmigianino (1503–1540).

Lendo Vassari, mas ouvindo antes o timbre de Vassari:

 

além da beleza angelical do pintor e da novidade sugestiva da invenção do espelho convexo, é possível captar uma manifestação da nova sensibilidade maneirista, graças à presença da visão anamórfica da mão deformada pelo formato do espelho.

 

e a dicção do comentário de Argan sobre Parmigianino:

 

Francesco adverte que a história não é mais a experiência fundamental e que o presente se confunde com o eterno em uma dimensão atemporal, irreal. Sua beleza é o sinal da negatividade de todos os outros valores, e dessa negatividade, que em certo sentido denuncia, recebe o seu esplendor misterioso, lunar.

 


Escutamos com clareza a mesma voz mental de Ashbery em seu poema. O tom ensaístico torna a leitura desta composição menos hermética que outros trabalhos do autor. A pintura é um pretexto para o poeta dispersar e reagrupar digressões em torno do autorretrato distorcido e paralisado de Parmigianino. O tempo detido da imagem passando pelo pensamento que a contempla é o núcleo do poema e o modelo da sua estrutura fluida.

A reflexão avança em fragmentos, redemoinha em blocos discursivos para emergir em um aforismo luminoso, que ora vacila na imagem convexa e seu mundo aprisionado, ora hesita na mente volátil do poeta. O efeito paira entre o sonho e a realidade. O que nos remete à própria vida, pois como o poeta diante do quadro, cada leitor está entre a página e o seu próprio fluxo de associações. O estranhamento criado por essas camadas de dissociações, essa galeria de realidades, aumenta quando o leitor percebe que, apesar de tanta potência reflexiva, o narrador do poema transmite quietude, como se ele vibrasse em um diapasão e o vigor da sua inteligência em outro.

É correta a afirmação que Ashbery não se acomodou às fórmulas do próprio sucesso. Foi um poeta regido pelo risco e, muito em função disto, será menos lido do que deveria. Importa pouco que a crítica mais convencional o considere o último canônico, equiparável a Yeats ou Stevens. Ele seria, não fosse a contradição conceitual, o primeiro clássico do pós-modernismo. Bom, talvez seja, justamente por ela.

 

 


THOMAZ ALBORNOZ NEVES (Brasil, 1963). É advogado, cineasta, tradutor, ensaísta e poeta. Ao longo de quase quarenta anos, tornou-se um dos mais ativos tradutores de poesia contemporânea para o português. Viveu na Itália, França e Espanha durante seus anos de formação. Fixou-se então no Rio de Janeiro, no norte do Uruguai e finalmente em Livramento. Publicou vários livros, entre eles Renée (1987), Poemas (1990), Golfe (2012), À espera de um igual (2020), Oriente (2021) e 24 verbetes (2022).

 

 


ROBERT EDMOND JONES (Estados Unidos, 1887-1954). Cenógrafo, iluminador e figurinista, conhecido por incorporar a nova encenação ao drama americano, este notável criador buscou sempre integrar elementos cênicos à narrativa, em vez de mantê-los separados e indiferentes da ação da peça. Seu estilo visual, muitas vezes referido como realismo simplificado, combinava o uso ousado e vívido de cores e iluminação simples, mas dramática. Seus projetos inovadores para a American Opera Company de Vladimir Rosing em 1927 e 1928 foram elogiados pela crítica. Jones também trouxe seu estilo expressionista para muitas produções realizadas pelo Theatre Guild, com designs inovadores para The Philadelphia Story (1937), Othello (1943) e The Iceman Cometh (1946). O maior sucesso comercial de Jones foi com The Green Pastures (1930), que, se incluirmos seu renascimento em 1951, teve um total de 1.642 apresentações. Seu livro The Dramatic Imagination é considerado a obra definitiva sobre a cenografia moderna da primeira metade do século XX. Robert Edmond Jones é o artista convidado da presente edição da Agulha Revista de Cultura.

 

 


Agulha Revista de Cultura

Número 247 | janeiro de 2024

Artista convidado: Robert Edmond Jones (Estados Unidos, 1887-1954)

editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2024


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