O poeta que martela
palavras na cabeça dos caretas é um artista da performance, da vocalização enfurecida.
Foi o criador da Roda de Poesia e Tambores que ampliava a palavra poética pelo coro-esticado
da vibração africana. Responsável por sustentar por uma década o principal sarau
da cidade de Teresina.
Além de sua atuação
com a poesia, Elio Ferreira é uma das figuras à frente do maior encontro acadêmico
de literatura, história e cultura afro-brasileira e africana do país, o ÁFRICA BRASIL,
nome de fantasia do Encontro Internacional de Literaturas, Histórias e Culturas
Afro-Brasileiro e Africana, que hoje se encontra na sua quinta edição.
Nos últimos dez anos,
ele vem se dedicado mais ao ensino, à extensão e à pesquisa. E acredita que a educação
é o melhor caminho para transformar as pessoas e mudar realidades tão injustas e
degradantes do Brasil, sobretudo no que diz respeito aos jovens negros, aos direitos
sociais da população negra e ao direito territorial das nações indígenas.
Elio Ferreira publicou
os livros de poemas: Canto sem viola (1983),
Poemas de Nordeste (1983), Poemartelos; o cilho-de-ferro (1986), O contra-lei (1994), O contra-lei e outros poemas (1997) e América negra (2004). E os livros acadêmicos:
Literatura e cultura afro-brasileira (2013)
e Poesia negra das Américas: Solano Trintade
e Lanston Hughes (2006), dentre outros.
P | Elio, você é um
professor de literatura da Universidade Estadual do Piauí (UESPI), com vários livros
de poemas publicados e um vasto currículo acadêmico de estudos dedicados à literatura
negra. Fala um pouco de como se deu os teus inícios com a literatura e o teu percurso
como poeta.
EF | Minha vida é
e tem sido uma longa caminhada. De início, foi a literatura oral que me seduziu,
me encantou. As histórias contadas pelo meu pai, minhas tias, tios, pessoas mais
velhas, amigos, vizinhos da minha casa exerciam sobre mim um inexplicável fascínio
e magia. Essas histórias mexiam muito comigo, com o meu imaginário. Um fato inesquecível
e dolorido marcou a minha infância, a morte da minha mãe, quando eu completara seis
anos de idade. O primeiro poema da minha autoria, que eu falei em público, foi numa
festa em celebração ao Dia das Mães, realizada pela escola em que eu estudava. Muitas
mães presentes choraram. De 1973 a 1975, entre 17 e 19 anos de idade, publiquei
os primeiros poemas no Tribuna do Sul, jornal impresso de Floriano, Piauí, minha
cidade natal. Os versos eram de teor lírico e crítica social.
Quando em abril de
1976, peguei um ônibus para Brasília, pensava em conseguir um trabalho e ingressar
no curso de Direito. Eu era um ferreiro e bombeiro hidráulico, com o Ensino Médio
completo, hoje Ensino Básico, e um curso de datilografia concluído, deixando para
trás vários poemas, que se perderam, numa velha “galo-de-briga”, mala antiga e rústica,
feita de madeira. Naquele momento, já havia publicado alguns poemas nos jornais
de Floriano, recitais em serenatas e eventos escolares. Carregava na bagagem a leitura
de alguns romances de Alencar, Machado de Assis (a tríade machadiana), Jorge Amado,
José Lins do Rego, José Mauro de Vasconcelos. Poemas de Gonçalves Dias, Cecília
Meireles, Manuel Bandeira, Humberto de Campos, Castro Alves, Da Cosa e Silva, poesia
de cordel, canções de bumba-meu-boi, inúmeros contos da tradição oral etc. Também
levei na mala um livro de poemas, que felizmente não o publiquei por completo, somente
o poema O POVOADO DE MAIACÁ, no livro Canto sem viola (1982).
Quando parti da minha
cidade natal, não sabia muito bem o que eu queria ser, mas estava certo de que queria
escrever livros, ser um poeta. Imaginem. Escrevi o primeiro poema aos nove anos.
Por bem dizer, não o escrevi. Apenas fiz um improviso, somente o escrevi tempos
depois, embora nunca o tenha esquecido: “Tucano, tucano / Tu engoles um homem? /
Engulo, engulo até você? Quando você quiser morrer / Pode vir, pode vir / Onde estou
eu”. Eu queria ter tempo para trabalhar e ler livros. Ler muitos livros. Então o
caminho mais próximo seria estudar Letras. Fiz essa escolha. Sem saber muito bem
o que seria se formar em Letras. Mas em 1979 me formei e hoje sou Doutor em Letras
pela UFPE.
No Brasil, a ascensão
social das pessoas negras é muito difícil, um caminho muito acidentado, muros difíceis
de transpor. Mas não podemos nos intimidar com esses obstáculos, que são paredões
de racismo e hipocrisia muito desonestos e cruéis, sobretudo porque o racismo no
Brasil é dissimulado ao extremo e mais do que isso – homicida. As estatísticas comprovam
isso, mais 72% dos jovens assassinados no Brasil são negros. Isso é assustador,
mas o poder público e a maioria das pessoas acham isso um fato normal. Nós, os negros,
somos cobrados em triplo. Principalmente, quando assumimos nossa história e negrura,
o compromisso étnico e vital em defesa da igualdade de direitos.
Em 1979, concluí o
curso de Letras. Na ocasião, trabalhava como Agente Administrativo no Ministério
da Agricultura. No mesmo ano, transferi-me para Campo Grande, capital de Mato Grosso
do Sul, a convite da Dra. Luíza e seu esposo, Dr. Martins, meus colegas de trabalho,
para montar a Diretoria Federal da Agricultura em Mato Grosso do Sul. Dona Luíza
era tia de Torquato Neto, prima legítima de Dr. Eli, pai de Torquato. Em Campo Grande,
fiz teatro amador engajado ao problema do latifúndio, sob a direção do dramaturgo
Marlei Cunha. A partir de 1982, publiquei o primeiro livro de poemas: Canto sem
viola. Juntamente a poetas jovens sul-mato-grossenses, como Alex Fraga, Gutemberg,
Altair, Guimarães, Marlei Cunha, criamos o Movimento de Poetas Independentes de
Mato Grosso do Sul. Tornamo-nos um grupo forte. Realizamos o primeiro grande evento
de poesia em Campo Grande, contando com a participação especial de alguns músicos
amigos. Mobilizamos a imprensa, a televisão, o rádio. Lotamos o local da I NOITE
DE POESIA DE CAMPO GRANDE, levamos mais de trezentas pessoas para o Paço Municipal,
principal espaço de evento da cidade naquela ocasião, 1983. Fizemos caminhadas poéticas
em homenagem ao poeta Manuel de Barros, de quem me aproximei, fizemos boas amizades
e de quem tomei algumas lições de poesia, que me foram muito frutíferas. Fizemos
inúmeros recitais em bares, praças públicas, universidades, em favor da preservação
do pantanal e do meio ambiente, das Diretas – Já, contra a repressão militar, contra
a violência de fazendeiros latifundiários e grileiros das terras indígenas, cuja
barbárie culminou com o assassinato de Tupã Y, Marçal de Sousa. Acerca desse episódio
nefasto, escrevi o poema Tupã Y, publicado na ocasião em um jornal impresso de Campo
Grande e na primeira edição de O contra-lei.
Em fevereiro de 1984,
regressei a Brasília no momento dos comícios e manifestações em favor das Diretas
– Já. Vi a cidade sob a vigilância e proibições decretadas pelo Estado de Sítio
do governo militar. Também me engajei ao movimento dos artistas de Taguatinga com
recitações de poemas durante shows artistas em prol da Eleição Direta, do voto popular
para escolha do Presidente e Governador, antes nomeados pelo Regime Militar. Ainda
em 1984, ingressei no Movimento Negro Unificado – MNU e na Revista Trabalho, segmento
do Partido dos Trabalhadores. Aproximei-me dos “Poetas Marginais” de Brasília e
participei de vários recitais em bares noturnos, eventos, locais públicos. No MNU,
atuei como ator e codireção na montagem de uma peça sobre Robson da Luz, operário
negro que fora torturado e assassinado pela polícia do governo militar, motivado
por racismo.
Em fevereiro de 1985,
regressei ao Piauí, para minha cidade de origem. Participei do Movimento Cultural
de Floriano, junto a esse grupo editamos o programa de vocação literária, cultural
e social, Quintal Aberto, que se manteve ativo de 1985 a 1989. Publicamos algumas
antologias de poemas. Realizamos encontros, promovemos shows, teatro, recitais de
poesia, debates políticos, campanhas de preservação do meio ambiente, de florestamento
‘da beira-rio’ do Rio Parnaíba. Em 1986, publiquei o meu terceiro livro de poesia,
Poemartelos: o ciclo do ferro. Em 1990, transferi-me para Teresina. Neste ano, publiquei
uma série de oito artigos sobre a poesia de Torquato Neto. Além de vários artigos
sobre a representação do negro e preconceito racial na obra de autores como Aluísio
de Azevedo, Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa, resultantes de ensaios
escritos durante a Especialização em Literatura Brasileira, realizada no PREPES/PUC/BH.
Foi também em 1990,
que me vieram as ideias de falar meus poemas com megafone. Aquele fora um ano de
intensa inquietação e crise política brasileira, governo do Presidente Color de
Melo. Foi também um ano de efervescência cultural e intensa criação para mim. Não
havia muito espaço para eu falar os poemas, que me magnetizavam em noites de vigília.
Confeccionei camisas com poemas. De um único poema, fiz uma edição de oitenta camisas,
que se esgotaram rapidamente. Consegui emprestado um “megafone grandão” do Sindicato
dos Bancários e mandei ver. Pintava a cara. Fiz de uma bandeira do Brasil um parangolé.
Revezava a indumentária com uma capa preta, emprestadas dos amigos do teatro: Francílio
e Francisco Pinho. Falava poesia nas praças, avenidas, estações de metrô, rodoviárias,
universidades, escolas, palcos de manifestações políticas, igrejas, parques de diversões,
eventos culturais, bares, da sacada de prédios, de telhados de casas, adros de igreja
etc. Em 1992, durante o EREL, em Fortaleza, na UFC, depois de vários recitais e
duas palestras lotadíssimas, ganhei de presente do DCE e da organização do evento
um megafone menor e mais fácil de manusear. Depois disso, realizei diversas performances
com megafone por diferentes cidades brasileiras, como Teresina, Fortaleza, Campina
Grande, Brasília, Campo Grande, São Paulo, Aracaju, Recife, Floriano, Campo Maior,
entre outras cidades.
P | O que te levou
a compreender a importância da prática poética na sua vida?
EF | Talvez a poesia
tenha sido o meu bem e o meu mal. Ela aponta o percurso da minha vida. Foi e continua
sendo uma das grandes paixões da minha vida. Embora, no momento, eu esteja mais
afeito a escrever fábulas, recontar as histórias que ouvi na infância. A poesia
quase me matou e também me devolveu ao recomeço de tudo. A poesia me ensinou a fazer
a leitura do mundo. A ler os sinais e os significados da vida. A poesia também tem
senso de beleza, justiça e correção de mim mesmo e do Mundo. O poema “Poesia, poesia”
traduz, creio, meu apego, abandono, epifania e retorno à condição inicial de nada-feito,
tudo por fazer, estaca-zero e fragilidade da utopia humana.
EF | Sentia-me sufocado
com a criação intensa de poemas, que vinha escrevendo. Me sentia angustiado com
a ausência de espaços para falar meus poemas. Eu acreditava, que meus poemas e um
megafone poderiam interferir na vida política do Brasil, melhorar a vida das pessoas,
mudar o Mundo. Perguntei a mim mesmo, onde falar aqueles poemas, que a mídia recuava
e se assustava, quando nas manifestações do Trabalhador Sem-terra, sindicatos classistas,
manifestações do movimento negro se arremessava contra as instituições tão duvidosas
quanto à sua licitude? Eu também não tinha noção e ainda não consegui ter de fato
o significado dos meus poemas para o meu tempo.
Hoje, depois de vinte
e quatro anos da primeira edição de O contra-lei, muitas pessoas que foram lideranças
de movimentos sociais, têm confessado pessoalmente para mim – “Como tuas poesias
me davam coragem e ânimo ao te ouvir recitar”. Eu também sempre acreditei que os
meus poemas não só protegiam a mim mesmo como aos meus filhos, minha mulher, meus
familiares e amigos. Há poemas que os tenho como uma infinita oração e invoco-os,
recito-os para afastar e eliminar as interferências das energias negativas e o mal.
Ah, Demetrios, antes que me esqueça, quero repetir o que dissera antes em outras
ocasiões. Uma vez, na RODA DE POESIA & TAMBORES, fizemos o recital para chover
e choveu. Era mês de novembro. Estava muito quente e seco. Então, dissemos – hoje,
vamos fazer uma RODA DE POESIA para chover. E choveu. Reunimos poemas que falavam
de chuva, água, com acompanhamento da alfaia, da timba, de caxixi, agogô, cabaça,
maracás, instrumentos de chiados para evocar a chuva. E choveu. Choveu muito naquela
sexta-feira.
Devo a divulgação
dos meus poemas, sobretudo à publicação nos jornais impressos de Teresina, como
também às rádios de difusão e mesmo à TV, onde costumava falar meus versos etc.
Sou muito grato a jornalistas como Ana Kelma, que encheu páginas do jornal O Dia,
com meus poemas e entrevistas; ao falecido poeta e jornalista RAL; ao Kenard Kruel,
Magalhães, Marcos Vilarino. E ainda aos programas de tv da Maia Veloso, Amadeu e
muito outros, que abriram espaço para mim e a poesia.
Por que pintar o rosto?
Isso vem da minha ligação com a ancestralidade, os meus ancestrais africanos, negros
e indígenas. Pintar o rosto e o corpo me davam força, energia, vigor poético, criatividade,
repente, coragem. Eu estava antenado com o mundo ao meu redor, numa atmosfera de
magia inexplicável. Era uma sensação de ser um “Cavalo” da poesia: “Poesia, poesia
/ Sou o teu Cavalo”. (...). “Todo mundo quer ser Deus/e Deus é Deus”. – Diz O contra-lei.
Eu não era somente eu. Éramos muitos falando por minha boca e da minha boca. Muitas
vozes, milhões de vozes dentro de mim. De dentro de mim para mim e o mundo. Era
uma sensação de estar aqui, perto muito perto dos fatos e acontecimentos, querendo
interferir nas relações nos acontecimentos, mas que também estava no além, captando
energia na ancestralidade. Algo assim, num trânsito de realidades passadas e presentes.
No entanto, estava muito consciente de cada Palavra proferida.
Como era esse O Contra-lei?
Usei esta palavra para seduzir, encantar e traduzir a poeticidade da minha insatisfação
contra a falta de compromisso político. Foi um grito e continua sendo contra a tal
Maldita Corrupção dos maus políticos brasileiros. O fato é que sempre me dediquei
no labor poético, na música, nas imagens e encantamento. Na época, eu era funcionário
público, concursado, um Técnico em Assuntos Educacionais, nível superior, na Delegacia
Regional do MEC, em Teresina e Professor de Literatura na UESPI. Percebi de perto
a prática incorrigível e a prepotência dos representantes do poder. A Lei a serviço
dos gestores e seus aliados políticos. Tal situação, hoje, parece ter se tornado
mais grave ainda. Um câncer progressivo, que se alastrou pelos gabinetes, pastas
e bancadas do governo atual. Portanto, ser O contra-lei significa ser contra a Lei
do poder estabelecido, esse poder que é o mal, a corrupção, a violência, a falta
de compromisso com o bem-estar e os direitos humanos do homem e da mulher. O mais
grave da vida política do nosso país é o cinismo dos políticos brasileiros. O homem
cínico é um incorrigível. Além da gravidade do racismo, do machismo, da homofobia
e a desonestidade de uma grande parcela de brasileiros.
Eu também fui o criador
e a criatura. Não distinguia o poeta do poema. Não separava a obra de mim mesmo.
Eu era as duas coisas ao mesmo tempo, pessoa e protagonista/personagem da minha
criação. Vivi a mesma dimensão do personagem que criei. A minha poesia tinha muito
senso de justiça, engajamento, revolução social, moral e estética. Busquei na ancestralidade,
na minha experiência de ferreiro na oficina do meu pai, nas batidas mágicas e encantatória
do tambor, os ritmos do meu verso cantados com instrumento ou sem instrumento musical.
O martelo na bigorna, o martelo contra o ferro. O ABRACADABRA ABRA ABRACADABRA.
O BATE MARTELO TEM TEM. O TAMBOR TUM TUM. O BIT BIT DIGITANDO BIT etc. Esses sons
e imagens onomatopaicas e mágicos inebriavam a mim e ouvintes, crianças e adultos.
Foi algo que se intensificou com a repetição, com mais de trinta anos de intensa
criação da poesia. Queria ser apenas um poeta e isso foi muito para mim. Tão bom
quanto ter filhos, amar uma mulher, lutar pela preservação do meio ambiente, lutar
a favor dos direitos humanos e contra o racismo e racistas desprezíveis.
P | Gostaria que pudesse
comentar e traçar alguns pontos de aproximação e de afastamento entre os teus livros
O Contra-lei e o América Negra?
EF | O contra-lei
foi uma espécie de furacão da descolonização e desobediência da poesia brasileira
dos anos 1990. Um livro do “aqui-e-agora. Escrito para ser cantado, dançado, recitado,
falado, gritado na rua, em lugares públicos, acompanhado ou não por um instrumento
musical. O contra-lei é um livro de fronteiras, de trânsito e confronto social e
estético, de evocação e invocação da força e magia da Palavra, da Natureza, dos
Orixás, de Deus, do Universo para a poesia. Referindo-se a este livro, dissera Lourdes
Teodoro: “A poesia de Elio Ferreira faz rir as crianças e estremecer os adultos”.
Creio que a evocação da palavra ABRACADABRA abra abracadabra, repetida, fragmentada,
rearticulada, magnetizada, sonorizada juntos aos sons do “tem-tem-tem do MARTELO
contra o ferro, o tum-tum-tum do TAMBOR, o bit bit digitando bit do COMPUTADOR,
a contundência e eloquência dos versos, adicionados à cara pintada de pasta brancaz,
o cabelo rastafari-moicano, o parangolé, a capa preta, tenham sido efetivamente
os principais motivadores das minhas performances, responsáveis pelo encantamento
das crianças, sedução dos jovens e temor dos adultos.
O poema do “Martelo”,
pela sonoridade e poder de sedução e encantamento da própria palavra, marcada por
sons de metais, martelos, bit bit de computador e tambores, pelo som onomatopaico
e a performer dos versos recitados. A palavra abracadabra por si só, na sua origem,
já remete a força e magia da ancestralidade, pois segundo a tradição essa palavra
era evocada pelos sacerdotes e bruxos do bem para afastar os maus presságios, calamidades
e ruínas das aldeias e povoações. “Outros metais”, livro II, do livro O contra-lei,
é um livro de ficção científica, premonitório, que fala de energia solar como energia
do futuro, de naves espaciais movidas a energia solar, de exportação de energia
solar do Piauí para o Japão etc. Mas esse livro tem passado desapercebido. Já o
livro I, O contra-lei é um livro de crítica social e demolidor de valores morais
ocidentais, sobretudo a moral judaico-cristã, se levado ao pé da letra. Também uma
espécie de metapoema que recupera a tradição genesíaca da poesia não apenas por
aproximar a poesia da música, da canção, da tradição oral, mas por ser a própria
música e não se distinguir desta.
O contra-lei cumpriu
sua parte como poesia, que recupera a oralidade dos cantos e canções dos nossos
antepassados africanos e indígenas. Um retorno à matéria prima e sábia da poesia
para o contexto brutal da sociedade contemporânea. Enfim, O Contra-lei parece estar
além da minha compreensão. Há poemas que não recitaria mais, não porque tenha me
arrependido de escrevê-lo, mas porque sou outras experiências como homem depois
que escrevi este livro. À 2ª edição de O Contra-lei & outros poemas (1997).
América Negra (2004)
e América Negra & outros poemas (2014), são livros essencialmente narrativos
e de caráter étnico-racial, de memória ancestral, experiência pessoal e coletiva
da diáspora africana, de narrativas da escravidão e racismo contra o negro no Brasil.
É um livro didático, que conta das guerras de captura, sequestro e exílio do africano
nas Américas à invisibilidade social e o genocídio do negro brasileiro. O contra-lei
e o América Negra se aproximam no quesito do engajamento étnico-racial e social,
na oralidade, embora o América Negra esteja mais próximo do poema prosa, da narrativa
eloquente e didática dos antigos contadores de história da tradição africana. O
contra-lei é um poema para ser cantado, performado e acompanhado por tambores. Um
poema inventivo no poetar. São versos de confronto e destronamento da hegemonia
poética ocidental. O América Negra seria a construção e reterritorialização de cosmogonias,
experiências sociais, histórias, gêneses, narrativas mítico-poéticas da diáspora
africana no Brasil.
P | Por muito tempo
você organizou no centro da cidade, no Clube dos Diários, a Roda de Poesia e Tambores,
de onde veio essa ideia e fala um pouco da dinâmica do evento.
A RODA era realizada
na primeira sexta-feira de cada mês. A dinâmica seguia um rito de abertura. No primeiro
momento, a leitura de poemas autorais pelos próprios autores e textos lidos por
outras pessoas. No segundo momento, os escritores homenageados eram apresentados.
Os poemas recitados e/ou lidos pelo homenageado, por outros poetas, atores; performados,
cantados por músicos, conforme desejo do autor e parcerias da noite. Num terceiro
momento, acontecia o Concurso de Poesia Falada e o Concurso de Poesia Escrita, com
premiação para os primeiros locados. Depois disso, num quarto momento a RODA era
reaberta para os autores e pessoas interessadas para falar seus poemas ou de outrem.
A RODA, às vezes, chegava a durar três horas. Além da presença constante dos tambores,
executados por percursionistas profissionais, havia a participação de músicos e
cantores, que lançavam seus CDs. Acontecia ainda e sempre inúmeros lançamentos de
livros de poesia, conto, romance etc. Houve ocasião em que foram registrados a participação
de quarenta e três autores recitando seus poemas. Entre esses, os jovens poetas:
Demetrios, Thiago E, Quilito, Adriano Lobão, João Henrique, Laiz Romero, Luiz Filho
e outros nomes.
P | Você tem consciência
que a Roda de Poesia ajudou na formação de uma nova geração de poetas e também,
de um público consumidor de poesia, que frequentava o sarau? Como tu vê isso?
EF | Talvez eu não
tenha a verdadeira dimensão do significado da Roda de Poesia & Tambores. Ali
muitos jovens, tiveram a oportunidade de exercitar seus dons e crescer como poeta
e pessoa. Tenho ouvido a declaração de alguns poetas e é partir de suas declarações,
que compreendo a tradução da Roda para eles. O fato é que muitos meninos e meninas,
que participaram da Roda, hoje são compositores de canção, autores de livros de
poemas, contos, romances. Sinto-me muito lisonjeado com esse resultado, com a seara
que foi semeada a partir daquela geração de jovens poetas.
P | Como você vê a
literatura contemporânea feita, no Piauí e no Brasil, por autores negros?
EF | No Brasil, provavelmente
é o que há de mais vigoroso, belo e instigante na literatura brasileira hoje. Por
outro lado, tenho lido pouquíssimos autores brancos nos últimos dez anos. Acho tão
bons os autores e autoras brasileiros e norte-americanos negros e africanos, que
não me sobra mais nenhum tempinho para ler os autores brancos de quaisquer países.
No Piauí, pouquíssimos autores/as se autorreconhecem como negro, mas há autores
importantes como Júlio Romão da Silva, J. Miguel de Matos, Ruimar Batista. Entre
os autores negros brasileiros, considero de rara beleza, vigor e magia os romances:
Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves; Ponciá Vicêncio e Becos da memória, de
Conceição Evaristo; Oboé, de Oswaldo de Camargo; o conto de Conceição Evaristo,
Cuti, Esmeralda Ribeiro, Nei Lopes, Sacolinha; a poesia de Adão Ventura, Carlos
de Assunção, Cristiane Sobral, Edmilson Pereira, Lê Pê Correia, Márcio Barbosa,
Mel Adun, Miriam Alves, Miró, Oliveira Silveira, Salgado Maranhão, Tânia Lima, entre
outras dezenas de contistas e poetas.
P | Podemos dizer
que os escritores e a escrita negra têm ganhado mais visibilidade nos últimos tempos?
Se sim, a que se isso se deve?
EF | Com certeza.
Isso se deve à perseverança e iniciativa de autores e grupos como os Cadernos Negros,
que teve sua primeira edição, o volume 1, em 1978, na cidade de São Paulo. A partir
de então, Os CN vem sendo lançando anualmente e ininterruptamente através da coletânea
de poemas e contos. Um ano se publica poemas e, no outro, contos, além de antologias
comemorativas de contos, poemas e ensaios de crítica afrodescendente. Este ano faz
40 anos da primeira edição dos Cadernos Negros. Este periódico é o divisor de águas,
o toque de assentamento territorial da literatura afro-brasileira ou negra, assegurando
o espaço dos autores negros em continuar escrevendo e publicando seus trabalhos.
O advento da crítica literária com base nos Estudos Culturais, a crítica acadêmica
fomentada pelos núcleos de estudos e pesquisa afrodescendentes e eventos literários
e culturais realizados pelas universidades brasileiras. Além disso as inúmeras organizações
de livros, periódicos virtuais com artigos e ensaios sobre literatura afro-brasileira
e africana publicados anualmente no Brasil.
P | A literatura é
um instrumento importante para desconstruir a histórica única colonialista que foi
criada ao longo dos últimos séculos, como você vê a relação literatura, política
e resistência?
EF | Felizmente a
literatura contemporânea das Américas tem quebrado essa hegemonia doentia e castradora
do cânon ocidental, que concebia como boa literatura somente a obra de filiação
aos padrões literários europeus. Mas isso já foi superado e descolonizado. A literatura
está acima e além de quaisquer conceitos europeus e/ou ocidentais. Há tradições
mais antigas de poetar, contar ou narrar. A exemplo disso a tradição oral africana,
a tradição escrita dos sumérios e de outras civilizações antigas. O reconhecimento
do valor da literatura negra, afrodescendente ou afro-brasileira deve-se, em particular,
à nova crítica literária, que se vem construindo à luz dos Estudos Culturais, da
História, Sociologia, Antropologia e de outras ciências humanas, como também da
semiótica. Quero também chamar atenção para o excepcional trabalho sobre crítica
literário afrodescendente, realizado pelo Prof. Dr. Eduardo de Assis Duarte (UFMG)
através do site: literafro/ufmg. Considero que um povo, quanto mais antigo, tanto
maior sua experiência e mais profunda sua sabedoria e conhecimento. Entre os Bambaras,
povo africano da etnia Yoruba, há um provérbio que encerra esta sentença: “ O que
eu sei,/eu aprendi de alguém/O que se diz hoje, desde sempre existiu”.
P | “A literatura
da diáspora deseja refazer esse retorno por uma porta de entrada e saída, caldeando
a sutura, o elo da memória perdida”. Gostaria que comentasse essa frase, explicando
o que seria a “literatura diaspórica” e a “memória perdida”.
EF | Paul Gilroy fala
do Atlântico Negro, de uma travessia forçada, do sequestro do africano e da diáspora
forçada. A canadense Dionne Brand refere-se ao Mapa da Porta do Não Retorno, de
uma viagem sem volta do africano raptado, sequestrado e exilado nas Américas. No
meu livro Poesia Negra: Solano Trindade e Langston Hughes faço uma releitura desses
autores. Entendo, que a “literatura diaspórica” afrodescendente assenta suas bases
na herança das canções, cantos, contos e narrativas orais de tradição africana,
cujo percurso e dinâmica se faz em espiral. Esse fenômeno é ressignificado na experiência
da diáspora em diálogo com diferentes culturas, constituindo-se na matéria básica
para a criação literária do autor negro. A “porta” a que me refiro é simbólica,
não se realiza do ponto vista material e concreto, mas na reterritorialização da
cultura ancestral de tradição africana, afirmada nas relações étnico-raciais nas
Américas.
P | A literatura africana
ainda é bem desconhecida do leitor brasileiro, que autores(as) você destacaria?
EF | Destaco poetas
como Agostinho Neto, José Craveirinha, Noêmia de Sousa, Conceição Lima, Ana Paula
Tavares; no romance, Chimamanda Ngozi Adichi, Luandino Vieira, Mia Couto, Ondjak,
Paulina Chiziane, Pepetela, entre outros.
P | Na tese de doutorado,
você trabalhou com os escritores Solano
Trindade e Langston Hughes, comenta como se deu esse trabalho e quais tuas inquietações
centrais?
A tese ficara hibernando durante onze anos. Mas em novembro de
2017, após inúmeras revisões e recuos, decidi num impulso, às vésperas do ÁFRICA
BRASIL 2017, publicar o livro com o título de Poesia Negra: Solano Trindade e Langston
Hughes. Curitiba: Appris, 2017. 306 p.; 23 cm. Modéstia parte, o livro ficou elegante,
bonitão. Escrevi-o em quatro anos e meio. Uma vida, não é mesmo? Falei de muitos
poetas negros, iniciando por Caldas Barbosa, Luiz Gama, Gonçalves Dias, Castro Alves,
Cruz e Sousa. E de poetisas contemporâneas, como Esmeralda Ribeiro, Lourdes Teodoro,
Tânia Lima. Fiz ainda a leitura do poeta afro-cubano Nicolás Guillén e do afro-estadunidense
Countee Cullen. Encantei-me com a mito-poética dos Orixás do Candomblé, com as narrativas
orais e cantos de matriz africana etc. Fiz um estudo intenso da poesia de Solano
Trindade e Langston Hughes. Traduzi quatorze poemas de Langston Hughes, poeta negro
dos EUA. Dos poemas traduzidos, cinco dos quais foram traduzidos unicamente por
mim; e os outros nove, contei com a parceria do amigo e professor de inglês Antônio
de Sampaio.
O livro foi um reencontro com o meu passado e minha ancestralidade.
Concomitante à tese, escrevi os dez cantos do poema “América negra”. Um reencontro
com a história da escravidão, a memória dos meus antepassados, meus pais, familiares
e comigo mesmo. Aprendi sobre a História da África e da escravidão. Aprendi a origem
do primeiro Homem na África, o canto, a força e magia da Palavra. Frequentei os
terreiros de Candomblé, conversei e ouvi os mais velhos. Evoquei as forças dos meus
pais já falecidos e meus avós para me dar força na empreitada para realizar a tese.
Enfim, o livro é também um livro de memórias. Uma viagem pelos caminhos da poesia
no diálogo com as canções, cantos, performances, danças-lutas, a Capoeira. Comparei
as performances dos capoeiristas e a dos jazzmen, bluesmen, suas canções e vida
social. Transitei pela cultura negra da África, Brasil, Cuba, Piauí, Pernambuco,
Maranhão etc.
P | Fala um pouco sobre a poesia
negra feita nas Américas, existem elementos novos que são desconhecidos e que precisariam
ser mais difundidos?
EF | Não precisamos ficar limitados
aos padrões europeus para se fazer boa poesia. Felizmente, estamos nos descolonizando
da hegemonia cultural do invasor branco. Estamos gostando mais de nós mesmos, nos
autorreconhecendo como pessoas capazes de fazer cultura de valor. Sem aquele tal
“complexo do vira-lata”, como dissera Nelson Rodrigues. Parece que estamos pouco
a pouco descobrindo cura de uma doença gravíssima: a “psicopatologia” ou auto-rejeição,
discutida por Frantz Fanon, no livro Pele negra, máscaras brancas.
Certamente, há excelentes poetas negros nas Américas. Há certas
dificuldades ao acesso desses autores e suas obras. No Brasil, além dos afro-brasileiros
já citados, que são centenas, é importante lembrar o nome do mineiro Adão Ventura.
Também já falei do cubano Nicolás Guillén; Aimé Césaire, martinicano; Léon G. Damas,
guianense; Claude Mckay, jamaicano; Countee Cullen, Langston Hughes, Paul Laurence
Dunbar. No entanto, há a barreira da língua, o que dificulta o acesso das obras
pelos leitores de língua portuguesa. Infelizmente, existem poucas obras desses autores
traduzidas para a nossa língua. As editoras brasileiras e as academias ainda nutrem
a segregação intelectual, a indiferença, a discriminação silenciosa e dissimulada,
que tornam autores e autoras negros invisíveis na cena literária.
P | Desde a defesa da tese para os
dias de hoje, quais tem sido os desdobramentos das tuas pesquisas?
EF | Publiquei quase
uma centena de artigos sobre literatura e cultura afrodescendente. Por último, publiquei
Poesia Negra: Solano Trindade e Langston Hughes, 2017, Curitiba, Apris, 2017, 306
p., resultante da minha tese de doutorado, concluída em 2006. O livro é um misto
de poesia, ensaios críticos, teorias, memórias, narrativas autobiográficas e coletivas,
mitologias, cosmogonias, jazz, blues, capoeira, baião, rap. Há também a tradução
de quatorze poemas do poeta afro-norte-americano Langston Hughes, um dos principais
nomes do Renascimento Negro e da poesia dos EUA do século XX. Lamentavelmente, ainda
pouco conhecido no Brasil. Com os livros Poesia Negra e Identidade e Solidariedade
na Literatura do Negro Brasileiro (2005), completo o meu percurso de ensaísta.
Nos últimos anos, tenho me dedicado, sobretudo, à escrita dos
escravos, às narrativas de escravidão precursora da literatura afrodescendente e
afro-brasileira. E tem sido muito apaixonante e frutífero. Pesquiso e escrevo sobre
a Carta da escrava ‘Esperança Garcia’ de Nazaré do Piauí, a partir do Mestrado,
1998-2001. Publiquei em livro o primeiro artigo sobre a Carta de Esperança, em 2004.
Daí para cá, foram mais dez artigos publicados e mais ou menos trinta palestras
sobre a epístola citada em universidades e locais de cultura. Coordenei simpósio
de literatura e cultura afrodescendente e proferi palestra sobre a Carta de Esperança,
em Havard, EUA, durante a ACLA, 2016. No próximo dia 31 de março, vou proferir mais
uma conferência sobre a Carta, na Universidade da Califórnia (UCLA), Estados Unidos,
no congresso da American Comparative Literature Association – ACLA.
Escrevi alguns artigos sobre a dramaturgia de Júlio Romão da
Silva e, em parceria com o dramaturgo piauiense, Ací Campelo, organizamos, editamos
e publicamos uma antologia, que reúne sete livros de Júlio Romão, artigos e ensaios
de crítica literária sobre a obra, entrevistas e iconografia do autor. Tenho orientado
estudos, pesquisas e escrito sobre a poesia, diários, crônicas e autobiografias
de outros autores negros do Piauí, como Nogueira Tapety e J. Miguel de Matos; além
da orientação de estudos de autores negros do Brasil, Américas e África. No entanto,
nos dez anos tenho me dedicado com mais ao estudo das narrativas de escravidão,
escritas por escravos do Brasil, Cuba e Estados Unidos.
As pesquisas avançaram bastante, mas o Poesia Negra continua
atual. Minha abordagem é conceitual e, sobretudo, inclusiva e antecipa de forma
pioneira vários nomes na lista dos autores afro-brasileiros. O meu diálogo com os
poetas, romancistas, contistas, ensaístas contemporâneos da afrodescendência têm
me favorecido muito, além da minha contínua participação e publicação de poemas
e ensaios nos Cadernos Negros, em coletâneas da crítica afrodescendente atual. A
edição bienal do ÁFRICA BRASIL e a editoração que venho realizando de vários volumes
do Encontro é outro trunfo, que também põe a UESPI, no ranque dos estudos e pesquisa
de excelência relacionada à literatura afrodescendente e afro-brasileira no Brasil.
P | E o África Brasil,
como é realizar um evento de tamanha magnitude em uma Universidade Estadual, situada
no Piauí?
EF | O ÁFRICA BRASIL
é uma loucura. Graças a Olorum, os Orixás e a boa vontade dos professores, alunos,
funcionários, a reitoria da UESPI e apoios da FAPEPI, SEMEC, PARFOR, pessoas físicas
e outros colaboradores. Temos realizado um dos maiores encontros internacionais
do Brasil sobre literatura, história e cultura afrodescendente e africana, a partir
de 2017, também indígena. Fizemos O ÁFRICA BRASIL 2017 - V Encontro Internacional
de Literaturas, Histórias e Culturas Afro-Brasileiras e Africanas: Narrativas e
Cidadanias. No V Encontro, incluímos o I Encontro Internacional de Culturas Afrodescendente
e Indígena da América Latina e Caribe, este em parceria com a ADHILAC, que mais
uma parceria de estratégia de intercâmbio de conhecimento acadêmico, que propriamente
econômico. O fato é que os recursos financeiros dos órgãos públicos são pouquíssimos.
O Encontro é bienal.
Imaginem a correria, em 2017, não fomos contemplados pelo Edital da CAPES, de auxílio
financeiro a eventos. No evento anterior, o ÁFRICA BRASIL 2015, juntamente com o
Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro – NEPA/UESPI, sob minha liderança e o apoio de
professores e bolsistas, havíamos publicado no site do NEPA: os Anais e o E-book
do IV Encontro, somando-se um total de 116 artigos e 1.300 p., com a publicação
de artigos dos participantes doutores, mestres, mestrandos, bolsistas de PIBIC,
oriundos de 45 universidades brasileiras e estrangeiras, elevando a pontuação do
Mestrado Acadêmico em Letras, ante a avaliação da CAPES. Vai entender isso. Vai
entender o Brasil.
O argumento foi que
havia projetos mais importantes do que O ÁFRICA BRASIL 2017. Não abaixamos a cabeça
e fizemos o maior evento acadêmico da UESPI e um dos maiores de afrodescendência,
africanidade e etnia do Brasil, com aproximadamente quatrocentos palestrantes. O
melhor de tudo isso é que os convidados, ficam querendo voltar outra vez e fazem
a boa divulgação de boca a boca, de e-mail em e-mail, no Face etc. Mas também fica
um “amargozinho” de algumas contas/débitos a pagar. Às vezes dá vontade de não fazer
nunca mais. E tudo bem, a gente vai fazendo de teimoso, enquanto for possível, porque
dizem que “tudo vale a pena”. Graças a Deus!
EF | O estudo é muito
intenso e produtivo, mas precisa ser mais criativo. Penso, que os estudos acadêmicos
estão valorizando demais as teorias e esquecendo a obra literária em si. Em especial,
nos cursos de Pós-Graduação. Sempre fui muito crítico a esse tipo de comportamento
na universidade, desde o meu Mestrado e o Doutorado. No entanto, julgo ser de suma
importância o estudo crítico na universidade. Pensem, o que foi a crítica literária,
nos anos 1990 e em 2018? Tínhamos de repetir os estudos e pesquisas realizados nos
grandes centros acadêmicos do Sudeste e Sul do país. Hoje, essas fronteiras estão
sendo desfeitas em algumas áreas do conhecimento. O que se produz no Piauí, na Paraíba,
Recife, na área de crítica literária e cultura afrodescendente, é também publicado
em antologias, periódicos ou coletâneas de artigos da UNICAMPI, USP, UFRJ, UFMG
etc. A exemplo dessa mudança, no Mestrado Acadêmico em Letras da UESPI, temos supervisionado
o Pós-Doutoramento em literatura e cultura afrodescendente de pesquisadores/as oriundos
do Nordeste, Sudeste e Sul do país.
P | Os últimos ÁFRICA BRASIL tem aberto espaço para os indígenas no Piauí e promovido
uma importante e ainda pouco explorada conexão entre as temáticas afro-brasileira
e indígena. Conta um pouco da história do contato do NEPA – Núcleo de Estudos e
Pesquisas Afro na UESP, com o movimento indígena piauiense e quais os desafios a
serem enfrentados para intensificar esse diálogo.
EF | A pesquisa na área de cultura indígena na UESPI está se organizando pouco
a pouco para atingirmos no futuro a excelência. O estudo inicial da UESPI sobre
cultura indígena, realizada pelo próprio sujeito indígena, deu-se através de um
projeto de pesquisa do PIBIC/CNPq. Parece-me que em 2010/2011, quando orientei a
indígena Alíria Wuiuira, da nação Guajajara, Pajeú, MA. O tema da pesquisa se desenvolveu
a partir do estudo das canções e rito de passagem do Moqueado, ritual de passagem
de menina para moça da nação Guajajara. A pesquisa obteve excelente resultado. Em
2012, tornei a orientá-la na Monografia de TCC do Curso de Graduação em Letras,
com um estudo sobre as narrativas orais Guajajara, as fábulas contadas pelos velhos
da aldeia, contadores de história. Esta pesquisa também obteve êxito. No ano seguinte,
Alíria ingressou no Mestrado da UFJF, com o projeto do Moqueado. Há dois anos, ingressou
no Doutorado, com o projeto de pesquisa das narrativas orais Guajajara.
Retomando a tua indagação,
Demetrios, hoje há uma certa vocação do Governo do Piauí com a questão indígena
e demarcação do território indígena. Isso é o que se tem observado em alguns encontros
dos representantes indígenas, técnicos, professores e assessores do governo estadual.
Na UESPI, há uma equipe de professores empenhados no apoio à execução de ações de
interesse dos povos originários do Piauí. Nas edições anteriores do ÁFRICA BRASIL,
a partir de 2011, mantivemos uma Mesa Redonda sobre história e cultura indígena
em todos os Encontros. Mas não íamos além disso. No ÁFRICA BRASIL 2015, prometi
na solenidade de abertura, que na edição de 2017, seria incluso o projeto de cultura
indígena no ÁFRICA BRASIL 2017. Fizemos uma parceria com a ADHILAC – Associação
dos Historiadores da América Latina e Caribe, sob a Presidência da Secção no Brasil,
do Prof. Dr. Sebastião Lopes, operacionalizamos o I Encontro Internacional de Cultura
Afrodescendente e Indígena da América Latina e Caribe. Tivemos uma presença significativa
de indígenas das nações piauienses e indígenas de formação acadêmicas, mestres e
doutores. Foi uma troca de experiência muito valiosa para eles, isso ouvimos deles
próprios e dos representantes de outros Estados.
P | Uma das grandes demandas dos movimentos negro e indígena é a plena aplicação
das leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que preveem o ensino de história e cultura afro-brasileira
e indígena nas escolas. Como você acha que essas leis podem ser aplicadas com mais
eficácia?
EF | O que se tem feito é ainda muito pouco diante a realidade dos estudantes
e da formação acadêmica da grande maioria dos professores. Creio que uma educação
verdadeira e eficiente se inicia pela formação e qualificação dos professores. Sem
isso, nada feito, nada pode surtir efeitos. Falta maior vontade na execução das
políticas públicas de educação. Para que a aplicação das leis mencionadas tenha
efeito efetivo, a universidade tem que se empenhar na formação de professores nessa
área do conhecimento. Além disso realizar concurso público para professores de literatura,
história e cultura afro-brasileira, africana e indígena. A quantidade de horas dedicadas
ao ensino de afro-descendência e indígena é totalmente ineficiente, revela a fala
de compromisso. O que fazer por exemplo, com 30 h/a para ensinar todo o conteúdo
de literatura afro-brasileira e cultura indígena num Curso de Letras? Ainda existe
uma forte resistência por parte da maioria dos professores. Isso demonstra o quanto
o brasileiro é racista e dissimula o seu racismo.
Isso, quando existe
a disciplina no histórico curricular da universidade ou escola.
P | Recentemente (12/01)
Donald Trump berrou o seguinte: “Para que queremos a haitianos aqui? Para que queremos
toda esta gente da África aqui? Por que temos todas essas pessoas de países (que
são um) buraco de merda vindo aqui?” (The Washington Post, 11/01/2018). Para você,
qual o impacto geopolítico/cultural que essa fala pode provocar? Que sintomas tal
declaração revela ao mundo?
EF | Em se tratando
de política, entendo que Donald Trump é o de pior poderia ter acontecido para o
diálogo inter-étnico e político nos Estados Unidos e entre esse país e o mundo.
Os cidadãos norte-americanos educados, não racistas devem se sentirem envergonhados
com o comportamento, a falta de polidez e desrespeito do Presidente ante os povos
africanos. O líder de uma nação, que excita o ódio racial contra seus anfitriões,
não pode ser uma pessoa digna de respeito e atenção. Embora esses povos sejam refugiados.
Trump é uma aberração política. Um chefe incapaz de inspirar confiança e tranquilidade
ao seu povo. Contudo, quando o racismo declara o racismo, temos maiores possibilidades
de combatê-los e nos solidarizarmos diante as práticas racistas.
No Brasil, essa questão
muito complicada, porque vivemos num país extremamente racista, e extremamente difícil
de combater esse racismo e o racista dissimulado, que se esconde sob uma máscara
criminosa e hedionda. Veja o que aconteceu a Marielle Franco. Um crime hediondo
de dimensões racista e política, cujo criminoso representa o Estado brasileiro,
o caos e o mar de lama em que vive o país e as instituições públicas. Não basta
prender ou descobrir o executor do crime hediondo, ou seja, o policial, miliciano
ou pistoleiro, que disparou contra Marielle e Anderson, mas a instituição racista
e criminosa que está por trás disso tudo. Este crime qualificado e cruel atinge
de forma violenta a dignidade dos brasileiros negros, indígenas, brancos, asiáticos,
que tenham senso responsabilidade e respeitam aos direitos humanos. O assassinato
de Marielle Franco e Anderson extrapolou os limites de tolerância do brasileiro.
Tornou-se uma ameaça para todos nós, ao nosso direito de ir vir, de pensamos o nosso
país como Estado Democrático ou coisa parecida. Enfim, sinto vergonha de ter como
Presidente do meu país, o senhor Michel Temmer.
P | Sabemos que o
continente africano ainda é marcado por muitos estereótipos e preconceitos, bem
como a “grande” imprensa oculta suas potencialidades, mascara os conflitos e demandas
sociais que deveria ser de interesse mundial. Porque o ocidente se comove com ataques
terroristas na Europa e ignora as tragédias vividas pelo povo africano? Podemos
dizer que esse silêncio é real ou algo está mudando sobre como enxergamos a África?
EF | Lamentamos a
indiferença e o ódio racial dos brancos contra o africano. Se algum povo tem motivo
para odiar o branco – este é o negro e não o contrário. Depois da invasão da África,
do sequestro, da travessia do Atlântico no porão do negreiro, da exploração da mão-de-obra
do africano e descendentes escravizados na diáspora. Difícil de compreender a atitude
do ocidente perante episódios tão graves de violação dos direitos humanos. Não sei
até que ponto, esse pensamento está mudando. A África foi espoliada pelo ocidente.
Isso tem resultado na migração de uma grade população na direção da Europa. O fato
é que o racismo mudou de máscara, mas não mudou de cara. O silêncio é a pior demonstração
de indiferença, um gesto de consentir a atrocidade e tornar um povo invisível.
NOTA
Entrevista originalmente
publicada na revista Acrobata # 8, em
setembro de 2018, aqui reproduzida como forma de uma homenagem nossa a Elio Ferreira
(1955-2024), falecido em abril passado.
ARISTIDES OLIVEIRA. Professor da UFPI e coeditor da revista Acrobata. Pesquisa temas ligados a música. Publicou os livros Vozes do Punk (2023) e Outsider: Asseclas na cena rock em Teresina (2021), dentre outros.
DEMETRIOS GALVÃO. Professor da UNINASSAU, poeta e coeditor da revista Acrobata. Publicou os livros de poemas Insólito, Bifurcações, O Avesso da Lâmpada e Reabitar.
JOÃO PAULO PEIXOTO COSTA. Professor de história do IFPI. Compõe a coordenação do Projeto VIP – Vilas Indígenas Pombalinas. É membro da Sociedade de Estudos do Brasil Oitocentista (SEBO) da Universidade Federal do Ceará. Publicou o livro Disciplina e invenção: civilização e cotidiano indígena no Ceará (1812-1820).
JAROSLAV ŠERÝCH (República Tcheca, 1928-2014). Estudou na Escola Superior da Indústria da Arte em Jablonec nad Nisou, na Escola de Artes Aplicadas de Turnov e na Academia de Belas Artes de Praga. Dedicou-se à gráfica livre, pintura, mosaicos, criação de livros, ilustrações, bibliofilia e também criou placas de cobre em relevo. Na década de 1960, ele aderiu à abstração expressiva. Logo que a deixou, voltou a acreditar na nitidez da forma e do enredo da obra. Trabalha atualmente com uma metáfora artística cujo ponto de partida reside em uma ampla gama de imagens firmemente apoiadas na liberdade criativa. Em seus desenhos, pinturas e obra gráfica, compõe imagens simbólicas baseadas nos princípios da ética cristã, cuja ideia é a superfície combinada da humildade humana, da empatia e da crença na persistência da esperança. Do ponto de vista do método criativo, é a soma da linha sensível do desenho, da morfologia dinâmica e da cor enfatizada. As obras apresentam uma estilização figurativa descontraída, de forma alongada, e possuem uma estrutura visual distinta.
Agulha Revista de Cultura
Número 251 | maio de 2024
Artista convidado: Jaroslav Šerých (República Tcheca, 1928-2014)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2024
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