11. Fevereiro de 2012, Casa das
Rosas
Por volta de 1990, na
breve e produtiva gestão de Fernando Morais à frente da Secretaria de Estado da
Cultura, foi criada a Oficina da Palavra na Casa Mário de Andrade (aquela onde ele
morou, à Rua Lopes Chaves 546, na Barra Funda). Dirigida por Anna Maria Martins
e Roniwalter Jatobá, oferecia, além das oficinas, cursos, palestras e lançamentos
de livros. Tornou-se um ponto de encontro de pessoas ligadas à literatura, e um
modelo seguido por outras instituições e lugares. Nela, formaram-se grupos e cooperativas
editoriais; constituíram-se amizades; vocações consolidaram-se; novos autores encontraram
sua identidade literária. Contudo, sofreu do grande mal que afeta administrações
culturais públicas brasileiras: a descontinuidade. Funciona, porém em ritmo e escala
muito menor, ao sabor de expansões, notadamente durante a também breve e produtiva
gestão de Ricardo Ohtake, e contrações, ao longo de duas décadas, do projeto de
manutenção de oficinas culturais pelo governo estadual.
A partir de 2004 essa
função passou a ser exercida, principalmente, mas não exclusivamente (São Paulo
é grande), pela Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura,
com o poeta Frederico Barbosa como seu diretor ou superintendente. Desde a também
breve e produtiva gestão de João Batista de Andrade, esse e outros equipamentos
são administrados por organizações não-governamentais contratadas pela Secretaria
de Estado da Cultura, assim atendendo às recomendações da UNESCO em favor da descentralização
na cultura. O modelo de gestão resistiu bem a mudanças de governo, garantindo a
continuidade, condição primeira para qualquer iniciativa cultural dar certo.
A Casa das Rosas foi
agregada à Secretaria de Cultura em 1996. Por oito anos, dirigida pelo artista plástico
José Roberto Aguilar e utilizada principalmente para manifestações no campo das
artes visuais. Entre outras boas iniciativas, Aguilar montou um acervo digital –
gostaria de saber onde foi parar, entre outros motivos por incluir a gravação de
um encontro hoje impossível com dois de meus prefaciadores, Marcos Faerman e Roberto
Piva. Diante da opção entre os dois projetos, aquele conduzido por Aguilar e o atual,
minha resposta seria: ambos. Seu trabalho poderia muito bem ter prosseguido em outro
espaço: no ex-DOPS, nos sub-utilizados MIS ou Paço das Artes, por exemplo.
Se a Casa das Rosas
se limitasse, desde 2004, quando inaugurada pela então secretária Claudia Costin,
à preservação do acervo e da memória de Haroldo de Campos e à difusão da poesia
concreta, já cumpriria seu propósito. Contudo, Frederico Barbosa e colaboradores
optaram pela ampliação desse escopo. Retomaram, em versão melhorada, o que foi feito
na Casa Mário de Andrade (favorecidos, é claro, pela melhor infraestrutura, pela
localização, pelo valor paisagístico do lugar). A escolha de uma programação diversificada,
atendendo a demandas de expressão de alguns e formação complementar de muitos, é
coerente com atitudes do próprio Haroldo de Campos. Apesar de criticar fortemente
a poesia concreta, meu relacionamento com ele era cordial; atendeu a convites para
participar de eventos que organizei; elogiou, justamente, o pluralismo de programas
de poesia sob minha responsabilidade.
Posso testemunhar a
efetividade da programação da Casa das Rosas: cursos que dei lá, sempre com inscrições
esgotadas e salas lotadas por um público atento e qualificado. Nas outras salas,
mais cursos; e os saraus e outros eventos literários. Uma das contribuições: estimular
récitas de poesia. Constatávamos que no Rio de Janeiro havia 14 saraus por mês;
hoje, conforme o levantamento de Rui Mascarenhas, um dos colaboradores de Frederico
Barbosa, em São Paulo são 40.
Principalmente, tornou-se
ponto de encontro, alternativa ao pouco que a metrópole oferece, além do lazer nos
shoppings. Talvez pessoas se conhecerem e amizades se formarem por interesses em
comum valha tanto, no presente contexto, quanto a transmissão de informação.
Programações e políticas
culturais públicas devem estar sujeitas à permanente discussão. A crítica pode gerar
reformulações produtivas. Contudo, o artigo intitulado “Sibila avalia a Casa das
Rosas”, de autoria de Luis Dolhnikoff, encontrável em http://www.sibila.com.br/index.php/mix/1967-sibila-avalia-a-casa-das-rosasespaco-haroldo-de-campos-, periódico digital
editado por Regis Bonvicino e Charles Bernstein, pertence a outra categoria. Não
é nem jornalismo, nem crítica, nem reflexão. Não é nada, exceto uma manifestação
de irresponsabilidade, provincianismo e falta de escrúpulos. Abre com citações sobre
a dificuldade de fazer avaliações e a necessidade de critérios. Contudo, o que vem
a seguir não apresenta critérios e não cita nenhum dado quantitativo – verbas, número
de atividades, quantidade de freqüentadores, qualquer outro dos “dados objetivos
fundamentais gerados pela própria instituição”; nenhuma das informações que são
públicas e qualquer pesquisador pode pedir á própria Casa das Rosas.
A responsabilidade pela
maledicência provinciana é não só de Luis Dolhnikoff, mas dos editores de Sibila,
os poetas Regis Bonvicino e Charles Bernstein – em primeira instância de Bonvicino,
pois Bernstein reside no exterior, é professor em universidades norte-americanas
e certamente está aí para figurar no expediente (o co-editor anterior, Alcir Pécora,
pelo visto afastou-se).
Dolhnikoff também registra
os “poetas Ademir Assunção, Affonso Romano de Sant’Anna, Carlito Azevedo, Carlos
Felipe Moisés, Claudio Daniel, Claudio Willer, Donny Correia, Edson Cruz, Eunice
Arruda, Flavio Amoreira, Frederico Barbosa, Luiz Roberto Guedes, Marcelo Ariel,
Marcelo Tápia, Márcio-André, Micheliny Verunschk, Nicolas Behr, Ricardo Silvestrin,
Rodrigo Petronio e Virna Teixeira.” Diz: “ Uma lista bastante representativa dos
convidados habituais da casa: alguns nomes de inquestionável mérito em meio a vários
nomes de méritos no mínimo questionáveis.” Como assim? E eu, estou aonde? Na minoria
do mérito inquestionável, na maioria do mérito questionável, ou em algum limbo intermediário?
E os outros? Seja minimamente claro, Dolhnikoff: você quer uma plêiade? Então, diga
quem deveria compô-la.
Ah, sim – ele diz. Reclama
de Ferreira Gullar não constar na programação. Nas entrelinhas – sempre a insinuação,
sempre o mesmo jornalismo amarelo – remete à mais recente ou alguma outra das polêmicas
de Gullar com Augusto de Campos e outros representantes da poesia concreta. Ah,
que maldade…! Que farpa certeira…! Nem a presença de outros críticos notórios da
poesia concreta na programação a desviariam do alvo! Talvez nem mesmo eu informar
que uma das ocasiões em que divergi de Frederico Barbosa sobre criação poética foi
em um programa de TV – da TV SESC-SENAC – conduzido, justamente, por um amistoso
Ferreira Gullar. Dolhnikoff deve achar que todo mundo é tão tacanho quanto ele;
por isso, não concebe tais encontros de divergentes.
Há bobagens de calibre
mais pesado em “Sibila avalia a Casa das Rosas”. Reclama que o Bloomsday perdeu
a graça ao transferir-se do Finnegan’s Pub para a Casa das Rosas – ora, então que
vá reclamar sua quota de Guiness com Munira Mutran, Marcelo Tápia ou quem estiver
atualmente organizando o Bloomsday.
Sabem qual o contraponto
ou paradigma proposto por Dolhnikoff, para avaliar a Casa das Rosas? A FLIP! Sim,
é isso mesmo: a Festa Literária de Paraty! Tenho, justamente, reclamado de “flipização”
da crítica e da vida literária, da sua transformação em desfile mundano, e defendido
as atividades regulares, a exemplo daquelas promovidas pela Casa das Rosas. Frederico
Barbosa, se consultado, talvez observasse que organizaria, sim, um encontro literário
internacional – bastaria lhe colocarem à disposição os recursos de que a FLIP dispõe.
Ou então, diria que não é o Secretário de Cultura. Por sua vez, se questionado,
Andrea Matarazzo informaria que a Secretaria de Estado da Cultura promove, sim,
um encontro literário, o Festival da Mantiqueira em São Francisco Xavier. E que
outras demandas culturais – publicação de livros, por exemplo – são atendidas por
outros programas, como os editais do PROAC.
Há mais confusões entre
as partes e o todo, além de outros absurdos, no texto de Dolhnikoff, esse sermão
encomendado – como mostra o próprio título da matéria, “Sibila avalia …”, irresponsavelmente
posto em circulação por Bonvicino. Mas chega. Tenho um limite para me ocupar de
bobagens, para desperdiçar mais ironias a propósito dessa idéia de converter a Casa
das Rosas em um híbrido de FLIP e Finnegan’s Pub, uma intragável mistura de caipirinha
de praia e cerveja preta de pub.
Lembro, para completar,
uma visita que fiz à cidade de Mococa, convidado para dar palestra, em 1987. A vida
literária de Mococa era centrada em dois poetas locais: um deles concretista, o
outro tradicionalista. Odiavam-se, não se falavam. Nunca ninguém soube deles fora
dos limites de Mococa. Não há outras notícias sobre a vida literária de Mococa.
Luis Dolhnikoff e Regis
Bonvicino estão em Mococa, como era há um quarto de século. Ou em qualquer outra
metáfora – a exemplo daquela no poema de Drummond sobre política literária – dos
infernos sartreanos em que alguns são emparedados pela inveja, ressentimento, mediocridade
e baixo caráter.
Foi criado no Facebook,
pelo poeta Rubens Zárate, um grupo intitulado ‘Clube Willeriano do Crime’ – alusão
a um verso meu, epígrafe do grupo: “O crime é a mais bela carícia aos ouvidos humanos’.
Já tem 260 participantes. Vai aumentar. Conteúdo: poemas, imagens (agora, uma série
de Bosch), links, informação interessante. Bastante, é claro, sobre beat e surrealismo.
Zárate postou duas fotos
de Allen Ginsberg e Peter Orlowsky, inteiramente nus. Au naturel. Em português
claro: de pau pra fora. Foram apagadas, deletadas por censores do Facebook. Política
da casa.
Por isso, decidimos
que 12 de março será o dia contra a censura no Facebook.
Ação: postar a maior
quantidade de fotos de nus possível.
A poeta Elizabeth Lorenzotti
publicou o link de um manual de censura do Facebook – parece que um grupo de assalariados,
no Marrocos, examina páginas e corta o que não se enquadra.
Inumeráveis as fotos
de Ginsberg desse jeito: tinha mania de nudez, tirava a roupa em público, protagonizou
episódios famosos. Atitude política, é claro. E religiosa (adiante, falarei sobre
isso). Em seu Indian Journals,
foto de um saddhu,
devoto mendicante, sem nada a não ser seu corpo. Hilário o episódio de Henry Michaux
ir conhecê-lo no Beat Hotel, ser recebido por um Ginsberg peladão, cortando as unhas
dos pés. As vezes em que tirou a roupa em récitas de poesia e outros eventos – isso
e tópicos relacionados, comento no Geração
Beat.
Sei o que vou mandar
dia 12: um Shiva ictifálico, tem nas imagens de Konarak e também, me parece, de
Angkor Wat, o deus de pernas cruzadas, o pau ereto chegando até o queixo. E imagens
dos murais de Pompéia, decoração romana – salas de visitas de mansões de famílias
e não bordéis como pensaram os primeiros a descobri-las – com toda sorte de posições
e variações sexuais. Haveria coisa melhor– alguém passaria o scanner em Les larmes d’Eros de Georges
Bataille? Literatura! Links com páginas do Lori Lamby de Hilda, de Henry Miller,
de …
Tenho observações adicionais
sobre a inominável cretinice de quererem controlar o que podemos ver ou não, assim
restaurando o reinado da hipocrisia.
A censura foi abolida
no Brasil pela Constituição de 1988. Nos Estados Unidos, desistiram em 1966, após
a batalha judicial que culminou na liberação de Naked Lunch, Almoço Nu, de William Burroughs: se podia aquilo,
raciocinaram, então não havia motivo para proibir o que fosse. Até pouco antes,
não entravam –Correios agindo como órgão de censura – Henry Miller, D. H. Lawrence,
James Joyce, entre outros. Nessa época liberaram oficialmente o Marquês de Sade
na França.
Mas sempre, insisto,
sempre há alguém tentando fazer a censura voltar pela porta dos fundos. Uma de suas
modalidades: censura judicial, a pretexto de proteção de biografados. Isso, já denunciei
energicamente – o que escrevi está, entre outros lugares, em www.revistabula.com/posts/arquivo/em-defesa-das-biografias.
Defesa da liberdade
de expressão e repúdio à censura compõem o item 1 das conclusões do recente Congresso
de Escritores da UBE, postadas aqui neste blog. Volta e meia também censuram artes
visuais. O famoso caso da exposição de Robert Mapplethorpe. Aqui, de Nelson Leirner
– e tantos outros. E cinema: pois não é que, logo após a aprovação da Constituição
de 1988, tiraram do ar Je vous
salue Marie de Godard?
O argumento mais comum
em favor da censura: proteger crianças, menores, que são tutelados. Pois deveriam
protegê-las da hipocrisia, isso sim. Faria bem saberem que o corpo humano é assim,
que não é a cegonha que faz. Prejudicial é o recalque. E, atualmente, tudo está
exposto, Saló de
Pasolini na TV a cabo etc: mundo ambivalente.
Outro argumento é jurídico:
não poderia o que é proibido por lei: pedofilia, estupro. Claro. Tarados, perpetradores
de violências, seu lugar é dentro de alguma instituição. Mas há confusões entre
o fato e sua representação. Observo isso toda vez que dou palestra sobre Lori Lamby
de Hilda: na platéia, alguém respira ou faz cara de alívio quando chego ao final:
“Ah…! Então a menininha estava inventando todas essas histórias! Ela não fez nada
disso … !” E assim alguém cai na armadilha que Hilda, genialmente, preparou para
o realismo ingênuo: como se fizesse diferença, como se, independentemente do desfecho
da narrativa, tudo não pertencesse ao mundo da escrita, e não dos fatos.
Ah, sim, os fatos: quanto
a esses, basta fazer de conta que não existem… – só não passar pela praia de Iracema
em Fortaleza em uma noite movimentada, nem reparar em todos aqueles hotelzinhos
mais afastados – e em tantos outros lugares neste Brasil, abstraídos pelas boas
consciências, acobertados por outros, posto que isso movimenta dinheiro.
Mas chega de sociologia.
Passemos à informação histórica.
Aí vai um parágrafo
de Shiva e Dioniso – A religião
da natureza e do Eros, de Alain Daniélou (ed. Martins Fontes):
“A identificação do
deus e do homem com a natureza implica a nudez. O homem verdadeiro é nu. A religião
hipócrita e farisaica da cidade é que exige a roupa. Shiva é nu. O sábio e o monge
shivaístas erram pelo mundo nus e sem vínculos. Na Índia a nudez é sinônimo de liberdade,
virtude, verdade e santidade. A antiga religião atéia da Índia, o jainismo, rival
do shivaísmo, também exige que seus fiéis sejam nus. O mundo grego conheceu esses
gimnosofistas, ascetas nus que vinham da Índia, e os soldados de Alexandre que,
na Índia, quiseram seguir os ensinamentos dos filósofos, tiveram que se desnudar.
A nudez tem um valor mágico e sagrado. “Semeia nu, lavra nu, colhe nu, se queres
em seu tempo terminar todos os trabalhos de Deméter, a fim de que, para ti, cada
um de seus frutos também cresça em seu tempo.” (Hesíodo, Os trabalhos e os dias)
Teria mais para citar,
de Daniélou e outros especialistas (Eliade inclusive) sobre nudez sagrada, erotismo
místico, sexo ritual e temas correlatos.
É o sentido da recorrente
nudez de Ginsberg, adepto e iniciado, ordenado, como se sabe, em uma corrente tântrica
do budismo tibetano.
Um cacoete recorrente
entre conservadores é associar liberdade sexual e libertinagem à “decadência” (conservadores
à ‘direita’ e à ‘esquerda’: “decadência” foi uma categoria pela qual stalinistas
tinham especial predileção), ao ocaso de civilizações, à desagregação de sociedades.
É o contrário: libertinos franceses do século XVIII, por exemplo, não podem ser
separados do avanço do Iluminismo, da luta contra o absolutismo, a opressão.
Observações sobre a
“decadência” romana incorrem nesse erro. Tentaram proibir as bacanais em 263 a.C.
– não conseguiram. As espantosas condutas nas cortes de Nero, Tibério (foi o pior,
pedófilo desenfreado), Calígula, precedem a expansão máxima do Império, com Trajano
e Adriano, por volta de 100/120 d.C. Pompéia, com as decorações libertinas de salas
de jantar, foi soterrada em 73 d.C. Retratos de um apogeu, não de uma decadência.
Igualmente, as variações da luxúria no Satiricon
de Petrônio, tão bem transpostas por Fellini.
Coincidiu com a adoção
do cristianismo em 323 d.C, por Constantino, o Império ir se desagregando (não que
Constantino fosse santo – envenenou um dos filhos, método da época para resolver
disputas de sucessão, por exemplo).
Na série de TV Roma (HBO), a cena de Marco
Aurélio fazendo com uma escrava sobre a mesa da sala de visitas, na frente de todo
mundo, antes do célebre discurso no Senado, retrata a naturalidade com que romanos
se relacionavam com o corpo e o sexo.
Escreveria mais algumas
páginas sobre os gregos. Importa que censores não sabem de nada disso, e não querem
saber. Procuram impedir que os outros saibam.
Alguns tentam transmitir
conhecimento – outros querem perpetuar a ignorância.
Dois livros deliciosos
sobre a Geração Beat. Um, o recente Negócios
de Família (editora Peixoto Neto, 2011): a correspondência de Allen
e Louis Ginsberg, o filho e o pai, ambos poetas. Achei lindo. Falarei a respeito
em minha apresentação na livraria da Travessa – Leblon, no Rio, dia 9 de abril.
O outro, The Beat Hotel de Barry Miles
(Grove Press, 2000), sobre as estadas de Ginsberg, Peter Orlovsky, Gregory Corso,
William Burroughs, Brion Gysin e mais alguns em Paris, no hotel-pardieiro-muquifo
da Rue Gît-le-Coeur. Substancioso. Traduzo um trecho engraçado, sobre encontros
e desencontros de beats e surrealistas.
Relações de beat e surrealismo
são múltiplas e complexas. Podem dar ensaio. Quando estive em Paris em 1968, compareci
a uma reunião dos surrealistas. Acho que conheci o surrealista errado, Vincent Bounoure
– discussão forte sobre geração beat, não aceitava. Deveriam ter-me apresentado
Jean-Jacques Lebel, que fazia parte na época – e foi um interlocutor, cicerone e
tradutor dos beats (tenho a antologia dos beats que ele e Alain Jouffroy prepararam).
Orlovsky já havia retornado.
O trio beat era composto naquele momento, em 1958, por Ginsberg, Corso e Burroughs.
Aí vai o relato de Miles (toda vez que o releio dou risada, lembro-me de festas
parecidas):
“A 14 de junho, eles
encontraram o poeta dadá Tristan Tzara no Deux Magots. Allen sempre havia achado
que seus Manifestos Dadá eram boa poesia, e apreciava particularmente a linha “Dada
é um micróbio virgem”. Tzara os convidou a seu apartamento, onde mostrou a Allen
e Gregory uma longa e vituperativa carta de denúncia para ele, de Antonin Artaud,
acusando-o de ser um zelador de museu e arquivista e não um verdadeiro poeta dadá.
A carta estava marcada com cuspe e queimaduras de cigarro, manchada com algum sangue
e esperma de Artaud e havia sido enviada do asilo de Rodez, onde Artaud estava internado.
No dia seguinte, haviam
sido convidados por Jean-Jacques Lebel para comparecer a uma festa surrealista em
casa de seu pai na Avenue Président Wilson, perto do Trocadero. Seu pai, Robert
Lebel, trabalhava então em Sur
Marcel Duchamp, que estava para ser publicado no ano seguinte em Paris
pela Trianon Press, e foi um amigo próximo de Duchamp e de todos os surrealistas.
Jean-Jacques lembra-se vivamente da ocasião:
Duchamp veio a Paris
e meu pai disse, “Vamos dar uma festa para ele, estilo americano, convide alguns
amigos”. Assim, convidamos Duchamp, Man Ray e suas mulheres, todos os dadaístas
sobreviventes, Max Ernst e sua mulher, Breton e sua mulher, Bejamin Péret, o grande
Péret. Todas aquelas pessoas que ainda estavam fantasticamente vivas. Então meu
pai disse: “É claro que você virá?” Eu disse, “Ouça, eu queria trazer alguns amigos
americanos.” Então meu pai disse: “Quem são eles?” Nunca tinha ouvido falar, é claro.
“Bem, eles são grandes poetas, escritores e poetas muito grandes.” E minha mãe disse:
“Não é aquele maluco que vomita em todo lugar?” Ela havia vindo a minha casa uma
vez, para visitar-me como as mães costumam fazer, e lá estava Gregory vomitando
em todo lugar. Eu disse: “Não, não, não! Claro que não!” Quando você é garoto, não
conta seus segredos aos pais. É claro que era Gregory. William e Gregory e Allen.
Então eu disse a minha mãe, que era uma senhora muito burguesa: “Escute. Você convida
seus amigos e eu convido os meus e tenho certeza que se darão bem.” Porque eu ansiava
pela ocasião de juntá-los, porque minha obsessão, toda a minha vida, havia sido
juntar pessoas que amo. Juntar essas pessoas que não se conheciam e criar uma espécie
de mistura híbrida é criar novas culturas, é realmente fazer um evento-dinamite.
Assim, eu soube que seria importante juntar essas duas gerações.
Allen era o único que
estava realmente interessado, pois ele estava lendo The Dada Poets and Painters [Os poetas e pintores
dadá] de Robert Motherwell. Estava com o livro em seu quarto. Então, eu disse a
Allen: “E aí, você gostaria de encontrar alguns dos caras? Você gosta desse cara,
Péret?” Ele disse: “Péret é um grade poeta, eu só li um poema dele em um pequeno
magazine literário, mas ele é grande”. “Que tal Man Ray?” “Man Ray? Meu sonho é
me encontrar com Man Ray.” “Que tal Duchamp?” Ele disse: “Duchamp? Duchamp? Tentei
encontrá-lo em Nova York mas não consegui”. Então eu disse: “Vou mostrar o quanto
te amo, cara, eu o estou convidando semana que vem em casa dos meus pais”. Então
ele pôs uma gravata e uma camisa branca. Pôs sua roupa lavada. Disse a Gregory:
“Ouça, cara, pelo menos tente, penteie seu cabelo e não beba”, é claro que se você
dizia a Gregory para não beber, ele bebia cinco vezes mais. Fui com eles porque
tínhamos que cruzar Paris e tomamos dois táxis. E a primeira coisa que o porra do
Gregory fez foi vomitar na escadaria. Eu disse: “Uma das noites históricas da minha
vida e eu vou me lembrar dela por Gregory vomitando, ó Cristo!” Então eu tive que
lavar o vômito nas escadas porque não queria que a concièrge o fizesse – assim, problemas estúpidos
como esse.
Entramos, umas cinquenta
pessoas estavam lá, todo mundo em pé. Comecei a apresentar as pessoas, e Duchamp,
Péret e Man Ray estavam lá. A mulher de Breton estava lá, mas Breton não veio aquela
noite porque estava com gripe e de cama. André Pieyre de Mandiargues, o grande escritor,
estava lá, e uns pintores fantásticos como Jean-Paul Riopelle estavam lá. Amigos,
amigos. E eu fiz as apresentações e, evidentemente, ninguém tinha ouvido falar em
Allen Ginsberg ou Gregory Corso ou William Burroughs porque seus livros ainda não
haviam sido traduzidos, ainda não haviam sido publicados. Então, foi assim: “Como
vai você?” Mas não foi “Muito prazer em conhecê-lo”, porque ainda não sabiam quem
eram. Então, o que fizeram foi tomar um porre. E ao final, quando as pessoas começaram
a ir embora, eu os vejo indo na direção de Duchamp. Gregory de mãos dadas com Allen.
Duchamp estava sentado em uma cadeira, falando com as pessoas. A primeira coisa
que o maldito Allen fez foi ajoelhar-se e começar a beijar os joelhos de Duchamp.
Achando que fazia algo surrealista. E Duchamp ficou tão embaraçado. Tão embaraçado!
Allen estava completamente bêbado, e ele nunca ficava completamente bêbado. Havia
feito uma mistura de uísque e vinho tinto. Estava tentando fazer algo que achava
ser dadaísta. Porém a cosia mais embaraçosa ainda estava por vir. Gregory havia
achado na cozinha uma tesoura, e cortou a gravata de Duchamp. Uma coisa tão besta,
infantil. Conhecendo Gregory e Allen, é amoroso, é tentar ser humilde, é tentar
dizer “Nós somos crianças, nós somos loucos, nós o admiramos.” Foi uma coisa amorosa.
Meu pai veio e disse:
“Ah, seus amigos, hein? Onde você catou esses clochards?” Ele não chegou a dizer isso, mas
seus olhos diziam. Eu estava chateado. Lá estavam gênios dos dois lados, sabe? Foi
bobagem ficar chateado, porque na verdade Duchamp amou os caras e Man Ray amou os
caras. Toda vez que os via, me diziam: “Onde estão seus beatniks americanos? Amo
esses beatniks. Eles são completamente bêbados, mas são infantis, são maravilhosos,
tenho certeza de que são grandes poetas.” De fato, Duchamp falava um inglês excelente,
mas eles estavam bêbados demais para falar. Como você pode falar com um bêbado que
está caindo pelo chão?
Allen contou a Peter
como beijou Duchamp e o havia feito beijar Bill; como ele e Gregory se jogaram no
chão e pediram a benção, assim como já haviam feito com Auden, puxando a barra de
suas calças, ao que Duchamp objetou que era apenas humano; e como, quando Duchamp
tentou ir embora, foram atrás engatinhando entre as pernas dos convidados bem-vestidos.
Não mencionou que Gregory havia cortado a gravata de Duchamp. Tiveram sorte de Breton,
tão formal, não estar presente.
Jean-Jacques prosseguiu:
“Dois dias depois, Allen disse, ‘Acho que ferramos tudo’, e eu disse, ‘Esqueça,
não faz mal.’ Eu disse, ‘Quero que você encontre Breton, então dei-lhe o endereço
de Breton e Allen lhe escreveu, dizendo que gostaria de visitá-lo. Ajudei-o a traduzir
a carta para o francês. Breton sabia dele através de mim, então escreveu uma resposta
a Allen em um cartão postal. Breton tinha uma letra manuscrita extremamente refinada,
clássica, em um francês literário, e respondeu a Allen dizendo: ‘Obrigado por sua
nota, J-J. me contou sobre você, por favor venha em tal dia e tal hora, aqui está
meu endereço.’ Mas Allen não conseguiu ler a letra manuscrita. E eu havia viajado
para a Itália, e ele nunca foi. E assim encontrei Breton quando voltei, e ele disse,
‘Bem, seu amigo americano, ele não é muito educado.’ Eu disse, ‘O que você quer
dizer?’ Ele respondeu, ‘Bem, eu lhe mandei um convite e ele nunca me respondeu e
nunca veio.’ Fui falar com Allen, disse: ‘Ele lhe mandou um convite, por que você
não foi?’ Ele disse, ‘Recebi uma coisa esquisita, você pode me traduzir?’ E assim
ele perdeu a ocasião. Fiquei tão mal, pois queria que aquelas duas grandes mentes
se encontrassem.”
14. Março de 2012, Ainda a
censura no Facebook
Já havia observado que
gostei de associar-me ao Facebook. Abro a página inicial, vejo postagens de poesia
de qualidade, imagens, vídeos, áudios. Obviamente, de entremeio a muita coisa que
interessa menos. E que ignoro, abstraio. Além disso, o Facebook funciona como serviço:
posso divulgar publicações e apresentações, poupando-me de enviar séries de e-mails,
que por sua vez me dispensavam de enviar convites pelo correio. E sou achado por
leitores…!
Contudo, a existência
de censura introduz um desagradável ruído na funcionalidade da rede social. Tratei
disso em postagem anterior, http://claudiowiller.wordpress.com/2012/02/25/contra-a-censura-sempre/ , a propósito das imagens
dos poetas beat
Allen Ginsberg e Peter Orlowsky posando nus, postadas por Rubens Zárate e suprimidas
pelo Facebook. Combinamos – por sugestão de Claudio Daniel, Elizabeth Lorenzotti,
Máh Luporini e outros colegas – um bombardeio de imagens de nudez e afins, culminando
com algo em maior escala a 12 de março, transformado em efeméride contra a censura.
A consequência, por
enquanto, foi a retirada pelo Facebook de reproduções de quadros do surrealista
belga Paul Delvaux, postadas por Máh Luporini; fotos de nus artísticos, inclusive
a consagrada foto de Yoko e John Lennon, por Paula Freitas; outras imagens postadas
por Célia Musili; um soneto de Bocage… Isso, e bloqueios temporários das respectivas
páginas com advertências de violação dos ‘padrões da “comunidade” do Facebook’,
tal como expostos em www.facebook.com/communitystandards/ . Para efetuar tal
controle, o Facebook emprega “moderadores de conteúdo”, como relatado em http://www1.folha.uol.com.br/tec/1050141-funcionario-revela-cartilha-para-censores-do-facebook.shtml
É censura. Que, nos
casos aqui registrados, colide com a legislação brasileira, a começar pela Constituição:
·
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, liberdade, igualdade, segurança
e a propriedade,
nos termos seguintes:
IV – é livre a manifestação do pensamento,
sendo vedado o anonimato;
VIII – ninguém será privado de direitos
por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se
as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir
prestação alternativa, fixada em lei;
IX – é livre a expressão da atividade
intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura
ou licença
·
Art. 220º A manifestação do pensamento, a criação,
a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão
qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 2º – É vedada toda e qualquer censura
de natureza política, ideológica e artística.
Como o Facebook está
atuando no Brasil, deve ser enquadrado.
Além disso, as práticas
do Facebook são desrespeitosas, ofensivas. Devemos nos recusar a ser tutelados,
tratados como incapazes ou algo assim. E subordinar a legislação brasileira aos
estatutos de uma corporação multinacional é, evidentemente, intervenção colonialista.
Quando Howl and other poems (Uivo e outros poemas) de
Ginsberg foi retirado de circulação, a defesa da obra e de seu editor foi, vitoriosamente,
assumida, em um caso que marcou época, por uma entidade, a “American Civil Liberties
Union”.
A presente mensagem
tem características de garrafa jogada ao mar, com a expectativa de encontrar juristas
ou entidades que se disponham a fazer isso (há representação ou sucursal brasileira
do Facebook? ou o foro teria que ser lá fora?).
Algumas observações
adicionais:
◦ Há precedentes. O episódio da exibição
de L’origine du monde
(A origem do mundo) de Gustave Courbet, mostrando o que vem antes do ventre de uma
mulher, garantida na justiça por um usuário francês e desde então circulando livremente.
Para ilustrar como algumas mudanças são lentas: entre a criação desse quadro, de
1866, e sua exposição pública no Musée d’Orsai em Paris, em 1995, passaram-se 129
anos…
◦ Aderir ao Facebook, serviço gratuito,
não implicaria aceitar seus termos? Não: sua utilização é fonte de renda, de faturamento
em publicidade, determinando o multibilionário valor da rede social. Adesão é um
contrato; e contrato algum pode alterar leis ou sobrepor-se a elas. O Facebook só
poderia cercear aquelas manifestações expressamente vedadas pela legislação brasileira
– felizmente bem liberal, vide a jurisprudência já formada em torno dos debates
sobre o uso de “drogas”.
◦ Meios de comunicação, jornais, revistas,
emissoras, fazem isso, filtram, selecionam o tempo todo, argumentam alguns. Há diferenças,
porém. Nenhum desses veículos se apresenta como sendo comunitário. Neles, o espaço
é limitado, justificando seleção e editorialização. Nas redes sociais e ferramentas
de busca, o espaço é infinito. Sua utilização e alimentação de conteúdos cabe ao
usuário, não à empresa mantenedora (diretamente, nas redes sociais; indiretamente
nas ferramentas de busca, que exibem páginas de terceiros). Se não fosse assim,
poucos adeririam.
◦ Usuários teriam, em princípio, o direito
de não querer ver páginas com fotos de Allen Ginsberg ou quadros de Paul Delvaux.
Sim – e podem exercer esse direito, apagando-as de suas páginas e até bloqueando
remetentes. Filtragem pessoal não é censura, evidentemente. Na minha casa e nas
minhas páginas entra o que eu quiser.
O bombardeio de imagens
de nudez e afins está produzindo resultados. A censura do Facebook se tornou errática,
confusa (páginas mantidas por mulheres estariam sendo objeto preferencial de intervenção?
nas minhas postagens, ninguém mexeu ainda). Com a proliferação dessas postagens,
irá tornar-se onerosa; obrigará à contratação de exércitos de censores. Somada à
possível intervenção pela via judicial e à multiplicação do escândalo (que certamente
repercutirá na imprensa), obrigará o Facebook a ceder.
Avanços na liberdade
de expressão são conquistados assim: palmo a palmo.
Nesse momento, há dois
grandes temas em debate, relativos ao meio digital. Um, a censura em redes sociais.
Outro, as “políticas de privacidade” das ferramentas de busca, provedores de conteúdo
e redes sociais. Quanto a esse assunto, se quiserem montar um “perfil” a partir
de meus acessos e buscas, para comercializá-lo, então quero comissão… Chamarem a
utilização comercial de informações pessoais de “política de privacidade” é, evidentemente,
linguagem orwelliana.
NOTA: Sobre Censura no Facebook é bom ter em conta
o dossiê preparado pelo próprio Claudio Willer em edição de seu post datada de março
de 2012: https://claudiowiller.wordpress.com/2012/03/22/censura-no-facebook-um-dossie/
Voltava do Rio de Janeiro
– não me lembro exatamente quando, mas foi entre 1975 e 1980. A meu lado no avião,
um canadense britânico. Engenheiro especializado em filtros, disse-me que vinha
ao Brasil para cuidar de instalações de limpeza da água em indústrias. “Input or output?”, perguntei-lhe. “Input, only input”,
respondeu-me. Seus
clientes só estavam interessados na qualidade da água que entrava, que iriam usar,
e não naquela que despejavam. Observei que, se todos cuidassem da água que saía,
do “output”, não precisariam gastar com a filtragem da que recebiam, do “input”.
Concordou.
Seria a Champion Papel
e Celulose, em Mogi Mirim, SP, um de seus clientes? Em 1987, o vazamento em um tanque
de resíduos dessa indústria contaminou o Rio Mogi de ponta a ponta: provocou mortandade
de peixes, despovoou o rio, levou anos para recuperar. Parecido com o caso mais
recente, da mineradora em Muriaé, MG na temporada de chuvas e alagamentos do ano
passado: o rompimento de uma de suas barragens contaminou toda a extensão de Muriaé
até a foz do Rio Paraíba, prejudicou o abastecimento de água em todas as cidades
no caminho. Esses, entre tantas outros consequências de empresas filtrarem o que
entra sem cuidarem do que sai.
Da cobertura jornalística
da Rio + 20, recortei e postei no Facebook este trecho de Luiz Felipe Pondé, publicado
ontem, domingo, dia 17: “Qualquer solução para a “energia limpa” virá do mercado
e jamais de burocratas e seus pontos e vírgulas”. O artigo é sobre “burocratas verdes”.
Sexta, dia 15, Pondé havia publicado uma crônica contra “ecochatos”, reclamando
da “vocação autoritária dos verdes em geral, assim como seu caráter ideológico travestido
de evidência”. Casos como esses que citei, da Ripasa e de Muriaé (e há tantos outros),
fundamentam a opinião contrária: ambientalistas deveriam ser muito mais chatos;
“burocratas verdes”, de órgãos públicos e entidades não-governamentais, deveriam
ser muito mais ativos.
Pondé é professor de
Teologia na PUC-SP, referência sólida em sua área – textos que li dele sobre religiões
e misticismo têm qualidade. Por isso, provocam estranheza seus artigos na Folha
de SP com evidentes erros lógicos e de informação (outra hora, trato de uns textos
incríveis dele sobre canibalismo). As crônicas que citei são uma espécie de contraponto,
nesse jornal, à cobertura da Rio + 20. Uma cobertura pobre, burocrática, aguada.
Bem melhor a do Estadão que, tradicionalmente, examina bem os temas ambientais –
subscrevo tudo o que um de seus articulistas, Washington Novais, tem publicado.
Um bom serviço à cobertura
da Rio + 20 foi dado pela última edição da revista Veja (para quem ainda não percebeu,
leio jornais e revistas como sociólogo: interessa-me o que é noticiado, e não acho
que veículos de imprensa devam ser um espelho do que penso – se fosse assim, só
leria jornais anarquistas e bons periódicos literários…). Além de matérias de qualidade
sobre a intersecção de ecologia e demografia, sobre água, aquecimento global, Amazônia,
o modo bem-sucedido como os índios suruís administram sua reserva florestal, a preocupante
situação dos oceanos (o tema que mais deveria ser levado a sério na pauta ambiental),
traz uma excelente amostra do pensamento conservador, anti-ambientalista, ao entrevistar
um “ecocético”, o jornalista inglês James Delingpole.
O título da matéria:
“A conspiração dos verdes”. Delingpole é contra a busca de “energias alternativas”.
Ataca “a grande mentira do aquecimento global antropogênico”: não há provas, argumenta,
de que gás carbônico e outros poluentes na atmosfera provoquem aquecimento. O título
de seu livro lançado no Brasil é repugnante: Os
melancias – o termo usado pela repressão para perseguir liberais, que
seriam vermelhos por dentro, comunas disfarçados ou inocentes úteis a serviço dos
soviéticos. A fundamentação do ceticismo de Delingpole é estritamente política:
militância ambientalista é ameaça à economia de mercado, ao capitalismo. Isso é
observado com precisão por Nelson Ascher na resenha de Os melancias: o título, diz,
“se refere aos militantes mais exaltados que, verdes por fora mas vermelhos por
dentro, alegam defender baleias e florestas, índios e geleiras, mas desejam mesmo
acabar com o capitalismo, tal como a esquerda revolucionária tradicional”.
Quem achou o pensamento
de Pondé pouco claro poderá entendê-lo através de Delingpole e Ascher. Ainda bem
que o ambientalismo tem apoio majoritário da sociedade. A quem ficou sem água para
beber ou tomar banho entre Muriaé e Barra de São João, no episódio que relatei,
não interessa se o controle da poluição é bandeira do velho comunismo ou de um capitalismo
mais moderno. Querem água, e não preleções políticas. Formadora de opinião em favor
da proteção ao ambiente: a TV Globo. Não por ser uma organização voltada para a
destruição da economia de mercado, mas por desastres ambientais, a exemplo daqueles
de Angra dos Reis, São Luís do Paraitinga, das cidades serranas e do Norte fluminense
etc., serem notícia, fatos jornalisticamente relevantes, assim como o exame de suas
causas e consequências.
A argumentação dos ecocéticos
não só é irresponsável, mas criminosa. Suponhamos que o dia esteja nublado e a previsão
do tempo dê que vai chover. Mas isso não comprova, categoricamente, que choverá
– apenas informa que há uma probabilidade de vir a chuvarada. Um hipotético climacético
ou meteorolocético justificaria, então, sair sem o guarda-chuva, já que nuvens e
previsões do tempo não são conclusivas. É o raciocínio dos ecocéticos, sobre a falta
de prova conclusiva de que o aquecimento global é provocado pelo aumento da poluição.
Seguindo-os, estaríamos a descoberto ao sobrevir uma catástrofe. O bom ceticismo,
aquele fundamentado no verdadeiro pensamento científico, recomenda o contrário:
prevenir-se para o pior. Não é catastrofismo, porém bom senso. O assim chamado ecocético
é alguém irracional, fóbico, paranóico. Nem leva em conta qualquer um dos benefícios
– à vida no planeta, à vida marinha em especial, à saúde, à economia – do controle
da poluição e da redução da degradação ambiental.
Em 1972, convidei um
amigo, o agrônomo, paisagista e ambientalista Rodolfo Geiser, para dar uma palestra
sobre ecologia na Psicologia da USP, onde eu lecionava. Deu o exemplo do barranco
à beira da estrada, que vai acabar desmoronando, para mostrar que os estragos ambientais
sempre provocam prejuízo, sempre são da ordem do barato que sai caro. Fatos lhe
deram razão. Daí haver empresários envolvidos na militância ambiental – alguns,
sérios, sem saber que são “melancias”, agentes disfarçados ou inocentes úteis a
serviço de ideologias estranhas. Há também os oportunistas, como o banco que fez
propaganda dizendo que preserva ambiente porque não manda mais extratos impressos.
Se eu fosse chefe de
estado, não assinava esse documento final da Rio + 20. Onde já se viu, não quererem
aprovar um fundo para ajudar países pobres na preservação e recomposição ambiental.
Entre um mau acordo e um impasse, prefiro o impasse. Passada a conferência, dia
28 de junho, quinta-feira, será lançada uma nova edição da revista Celuzlose. Nela,
a versão ampliada do meu artigo sobre poetas e a natureza. Minha visão é estética
e minha abordagem é filosófica – mas qualidade estética e refinamento filosófico
enriquecem a vida, melhoram o ambiente. E, de William Blake a Allen Ginsberg e Roberto
Piva, poetas avisaram. Sabiam o que iria acontecer. Já publiquei aqui o trecho de
Ginsberg, de 1974, sobre a loucura de persistir no uso de combustíveis fósseis,
não-renováveis: http://claudiowiller.wordpress.com/2012/04/15/ainda-a-lucidez-de-ginsberg/ Ginsberg, um ecochato
da pior espécie. Como ainda é grande a distância entre o que dizem poetas e o que
assinam chefes de estado.
16. Julho de 2012, Allen Ginsberg,
direitos autorais, profissionalismo e pirataria 2
Assisti, ontem à noite,
sábado dia 14 no horário das 22 h, à exibição do filme Uivo (Howl) de Robert Epstein,
com James Franco e Jon Hamm, pelo Max, canal 79 da Net. Assim como havia acontecido
na Mostra de Cinema de São Paulo no final de 2010, é utilizada toda a minha tradução do
extenso poema Uivo,
de Allen Ginsberg – sem autorização, sem nunca haverem falado comigo e sem os créditos
ou qualquer indicação de autoria da tradução. Há mais seis exibições programadas
para este mês: próxima quarta-feira às 23 h, sexta-feira dia 20 às 23:55, e outras.
Comprova-se, portanto,
o que eu havia denunciado neste blog, em http://claudiowiller.wordpress.com/2012/07/13/allen-ginsberg-direitos-autorais-profissionalismo-e-pirataria/.
Há mais, porém. As legendas
reproduzem inequivocamente a tradução publicada em Uivo e outros poemas, L&PM, adotando soluções
que são pessoais, criação minha, desde a primeira frase, onde para I saw the best minds of my generation
eu preferi Eu vi os expoentes
da minha geração, e não “as melhores cabeças” ou “as melhores mentes”.
No entanto, com algumas mudanças: um “caralho” da minha tradução tornou-se um “pênis”;
“adoçaram as trepadas” virou “adoçaram as vaginas”; “deixaram-se enrabar” agora
é “ofertaram seu ânus”.
Adulteração, portanto,
além de plágio e contrafação. Um triplo desrespeito, a meus direitos, à obra que
é título e tema do filme e ao espectador.
Legendar desse modo
trai a intenção do filme. Uivo
(Howl) de Robert
Epstein é sobre o processo em 1956 contra a publicação de Howl and other poems, pela
City Lights de Lawrence Ferlinghetti. Seu resultado foi, justamente, garantir a
circulação de textos em linguagem direta, explícita. As legendas restauram os eufemismos,
que Ginsberg critica expressamente na entrevista reproduzida no filme. Esse exibidor
promove o culto à hipocrisia.
Normalmente, após a
exibição na TV a cabo, vem o crédito da versão brasileira, algo como “Legendas Videolar”
ou coisa parecida. Desta vez, nada. Nenhuma referência ou crédito. Fica-se sem saber
a qual submundo da legendagem o exibidor/distribuidor recorreu. A julgar pelo modo
como traduziram o restante, se não me houvessem pirateado, então o telespectador
receberia uma versão do poema cheia de erros.
Isso acontece sempre.
Há profusão de erros de tradução nas legendas de filmes que passam na TV. É desrespeito
ao assinante, a quem paga – e paga caro – por tal serviço. Aliás, uma concessão
pública.
Podia ser pior: o filme
passar dublado, e não legendado. É como procedem outras emissoras, para atender,
ao que parece, a uma crescente legião de analfabetos monoglotas, em detrimento da
informação. Não haveria, então, como conferir.
Enfim, são múltiplas
as razões para promover escândalo, além das demais providências que for possível
tomar. Não se trata apenas dos meus direitos morais, mas de um desrespeito ao assinante
da TV, que paga (bem mais que em outros países) por um serviço precário em sua infraestrutura
(falhas na transmissão, confusões na programação, isso acontece a toda hora) e no
conteúdo, sistematicamente adulterado.
17. Agosto de 2012, Acaso objetivo: um relato meu
Havia publicado o que
vem a seguir entre os comentários a meu próprio post, aqui neste blog. Resolvi,
agora, dar-lhe um espaço próprio. E convertê-lo, ao final, em exercício de leitura,
ou de criação – não obstante ser tudo verdade. As demais histórias de acaso objetivo,
em http://claudiowiller.wordpress.com/2012/05/25/acaso-objetivo/
(Em outra ocasião, anotei
que sempre quis ser cronista.)
Julho de 1999.
Passava uma semana ou
uns 10 dias em uma fazenda em Mato Grosso, convidado por um amigo, o cineasta João
Callegaro. Perto de Xavantina e do Rio das Mortes, quase sopé da Serra do Roncador.
Extensões do Centro-Oeste, horizontes luminosos e o perfil tão plástico e poderoso
da serra. O Rio das Mortes, que beleza, água bem escura e limpa, atravessando mata
virgem. Jacarés e tucunarés. Araras e ariranhas.
É uma terra de lendas
e seitas. As famosas inscrições na pedra, os Martírios. Índios e colonos, convivendo
– aparentemente, não há cenários de horror como os de Mato Grosso do Sul ou do Bananal,
não vi degradação ou miséria extrema. Histórias de xavantes albinos nas cavernas
de outra serra na região, fomos lá. Visitamos uma comunidade pós-hippie, simpáticos
naturalistas, vivem em uma construção em círculo. Instalados na região, seitas e
grupos esotéricos para todos os gostos. Acreditam, alguns, em passagens para o centro
da Terra e no retorno do Coronel Fawcett, não fui vê-los, isso de mundo no interior
do planeta vem das sociedades do Vril e ordem de Thule, influentes no nazismo, e
o antissemitismo já está em Madame Blavatski, que postulou uma raça superior. Ademais,
Fawcett não sumiu em uma gruta. Quando estive no Parque do Xingu em 1967, os Kalapalo
visitaram o posto, perguntei: “Fawcett…?”, o intérprete apresentou-me o índio velhinho
e sorridente que lhe aplicara o golpe final de borduna – se bem que, com os índios,
nunca se sabe, apreciam fabular e há também a versão de que foram os Camaiurá e
o esqueleto está no fundo da lagoa – de qualquer modo, Orlando Villas-Boas endossou
que o explorador inglês havia forçado a mão, tentado obrigar índios a levá-lo a
território inimigo (dos Suiá ou Juruna, Xingu abaixo) e por isso foi executado.
Luzes misteriosas e
objetos celestes, óvnis e ETs, discos voadores e extraterrestres são tema constante
na região, e não só entre esotéricos e adeptos. Um eufórico prefeito de Barra do
Garça fez construir pista de pouso para óvnis no alto de um morro, perto dos banhos
termais. Parece que todo mundo já viu algo. Domingo, fim de tarde, conversava sobre
isso com Callegaro. Contou que era comum enxergarem luzes para os lados da serra.
Passeávamos, cruzamos com um empregado da fazenda: “Como é, cadê as bolas de fogo?
Tem visto muitas?”, perguntou meu hospedeiro. “Não, essa semana não teve, não vi
nenhuma…”, respondeu. Vejam só – subentendido na resposta, as bolas de fogo serem
comuns, aparecerem a toda hora.
Já anoitecia. Voltamos
à sede da fazenda, amplo casarão térreo. Quando saí do quarto e entre na sala, o
televisor estava ligado. Transmitia o Fantástico. Justamente, naquele exato momento,
quando passei na frente do aparelho, exibiam um segmento sobre avistamentos de óvnis
por tripulantes e passageiros de aviões. Um ministro, não me lembro mais qual, e
que havia visto algo acompanhando seu vôo, por um bom trecho. Pilotos e copilotos,
vários. Bolas de fogo, charutões luminosos, discos, clarões. O céu povoado de mistérios,
de coisas ou entidades desconhecidas. Gente da Aeronáutica rompendo sigilo – relatórios
sobre esses encontros existem, mas são reservados.
Não assisto ao Fantástico.
Aquela hora daquele domingo, do milhão de pautas do programa, darem aquela. O que
conversávamos há pouco estava sendo grifado.
Extraterrestres, ou
o que for, visões, energias nossas, coisas da terra, meteoros diferentes, balões,
nunca chegaram a me fascinar ou apaixonar. Não sou contra, pode ser que existam,
já vi uma luz oscilando sobre a Represa Billings, talvez fosse ilusão de ótica (meteoros,
satélites e avião em linha reta podem dar a impressão de ziguezague), mas foi noticiado
nos jornais um avistamento de algo no céu na região do ABC naquele fim de semana.
As bolas de fogo na região da Serra do Roncador também poderiam ser fogo-fátuo,
alguma emanação da terra. Conheço quem encontrou, ou acha que encontrou. Tenho um
amigo ufólogo. Misteriosíssimo. Roberto Piva também era – frequentou grupos, colecionou
bibliografia, publicou poema em Ciclones
dedicado a Jacques Vallée (o consultor de Contatos
imediatos de Spielberg), emprestou-me livro dele (que horror, os episódios
de abduções e de mutilações, parece conto de Lovecraft, muito malvados alguns desses
alienígenas, prefiro manter distância).
André Breton disse que
acaso objetivo é expressão e materialização do desejo; projeção do desejo na realidade.
Mas como? O que desejava eu, para merecer essa mensagem? O episódio é estranho pela
gratuidade aparente, por eu não ser pesquisador, nem mesmo interessado – tenho bastante
histórias estranhas, mas de outra ordem, escrevi um livro em torno do acaso objetivo,
Volta. Não procurava
nada naquela fazenda, na região, no Roncador, no Araguaia – só queria sair de São
Paulo, ver / rever paisagens. Tomar banho nas termas de Barra do Garça, 22 anos
depois, isso sim.
Ou então, o desejo não
era meu. Algo, alguém ou algum outro, transmitia uma mensagem, até hoje indecifrada.
É para eu voltar ao Roncador, a Xavantina? Para escrever a respeito? Para ficar
quieto, ver e calar-me?
Se fosse ficcionista,
faria a campainha tocar para deparar-me com uma criatura, um extraterrestre à porta,
algo assim. Se quisesse replicar Maupassant, terminava o relato aqui. Se pretendesse
imitar Ernesto Sabato, a criatura me levaria a tenebrosos mundos subterrâneos, a
uma sucessão de experiências horripilantes. Com H. P. Lovecraft, fonte da qual Sabato
bebeu, também seria esse trajeto, universo afora. Umberto Eco teria promovido uma
perseguição por membros de alguma seita, até eu chegar à gênese de teorias conspiratórias
baseadas na adulteração de um trecho de Balsamo
de Alexandre Dumas, assim como fez em três de seus livros (Eco é bom, pode repetir-se)
. Guimarães Rosa teria posto tudo, fazenda, bois, serra, fins de tarde luminosos,
extensões e aparições, dentro do texto, e narrado na primeira pessoa, em tom de
relato oral. André Breton não teria escrito ficção – iria até a Serra do Roncador
e despejaria bastante prosa poética sobre os paredões de arenito, as inscrições
rupestres e o restante. Michel Leiris se instalaria na aldeia xavante e produziria
etnografia participativa. Cortázar… – com ele, tudo seria possível, até mesmo um
relato direito, chapado, como este. José J. Veiga (belo escritor, esquecido, precisamos
resgatá-lo), em alguma das vezes em que conversamos, teria me contato uma série
de causos como este.
Que tratamentos isso
– esse episódio, insisto, 100% real – receberia de outros narradores?
18. Setembro de 2012, Pedagogia: o Colégio Rio Branco
Alunos do Colégio Rio
Branco foram punidos em massa, 107 deles pegaram suspensão por se rebelarem contra
a instalação de câmeras de vídeo nas salas de aula. Repercutiu na imprensa.
Inspira-me comentários:
◦ Estranho – Rio Branco não costumava ser, que me lembre,
colégio do tipo mais autoritário. Rotarianos, não é? Normalmente bonzinhos, sociáveis.
Não estudei lá, mas frequentei, havia festinhas. O que deu neles…?
◦ Teatro tem alto valor pedagógico. Forma. Desenvolve sensibilidade.
Minha sugestão, companhias teatrais apresentarem à direção do Rio Branco as seguintes
peças, para encenar lá: Victor
ou as crianças no poder de Roger Vitrac; O mestre de Eugéne Ionesco;
Fim de curso (Classe términale) de René
de Obaldia (esse tem outras peças instrutivas). Leituras…! Cultura literária! Começar
por O ateneu de
Raul Pompéia, um clássico, obrigatório – o capítulo do incêndio vai inspirar.
◦ Situação diferente de câmeras na rua e em prédios, lugares
onde há ameaças objetivas à segurança. Ou de colégios barra pesada, em bairros com
desorganização social, alunos querendo pegar professores etc. Câmeras na rua, podia
ter mais – para flagrar motoristas folgados que atravessam os postos de gasolina
aqui perto querendo evitar semáforo ou fazer conversão proibida à esquerda, tirando
fina dos pedestres. Tinha que multar pesado. Burguesia delinquencial, é para pegar
– garotada, que não tem como se defender, é covardia, autoritarismo 100% irracional.
◦ Matérias na imprensa – para não falar do que circulou no
meio digital – tratam da recaída autoritária, da onda de neo conservadorismo, dando
como exemplos a censura judicial por juizões que mandam tirar tudo de circulação,
o Facebook (bem feito, o ridículo pelo episódio dos mamilos de The New Yorker),
os malucos anti Monteiro Lobato, o episódio da Academia (que coisa, Ana Maria Machado,
com essa enorme contribuição, dar uma justificativa dessas, de que podia ter criança
ouvindo – quando eu tinha 12 anos, buceta,
assim como cu,
caralho, puta, porra etc eram vocábulos
correntes … só não falavam na frente de adultos – única consequência, a palestra
de Jorge Coli tornar-se a mais comentada do ano, ainda bem que é um conferencista
de qualidade).
19. Outubro de 2012,
Maria Lúcia
Dal Farra: a poesia premiada
Atuação de um jurado
doidão determinando o resultado na categoria ‘romance’ do prêmio Jabuti deste ano
(não é assim que se faz, jurados não estão aí para derrubar concorrentes, porém
para escolher os preferidos e depois reunirem-se civilizadamente e chegara um resultado
–assim foi nas dezenas de ocasiões em que fui jurado em concursos – duplo erro dos
organizadores, pela formação esdrúxula da comissão e pela ideia de pedir notas para
as obras – isso se faz em prova de redação, não em concurso literário), enfim, a
celeuma pôs em segundo plano a boa premiação de Maria Lúcia Dal Farra em poesia,
por Alumbramentos. Aqui vai a notícia:
www.ufs.br/conteudo/maria-l-cia-dal-farra-vence-pr-mio-jabuti-8279.html
Em 2007, escrevi um
texto de apresentação de poemas dela, selecionados na revista colombiana Punto
Seguido. Não está disponível on line. Por isso, reproduzo-o, para circular
um pouco no meio digital. Voltarei a tratar dessa poeta (assunto não falta).
MARIA LÚCIA DAL FARRA
Todos os poemas desta
seleção – assim como tudo o que já foi publicado em Livro de Auras e Livro
de Possuídos – parecem falar de algo bem definido, especificado pelos títulos:
um gato, quadros de Gustav Klimt e Van Gogh, a maçã e a macieira, a manga, o boi
no pasto, a mesa de trabalho da poeta, a voz de Maria Callas, a arte de Joan Miró
lida pelo poema de João Cabral de Melo Neto. Representaria essa definição de temas,
tão claramente indicados no título ou no corpo dos textos, um objetivismo ou imagismo,
condensando descrições de coisas, cenas e obras de arte, assim presentificando-os?
Classificar desse modo
os refinados poemas de Maria Lúcia Dal Farra é apenas parcialmente correto: tanto
é que o merecido destaque, saudando seus dois livros como representando algo do
melhor da poesia contemporânea brasileira, deve-se a críticos, apresentadores e
leitores já haverem mostrado seu verdadeiro alcance. E até mesmo seus títulos, ao
incluir auras, sugerindo que a experiência poética pode ser transe ou alucinação,
e a possessão, entusiasmo ou embriaguez platônica, indicam que ela percorre outras
dimensões da criação: poesia é, sim, apresentação de algo; mas ao mesmo tempo é
experiência visionária. Talvez caiba falar em um intimismo manifesto e um misticismo
de fundo em sua obra.
Para interpretar a presente
seleção, talvez caiba remontar a Mallarmé, a seus breves poemas temáticos, mas que
destroem o objeto, aquilo de que falam, criando novos significados. Os dois conhecidos
poemas sobre os leques (de Madame Mallarmé e Mademoiselle Mallarmé), por exemplo:
onde o realista parnasiano procuraria oferecer a perfeita descrição poética daqueles
leques, Mallarmé vai além: quer captar o movimento, pelo qual o leque é sempre outro,
a não ser no vertiginoso momento quando se detém/ o espaço como um grande beijo.
Busca o impossível, a fixação do instante, daquilo que, a cada momento, já desapareceu,
deixou de ser.
Também nos poemas aqui
apresentados, Maria Lúcia Dal Farra quer fixar o impossível, o que o objeto não
é: tornar presente o ausente, presentificar mistérios. O gato, feito de abstração,
recusa-se a ser captado: é tão ágil que só pode ser escrito a contrapelo,
como aquilo que fisicamente não é, uma telepática acrobacia. Promessa
de sexo é paradoxal: texto sobre outro texto, porém não escrito, livro inexistente
à mesa, pura virtualidade. A Noite estrelada do quadro com ciprestes de Van
Gogh é invadida pela luminosidade de sóis, por um tornado de luz que traga
tudo que brilha: é um poema-oxímoro. A Maçã à mesa também é outra, aquela,
arquetípica, da árvore do Bem e do Mal, de cuja sombra a poeta não sairá, pois quer
superar essa dicotomia. Jacob Böhme viu o cosmo em um prato de estanho: Maria Lúcia
Dal Farra o vê em cebolas e mangas. Os qualificativos da voz de Maria Callas – terceiro
olho, buraco negro – não são apenas metáforas, do tipo descritivo, porém revelações
de analogias. O Retrato de Hermine Gallia nos fala de uma retratada ausente,
representada pelas cascatas de rendas, vendavais de tules e ondas
de plissados que a constituem e possibilitam lê-la: este e outros de seus poemas
são comentários ou adendos à crítica de artes plásticas por Baudelaire, mostrando
que um quadro é um sistema de relações, de harmonias, e não só a representação de
um objeto.
Também no restante de
sua obra, o tema e título do poema sempre vão transportar o leitor a outra coisa,
estabelecendo relações mágicas entre a parte e o todo: em Casa, de Livro
de auras, a mesa é memória de árvore, o assoalho revive seu tempo de
floresta, e a permanência do passado coloca em cheque o presente: o arbusto cresce/
e engole a lâmpada elétrica.
Talvez seja até um caminho
fácil de interpretação – sabendo que Maria Lúcia Dal Farra é autora de Alquimia
da Linguagem, sobre a poesia de Herberto Helder, e de ensaios sobre hermetismo
em Baudelaire e outros poetas – tomar como chave para a sua leitura um título como
Receita Hermética, onde é reafirmado o princípio da analogia universal, das
correspondências entre macrocosmo e microcosmo: a berinjela contém as navegações
que a trouxeram a esta parte do mundo; seu preparo refaz, por isso, epopéias. Mais
importante, e a propósito de suas referências ao naturalismo do Vergílio das Geórgicas,
é lembrar que, para aqueles antigos, a poesia era mimese, imitação do real; porém
de outra realidade, viva, povoada de deuses e de energia. É essa realidade que Maria
Lúcia Dal Farra quer reinstaurar; por isso, declara, de modo reiterado, mas sem
nunca repetir-se, que o poema é equivalente a uma operação de magia.
20. Outubro de 2012, Os Guarani-kaiowáa de Naviraí
A resposta ao drama
dos Guarani-kaiowáa da reserva de Sossoró, imediações de Naviraí, Mato Grosso do
Sul, ameaçados de despejo por ordem judicial, parecia restrita à rede social e á
blogosfera. Notícias em jornais, poucas e reduzidas. Hoje, finalmente, saiu uma
reportagem mais extensa, em O Estado de S. Paulo:
Já vinham sendo publicados
na mídia impressa artigos de Marina Silva, relatando, opinando, divulgando petições
públicas e outras formas de mobilização:
http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,nos-guaranis-kaiowas,952159,0.htm
Também merece leitura
o relato de Fernando Gabeira, que foi lá:
http://www.gabeira.com.br/wordpress/2012/10/guaranis-vao-apenas-resistir/
É claro que logo, muito
em breve, algum desses neocom atualmente na moda publicará algo depreciando os defensores
dos Guarani-kaiowáa.
Sabem a diferença entre
os guaranis de Mato Grosso do Sul e os índios Ianomami? É que Roraima e Norte do
Amazonas ficam longe: a ocupação desenfreada de terras demorou para chegar lá, deu
tempo para defensores dos índios, como a fotógrafa Claudia Andujar, se organizarem.
A diferença entre os
guaranis de Mato Grosso do Sul e os índios Macuxi da reserva Raposa / Serra do Sol
também é essa: o extremo norte de Roraima: fica longe – mesmo assim, foi necessária
uma batalha judicial, resolvida no Supremo, tornando possível uma política indigienista
no Brasil.
A diferença entre os
guaranis de Mato Grosso do Sul e povos como os Camaiurá, Ulapiti, Uaurá, Kalapalo,
Cajabi e demais habitantes do Alto Xingu é que o Alto Xingu era longe em 1961, quando
os irmãos Villas Boas, Darcy Ribeiro e outros heróis conseguiram implantar o Parque
Nacional do Xingu – hoje inteiramente cercado por fazendas que afetam o seu clima
e bioma, além dos danos que advirão da Usina de Belo Monte (não, o problema não
é só dos Caiapós e demais grupos no baixo e médio curso desse rio – para quem não
sabe, peixes, por exemplo, costumam subir e descer os rios, e terão que mudar seu
modo de vida – ou então mudar-se, achar algum outro rio para nadar nele)
Com o que se parece
a situação, não só dos Guarani-kaiowáa de Naviraí, mas de vários outros povos indígenas
de Mato grosso do Sul? Com aquela dos Pataxós do Sul da Bahia, Por volta de 1979,
após invadirem suas terras e os expulsarem, fazendeiros obtiveram títulos de propriedade
e se tornaram donos daqueles territórios. Levou 33 anos até isso ser corrigida e
os Pataxós recuperarem alguma terra.
O que mais me lembra
a situação atual dos Guarani-kaiowáa de Naviraí? A desocupação à força do Pinheirinho,
em São José dos Campos. Pelo seguinte: são episódios a contrapelo, regressivos,
anacrônicos – não se faz mais isso, não é desse jeito que se promovem desocupações,
com um juiz determinando sumariamente, e a subseqüente remoção a ferro e fogo. Loteamentos
ilegais que poluem as represas de São Paulo, por exemplo; ou aqueles em áreas de
risco, ou que impedem obras públicas: a tendência é a negociação, a reparação para
os removidos. Ocupante ilegal não é criminoso; menos ainda, esses, a exemplo dos
índios, que haviam sido anteriormente desalojados aforça.
O que mais me choca
nesse drama dos Guarani-kaiowáa de Naviraí? A mesquinhez. São dois hectares de terra
ocupados pelos índios, e ainda por cima de reserva florestal. Dois hectares: isso
não é nada, em uma região onde 50 hectares passam por sítios ou chácaras e onde
são normaisl propriedades rurais acima dos mil hectares.
A que associo a presente
situação drama dos Guarani-kaiowáa de Naviraí? A uma ideologia segundo a qual índios
tem que ser reintegrados à “civilização” a qualquer custo, á força, e isso de multiculturalismo,
respeito à diversidade, etc, é tudo bobagem, sabotagem de radicais contra a economia
de mercado (ouvi tudo isso, certa vez, de um coronel, ao retornar do Xingu – durante
o regime militar, é claro).
O endurecimento contra
esses Guarani-kaiowáa de Naviraí é um último arreganho do conservadorismo extremado.
Temem o precedente: prevalecendo a causa dos Guarani-kaiowáa de Naviraí, aumentará
a chance de outros povos indígenas desalojados nas últimas décadas recuperarem algum
pedaço de chão. Talvez o escândalo e a repercussão contribuam para que recebam mais
atenção os Carajás da Ilha do Bananal, os Gavião do Maranhão, os …
21. Novembro de 2012, Parque do Xingu: Patrimônio da Humanidade?
Dias atrás, perguntei
qual dos neo-conservadores viria a público atacando defensores dos Guarani-Caiová
do Mato Grosso do Sul. Apostava em Luiz Felipe Pondé. Não deu outra: em seu artigo
na Folha de hoje, 19/11, verbera usuários do Facebook que acrescentaram essa designação
a seus próprios nomes. Ignora o problema real, a ameaça aos ocupantes dos dois hectares
na fazenda Cambará em Naviraí, MS, capítulo da tragédia enfrentada por esses índios
– e que as manifestações na rede social alertaram, precedendo o noticiário na imprensa
e contribuindo (provisoriamente, ao menos) para evitar que prosseguisse a violência.
Melhor ficar com o artigo
de Washington Novaes, alguém que conhece o assunto, no Estadão de 09/11/2012. É
objetivo, didático:
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,quem-podera-salvar-os-guarani-caiovas-,957849,0.htm
Nesse artigo, uma informação
do maior interesse: a proposta de transformar o Parque Indígena do Xingu em patrimônio
ambiental, histórico e cultural da humanidade pela Unesco, apresentada por Novaes
com apoio do ex-ministro Gilberto Gil, do artista plástico Siron Franco, do compositor
e criador Egberto Gismonti, do ex-presidente da Funai Márcio Santilli, entre outros.
Não recebeu apoio do governo brasileiro. Novaes informa: “Mas para que a Unesco
receba um pedido como esse é imprescindível – foi-nos dito – que ele tenha o aval
de alguma autoridade brasileira. E não conseguimos sequer uma audiência da Funai
ou de outro órgão para expor o pleito.”
Entre outras manifestações
anteriores desse estudioso, esta:
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,as-utopias-do-xingu-nos-seus-50-anos,696996,0.htm
O Parque do Xingu foi
o marco inicial do que houve de positivo em matéria de política indigenista no Brasil.
Um precedente, contribuindo para a criação de reservas para os Ianomami, e, mais
recentemente, a Raposa – Terra do Sol, além da devolução de algumas terras aos Pataxós
da Bahia; e, outro dia, a decisão da justiça em favor de Xavantes em Mato Grosso.
O significado da proclamação
do Parque do Xingu como Patrimônio da Humanidade é evidente. Consolidará avanços.
Contribuirá para que se corrijam barbaridades como essas que atingem os Guarani-Caiová.
Que tal retomarmos?
Vamos apoiar e mobilizar?
Em tempo: acrescento
ao corpo desta publicação o comentário que acaba de chegar de Rita Alves:
Estou, junto com a família
Villas Boas, em processos árduos de estabelecimento do Instituto Orlando Villas
Boas. Precisaremos de muitos apoios. Acervo do indigenista com mais de 2 mil peças,
ainda sem destino. Arquivos linguísticos, arqueológicos, filmografia, fotografias…
material rico para pesquisa de nossas mais profundas raízes… vamos em frente, sem
titubear,a tentos a todos os que vão contra também. Beijo grande, Willer! Rita Alves.
Vamos apoiar!
22. Dezembro de 2012, Sectarismo na educação? Educadores contra
a educação?
O Ministro da Educação
Aloízio Mercadante havia convidado a atual Secretária da Educação do Rio de Janeiro,
Claudia Costin, para a Secretaria de Educação Básica em seu ministério. Isso, por
resultados atestados por uma melhora em índices que avaliam o ensino. Sua principal
estratégia, as bonificações por desempenho.
O convite de Mercadante
a Costin desencadeou uma tempestade, com manifestos acusando-a de promover “a privatização
do ensino público, a fragmentação do trabalho docente, a perda da autonomia dos
professores, a submissão estrita aos cânones neoliberais”. Para os manifestantes,
“professores, gestores e funcionários têm sido alvo de aliciação pecuniária, os
bônus financeiros, através de remuneração extraordinária pelo desempenho dos alunos,
traduzido em um percentual de aprovação de alunos nas turmas e no conjunto da unidade
escolar, como compensação aos baixos salários.”
Costin recusou o convite.
Entidades, professores etc de fato podem estranhar sua trajetória política: de ministra
do governo FHC a secretária da cultura no governo Alckmin, daí a secretária da educação
no governo Cabral, para chegar ao MEC no governo petista. Certamente, há pessoas
qualificadas no campo petista e afins, capazes de promover melhoras no ensino.
Populismo no ensino,
isso eu já havia denunciado. Por volta de 2000, durante o governo FHC, gestão Paulo
Renato: alertava para absurdos em nossos parâmetros curriculares do ensino médio,
associando-os a nossos 70% de analfabetos funcionais. Entre outros lugares, está
na Agulha Revista de Cultura. O que escrevi
repercutiu. Mas os PCN, no tópico “Conhecimentos da língua portuguesa”, continuam
valendo – com o mesmo frenesi sociocultural. E continuamos com os mesmos 70% de
analfabetos funcionais – além da deficiência em operações aritméticas etc.
A diferença: esse tipo
de orientação agora virou plataforma contra o neoliberalismo e as privatizações.
É o que se vê na manifestação
do presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Roberto
Franklin de Leão, que “luta por uma educação pública de qualidade, que priorize
a formação de sujeitos históricos (conscientes e independentes) e não só a reprodução
de fazeres em benefício exclusivo do capital”, pois “o objetivo da educação é conduzir
as pessoas à felicidade.” A metodologia de Costin “visa reproduzir nos sistemas
escolares a ideologia dominante do capital, através de uma pedagogia reducionista
e adestradora”. Categoricamente, “esses novos atores no setor educacional trabalham
a serviço do capitalismo, com foco em metas de empregabilidade e enriquecimento
do País”.
Já a professora Carmen
Sylvia Moraes, da Faculdade de Educação da USP, afirma: “Esquecem-se de que a educação
é a expressão e não a causa do desenvolvimento. Precisamos de um trabalhador com
autonomia intelectual, crítico.”
Como é que pode, alguém
fazer declarações assim…? Uma diretora da Pedagogia da USP…! Educação é expressão
ou causa do desenvolvimento? O que nasce primeiro, o ovo ou a galinha? Havia um
chavão dos anos de 1970: “Tem que dialetizar!” Aplica-se. Deveria saber que a relação
entre educação e desenvolvimento é complexa. Países com educação de qualidade tiveram,
sim, desenvolvimento. Países com elevado índice de desenvolvimento oferecem, sim,
educação de qualidade. Discutir o que vem primeiro é falsa questão. Justifica a
omissão, o imobilismo burocrático: vamos cruzar os braços, sem mexer em nada na
educação, à espera do desenvolvimento chegar.
Quanto ao que declara
o dirigente da CNTE: saber ler e escrever não ajudaria alguém a se tornar “sujeito
histórico”? Ter um emprego, um salário melhor, isso não seria um primeiro estágio
para “conduzir as pessoas à felicidade”? Educadores trabalharem “a serviço do capitalismo,
com foco em metas de empregabilidade e enriquecimento do País” – mas não é o que
esperam deles os alunos, seus familiares, a sociedade? Não está havendo uma redução
ao absurdo da própria educação? E um desvio ético? Afinal, se não é para melhorar
de vida, ter emprego etc., então para que ir à escola?
Há – isso foi observado
várias vezes, inclusive por mim – um neoconservadorismo muito ativo, cujos porta-vozes
alcançam uma repercussão crescente. Argumentar desse jeito é oferecer-lhes um prato
cheio. Se quiserem denunciar sectarismo na educação, terão razão. Infelizmente.
Há educadores que se encarregam de destruir a educação.
23. Dezembro de 2012, O acordo ortográfico Brasil – Portugal:
corrigir bobagens
Voltou à pauta o acordo
ortográfico Brasil – Portugal, pelo adiamento da sua vigência para 2016. Juntas,
voltaram as objeções apresentadas desde 1990. Por isso, cabem as observações a seguir,
desta vez distribuídas em tópicos:
◦ Brasil e Portugal são os únicos países deste planeta que
oficializaram duas ortografias diferentes para a mesma língua, em uma aberrante
manifestação de provincianismo e burocracia. (sim, há o caso do hindi e urdu, na
Índia – mas são caracteres diferentes, utilizados por hinduístas e muçulmanos –
consequência, portanto, da profunda divisão religiosa e cultural)
◦ Pelos critérios que determinaram as reformas ortográficas
e consequente separação por volta de 1940, Alemanha e Áustria também teriam ortografias
distintas. Por que não as têm? Porque alemães e austríacos não são bobos. Preferem
somar esforços na difusão de uma cultura de língua alemã. Idem Inglaterra e Estados
Unidos mais Austrália e Canadá e…, ou a França e países francófonos etc.
◦ Quem ganha e quem perde com a separação ortográfica de
Brasil e Portugal? Perdemos nós: a duplicidade dificulta, objetivamente, a circulação
de bens culturais. Adoção pedagógica, nos sistemas de ensino de cada país, é impossível,
e alguma cooperação e reconhecimento em organismos internacionais (ONU, UNESCO etc)
é dificultada. Não perdem os pequenos poderes burocráticos, as confrarias fechadas,
as glórias de província hostis ao que vem de fora.
◦ Chegou-se a justificar a separação ortográfica argumentando
que o português brasileiro e de Portugal são línguas diferentes – por se relacionarem
a contextos distintos etc, em mais um frenesi sociocultural, mais um acesso de populismo.
OK – então, qual dicionário usamos para ler Fernando Pessoa?
◦ Existe gente, sociólogos e cientistas da linguagem, confundindo
o aspecto formal da língua e seu uso. Diferenças de uso, nos modos de expressar-se,
no vocabulário, são consideráveis – entre países lusófonos e dentro de cada país
lusófono. Mas isso nada tem a ver com ortografia.
◦ Chegou-se a falar em “dialetos” do português em Portugal
e no Brasil. Absurdo. O dialeto do português é o galego. Basta alguém saber italiano
ou alemão e ouvir alguém expressar-se em dialetos dessas línguas: nada entenderá.
Modos crioulos e ‘joual’ são dialetos do francês. Temos um dialeto crioulo, em Cabo
Verde. Papiamento, portunhol, um português crioulizado em Timor Leste? Talvez.
◦ Em 2000, quando falei em defesa do acordo ortográfico no
Salon du Livre em Paris, o tema fervia. Saramago era a favor. Gente boa, literariamente,
como Lobo Antunes e Antonio Tabucchi, contra – disseram ser neo-colonialismo, coisa
de salazaristas velhos, pois sufocava a alofonia. Outro absurdo. Alofonia, no Brasil,
são as línguas dos povos indígenas. Na África e em Timor Leste, dos respectivos
povos nativos. O português ter essa ou aquela ortografia não muda nada; não é isso
o que afeta a diversidade cultural.
◦ O que está errado na atual reforma ortográfica, justificando
revê-la: a mania de reformarem além da conta. Supressão de acentos, pôr e por, pára
e para, pode gerar frases com duplo sentido. Regras de hifenização e palavras compostas
sempre foram uma confusão arbitrária – e continuaram a sê-lo, na vigência do acordo.
Acadêmicos, gramáticos: simplifiquem.
◦ Com a digitalização, tudo ficou mais fácil. Reforma sequer
dará trabalho, bastará ajustarem o corretor ortográfico. Muitas das objeções são
do tempo em que se escrevia a máquina.
◦ Independência de Portugal foi em 1822. Centros de dominação
cultural mudaram. Havia, a propósito, um doidão, presidente da UBE do Amazonas,
que fazia campanha contra o ensino do inglês. Queria proibir. Morreu. Descobriu-se,
passado algum tempo, que era dono de uma escola de esperanto. (juro – pena não ser
capaz de me lembrar do nome do tipo – amazonenses sabem quem era)
◦ É claro que um acordo ortográfico pouco significa, isoladamente.
Corrige ‘nonsense’, o que sempre é bom. Mas ampliar circulação de livros e promover
intercâmbio são temas de política cultural. Com a pobreza e falta de iniciativa
brasileira nesse campo, mais o recesso português, tudo continuará como antes. Pode
até piorar. Mas a ortografia nada tem a ver com isso.
CLAUDIO WILLER (Brasil,
1940-2022). Poeta, ensaísta, tradutor. Como poeta, distingue-se
pela ligação com o surrealismo e a geração beat. Como crítico e ensaísta, escreveu
em vários periódicos brasileiros. Seus trabalhos estão incluídos em antologias e
coletâneas, no Brasil e em outros países, além de uma bibliografia crítica, formada
por ensaios em revistas literárias, resenhas e reportagens na imprensa. Ocupou cargos
públicos em administração cultural e presidiu, por vários mandatos, a União Brasileira
de Escritores. Coeditou, com Floriano Martins, a Agulha Revista de Cultura, de 1999 a 2009. Ministrou inúmeros cursos
e palestras e coordenou oficinas literárias em universidades, casas de cultura e
outras instituições.
JAROSLAV ŠERÝCH (República Tcheca,
1928-2014). Estudou na Escola Superior da Indústria da Arte em Jablonec nad Nisou,
na Escola de Artes Aplicadas de Turnov e na Academia de Belas Artes de Praga. Dedicou-se
à gráfica livre, pintura, mosaicos, criação de livros, ilustrações, bibliofilia
e também criou placas de cobre em relevo. Na década de 1960, ele aderiu à
abstração expressiva. Logo que a deixou, voltou a acreditar na nitidez da forma
e do enredo da obra. Trabalha atualmente com uma metáfora artística cujo ponto
de partida reside em uma ampla gama de imagens firmemente apoiadas na liberdade
criativa. Em seus desenhos, pinturas e obra gráfica, compõe imagens simbólicas
baseadas nos princípios da ética cristã, cuja ideia é a superfície combinada da
humildade humana, da empatia e da crença na persistência da esperança. Do ponto
de vista do método criativo, é a soma da linha sensível do desenho, da
morfologia dinâmica e da cor enfatizada. As obras apresentam uma estilização
figurativa descontraída, de forma alongada, e possuem uma estrutura visual
distinta.
Agulha Revista de Cultura
Número 251 | maio de 2024
Artista convidado: Jaroslav Šerých (República Tcheca, 1928-2014)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2024
∞ contatos
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http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
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