sábado, 15 de junho de 2024

CLAUDIO WILLER | Por onde passamos é Brasil o que se mostra, III

 


Em 2011 Claudio Willer (1940-2022) deu início à circulação diária de um blog, repleto de comentários valiosos sobre assuntos variados, firmados pela tinta preciosa de sua crítica. Agulha Revista de Cultura prestará uma homenagem ao poeta – ele próprio, entre 2000 e 2009, foi coeditor da revista – com uma seleção igualmente variada de seus textos, lembrando que uma boa parte do blog estava dedicada ao anúncio de acontecimentos culturais, incluindo as palestras e cursos ministrados pelo próprio Claudio Willer. Com este capítulo concluímos a série. [FM]

 

24. Janeiro de 2013, Arp e Huidobro: parceria luminosa

 

Hans Arp e Vicente Huidobro, III novelas exemplares & 20 poemas intransigentes: tradução, nota preliminar e ilustrações de Floriano Martins, Sol Negro Edições, de Natal, RN; Edições Nephelibata de São Pedro de Alcântara, SC; 2012. Tiragem limitada de exemplares numerados; pode ser encomendada às editoras através de suas páginas de internet, solnegroeditora.blogspot.com.br ou edicoesnephelibata.blogspot.com.br

Embriaguez poética, é o que provoca essa edição tão bem preparada por Floriano Martins. Dá a impressão de cada frase com metáforas inusitadas de Os cantos de Maldoror de Lautréamont abrir-se, caixinha misteriosa, para dela saltarem novas imagens que, por sua vez, se multiplicam. Resultado da parceria de dois artistas exponenciais, o franco-alemão (ou alemão naturalizado francês) Hans Arp e o chileno Vicente Huidobro. Em 1931, passavam férias juntos e resolveram escrever as três “novelas exemplares” (o título é alusão à série de relatos de Cervantes).

Basta citar o começo, para dar uma idéia:

Era um dia de Natal, o 1º de maio. Do céu caiam homens de neve e tonéis cheios de trovões. Sobre o mundo, flutuavam os três últimos corações calafetados: a Liberdade, a Igualdade, a Fraternidade. Era o último dia do ano novo. A árvore do idealismo, essa árvore sentimental na qual se balançavam os ninhos dos filósofos materialistas, foi abatida pelo golpe de um só trovão de hélio.

O restante segue assim, na mesma fusão de lirismo e ironia. Lembra as escritas automáticas de Benjamin Péret. Surrealismo? Huidobro, autor de poderosas prosas poéticas e de uma epopéia moderna, Altazor – sua atualização do Corpus Hermeticum dos primeiros séculos d.C –, foi o iniciador e a meu ver o poeta de maior peso dos vanguardismos hispano-americanos; e um paranóico, polemista desenfreado que não poupou Breton e seus parceiros (além de haver acusado Pierre Reverdy de plagiá-lo e das recorrentes brigas com Neruda): sua biografia aventuresca o torna interessante como personagem, e não só como autor.

Arp, famoso por sua contribuição às artes visuais, também foi um excelente poeta; artista completo. Teve participação no surrealismo. Ambos se encontraram no movimento Dadá, por volta de 1918. Independentemente do mapeamento em grupos e tendências, as três prosas em parceria e as duas séries de poemas reunidos por Floriano Martins exibem um espírito surrealista pelas imagens poéticas, pela criação espontânea e coletiva, e pelo inconformismo e rebeldia de seus autores. Celebram a imaginação criadora.

Em vez de comentar e interpretar, prefiro transcrever trechos de poemas de cada um, Arp e Huidobro. Leitores entenderão do que estou falando:

 

HANS ARP:

Ela desaparece, desaparece

em sua própria luz.

Ela desaparece, desaparece

Em sua pureza, em sua doçura

Sonhaste sobre o índice do céu

entre os dois últimos flocos da noite

A terra se cobriu de lágrimas de gozo.

O dia despertou em uma mão de cristal.

 

VICENTE HUIDOBRO:

As viagens dos sonâmbulos em luz de finura

Respiram minhas divagações

Quando chegam os poetas com os rios amigos

Para levar as almofadas da ternura

Ponho sapatos novos em minhas canções

Os ladrões buscam pirâmides nos olhos em calma e sem música

Nos belos olhos dos dromedários

Ou nas espirais de ar

Que deslocam as bailarinas geográficas

 

Não dá vontade de ler mais?

Da mesma editora Sol Negro, também saiu Abismanto, série de poemas de Viviane de Santana Paulo e Floriano Martins: intensa, mostra algo da melhor poesia contemporânea brasileira. E outra leitura necessária, Visões das Filhas de Albion de William Blake, em tradução impecável de Márcio Simões, criador dessa editora.

Impressiona, neste começo de 2013, o volume de matérias com bobagens recorrentes sobre vendas de livros. Deveriam dar atenção às edições de qualidade, como estas; que, não obstante, acharão seus leitores.

 

25. Fevereiro de 2013, Vazio da Cultura?

 

Fui citado na edição desta semana da revista Carta Capital: “Se Paulo Coelho é escritor, raciocina o professor Claudio Willer, qualquer um que produza livros também deve ser incluído na estatística, sem que, para essa acuidade sociológica, esteja implícito um julgamento de valor artístico”.

É transcriação, por Rosane Pavam, do comentário no Facebook sobre o artigo de um sociólogo no suplemento Ilustríssima da Folha de S. Paulo. Também chamou a atenção de Wladyr Nader, que sugeriu ampliação para publicar em seu blog. Aí está:

http://escritablog.blogspot.com.br/2013/01/ultimas_26.html

A matéria de Rosane Pavam, intitulada “O belo não está à venda”, trata da “submissão ao mercado”: essa “impede que a arte relevante apareça”. Capítulo da pauta principal: “O vazio da cultura (ou a imbecilização do Brasil)”. No editorial, Mino Carta afirma: “Há muito tempo o Brasil não produz escritores como Guimarães Rosa ou Gilberto Freire.” Dá mais exemplos: “pintores como Candido Portinari”, “historiadores como Raymundo Faoro”, “polivalentes cultores da ironia como Nelson Rodrigues”, “jornalistas como Claudio Abramo”, “repórteres como Rubem Braga e Joel Silveira”. Como exemplos do “papel destrutivo com truculência nunca dantes navegada” da mídia, menciona o BBB, MMA ou UFC e telenovelas atuais. Confunde valor e nostalgia ao evocar programas de rádio como a PRK30: seguindo nessa linha, acabaria comentando a beleza das propagandas de Glostora e Emulsão de Scott.

O filósofo Vladimir Safatle contribui, relacionando ciclos da economia e criatividade: “É fato que todos os momentos de crescimento econômico brasileiro foram traduzidos em momentos de grande explosão criativa. Foi assim nos anos 30, nos anos 50 e mesmo nos anos 70, em plena ditadura.” Mas hoje falta “exercício crítico”. É “como se julgamentos de valor no campo da cultura fossem exercícios proibidos” por uma “uma nova doxa”.

Sim. Há um refluxo da crítica. Por falta de críticos, de espaço ou de competência editorial? Na década de 1980, a revista Isto É, inclusive nos períodos em que Mino Carta a dirigia, publicava de cinco a seis matérias, artigos e resenhas, comentando livros. O semanário concorrente, também. Hoje, não há nada – nem na Isto É, nem na Carta Capital. Outros espaços também desapareceram ou estreitaram-se.

A evocação de figuras do passado, argumentando que não temos mais Guimarães Rosa, tem precedentes importantes. Um deles, o historiador Oswald Spengler. Em A decadência do Ocidente, afirmou que a literatura atingira o ápice com Goethe, seu inspirador e paradigma. Depois de Goethe, a literatura havia acabado.

Spengler saiu de moda. Desapareceram edições de A decadência do Ocidente. Seu outro livro importante, O homem e a técnica, nem em sebos. Seu elitismo mereceu a observação de Walter Benjamin de que examinava a história como se visitasse um museu. Via o gótico como esplendor da civilização, pouco se importando com a expectativa de vida na Idade Média ser de uns 30 anos. Mas exerceu enorme influência. Henry Miller, William Burroughs e Jack Kerouac foram spenglerianos. Partilharam a desconfiança perante o “homem fáustico”.

Spengler foi original: achava – é dito com todas as letras em A decadência do Ocidente – que socialismo, nazismo e democracia liberal eram a mesma coisa; igualmente, “socialismos”. Por sua repugnância aristocrática diante das massas, recusou-se a ser adotado pelo nazismo, apesar da teoria da decadência ajustar-se como uma luva: detestou Hitler, achou-o um plebeu inculto; e o nazismo, coisa de ralé.

Outros conservadores apontaram para personagens de elevada estatura como argumento para expor a decadência do presente. T. S. Eliot e Ezra Pound invocaram Dante Alighieri. O argumento que subjaz a The Waste Land é, em uma sociedade como a nossa, ser impossível uma A Divina Comédia. Eliot idealizou ingenuamente a Idade Média em “The Idea of a Christian Society”, como sociedade consistentemente religiosa.


Pound relacionou apogeu de civilizações e cultura, em um modo assemelhado ao argumento exposto por Safatle: decadência das nações acarretava decadência artítica e literária . Octavio Paz contestou, observando que a Espanha do Século de Ouro, de Gôngora e Quevedo, havia sido a mesma do Conde-Duque de Olivares: criavam arte maravilhosa, enquanto a nação afundava.

Há mais símiles do “Há muito tempo o Brasil não produz escritores como Guimarães Rosa”. Alguns, examinados no recente A folie Baudelaire de Roberto Calasso (é ótimo – leiam), no capítulo intitulado “Kamchatka” (o termo com que Sainte-Beuve desqualificou Baudelaire). “Já não se sabe escrever após o fim do século XVIII”, afirmou Anatole France. Poesia? Nada, após Racine. Algumas vezes, ao me perguntarem sobre mídia e mercado prejudicarem a recepção da poesia, observei que, desde o tempo de Baudelaire, é a mesma coisa – até melhorou um pouco, acho.

Relações do bem-estar e prosperidade com a criatividade, sugeridas por Safatle, geram paradoxos. A Romênia, por exemplo: como foi possível talentos, de Mircea Eliade a Paul Celan, cuja relação com a pátria consistiu em caírem fora assim que desse, e logo adotarem outra língua? E Portugal? Nas sombrias décadas do salazarismo, como puderam formar-se os Saramago, Sophia de Melo Breiner Andresen, Mário Cesariny, Lobo Antunes, Agustina Bessa-Luiz, Herberto Helder e tantos outros? Sobrou qualidade literária, de um modo impressionante.

 

26. Fevereiro de 2013, Brasil, tema da Feira do Livro de Frankfurt de 2013

 

Será em outubro.

É justificada a preocupação com os preparativos para a Copa das Confederações, este ano; a Copa do Mundo de futebol, ano que vem; e as Olimpíadas em 2016. Temos que prestar atenção em cronogramas, não só de estádios, mas das obras na infraestrutura; vigiar a expansão dos orçamentos.

E mais: acho reacionário, sequela do tipo de crítica cultural que examinei em uma postagem anterior neste blog, contrastar a recepção apoteótica a personalidades e eventos do esporte e aquela, minguada, à cultura. Monteiro Lobato fazia isso, na década de 1930; entristecido, observava que multidões haviam comparecido à chegada de um campeão de boxe, e ninguém àquela de um cientista importante. Não adianta: a escala de diferentes categorias de eventos não é a mesma; mas, felizmente, sua projeção na diacronia também; por isso, hoje Einstein é mais lembrado e citado que Primo Carnera. Ademais, eventos literários repercutem, sim – Flip, Bienal do Livro e sucedâneos rendem matérias e atraem público; premiações anuais, acaloradas controvérsias (inclusive um recorde de acessos neste blog, a propósito do Jabuti e Biblioteca Nacional).

Ainda assim, é esquisito ninguém tocar neste assunto: nós na próxima Feira de Frankfurt. Nenhum comentário na imprensa; sequer nos ambientes letrados.

Nossos editores conhecem, vão lá todo ano. Estão, contudo, habituados a comprar, não a vender: Feira de Frankfurt, principal evento do mundo na modalidade, é centrada na negociação de direitos autorais. A relação é de mão única – todos atentos à chance de adquirir algum best seller, e não àquela de vender títulos nacionais. E nossos autores padecem, em sua maioria, de um arraigado provincianismo; afirmação de nacionalismo, para eles, é mostrar que não estão nem aí para o que se passa no exterior. Críticos e jornalistas da literatura estão devendo um balanço das ocasiões em que estivemos lá fora; um exame das ações culturais, comitivas e critérios subjacentes; e, principalmente, dos resultados.

Pesquisando no Google, achei uns anódinos releases oficiais, do Ministério da Cultura. Cinco escritores vivos serão homenageados: Ferreira Gullar, Milton Hatoum, Bernardo Carvalho, João Ubaldo Ribeiro, Raduan Nassar. E também Oswald de Andrade, Haroldo de Campos, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Hilda Hilst, Mario de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Olavo Bilac, Carlos Drummond de Andrade e Machado de Assis. Merecem. Também é dito algo sobre “diversidade cultural” do Brasil – acho que já ouvi ou li isso antes. Dão declarações sobre estreitar relações com a Alemanha – não, Marta Suplicy e Galeno Amorim (o coordenador desta vez) – não é com a Alemanha, é com o mundo…! É um evento internacional…! Há uma comissão de seleção de autores: Manuel da Costa Pinto, Maria Antonieta Cunha e Antonio Martinelli. Agora – agora…!!! – a notícia é de 5 de fevereiro, anteontem – organizadores viajam a Frankfurt para “conhecer o espaço disponível”… Sobre estímulo à negociação de direitos autorais, formação de acervos em bibliotecas lá fora e outros tópicos de política cultural, eventos e mostras temáticas, comitivas e critérios de sua formação, por enquanto nada. Ah, sim – há o blog criado pela Biblioteca Nacional: www.brazil13frankfurtbookfair.com/de/news/aktuell.html – informa a dotação de U$ 270.000,00 para subvencionar traduções (para a Copa, quanto é mesmo que vai ser?).

Perderemos a chance de corrigir erros anteriores. Melhor, é claro, uma participação discreta que um desastre. Brasil já foi tema em Frankfurt, em 1994. Sendo um evento de editores, a organização havia ficado a cargo da Câmara Brasileira do Livro. Deram-me, na época, um catálogo com o projeto daquela participação: focalizava muito sol, praia, carnaval, moças morenas que rebolavam (“mulatas”, dizia-se na época). Típico material para deslumbrados turistas libidinosos da mais baixa extração. Preparei um texto sobre provincianismo e os estereótipos na representação e divulgação do Brasil no exterior. Mostrei a Fábio Lucas, que presidia a UBE (eu era conselheiro). A entidade o adotou e enviou como contribuição a todos os organizadores envolvidos, Ministério da Cultura, Câmara Brasileira do Livro e nossa representante do evento na Alemanha, a tradutora e agente literária Ray Güde-Mertin.

Não queríamos dar escândalo, só colaborar. Aconteceu, porém, de Ray Güde-Mertin perder a paciência e desentender-se com o coordenador dessa participação brasileira, Felipe Lindoso – dirigente da Câmara Brasileira do Livro e responsável direto pelo bestialógio. Ao divulgar a ruptura, ela passou o documento da UBE / meu para o então correspondente da Veja na Alemanha, William Waak; esse publicou matéria, transcrevendo. Repercutiu, foi pipocando sob forma de críticas no restante da imprensa.

Soube que Lygia Fagundes Telles, em sua palestra, não conseguia fazer-se ouvir por causa do barulho da apresentação da escola de samba na sala ao lado. E que o interesse por autores brasileiros na Europa decresceu, por algum tempo, por causa daquele deplorável desempenho. Não buscava o protagonismo em polêmicas, mas todos os envolvidos souberam que o texto-base das críticas fora meu; tenho desafetos a mais, por isso, até hoje.

Brasil também foi tema do Salon du Livre de Paris, em 1998. Após o desastre de Frankfurt, a coordenação passou para a Biblioteca Nacional. Discretíssima, sem qualquer brilho, mas, ao menos, sem erros clamorosos.

Sabemos criar eventos e mostras temáticas de literatura. Teríamos algo para mostrar lá fora. Museu da Língua Portuguesa, por exemplo: exposições focalizando escritores importantes tornaram esse equipamento o mais visitado em São Paulo. Outras instituições locais também vêm mostrando competência. Mas não há mais tempo. Nem recursos. Uma pena.

Quando aprenderemos?

 

27. Junho de 2013, Ainda a restituição de territórios aos povos indígenas

 

Eu vi aquela foto.

Na primeira página de um jornal, exposto em uma banca. Foi em uma de minhas viagens – começo de 1964, não me lembro se no Recife ou em São Luis do Maranhão.

De uma índia, pendurada em uma árvore pelos pés – ao lado, dois sujeitos empunhando facões. Troféu. Pela expressão de seus caçadores, tanto fazia se fosse uma onça, um bugio ou uma índia.

Devia ter comprado o jornal, vencendo o nojo diante da imagem, para recortar a foto e guardá-la. Sua existência, hoje, é controvertida. Sumiu, nunca mais foi vista. Pena, pois o valor documental seria inestimável. Comentei-a em uma matéria na revista Singular e Plural de Marcos Faerman, em 1979, a propósito da expulsão dos pataxós no sul da Bahia, região do Monte Pascoal. Tomei-a como emblema da relação entre índios e colonizadores. De outros casos exemplares: a dinamite jogada na aldeia dos cintas-largas, a caça aos wamiri-atroari para abri a estrada de Manaus a Boa Vista, os presentes de roupas contaminadas com varíola. E tantos outros. Há uma matéria de Faerman, publicada em Versus em 1976, de alta voltagem literária – está na coletânea Com as mãos sujas de sangue (Global, 1980); monólogo interior, sobre procurar índios chetá que não existiam mais. Assim como os xokleng. Colonização de boa parte do Paraná foi desse modo: a linha de frente, especialistas contratados para matar índios; para limpar o terreno.

Mesmo ficando apenas na segunda metade do século 20, poderia ir longe. Preencheria laudas. Há uma dívida moral, é isso o que importa. Vem sendo resgatada em pequenas parcelas, através de decisões judiciais recentes, respaldando iniciativas da Funai. Uma delas, devolvendo terras aos pataxós. Outra, corrigindo o esbulho dos xavantes no Mato Grosso do Norte, já comentado aqui, em http://claudiowiller.wordpress.com/2012/12/16/fazendeiros-e-xavantes-em-mato-grosso/ .


Um problema, a lentidão do trajeto judicial. Trinta anos, no caso dos pataxós e dos xavantes. A execução recai sobre uma segunda geração de colonizadores, que se consideram proprietários legítimos. Por isso, o Mato Grosso do Sul, onde a fronteira agrícola se expandiu de modo acelerado, ferve. São os guarani-caiovás e agora os terenas. E haverá mais, com certeza. Índios baleados atestam a reincidência nos velhos métodos. A estratégia dos ruralistas, além de reagirem a bala, com apoio incondicional dos governos estaduais, é tentarem mudar a legislação, impedindo novas devoluções de territórios indígenas. A dos índios, de entidades e grupos que os apóiam, é a mobilização e ocupação.

Penso que, em alguns casos, cabe indenizar proprietários – afinal, impasses se deram por causa de políticas públicas insensatas. Durante os governos militares, a ordem era ocupar espaço, colonizar a qualquer preço. O comandante da base aérea, quando eu voltava do Xingu em 1967, dizendo-me que índios deviam aculturar-se, pois eram todos brasileiros. Aquela concepção de unidade nacional – reminiscências do fascismo. Governos estaduais distribuíram títulos de propriedade e legitimaram ocupações à vontade. Os agricultores de Roraima saíram, ao fim e ao cabo; alguns foram plantar arroz em outros lugares e voltaram a prosperar. Terá o governo, coadjuvado por setores esclarecidos, competência e condições para promover uma negociação sensata? Chegarão a soluções que restituam terras tradicionais aos índios, superando os atuais impasses? Ou passará à história por haver desmontado de vez a FUNAI e reverter o processo que começou com a criação do parque do Xingu?

 

28. Junho de 2013, Marcos Faerman – 1944-1999

 

Teria completado 70 anos a 5 de abril. Ao encaminhar o que escrevi sobre ele a Laura Faerman, que faz levantamento de sua obra, achei, disponível no meio digital, o prefácio de Com as mãos sujas de sangue, de 1980 – está em http://www.revista.agulha.nom.br/ag61faerman.htm. Mas não encontrei dois artigos, na Zero Hora e no jornal O Escritor, que havia posto on line a propósito do lançamento de Versus – páginas da utopia (editora Azougue 2008, org. de Omar de Barros Filho). Estranho, links desaparecerem, isso não costuma acontecer. Recuperei os arquivos em word. Reproduzo-os aqui. O primeiro, logo após a cremação, 13 de fevereiro de 1999, havia enviado para Ivan Pinheiro Machado, que encaminhou ao jornal gaúcho (Marcão me apresentou Ivan, recomendando-lhe que eu preparasse uma coletânea de Antonin Artaud, assim iniciando uma relação produtiva com a L&PM – essa é uma das muitas que fiquei lhe devendo). O segundo, no jornal da UBE, dias depois – repete, mas adiciona. Reponho-os no meio digital – são seis laudas, é extenso para publicação em blog, mas assim ficam devidamente registrados. Voltarei ao tema, é claro.

1. O artigo da Zero Hora:

Ars longa, vita brevis, é o que dizem dos criadores que morrem cedo. Aplica-se a Marcos Faerman, cuja vida intensa e produtiva – por suas realizações como repórter, criador e editor de periódicos, professor de jornalismo, escritor e administrador cultural – encerrou-se a 12 de fevereiro de 1999, aos 55 anos. Mas, se houvesse chegado aos 70, sua quantidade de idéias e projetos também sobraria. Era daqueles cuja criatividade e talento não se ajustavam ao limite dos ponteiros de relógios. Regido pela paixão, transmitia sempre a impressão de iniciar uma insurreição libertária, no jornalismo, na política, na administração cultural e no dia-a-dia.

Gaúcho (gremista fanático), depois de militar na imprensa estudantil e trabalhar no Zero Hora, veio em 1968 para São Paulo e o Jornal da Tarde, onde permaneceu até os anos 90. Dispondo de liberdade de atuação, fazia reportagem geral, inclusive policial, e, ao mesmo tempo, matérias no Caderno de Leituras sobre Herman Melville, Jack London ou Malraux, sobre Baudelaire ou Rimbaud, autores aventureiros ou transgressivos.

Levado por outra figura anárquica do jornalismo, seu conterrâneo Tarso de Castro, colaborou no Pasquim. Integrou a equipe dos inovadores Bondinho e Ex. Em 1975, deu sua grande contribuição à florescente imprensa alternativa daquela década, com Versus, jornal-ponte, encontro de diferentes vozes, tendências e preocupações, reduto da resistência interessado em tudo o que fosse revolucionário e instigante, a ponto de publicar, em primeira mão, o Van Gogh de Artaud. Propunha-se ao diálogo latino-americano, à aproximação com o restante do continente, pelo concurso de Eduardo Galeano (cuja Crisis tomava como modelo), Diane Belessi e outros. De modo pioneiro, abriu uma editoria para movimentos afro-brasileiros, e acompanhou de perto grupos e movimentos feministas.

Foi uma realização da sincronicidade encontrar Faerman em 1977, e ele imediatamente convidar-me para fazer uma seção dedicada à poesia em um jornal que, desde o primeiro número, me pareceu, de toda a imprensa alternativa, aquele onde gostaria de escrever. Cito o episódio como um dos inumeráveis exemplos de seu generoso empenho em publicar e divulgar todos em quem vislumbrasse competência para alguma coisa.

Descontente com o alinhamento de Versus, deixou-o em 1978, para criar a revista Singular e Plural. Eclética, fervilhante, durou apenas seis números; certamente, não por falta de assunto e substância, mas por excesso. A ecumênica redação, com Audálio Dantas como editor, Cláudio Abramo e Rodolfo Konder, em parceria na editoria de Internacional, e outros jornalistas de primeira linha, abria-se para então estreantes como Miguel de Almeida e Leão Serva (assim como, em Versus, havia-se feito notar Wagner Carelli, entre tantos outros em evidência que começaram ou se projetaram nas publicações de Faerman).

Dedicou-se, também, à comunidade judaica, editando Shalom e a revista da Hebraica. Esteve à frente da tentativa de uma edição brasileira de Crisis, que durou dois números. Lecionou jornalismo na PUC de Santos e, ultimamente, na Cásper Líbero, responsável por um arrojado jornal-laboratório, Esquinas. Depois de organizar eventos culturais em outros lugares, como o SESC, dirigiu, de 1993 a 95, o Departamento de Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura. Pode ter surpreendido, ao escolher o patrimônio histórico e não uma assessoria de comunicações. Mas, jornalista-historiador, repórter-arqueólogo, para ele vanguardismo e resgate da memória eram faces da mesma moeda. Saber enxergar o passado conferia solidez a suas inovações. Em 1994, comemorou os 440 anos do IV Centenário de São Paulo a seu modo: ao mesmo tempo, no Solar da Marquesa, a exposição fotográfica sobre os anos 50; no andar de cima do casarão histórico, a instalação de Guto Lacaz, alegoria do período; lançou a revista Cidade, toda de depoimentos; durante o Carnaval, em pleno marco zero da cidade, promoveu um festival de teatro ao ar livre incluindo a ousada encenação dos Mistérios Gozosos por Zé Celso.

Evocar mortos faz sentido quando deixam algo a ser apontado como modelo, lição de vida. No caso de Faerman, principalmente a valorização da cultura literária, em seus cursos, palestras e artigos sobre história da reportagem. Condensado, seu ideário jornalístico está no que escreveu para a coletânea Repórteres, preparada por Audálio Dantas (Editora Senac, 1998). Novamente, traçou uma história do jornalismo e da reportagem indissociável daquela da literatura, ao começar em Heródoto e passar por Daniel Defoe e todos os escritores que foram cronistas de seu tempo. Reiterou a equiparação de John Reed, James Agee e Tom Wolfe, e John dos Passos, André Malraux e Steinbeck. Insistiu em que o jornalista tem que ler muito, pesquisar, vasculhar bibliotecas, sebos, livrarias, bancas. Jamais deixou de praticar essa recomendação: leitor voraz, quantas vezes não me telefonou, entusiasmado pela descoberta, em alguma loja de livros baratos, dessa ou daquela obra que, por algum motivo, merecia interesse.

Marcão, como o chamavam, foi o inimigo da burocratização do jornalismo, da edição segundo fórmulas e modelos. O defensor da grande reportagem, do jornalismo-aventura, no qual é preciso ir lá, envolver-se; o oposto do que é feito nas mesas da redação, recebendo informações passivamente das agências, quando muito checando-as pelo telefone. Chegou, por isso, como repórter, a desvendar crimes. O estilo literário nunca o impediu de obedecer ao requisito fundamental da precisão e clareza nos quando, onde e o que. A capacidade de aliar criatividade à informação factual fez que recebesse tantos prêmios, inclusive o Esso. A eloqüência e cultura o levaram a ser convidado a dar cursos e palestras.

Será lembrado, creio, como o mais radicalmente literário dos nossos repórteres. Sua coletânea Com as mãos sujas de sangue (Editora Global, 1980) merece releitura pelas ousadias até hoje insuperadas, as reportagens na primeira pessoa, em tom de crônica, monólogo interior e prosa poética. Não-linear, encaixava histórias dentro de histórias; metalinguístico, interrogava-se sobre o que estava acontecendo; procurava, especialmente em dramáticas matérias sobre grupos indígenas extintos ou em desaparição, apontar para a informação perdida, o não-dito, os silêncios irreversíveis. Deixou textos que se sustentam fora do âmbito jornalístico; que seriam lidos com prazer e atenção se apresentados como ficção. Nada tenho a retificar ao que escrevi sobre ele, na ocasião, em dez páginas de prefácio. E teria muito, muito mesmo, a acrescentar.

2. O artigo em O Escritor:

Com precisão, citando as imagens poéticas em um texto de Marcos Faerman sobre literatura e futebol, Manuel da Costa Pinto mostrou, na Revista Cult, sua qualidade literária, em um editorial a propósito da morte desse jornalista, a 12 de fevereiro, de infarto, aos 55 anos. Luís Fernando Veríssimo, em O Estado de S. Paulo, ao lembrar o início da carreira jornalística de ambos em Porto Alegre, antes de Faerman mudar-se para São Paulo, passando da Zero Hora para o Jornal da Tarde e para a imprensa alternativa, evocou-o como apaixonado pelo jornalismo, apaixonado pela vida e pela criação. Tudo isso transparece em sua derradeira reportagem, publicação póstuma na revista Problemas Brasileiros de março-abril, sobre o atualíssimo tema do crime organizado, corrupção e lavagem de dinheiro. Lá estão, mais uma vez, o texto fluente, as análises minuciosas, as afirmações sempre fundamentadas em informação, os entrevistados humanizados por alguma breve observação, a boa perspectiva histórica. Neste O Escritor, em seu número anterior, o artigo em que Faerman dava conta de minha tradução de Lautréamont: passional, entusiástico e, ao mesmo tempo, exato ao identificar os ecos shakesperianos em Os Cantos de Maldoror, também corrobora o que Veríssimo e Costa Pinto escreveram sobre ele.

Se retorno ao assunto Marcos Faerman, o Marcão, é porque aqui, neste jornal da UBE, veículo de uma confraria, estou em casa; por isso, à vontade para expressar-me na primeira pessoa, tratando da parceria que incluiu, em 1977, Faerman chamar-me para colaborar em seu Versus e, no ano seguinte, na revista Singular e Plural. E, mais recentemente, na Secretaria Municipal de Cultura, para preparar a revista Cidade. Também fez a apresentação de um de meus livros, e me converteu em conferencista de plantão sobre poesia para seus alunos de jornalismo. Prefaciei sua coletânea de reportagens Com as mãos sujas de sangue (Editora Global, 1979), entre outras ocasiões nas quais o apontei como o mais literário dos nossos jornalistas, um ousado cultor do estilo, capaz de fazer com que o tom de crônica, prosa poética e monólogo interior sempre reforçasse e nunca prejudicasse a clareza da informação. Por essa razão, convidei-o para dar cursos e palestras sobre literatura e jornalismo, história da reportagem e temas afins, que ele dominava com tamanha maestria (inclusive aqui, em ciclos da UBE).


Versus foi, desde o primeiro número, antes de conhecer Faerman, o jornal em que eu teria gostado de escrever. No restante da imprensa alternativa, assim como na grande imprensa, política e cultura sempre foram assuntos separados, alojados em editorias distintas. Conforme o veículo, instrumentalizada politicamente ou sujeita aos ditamos da moda e do mercado. Em Versus, não: publicar textos de qualidade, veicular o que houvesse de avançado e transgressivo na criação artística e intelectual, já era um gesto político. Tentar realizar uma espécie de revolução cultural, não como imposição de um sistema fechado, de algum conjunto de verdades fixas, mas sob a ótica libertária, privilegiando a manifestação plena da imaginação e criação, combatendo a burocratização do saber e da informação, isso foi o que deu início a nossa colaboração e amizade.

Seu ideário jornalístico está condensado no que escreveu para a coletânea Repórteres, preparada por Audálio Dantas (Editora Senac, 1998). Nela, junto com a defesa enfática da grande reportagem, do jornalismo-aventura como o oposto do jornalismo-burocracia, traçou uma história do jornalismo e da reportagem indissociável daquela da literatura, a partir de Heródoto, passando por Daniel Defoe e todos os escritores que foram cronistas de seu tempo. Insistiu na mesma pregação que fazia em seus cursos e palestras: que o jornalista tem que ler muito, pesquisar, vasculhar bibliotecas e livrarias.

Allen Ginsberg intitulou de Visions of the Great Rememberer um ensaio sobre seu amigo Jack Kerouac. Rememberer, termo difícil de traduzir, designa aquele que tem a capacidade de lembrar-se, o detentor da memória. Faerman tinha essa qualidade, entre outras. Em algum momento da década de 70, o poeta Roberto Bicelli escreveu um texto, a propósito da demolição do Cine Santa Cecília, afirmando que, em todo lugar onde fosse demolido um prédio histórico, o terreno se tornaria maldito e nada mais nele cresceria ou seria erigido. Sustentava sua argumentação o plano e descalvado estacionamento que ocupou o lugar do antigo cinema. Não sei quando, em que momento dos anos 70 ou 80, Bicelli mostrou seu texto a Faerman. Mas sei que, em 1996, ao preparar um número da revista Cidade sobre a década de 50 em São Paulo, Faerman imediatamente se lembrou dele, pedindo-o a Bicelli e publicando-o na revista. A mesma generosa atenção se evidenciava no modo como redistribuía informação, não só publicando-a, mas atuando como porta-voz, permanente arauto do novo e do estimulante. Era capaz de telefonar, a qualquer hora, para dizer-me que havia descoberto essa ou aquela obra de interesse em uma livraria, sebo, alfarrábio ou banca. Esse era seu modo de relacionar-se com todo o mundo. Foi isso que o tornou tão respeitado pela parcela mais lúcida de seus pares, os Ivan Angelo, Ruy Castro, Leão Serva, Alberto Dines, Rodolfo Konder e outros, que atenderam a seu convite para tomar parte no ciclo sobre Jornalismo e Literatura que coordenou para nós.

Partilhamos opiniões, parâmetros, uma perspectiva cultural. A amizade foi resultado da cooperação cultural, da identidade de propósitos; o oposto da emulação inconseqüente, da simples ação entre amigos. Os inumeráveis exemplos, dos quais citei alguns, de uma conduta notável em matéria de apreço, solidariedade, respeito pela criação alheia, abrindo os espaços a seu alcance para aqueles em quem vislumbrasse qualidades, permitem mencioná-lo para ilustrar valores. Ao longo de sua atuação como criador e animador cultural, movido por um firme compromisso com a liberdade de expressão, o pluralismo, o resgate da tradição aliado à defesa do novo, Marcos Faerman encarnou, como poucos, uma elevada ética da cultura.

 

Alastra-se. Exemplos, de uma lista que poderia ser bem mais extensa:

◦ Outro dia assinei contrato com editora, pediram-me que mandasse de volta com firma reconhecida. Estranhei, esclareceram que agora é exigência do MEC e outros órgãos públicos. Quando compram livros, o editor tem que mostrar o contrato com as assinaturas autenticadas. E o reconhecimento de firma, banido em uma das tentativas de desburocratização, vai retornando. Cartórios – instituição brasileira – agradecem.

◦ Algo que simplifica, nas autorizações mais simples de publicação, em contratos para dar palestras etc, é colar assinatura digitalizada ao arquivo e enviá-lo anexado ao e-mail. Não na Biblioteca Nacional: autorização de publicação – pela qual, nesse caso, não recebo nada –, vale se assinatura for de próprio punho. Se coincidir com greve dos correios, complica. Nada de dar tréguas ao desperdício brasileiro de papel.

◦ Em um município do Grande São Paulo, reformaram administração. Contratações foram centralizadas no departamento de suprimentos. Resultado: Secretaria de Cultura não consegue contratar ninguém, enfrenta toda espécie de dificuldades, chegarão ao fim do ano com verbas para exercício findo, como se não tivessem feito nada.

◦ Em outro município próximo a São Paulo, centralizam comunicações em uma Secretaria de Comunicações. Nem aí para a cultura, têm coisas mais importantes para tratar. Resultado: organizador do evento literário dardejando mensagens pelo Facebook, na tentativa de divulgar. Tive um terço do público que poderia ter vindo, calculo. Desperdício, inclusive do meu cachê.

◦ Outro dia, em uma cidade importante, com vida cultural ativa: organizadora da festa literária, parcialmente subvencionada pela prefeitura local, comentou que atender às exigências para que a subvenção saísse lhe deu mais trabalho que a organização do evento em si.

◦ Universidades e seus órgãos de fomento também têm procedimentos lindinhos. Quando você é transportado, tem que guardar o ticket de embarque e mandar de volta. Como se, comprovadamente, não houvesse estado lá. Outros órgãos públicos também pedem.

◦ Florianópolis, 2011: convidado, com outros autores, para dar palestra. Lá é assim: quem receber, for remunerado, tem que se cadastrar para recolher tributo local. Uma repartição, pomposamente denominada de centro da cidadania, assistência ao cidadão ou algo assim, cheia de gente, pode-se perder a manhã. É receber senha, aguardar chamada, entrar em uma sala cheia de funcionários, cada qual na frente de um monitor e um teclado. Examinam seus documentos e digitam seus dados, CPF, RG e tal. Fazem que computadores desempenhem mesmo serviço de máquinas de escrever. Aí, você vai ao guichê do banco instalado na repartição, paga o tributo e volta, mostra o comprovante; só então o liberam. Formulário on line, nem pensar, não acreditam que você exista se não comparecer pessoalmente. Menos ainda, quem te contratou cuidar disso e recolher o tributo. Modernizaram: dei palestra lá em 2005, não era assim. Soube que outras municipalidades vêm adotando o mesmo procedimento. Muito lógico: se não fosse assim, o que fazer com todos aqueles funcionários? Como ocupá-los?

◦ Alguns agentes públicos têm lances de gênio. Um deles – em um dos eventos recentes do qual participei – perguntou à coordenadora o motivo de trazerem conferencistas de fora, de outro país. Pediu justificativa por escrito da contratação de estrangeiros no lugar de brasileiros. O famoso excesso de zelo. Também faz parte da lógica da burocracia. Funcionários se preocupam em salvar o pescoço ou a cauda. Melhor errar por excesso, que no máximo resulta em reclamação verbal, do que por omissão, que pode render processo administrativo, prejudicando-lhe a carreira.

◦ Prefeitura de São Paulo, e muitas outras: se você propõe contratação de alguém, tem que justificar – não basta mostrar currículo (que exigem assinado, e se deixassem, pediam para reconhecer firma…). É claro que qualquer coisa escrita serve, não vão entender mesmo, é só para constar.

É circular: um complexo sistema de fiscalização da arrecadação de tributos cuja receita servirá para cobrir o custo desse complexo sistema de fiscalização da arrecadação de tributos. Ineficaz, por ser formal, fiscalização incidir sobre atividades-meio e não sobre a atividade-fim. Há pior, é claro. As pesquisas que atrasam ou são interrompidas à espera de guias de importação. A dificuldade de montar exposição com obras vindas de fora. A demora para abrir e fechar empresa. As transmissões e sucessões, o trabalho que dá para morrer, e não só para viver. Que a ensaísta Susan Sontag me desculpe por usar doença como metáfora – ela escreveu livro a respeito – mas a comparação é mesmo com metástases, bactérias resistentes ou vírus que proliferam. Todos estão cansados de saber que isso atrasa o país, que gera desperdício de recursos, o qual, por sua vez, resulta em sobrecarga tributária. Incomoda-me uma quantidade de pessoas conferirem estatuto de realidade ao absurdo, achando isso normal e que a vida é assim mesmo. De vez em quando, simplificam algum procedimento – mas, imediatamente, outro administrador iluminado inventa um novo modo de complicar.

 

Para o historiador Hans Jonas, a queda do império persa, derrotado por gregos e destruído por Alexandre, foi causada pela burocratização. Ineficiente, por isso incapaz de fazer frente a adversários numericamente inferiores. Análises semelhantes cabem com relação à decadência do império romano. Para os moralistas tradicionais, a causa teria sido a depravação. Coisa nenhuma, pois o império atingiu sua extensão máxima e o apogeu da prosperidade sob Trajano e Adriano, por volta de 100 d.C; portanto, após devassos inigualáveis como Nero e Calígula. Além da instabilidade política, das sucessões resolvendo-se através de confrontos entre lideranças militares, aquela extensão territorial obrigou a manter uma burocracia cada vez mais pesada e ineficiente. Drenando recursos, obrigando à tributação extorsiva, seu custo piorou a distribuição de renda, acentuou a desigualdade social e provocou o colapso. Desconfio que esse enfoque também ajudaria a interpretar o colapso asteca (inexplicável, segundo Spengler). E crises chinesas, do Império do Meio. Além, é claro, do fracasso soviético.

É isso o que nos reserva o futuro? Não aprendemos com as lições da história? Continuo outra postagem. Esta: http://claudiowiller.wordpress.com/2013/11/12/a-burocracia/ .

Havia observado que o relato de absurdos poderia estender-se. Estendo-o. Agora, algo sobre universidades. (Em tempo, acrescentado a 01/12: vejam o relato de Eduardo Ribeiro Toledo, nos comentários a este post) (e também o comentário de Cezar Bergantini – pedirem atualização de atestado de óbito é, sem dúvida, paranormal)

a) Uma, federal – como não vinha o pagamento combinado por minha palestra, o professor que me convidou foi verificar o que estava havendo. Disseram-lhe que faltava eu assinar um documento – que ninguém me mostrou, precisaria ter adivinhado. Chegou anexado ao e-mail. Colei a assinatura digitalizada e mandei de volta. Não, responderam – tinha que ser do próprio punho. Assinei e postei por sedex. Uma declaração de que eu havia estado lá e dado a palestra. Algo inútil, completamente redundante, pois é óbvio que estive lá, e ademais quem deveria declarar que dei a palestra, direitinho, seria o departamento que me convidou, não eu. Vezo burocrático de juntar papel.

b) Outra federal – ano passado, ajuda de custo por ter sido banca de tese dando voltas, passando de um funcionário para outro, nenhum sabia dar andamento.

c) USP… Professores que se deixam de burocracia tomar-lhes mais tempo que ensino e pesquisa… Ponto alto, a ocasião em que fui à ECA, pedir certificado de que havia ministrado dois semestres de pós-graduação como professor convidado em 1987 – segundo a funcionária que me atendeu, impossível, documentos haviam sido destruídos em um incêndio, por isso não havia como comprovar. E eu com isso? Não podiam pedir declaração a algum chefe de departamento? Incêndio, esse, foi em 2001, já havia como verificar algum modo de repor informação perdida.


d) Escola de Sociologia e Política, mesma coisa – fui lá, pedi segunda via do meu bacharelado, funcionária me disse que não seria possível, pois documentos antigos haviam sido guardados, ninguém mais sabia onde estavam. É claro que, nos dois casos, podia ter chamado um advogado, ameaçado com alguma providência, afinal, trata-se de um direito meu. Confluiriam duas burocracias, a jurídica e a universitária, fazendo-me perder mais tempo ainda. Espanta-me a naturalidade com que dizem essas coisas, que não tem, não pode, e ponto final. Um Procon para cuidar de burocracias inoperantes? Ouvidorias?

e) Melhor, esse episódio: um intelectual conhecido, admitido na USP. Doutorado dele havia sido em Yale. Diploma de doutorado de Yale é em latim. Secretaria do departamento pediu tradução juramentada do diploma de Yale. Na Letras USP, rodeado de professores de latim, mas não, exigência da casa ou do MEC, sei lá, tem que ser tradutor juramentado, por mais que o texto do diploma seja óbvio. Até achar um tradutor juramentado do latim, rodou bastante.

Minhas reclamações da burocracia não são apenas por causa do desconforto e perda de tempo. No caso das universidades, atrasa a produção do conhecimento. Em outros campos, não evita desastres, como temos visto. Complica atendimento médico – há gente morrendo de burocracia, não de câncer ou infarto. Acesso à educação, obras de infraestrutura e o restante. A justificativa: evitar desvio de recursos. Como é inócua. São Paulo é uma cidade edificada sobre fraudes na fiscalização. Assistimos a episódios como esse, recente, do helicóptero de um parlamentar sendo utilizado para transportar cocaína, o combustível pago com verba pública.

A propósito, recentemente postei algo sobre correios, que agora atrasam sistematicamente entrega do caro sedex. http://claudiowiller.wordpress.com/2013/09/12/em-favor-da-privatizacao-dos-correios/ Reparem que falei em privatização como hipótese. Comentários, aprovando. Um, dizendo que estava querendo tirar o pouco que nos restou. Sim – choro todo dia, empapando lenços com lágrimas pelas irreparáveis perdas da Mafersa, Coelba, Cobrasma, Cosinor e outras siglas. Empresas privadas não são boazinhas. Basta experienciar o atendimento pelas concessionárias – por exemplo, esse incrível sistema de reconhecimento de voz pela atual telefônica, só para não precisar contratar funcionários. Cornelius Castoriadis, criador junto com Claude Lefort do movimento ‘Socialismo ou barbárie’, havia publicado artigo, há décadas, sobre a União Soviética como burocracia total, em contraste com a burocracia parcial do capitalismo. Em alguns países de orientação mais pragmática, o peso do estado é grande – mas funciona. É questão de querer chegar lá, começando pela crítica às aberrações e denúncia dos retrocessos, dos micropoderes burocráticos tentando recuperar espaço ou, quando possível, ampliá-lo. A propósito, aquela incrível repartição de Florianópolis, a que cuida de cadastros, comentada na postagem anterior sobre burocracia – aquilo ainda continua lá do mesmo jeito?

 

31. Novembro de 2014, Manoel de Barros – 1916-2014

 

Manoel de Barros foi, declaradamente, surrealista, conforme suas poucas entrevistas. A meu ver, um grande surrealista brasileiro. Em meu artigo e na palestra que dei sobre ele em Campo Grande, ano passado, procurei mostrar como em sua poesia se encontram o regional e o universal. Um poeta do Pantanal, interlocutor de índios e caboclos, e um leitor de Baudelaire, Rimbaud e o que se seguiu. Por isso, as comparações com Octavio Paz, Herberto Helder e Radovan Ivsic. Este artigo:
www.academia.edu/4676460/Manoel_de_Barros_novo
Quantidade de acessos à página no Academia.edu– 455 até a divulgação da sua morte, agora são mais, pois reproduzi o link no Facebook – mostra, evidentemente, interesse por sua poesia; e também que a bibliografia sobre ele ainda é pequena: por isso, leitores que fazem pesquisa pelo Google acabam deparando-se com meu texto.
Um episódio engraçado: de volta de Campo Grande, no dia seguinte, fui, conferencista convidado, a uma celebração do Dia do Livro na Câmara Municipal de uma localidade próxima. Precedeu-me um orador da Sociedade Bíblica, que recitou o “No princípio era o verbo” do apóstolo evangelista. Imediatamente, repiquei com o “No descomeço era o delírio” de Manoel de Barros – este poema, que a seguir li na Casa das Rosas:


Ótimo haver a edição da poesia completa dele pela Leya. Contudo, sinto falta de uma edição crítica, com notas, inclusive dando variantes e circunstâncias dos poemas, um bom resumo biográfico, apoio crítico. Beneficiará pesquisadores e o número crescente de leitores.
Ainda quero dizer e escrever algo sobre “Gramática expositiva do chão” – para mim, aula de pensamento analógico e um ponto alto da poesia em prosa no Brasil. Aqui, uma espécie de ‘suite’ do meu artigo, alguns tópicos ainda a serem desenvolvidos.

Naqueles encontros de poesia de 1996-97 da Secretaria Municipal de Cultura, trouxemos Manoel de Barros. Sessão foi na biblioteca de Vila Mariana. Conferencistas foram Berta Waldman e José Geraldo Couto. Graça Berman fez leitura de poemas. Manoel não falava em público, como sabem. Apenas assistiu, impassível. Mas, encerrada a sessão, ficou conversando animadamente com o público, formou-se uma rodinha a seu redor e a sessão se estendeu por mais 40 minutos. Sorte de quem foi. Um perpétuo lamento por, naquela época, não dispormos da tecnologia atual, da facilidade para gravar e divulgar essas ocasiões.
Em tempo: link da entrevista dele a José Geraldo Couto na Folha de São Paulo, em 1993, na qual se declara surrealista: http://acervo.folha.com.br/fsp/1993/11/14/72/4849640

 

32. Novembro de 2014, A dissonância cognitiva

 

Você posta sobre crescimento do desmatamento na Amazônia. Alguém responde, mostrando uma notícia em alguma página de internet da qual você nunca ouviu falar, de que desmatamento caiu. Você observa que o crescimento do desmatamento na Amazônia saiu em jornais. A resposta: jornais não são confiáveis, representam interesses de classe, são controlados por oligarquias familiares.

Em resposta à sua postagem sobre crescimento do desmatamento na Amazônia, alguém diz que sim, é grave, mas floresta amazônica se recompõe rapidamente. Você escreve que mogno (muito extraído pelo desmate clandestino) leva 50 anos para crescer. Nenhuma resposta.

O deputado Jair Bolsonaro e seus adeptos defendem a volta dos militares ao poder, através de um golpe. Opositores ferrenhos do atual governo, considerado comunista, embora Bolsonaro seja filiado ao PP, da base aliada. Você critica o atual governo. Imediatamente, alguém associa sua crítica ao movimento encabeçado por Bolsonaro e o classifica como adepto do fascismo, em um óbvio erro lógico, uma confusão das partes e do todo.
Leon Festinger (1919-1989) foi um dos fundadores da moderna Psicologia Social. Aluno e seguidor de Kurt Lewin, transformou a dinâmica de grupo em disciplina, campo de estudos. Sua obra mais importante é “When Profecy fails” (Quando a profecia falha), de 1959. Festinger acompanhou um grupo encabeçado pela devota Dorothy Martin, aliás Marion Keech, que anunciou o fim do mundo, provocado pela colisão com outro planeta. Membros do grupo se desfizeram de todos os seus bens, pois o mundo ia acabar mesmo, e passaram a aguardar o desfecho, previsto para a noite de 21 de dezembro de 1954. A pesquisa de Festinger focalizou as reações dos devotos à falha da profecia. Alguns mantiveram firmemente sua crença. Interpretaram que as orações do grupo haviam neutralizado o planeta, impedindo sua colisão com a Terra.

Apresento um exemplo simples de como funciona a dissonância cognitiva. Suponhamos que alguém vá comprar um automóvel, e tenha que escolher entre dois modelos, com o mesmo preço e características; digamos, um da Fiat e outro da Volkswagen. Fica com o Fiat. O automóvel escolhido apresenta defeitos, mau desempenho, revela-se claramente a pior opção. Em vez de arrepender-se e rever sua avaliação, o comprador passa a defender incondicionalmente o Fiat, exaltando suas qualidades. Torna-se um detrator do Volkswagen, não para de criticá-lo e desqualificá-lo, bem como a todos os proprietários de veículos da marca.
Poderia adicionar inúmeros exemplos. Um deles, o eleitor do partido P, em oposição ao partido Q. À medida que o governo do partido P abandona seu programa, faz aliança com oligarquias e tráfico de influência, esse eleitor de P torna-se um sectário, um antagonista fanático do partido Q. Masmo em um regime pluripartidário, nenhuma chance de transferir-se para o partido R, que defende a renovação da política, ou para o partido S, que defende o resgate do programa original do partido P – suspeita que sejam todos financiados pela CIA.
Dei aula sobre Festinger, por volta de 1970. A pesquisa com os compradores de automóveis é real, embora as marcas fossem outras. Não esperava que sua contribuição ganhasse tamanha atualidade. O meio digital possibilita a manifestação de opiniões da militância através de blogs, redes sociais e outras páginas. Torna-se um gigantesco laboratório; uma colossal aula prática para expor temas de Psicologia Social.

 

33. Junho de 2015, Venezuela: estive lá. E faz algum tempo pretendia postar isto

 

Foram seis belos dias. O teatro Teresa Carreño, equivalente local do Municipal, em um parque, ao lado de um museu, lotado, público atento para ouvir 54 poetas, 28 da Venezuela e 26 de outros países. Havia até da Austrália, China e Japão. Organização exemplar. Monitores bilíngües para nos acompanhar. Hotel Hilton Caracas, dos melhores 5 estrelas em que estive. Política cultural de qualidade: deu para comprar bons livros, baratos, publicados pela Monte Ávila e El perro y la rana. Minha participação está em uma bela antologia: 3er Festival mundial de poesía – Venezuela 2006, Fundación editorial el perro y la rana, Caracas, maio de 2007.

Hoje não é mais assim. Dinheiro acabou. Festival continua, mas na base do voluntarismo, não conseguem oferecer passagens, infraestrutura e “viático”, como denominam o cachê. Hilton foi estatizado, piorou. Boas editoras como a Monte Ávila, encampadas, não têm mais distribuição.

Desconfiado de que chavismo seria mais um caudilhismo latino-americano, cheguei avisando que não estava disponível para propaganda. “No firmo nada”, disse para os organizadores, simpaticíssimos, hospitaleiros. Até um manifesto anti Bush eu recusei assinar, mesmo havendo encabeçado o manifesto brasileiro quando invadiram o Iraque. Escolhi poemas de intimismo lírico; podia ter apresentando algo como os que lia nas manifestações contra os militares na década de 1970. Apreciaram, aplaudiram-me com entusiasmo. Leitura do original com a projeção da tradução em espanhol ajudou. Que pena não haver registro digital.

Mas foram recebidos friamente poetas querendo ser arautos de uma revolução, com textos gotejando o sangue de mártires da militância. Algumas apresentações, não vaiaram mas não se deram ao trabalho de juntar as palmas das mãos para fazer ‘clap clap clap’. Soube depois que público era composto por estudantes universitários; opunham-se a Chávez e logo sairiam às ruas em protesto contra a expropriação da emissora de TV de oposição.

Passeei. Fiz compras, daquelas inevitáveis quando se viaja. Fui de metrô ao centro de Caracas, parecido com o Tatuapé no trecho da Radial até a praça Silvio Romero. Tudo no shopping era importado. Levei meias e cuecas da Lupo, camisa chinesa, colônia francesa. Nenhum produto venezuelano. Na rua, muro grafitado com dizeres de que capitalismo mata não sei quantas crianças por minuto em letras pretas, bem grandes.

Além de Caracas, participantes apresentavam-se em outras localidades. Podia ter-me cabido um desses lugares sensacionais da Venezuela, como Mérida, nos contrafortes andinos e com a cachoeira mais alta do mundo, ou Maracaíbo, com o enorme lago à beira mar. Coube-me Barinas. Foi uma viagem no tempo, qualquer coisa como ir parar em Presidente Prudente em 1950. Hotel, prédio de 1930, por aí, reformado para que os quartos tivessem banheiro. Apresentação acabou sendo em Pedraza, a uns 60 ou 70 km, possibilitando ver mais do país. Barinas tem mais de 300.000 habitantes e fica na parte agriculturável da Venezuela. Vi campos vazios, pastagens onde despontava algum solitário boi ou vaca. No aeroporto, um balcão em que vendiam queijos feitos na região.

Venezuela é um país maravilhoso. Tem montanhas andinas, selva amazônica, litoral deslumbrante, grandes extensões de terra para agricultura. Mas não produz nada, não planta nada, não fabrica nada. Culturalmente avançada, porém economicamente atrasada. Mantém-se com a exportação de petróleo. Até a carne bovina é importada do Brasil. Antes, oligarquias ficavam com a receita do petróleo, distribuíam-na entre seus pares e gastavam em obras públicas, rasgavam autopistas em Caracas – uma delas, logo atrás do ex-Hilton, impossibilita acesso a pé a uma reserva florestal, coisa típica de sociedade muito desigual, estratificada, um planejamento só para usuários de automóveis mas que nunca impediu os “paros”, os enormes congestionamentos. Com Chávez e o bolivarismo, passou-se a distribuir uma parte para os pobres. Penso que deixaram de assimilar algumas lições brasileiras, nossos mecanismos para promover desenvolvimento, BNDES, EMBRAPA, INCRA, crédito rural conjugado à ameaça de ocupação pelo MST, obrigando proprietários a produzir. Chavistas hostilizam a economia de mercado e o capital privado, mas não criaram alternativas. Sequer tentaram replicar o modo soviético, investimento em produção via planejamento central. Comentei com Floriano Martins – indicou-me para aquele festival e me publicou em uma boa antologia venezuelana de surrealismo, Un nuevo continente – que, quando a cotação do barril de petróleo caísse, seria o caos. Não deu outra. Hoje, filas para comprar comida, faltam bens de primeira necessidade, inflação e desemprego crescem. Resposta do regime é endurecer, fechar-se mais. Prendem opositores, mataram manifestantes, intervieram na mídia. Há gente que gostaria de resolver desse modo aqui.


E agora arrumaram um incidente diplomático de graça, de pura bobeira. Deixassem os senadores brasileiros ir lá, ver os presos. Consequências do que fizeram irão complicar mais ainda para eles. Pode dificultar permanência no Mercosul. (Em tempo, postado alguns dias depois: parece que a iniciativa valeu como pressão, conjugada a outras visitas e manifestações, pois o governo Maduro marcou data de eleição e a libertação de alguns opositores, presos políticos, está sendo anunciada)

Evito generalizar. Governos da tendência bolivarista não acarretam obrigatoriamente catástrofes. Situação da Venezuela difere do que se passa no Equador ou Bolívia. O equatoriano Correa é autoritário mas parece saber administrar. Não obstante, o contraste de Venezuela e Colômbia é interessante. Estive na Colômbia, em outro festival de poesia esplêndido, o de Medellín em 2010. Uma bela cidade, uma região maravilhosa. O esplêndido museu (apresentei-me em uma das salas), a praça com os Botero, quantidade de bibliotecas e auditórios para ler poesia, parques e passeios. Tomei metrô e o famoso teleférico. Nem tudo é assim, é claro: para voltar do mercadão varejista, o “minorista”, ao hotel, recomendaram-me pegar táxi por segurança. Mas conversei com pessoas muito satisfeitas com a melhora da situação colombiana nos últimos anos, disseram-se aliviados por não deparar com cadáveres ao dobrar a esquina. Foi conseguido através da submissão aos Estados Unidos, dirão sectários. E daí? O que importa mais, o bem estar da população ou afirmar autonomia a qualquer preço? Competência, qualificação para governar, não são variáveis decisivas, em um ou outro caso? Discursos não movem nações.

A propósito de grandes festivais de poesia – há muitos, além de Medellín e do que havia em Caracas: precisamos de algo assim no Brasil. Proliferação de festas literárias é positiva, apesar da nota dissonante pelo encerramento da Jornada de Passo Fundo, o mais produtivo dos eventos dessa categoria. Mas a apresentação ao vivo de poetas é outra coisa. Forma leitores e ouvintes. Sequer é antagônica com relação ao mercado editorial: em Caracas e Medellín, livros eram vendidos e circulavam. Fica a sugestão. Disponho-me a colaborar.

 

34. Dezembro de 2015, Contra o uso impróprio, abusivo e cretino das expressões “surreal” e “surrealista” e das qualificações do Brasil como país “surreal” e “surrealista”

 

Volto ao assunto inspirado pela capa da Isto É da semana passada, tratando das peripécias que levaram o ainda senador Delcídio Amaral a ser preso. Virou cacoete: toda vez que acontece algo grotesco, distópico, acham “surreal”. Já me havia manifestado a respeito: https://claudiowiller.wordpress.com/2014/02/02/surrealismo-no-brasil/ . Sou obrigado a insistir: surrealismo é pensamento utópico. “Um movimento de liberação total, não uma escola poética”, como observou Octavio Paz. Método para a exploração do desconhecido, como o caracterizou Alexandrian.

“Brasil, país surrealista”? Antes fosse. Realizaria o lema bretoniano: Amor, Poesia e Liberdade.

A demagogia, o oportunismo, a inépcia, a pilantragem, a esculhambação, a baixaria, a corrupção na política e fora dela, a luta pelo poder e manutenção de privilégios a qualquer preço não são surrealistas. O baixo populismo não é surrealista. A hipocrisia não é surrealista. A mediocridade nunca é surrealista. O mau gosto pode ou não ser surrealista (Breton achava que poderia, e antes dele Rimbaud também viu poesia no mau gosto – mas sob condições muito específicas, penso), embora o bom gosto dificilmente alcance o surrealismo. A burocracia pode ser kafkiana, como em O processo, mas não é e jamais será surrealista. O sectarismo fanático pode chegar a ser dostoievskiano, como em Os demônios, mas não é surrealista. A violência raramente é surrealista, apesar da recomendação bretoniana de pegar um revólver e sair atirando pela rua como ato surrealista mais elementar, e do tratamento que lhe foi dado por Sade e Lautréamont.

Governantes ineptos, federais, estaduais e municipais, nada têm de surrealista, emb0ra possam inspirar realismos fantásticos. A especulação imobiliária não é surrealista. O planejamento urbano regido pela especulação imobiliária tampouco é surrealista. As atuais desgraças coletivas não são surrealistas: nossos apocalipses são patéticos. A degradação ambiental não é surrealista. A lama no Rio Doce não é surrealista; a proliferação dos desastres e a irresponsabilidade das autoridades e dirigentes empresariais que acarretam isso não são surrealistas. Desperdício, sujeira por tudo que é canto, poluição desenfreada, não são surrealistas. Epidemias de dengue e doenças ainda piores não são surrealistas. As ineptas concessionárias de telecomunicações que nos atazanam com tarifas exageradas e péssimos serviços não são surrealistas. Os espantosos serviços brasileiros de saúde pública e o escorchante atendimento privado não são surrealistas. Editores – alguns, publicando obras valiosas sob o ponto de vista surrealista – encerrarem atividades reclamando de livreiros e falta de políticas públicas em favor do livro, decididamente, isso não é surrealismo. Analfabetismo funcional não é surrealista. Chavões não são surrealistas – especialmente o chavão de designar escândalos brasileiros como surrealistas.

O surrealismo no Brasil está em outros lugares. Nas comunidades indígenas não contaminadas, ainda intocadas, que vivem em seu mundo mágico. Em ruínas que afloram inesperadamente; em anacronismos que podem surpreender. Em alguns cultos sincréticos que resistem à hostilidade dos fundamentalistas. No meio da natureza, inclusive aquela que inesperadamente invade o ambiente urbano. Entre marginais visionários; entre alguns artistas criadores em artes visuais, poesia e prosa, cinema, dança, teatro, música, multimeios etc, por vezes pouco reconhecidos, à margem. Em alguns ensaios e artigos mais instigantes. Nas mostras de artistas surrealistas nas quais muito mais gente aprenderia algo, se as visitasse. Encontra-se surrealismo em bons vídeos – obra toda de Buñuel está disponível e Limite de Mário Peixoto está sendo lançado – ou em algum programa de TV que contrasta com centenas de produções medíocres ou horrorosas passando no mesmo horário. Em bons livros que circulam quase secretamente. Amanhã às 16h40. Nos encontros em que se dialoga. O surrealismo está em amantes que têm líricos momentos de enlevo e gozo. Nas manifestações de generosidade autêntica. Na entrega à poesia e ao poético.

Saber enxergar o que se passa é surrealismo. A lucidez é surrealista. A crítica sem concessões ao que está aí é surrealista. Difundir surrealismo como se deve, promovendo a leitura de bons autores surrealistas, isso é ação surrealista. E imprecar quando nos chamam de “país surrealista”. A última grande exposição internacional surrealista, de 1965, chamou-se L’écart absolu – o afastamento ou ruptura absoluta. O texto de Breton apresentando a exposição permite interpretar o vocábulo, de muitos sentidos, como quebra absoluta de paradigmas. A realidade presente convida a tal afastamento, quebra, ruptura; e aos subseqüentes encontros e descobertas, bem longe daqui, logo aqui ao lado.

 

35. Janeiro de 2016, A propósito da exposição “Frida Kahlo – Conexões entre mulheres surrealistas no México” no Instituto Tomie Ohtake em São Paulo

 

Encerrou-se a 10 de janeiro de 2016 com 600.000 visitantes, recorde de público. Resultado depõe a favor da mostra, do público, de Frida Kahlo, do conjunto de obras apresentadas, da curadoria de Teresa Darcq, da instituição promotora, da equipe que trabalhou no projeto. Permanece o catálogo: além das reproduções espetaculares, ninguém poderá reclamar da falta de informação, contextualização e bom apoio crítico. É anunciado que a mostra irá para o Rio de Janeiro, através da Caixa Econômica Federal.

E assim o surrealismo se expande entre nós, ao mostrar não só Frida, porém artistas como Leonora Carrington, também escritora, e Remedios Varo, ambas da minha especial predileção. Além de trazer novidades, criadoras de qualidade, porém menos célebres: Alice Rahon, Bona Tinterelli de Pisis, Bridget Tichenor ou Sylvia Fein. Isso, lembrando que o mesmo Instituto Tomie Ohtake já nos havia proporcionado Miró e mais Dali, além de mostras importantes por outras instituições. Que sua presença também se amplie no modo impresso, através de obras importantes ainda inéditas no Brasil (pobreza editorial, se compararmos com o que se encontra em Portugal) ou publicadas, porém confinadas a editoras sem distribuição comercial.

Organizei duas “visites guidées” à exposição, uma para os participantes do meu curso de surrealismo na Unicamp e outra, em vista do interesse suscitado, para os que haviam feito cursos anteriores de surrealismo comigo. Não chamei mais interessados por causa da limitação do número, grupos não poderiam ultrapassar 20 pessoas. O que vem a seguir é inspirado nas duas visitas, além do que disse naquelas ocasiões, complementando a competente monitoria.

ANDRÉ BRETON, SURREALISTAS E AS VOLTAS QUE A HISTÓRIA DÁ: Hoje, Frida Kahlo é a artista mexicana mais valorizada, estudada e comentada. Tornou-se ícone. É pop. Saiu do Instituto Tomie Ohtake mas continua em pôsteres, alguns bem toscos, vendidos por camelôs-artesões da Avenida Paulista. Umas décadas atrás não se falava nela. Arte mexicana do século 20 eram os grandes muralistas: Diego Rivera em primeira instância, David Alfaro Siqueiros e Jose Clemente Orozco, além do pintor Rufino Tamayo. Quem se maravilhou com os quadros de Frida foi Breton. Conheceu-a na viagem ao México de 1938, quando encontrou Trotsky e Rivera. Encaminhou-a à galeria Julien Levy em Nova York, escreveu a apresentação da mostra, e depois à exposição Mexique em Paris. Rivera jamais moveu um dedo para divulgá-la. Sabemos, contudo, que Frida não se considerava surrealista. Declarou que sua arte retratava sofrimentos que nada tinham a ver com inconsciente e sonhos. Observei em outras ocasiões que o episódio mostra como Breton se pautava pelo valor: não estava interessado em angariar adeptos (despachou inúmeros), mas em mostrar o que tivesse qualidade – mesma atitude identificável no modo como elogiou e divulgou, entre outros, Aimé Césaire, Magloire de Saint’Aude ou Malcolm de Chazal.

MULHERES. “Por que só mulheres?”, foi-me perguntado em uma das visitas. Ao focalizar mulheres, exclusivamente, e relações entre elas, a exposição traz algo simultaneamente moderno e arcaico. Moderno porque a presença forte das mulheres nas artes visuais, na literatura, em outros campos da criação, é historicamente recente, foi crescendo ao longo do século 20. Nossa sociedade já foi mais patriarcal: basta verificar quantas mulheres participaram do romantismo como protagonistas, não como musas (Madame de Stael? Marceline Desbordes-Valmore? quantas outras?). Ou do impressionismo, do simbolismo. Dentre os movimentos de vanguarda, um deles teve uma mulher à frente, o grupo de Bloomsbury com Virginia Woolf; e houve uma impulsionadora das vanguardas, Gertrude Stein. Quantas mais? Conta-se nos dedos. Maior número de mulheres atuando, publicando, observei isso em nossa geração Novíssimos, já em 1960. Mas houve confrarias de mulheres em sociedades tradicionais. Mircea Eliade, por exemplo, trata das “sociedades de mulheres” em povos africanos com rituais de iniciação e linguajar próprios, em ‘Initiation, rites, societés secrètes’. Entre nossos Carajás, assim como em outros povos, a separação de sexos chega ao ponto de haver duas línguas, dos homens e das mulheres. Ocupou um lugar central da exposição o quadro de Frida “Diego em mi pensamiento”, um dos autorretratos, no qual se apresenta em um traje cerimonial zapoteca, a tehuana: um símbolo de matriarcado. Maria Izquierdo é mostrada ou se mostra, em outro autorretrato, como “rainha vermelha” dos maias. Sabiam que estavam evocando ou revivendo tradições. E colocando-as em prática ao se apoiarem, colaborarem umas com as outras. E a mostra informa como Frida foi ativa; como se empenhou em favor de tantas artistas.

MARIA IZQUIERDO. Gostei da inclusão dela. Surrealistas não a examinaram. Por excesso de iconografia católica? Quem escreveu sobre ela e a indicou para uma exposição em Paris foi Antonin Artaud, em sua viagem ao México de 1936. Disse que a cruz cristã nas obras dela se transformava na cruz simétrica de tradições pré-colombianas. Também elogiou outro artista mexicano, Ortiz Monasterio. Observei em outra ocasião, nesses dois artistas, o tratamento dado ao corpo; ou melhor, aos corpos, decapitados, esquartejados. Destruir o corpo para refazê-lo, obsessão de Artaud, desde impressionar-se com Heliogábalo esquartejado e as castrações promovidas pelo tresloucado imperador até o “corpo sem órgãos” dos escritos finais. A exposição informa o papel desempenhado por Maria Izquierdo nessa confraria ou sociedade de mulheres. Foi precursora. Nascida em 1902, uniu tradição e modernidade, evocou o México arcaico e assimilou a arte européia contemporânea. Defendeu direitos da mulher; expôs outras artistas; foi boicotada, teve a encomenda de um mural cancelada por pressão machista de Rivera e Siqueiros: achavam que só homens podiam fazer obras de grande porte, um episódio vergonhoso – o oposto da atuação não só de Breton, mas de outros surrealistas, Duchamp, Benjamin Péret e Wolfgang Paalen, não expostos, porém devidamente mencionados.

CABEÇAS E CORPOS: Séries de autorretratos, especialmente de Frida, bem comentados nos textos do catálogo, interpretados como afirmação ou questionamento da identidade. E corpos, vários esquartejados, decapitados, desmontados e remontados. Já tratei do assunto em palestras e cursos, projetando o que diz Octavio Paz em ‘Conjunções e disjunções’ sobre a “dialética da cara e do cu”, o antagonismo de mente e corpo, símbolos e coisas; e Eliane Robert Moraes em O corpo impossível, ao sustentar que os acéfalos e figuras humanas com cabeças de animais, em Bataille e no surrealismo, a exemplo de minotauros e dos “abraxas” gnósticos, são ataques ao “cogito” cartesiano, proclamações da morte de Deus. Minha adição a essas referências bibliográficas consiste em trazer Artaud, radical nessa questão; e, agora, esse desfile de variações sobre o tema, a tensão entre mente e corpo. Especialmente geniais são duas telas de Remedios Varo, seu minotauro e a “Mulher saindo do psicanalista” com suas múltiplas caras, bem como as “Três mulheres com corvos” de Leonora Carrington.

ARTE TOTAL. Além das telas, há esculturas, colagens, montagens de objetos, muita fotografia, cenografias, esboços e rascunhos. Um arco que vai da gastronomia à dança, passando pela fotografia, com Rosa Rolanda; uma coleção de vestuários, criados ou trazidos para as obras. Frida não apenas pintava e desenhava, mas vestia-se, assim como também Maria Izquierdo, simbolizando a identidade da obra e do artista. O propósito das vanguardas, de romper barreiras entre gêneros, modalidades ou sistemas de signos foi acentuado pelo surrealismo, com especial atenção aos objetos encontrados. É como se Duchamp, ausente nas paredes da mostra porém mencionado por sua atuação, estivesse nos bastidores, figura tutelar. A multiplicidade de meios é acentuada pela projeção de vídeos em outra sala.

ARTE E VIDA. Quer dizer que Jacqueline Lamba, musa de Breton em O amor louco e sua esposa até 1944, e cujas obras expostas mostram que foi uma bela artista, teve um relacionamento amoroso com Frida? Isso, eu não sabia. Entre outras relações: amorosas, de colaboração ou solidariedade, de trabalho criativo, reveladas na mostra e no catálogo, rico em informação biográfica. Sempre me insurgi contra o vezo burocrático do “recorte”, de isolar obra e vida do seu autor, partilhado por formalistas e deterministas. O contrário do que defendiam Breton e demais surrealistas: jamais separar; buscar a unidade, a síntese, a superação das antinomias. A mostra ‘Frida Kahlo – Conexões entre mulheres surrealistas’ é legitimamente surrealista ao trazer vidas, personagens que se confundiram com obras, e não apenas os resultados do trabalho criativo. No título, a ênfase deve ser posta em “conexões”, nessa cartografia que confere mais sentido á criação. Cito com freqüência a observação de Floriano Martins, em suas antologias de surrealismo latino-americano, sobre o caráter coletivo como fundamento ou algo essencial no surrealismo. Ou, de Octavio Paz: “A atividade surrealista foi coletiva e individual”. E, é claro, “a poesia deve ser feita por todos, não por um” de Lautréamont – aqui, transposto para o campo da criação visual, ou de todas as modalidades criativas.

MULTICULTURALISMO, DIVERSIDADE CULTURAL O OUTRO: Sim, “México, país surrealista”. Mas justamente por não haver apenas o México, como delimitação política e geográfica, porém vários México. País assentado na memória e vestígios de uma diversidade de povos, desde as civilizações complexas, os impérios Maia e Asteca, além dos precedentes e remanescentes Tloltecas, Olmecas, Zapotecas, até as sociedades tribais, os Taraumara, Iaqui, Pueblos. Ambiente para receber uma diversidade de visitantes e refugiados, como a espanhola Remedios Varo, a inglesa Leonora Carrington, esoterista e cultora de tradições célticas, várias francesas, além de uma alemã, uma suíça, uma húngara. Ainda elaborarei algo sobre essa dialética de identidades e diversidades de origens.

O VALOR DE FRIDA: A explosão Frida, agora pop, onipresente, suscita a questão: até que ponto seu prestígio é modismo passageiro, reflexo de um drama pessoal, de uma vida de sofrimento? Ou ela veio definitivamente para ficar? A exposição dá a resposta: em meio a artistas grandes – Leonora Carrington e Remedios Varo sempre me fascinarão de modo especial – a obra de Frida brilha. Teve uma personalidade própria, fortíssima. Soube expressá-la através de sua arte, e também, como revela essa exposição, por sua presença, por sua íntegra atuação pessoal.

 

36. Janeiro de 2017, Toninho Mendes, Antonio de Souza Mendes, 1954-2017

 

Não fazia idéia do que fosse colaborar em uma publicação que tirava 100.000 exemplares, com distribuição nacional, dirigida preferencialmente aos jovens. Percebi mais tarde, pelas pessoas que me disseram que seu interesse por Geração Beat e contracultura havia sido despertado por minhas matérias em Chiclete com Banana: Joca Reiners Terrón, que a comprava ainda em Cuiabá, o também criador de quadrinhos João Pinheiro, entre outros.

O restante daquela revista é uma efusão única de criatividade e anarquia. Celebração frenética da liberdade em um Brasil recém-redemocratizado, finalmente livre da censura. Uma farra. Além do parceiro e amigo de infância Angeli com todos os Bob Cuspe, Mara Tara, Skrotinhos e Rebordosa, de Laerte, Glauco, Luis Gê e outros renovadores do humor brasileiro, havia Roberto Piva e as crônicas incendiárias (estão no Volume 3 de Obras Reunidas), Glauco Mattoso e seus elogios da perversão, Cacá Rosset com umas invenções incríveis, a musa Cristiane Tricerri, Guto Lacaz e mais invenções, integrantes da côterie de Toninho como Furio Lonza e Souzalopes. Ponto alto da sua contribuição como editor e artista gráfico, Chiclete com Banana durou pouco. Sem anunciantes, sem patrocinador, não era auto-sustentável, apesar da circulação extensa e dos leitores.

Como não havia dinheiro, Toninho propôs que cada colaboração minha valesse um convite para jantar. Nas duas primeiras, escolhi o Cantábrico, à rua Homem de Melo nas Perdizes. Encantou-se com as ostras, mandou vir bandejas. Na terceira, o Vikings do Maksoud Plaza: não se entusiasmou com os acepipes escandinavos, provou todos aqueles defumados com indiferença. Mas comer, para ele, era algo muito sério, desde as pirâmides de tudo sobre o prato no Chá Moon, quando trabalhava na Isto É ao lado, até, recentemente, no Caçador da Heitor Penteado, próximo de onde moro e ele morava, na Rua Bica de Pedra, fundão da Vila Pompéia ou começo da Lapa – sempre preferiu a Zona Oeste, visitei-o muito na casa-ateliê na Barão de Bananal.

Seu descomedimento – bebeu um bocado, entre outras fruições – parecia um índice de vitalidade, que nunca baixou nem baixaria: nada fazia prever o infarto fulminante que o levou. Nas ocasiões recentes em que o encontrei, enfrentava a crise brasileira com firmeza, encarando toda sorte de trampos, de frilas – algumas vezes, passou correndo para pegar o ônibus na Heitor, sem me ver – enquanto preparava novos projetos. No meu aniversário, queria-o em um jantar, mas não foi possível, pois ficou até tarde cuidando de um estande na Comic.Com. Conversamos na véspera do Natal, sentados no banco diante da frutaria da Rua Paulistânia – como sempre, rememorando e rindo. Comentou como se sentia bem aos 62 anos. Jogamos no bicho, prática na qual, filho de um bicheiro, era exímio – chegou a livrar-se de uma enrascada apostando o número de um prontuário policial e assim arrecadando a quantia de que precisava. Falou-me dos projetos: reedição e exposição da Confissão sobre o Tietê, novas mostras e coletâneas de suas realizações pela Circo Editorial, Peixe Grande e outras iniciativas. Consta-me que seu acervo está organizado. Se estivesse em órgão público ou instituição cultural forte, providenciava já uma mostra do que deixou. Tanta coisa, a série do Visconde da Casa Verde pela L&PM, as edições recentes recuperando o pornô e obsceno brasileiro.

Conheci-o através de Roberto Piva (de quem mais poderia ser?), em 1977 – apresentou-o em uma das leituras de poesia no calçadão da Itapetininga. Piva também o incentivou a ler e criar poesia, e prefaciou a Confissão sobre o Tietê. Poderia tê-lo conhecido na mesma época através de outro grande amigo, Marcos Faerman. Não obstante a forma como se desligou do jornal Versus, mais uma de suas criações gráficas – tirou a roupa, subiu peladão na mesa das reuniões para discursar contra a vinculação daquele jornal a uma corrente política –, continuaram amigos próximos, encontrando-se regularmente (acontecimentos subsequentes lhe dariam razão). Impressionava em Toninho esse modo de expressar opiniões e avaliações, de aprovação ou desaprovação, com absoluta clareza, sem meias medidas.

Provinha da Casa Verde. Fazia questão de apresentar-se como alguém da periferia. Da sua turma juvenil fizeram parte Angeli, outros cartunistas se não me falha (Glauco? Laerte?) e amigos que o acompanharam por toda a vida. Foi capaz de dialogar e relacionar-se igualmente com a marginalidade, o mundo alternativo e figuras da alta cultura e do empresariado. Convencia a todos pela honestidade.

Foi meu hóspede por alguns meses em 1980. Diagramava na Isto É, após o expediente ainda passava por outros lugares, mas conseguia chegar à Peixoto Gomide. Nós dois naquela revista, recortando e colando uma a uma as tiras de papel couchê – era assim que se fazia – dos poemas de Jardins da Provocação, para que ficassem na disposição gráfica do original. Adaptou-se bem, contudo, às mediações digitais. Sempre esteve à disposição, fez todos os panfletos e jornais de campanha de que precisei. Fiel aos amigos – como se empenhou pela recuperação do projeto gráfico original de Paranóia de Piva e Wesley Duke Lee, resultando na edição do Instituto Moreira Salles em 2000, por iniciativa de outro amigo, Antonio Fernando de Franceschi.

De todos os velórios a que compareci, este de hoje foi quando fiquei com a voz mais embargada, ao dizer algo para a filha e amigos. A expectativa de novas alegrias substituída pela sensação de um irreparável nunca mais.

 

 

 


CLAUDIO WILLER (Brasil, 1940-2022). Poeta, ensaísta, tradutor. Como poeta, distingue-se pela ligação com o surrealismo e a geração beat. Como crítico e ensaísta, escreveu em vários periódicos brasileiros. Seus trabalhos estão incluídos em antologias e coletâneas, no Brasil e em outros países, além de uma bibliografia crítica, formada por ensaios em revistas literárias, resenhas e reportagens na imprensa. Ocupou cargos públicos em administração cultural e presidiu, por vários mandatos, a União Brasileira de Escritores. Coeditou, com Floriano Martins, a Agulha Revista de Cultura, de 1999 a 2009. Ministrou inúmeros cursos e palestras e coordenou oficinas literárias em universidades, casas de cultura e outras instituições.

 

 


ILCA BARCELLOS (Brasil, 1955) | Artista Visual, Graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Santa Catarina e mestre em Biologia Vegetal pela Université Pierre et Marie Curie – Paris VI, por muitos anos foi professora de biologia no Colégio de Aplicação da UFSC onde já recorria aos desenhos e às formas orgânicas tridimensionais de seres vivos – representando organelas, sistemas e organismos, em massa de modelagem – como recurso didático. Em 2006, ingressou no campo artístico por meio da cerâmica, participando de exposições coletivas nacionais e internacionais. Ampliando sua produção artística, explora atualmente outros materiais – tecidos, espuma expansiva de poliuretano, EVA, madeira, metal – e diversas linguagens – instalação, pintura, desenho, fotografia, vídeo. Em seu processo investiga as possibilidades conceituais que tangem um duplo percurso: científico e artístico; e busca indagar através de sua produção a poética do pulsar, do devir. Participa de salões nacionais e internacionais desde 2007. Em 2008 através do Salão dos Jovens Artistas de Santa Catarina ganhou o Prêmio Aquisição do Museu de Arte de Santa Catarina – MASC e em 2016 ganhou terceiro lugar do 1º Salão de Artes Visuais de Navegantes, SC. Participou de residências artísticas no Canadá e Cuba. Artista convidada da presente edição da Agulha Revista de Cultura.
 

 


Agulha Revista de Cultura

Número 252 | junho de 2024

Artista convidada: Ilca Barcellos (Brasil, 1955)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2024


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