1. Sobre Cesariny
Creio que, neste caso, fará sentido começar esta evocação pelo fim.
Em jeito de flashback cinematográfico, uma vez que o protagonista – para empregarmos
esta expressão adequada ou conveniente, como se preferir - era um esclarecido apreciador
de cinema.
Foi pois isto que eu escrevi
em fins de Novembro de dois mil e seis e aqui se insere, a abrir, antes de passarmos
adiante.
Morrer sim, mas devagar… No falecimento de Mário Cesariny
No triste jet set
das letras (melhor seria dizer trocaletras) da nossa praça, para além daqueles que
o estimaram e o souberam ler e ver havia dois grupos de fabianos sempre de goela
aberta para melhor devorarem (tentar devorar) o universo conceptual que o norteara,
de que se reivindicava e onde se inventava mesmo velho e doente: o surrealismo.
Esses dois grupos, pequenos
jogadores das escritas e das pinturações, eram ou são: os que lhe exaltavam a pintura
para melhor lhe rebaixarem a poesia e os que lhe elevavam a escrita para mais eficazmente
lhe escaqueirarem o mundo plástico. Mas – e o truque nefando consiste nisto – no
fundo não era a ele que visavam, tanto mais que a manobra já não colhia por ele
lhes ter escapado para outros olimpos mais específicos. O que essa gente tentava
e tenta era impedir que companheiros mais novos e com outras soluções de continuidade
não ficassem sem voz, tão submersos como nos tempos da ditadura que ele detestava,
como detestou todas as outras.
Essa gente, permitindo-lhe
agora existir sem peias depois de durante os princípios da sua vida o buscarem liquidar
e emudecer, queriam que ele se tornasse um refém dos que em Portugal põem e dispõem
através da mentira cultural que vê a escrita e a literatura como aparelhagens para
fazer “fins de meses” ou carreiras que eles mesmos controlam…
Hoje como ontem, num país
onde a realidade já está mais que apodrecida, o surrealismo continua a perturbar
porque não é um álibi para mercadores de carne assassinada. Por isso o acatitavam,
fingindo que o amavam, visando transformá-lo numa espécie de faraó que caucionasse
melhor as tentativas de extinção de um pensamento que é existência em todas as direcções
e que ele sempre perfilhou.
Durou 83 anos. Fez o que pôde e como pôde para
exemplificar que as palavras que de facto contam passam pelos continentes da liberdade,
do amor humano e do espírito sem algemas.
E, apesar dos zoilos e dos
medíocres continuarem a tentar queimar o “castelo encantado”, que para eles tem
a forma de literatice ou de convenção imagética – seja neste país, seja nos outros
onde vivem e actuam muitos companheiros de sonho e de vigília a busca da maravilha
continua.
“(…) Depois de vir da Guiné,
tive contactos durante alguns anos com vários dos autores que haviam feito sair
o número único da revista “Grifo”, a seguir apreendida pela polícia política
(Pide). O chamado Grupo do Monte Carlo.
No Verão de 77, creio que
em Junho, aquando duma viagem a Lisboa para que o meu filho mais velho, na altura
um miúdo, tivesse consulta num ortopedista, conheci então o Cesariny: depois de
termos ido aos alfarrabistas estava com o João ao pé da estação do Rossio esperando
o autocarro para a Ajuda e ele pedira-me para ir experimentar as escadas rolantes.
Enquanto esperava, ouvi uma voz que me pareceu reconhecer, perguntando à ardina:
Tem um que traga notícias boas? Olhando em volta, eis que vi o Mário a comprar
o jornal ali mesmo ao pé.
Dirigi-me logo a ele, identifiquei-me
e ele, com bom humor, disse-me isto de imediato: “E eu que pensava que como bom
alentejano eras baixo e moreno e, afinal, és alto e louro…”(cabelo castanho
claro, na verdade). Na senda do bom humor, respondi-lhe: “E eu pensava que usavas
chapelão e, afinal, usas boné!”. Espontaneamente demos um abraço, ele fez uma
festa na cabeça do João e convidou-nos logo a irmos ao seu “atelier” tomar qualquer
coisa e, principalmente, conversar. E enquanto o meu filho, depois de ter comido
umas bolachas – nós bebíamos um chá – dormitava num dos sofás e depois dormia a
sono solto, conversámos a valer até lá pelas 4 da manhã.
A seguir, num gesto muito
usual nele (era um grande utilizador de táxis…) levou-nos até perto da casa dos
meus parentes e, ao despedir-se, deu-me dois livros dele e uma História do cerco
de Lisboa para o João.
Durante vários anos contactámos
regularmente, nomeadamente efectuando textos para colaborações aqui e lá fora. Por
3 anos seguidos, num trecho das férias, eu e o João ficávamos no “atelier” e, com
ele como cicerone em regime de pensão completa (almoçávamos e jantávamos e não nos
deixava pagar fosse o que fosse…), passeávamos pela cidade: íamos a museus, à Feira
Popular, a ver o rio…
Recordo-me que uma vez o meu filho ficara a olhar
encantado para um desses brinquedos que se vendiam na rua: um paraquedista de um
palmo ou assim, que o homem embrulhava no pequeno paraquedas de plástico e atirava
ao ar e lá vinha ele descendo, descendo… Não se atrevera a pedir que o comprasse.
O Mário nada disse mas notei que reparara. Uns dias depois recebemos em Portalegre
uma encomenda – e lá dentro vinha o boneco e, para mim, várias folhas de fotocópias
(tenho-as aqui) tiradas por ele: Altaçor ou
a Viagem em paraquedas, do Vicente Huidobro…! O Màrio tinha gestos destes, simultaneamente
discretos e sensíveis.
Quando eu uns anos depois sofri duma negregada
nefrite que me obrigou a ser operado em Santa Cruz, o Mário ia esperar-me a Santa
Apolónia, levava-me a almoçar ou a jantar (algumas vezes na sua casa da Basílio
Teles), acompanhava-me pacientemente às consultas ou às análises e depois, para
me acalentar nas dores frequentemente bastante marcadas, íamos ao cinema, ao teatro,
aos livros de preço simpático na Feira Popular, pelo menos uma vez ao circo… E abancávamos
com confrades nos cafés. Eu ia a Lisboa geralmente de 15 em quinze dias, se havia
razão para isso semanalmente – nos fins de semana. (…) Alguns dos companheiros recorrentes
eram o arqtº Mário de Oliveira, o Edgardo Xavier, o Relógio e, principalmente, o
Manuel Hermínio Monteiro, umas vezes levado por mim o José do Carmo Francisco e,
na última fase, também o Carlos Martins com quem se organizou a exposição “Surrealismo
& Arte Fantástica” (…). Esta surgiu da maneira mais espontânea e informal que
possa pensar-se, quase que por acaso: tanto o Mário como o Carlos partilhavam comigo
o deslumbramento pelas coisas do Lovecraft, do Georges du Maurier, do “Monk Lewis”,
do Bulgakov, dos antigos e modernos cultores do humor negro, do maravilhoso e do
fantástico e falávamos muito a seu propósito. Como nessa altura o Carlos e a Ana
estavam no Teatro de Xabregas, ela como atriz e ele como encarregado do sector cultural,
pensamos em artilhar a mostra. Eu conhecia o Miranda Calha, que estava secretário
de Estado do Desporto e ele falou com o Coimbra Martins, ministro da Cultura de
então. Ultrapassadas algumas dificuldades que nessa época ocorriam – o Cesariny
por seu turno falara com a secretária do Mário Soares –, articulou-se a exposição
com o apoio do movimento Phases e de autores ingleses, brasileiros, belgas, angolanos,
moçambicanos, holandeses etc.
Conseguimos também, por intervenção do Mário Soares
junto de certas embaixadas, a participação de alguns autores do leste…
Os portugueses (Mário Botas, Paula Rego, Eurico,
Armanda Andrade, António Quadros, Relógio, Garizo do Carmo, Areal, Júlio Reis Pereira,
Escada, Isabel Meyrelles, entre muitos mais) quando vivos eram contatados por conhecimento
próprio de uns e de outros ou disponibilizavam-se ao saber da coisa. Se falecidos,
falava-se com os herdeiros.
A minha contribuição de maior vulto – além de traduzir
textos e publicar poemas no catálogo-livro e expor dois quadros – foi descobrir
um surrealista ínsito, meu companheiro de adolescência. De sua profissão carpinteiro,
meio-surdo e com dificuldades na fala, mas muito atento e inteligente, o Manuel
Mourato nos dias em que tivera de ficar em repouso por haver partido uma perna pintara
um enorme quadro com as tintas da profissão: O bosque encantado, título de
minha lavra e que foi uma das revelações da Mostra. O Mário ficara entusiasmado,
era a demonstração de que o surrealismo, no caso em Portugal, para brotar não carecia
de cultura livresca ou entonações intelectuais.
Mal recebida pela crítica au pair (estava-se
em plena época da reação pura e dura aos que não aceitassem os ditames culturais
dum certo setor, o marxiano) a mostra foi depois levada para a Sociedade Nacional
de Belas Artes pela mão competente e esclarecida do crítico democrata Rui Mário
Gonçalves.
(…) Vi sempre o Mário como um ser de poesia e singeleza.
Certa gente referia ser ele uma pessoa distante ou, por vezes e pelo contrário,
agudamente frontal e sem papas na língua, querendo com isso significar provavelmente
que não guardava a voz numa gaveta para lhes retorquir com acentuações adversas
se necessário. Quanto a este ponto, sim; vi-o sempre como pessoa frontal mas nunca
despejada, usava antes uma elegância imaginativa até quando era preciso contrariar
ou infirmar o “interlocutor” oponente, digamos assim com suavidade. Era irónico,
mas sempre com uma feição imaginativa…Para mim foi sempre cordial, extremamente
fraterno e respeitador das minhas opiniões, que por vezes buscava de facto inflectir
mas sempre com urbanidade e humor.
E até quando se referia a gente de que não gostava
(ou francamente detestava) – como um certo poetarrão e grande intelectual novelista
e ensaísta sempre ressentido com a colectividade e com os colegas, que a seu ver
o festejariam escassamente; ou outro, um pensador das pechas nacionais mas que a
seu ver nunca verdadeiramente acertara uma e quis ensinar Pessoa a pensar (não digo
os nomes mas creio que se infere quem eram os cavalheiros) – tinha uma maneira de
o fazer que mostrava como se pode ser agudamente crítico sem descer a um nível rasteiro.
(…)
(…) Muitos confrades estrangeiros, alguns deles
ainda meus contactos regulares, chegaram-me por seu intermédio. Nomeadamente da
América do Sul, da França e Espanha e da Europa Central.
Um dia fomos a casa de um
confrade e amigo que ele me queria apresentar, pois achava que faria sentido eu
traduzir-lhe um livro. Chegámos e abriu-nos a porta um senhor com um ar muito delicado
e com umas maneiras de grande navegador dos espaços poéticos. O Mário disse-me o
nome para que eu lhe apertasse a mão: Emílio Adolpho Westphalen, o excelente poeta
peruano que, nessa altura, era adido cultural da embaixada do país dos Incas…
E traduzi-lhe de facto vários
poemas, muito embora por razões diversas não tivesse saído em livro nessa altura.
Já não tenho bem presente porquê, mas aconteceu.
Mais tarde, anos depois, as voltas da vida fizeram-nos,
principalmente a mim, seguir outro rumo sem que contudo nos perdêssemos de vista”.
Nicolau
Saião
1.1 Comunicação de Mário Cesariny na conferência internacional “Pelos Direitos Humanos contra os julgamentos de Moscovo”, 1978
Este texto de MC, cuja cópia me foi oferecida por ele
em Setembro de 78, para além da sua importância como documento revelador duma consciência
livre, activa e ética, dá-nos pistas de relevo para entender na sua verdadeira dimensão
os ataques que o seu autor sofreu, a partir de determinada altura, por parte de
antigos companheiros de rota, nomeadamente Luiz Pacheco, Vergílio Martinho e alguns
outros membros colaços inscritos no Partido Comunista luso.
Para além,
é claro, do que os poderia separar ao conceberem e praticarem da maneira própria
de cada um a vivência quotidiana na efectivação do surrealismo e/ou abjeccionismo
e das suas proximidades durante a época salazarista e da que imediatamente lhe sucedeu,
o chamado PREC, eivado de contradições e movimentações as mais estranhas e afastadas
de uma liberdade autentica que o golpe do 25 de Abril se propusera levar a efeito,
incrementar e permitir consolidar.
Sei, porque
eu estava lá e o ouvi por diversas vezes – na “tertúlia” do Café Monte Carlo, onde
passei a estacionar durante razoável período de tempo após a minha ida, com Carlos
Martins, ao contacto com os surreal-abjecionistas do chamado “Grupo do Grifo” –
que as críticas, por vezes muito acerbas, que lhe eram dirigidas assentavam em duas
características do nobre autor de Pena Capital: ter feito nome na pintura, o que lhe granjeava
proventos consideráveis e legítimos e, principalmente, estar contra as posições
afixadas por aquela formação política que jamais esteve liberta do autoritarismo
estalinista ou do cunho dependente das directrizes que a URSS estabelecia para a
desejada sovietização a seu modo das chamadas democracias ocidentais ou ocidentalizadas.
Martinho, pessoa aliás cordata no seu cômputo pessoal de relacionamento, era um
ferrenho adepto do cunhalismo, tendo-me uma vez afirmado que considerava Álvaro
Cunhal o maior político da Europa.
Quanto a Pacheco,
para entendermos o seu ímpeto verrinoso em relação a Cesariny basta conhecermos
as peripécias, pouco abonatórias, da sua adesão “militante” e conceptual (aquando
da sua inscrição no PC) já no que sucedeu – e insistira expressamente para que sucedesse
– na sequência do seu falecimento (caixão coberto pela bandeira deste partido e
discurso fúnebre proferido por um importante quadro comunista, a exemplo do que
fôra feito na cerimónia de Ary dos Santos). O qual objectivou, sem razão para dúvidas,
a rendição absoluta do falecido às posturas que eram o corpus concreto e a feição
mais estreme da acção cunhalista na sua caminhada totalitária em Portugal e no mundo.
Cesariny,
libertário e surrealista, espírito livre e voz alta e clara, não podia claramente
compaginar-se com os vezos de antigos companheiros que nunca tiveram uma frase de
crítica para verberar ou infirmar o totalitarismo em que se mergulhavam os próceres
comunistas nacionais e internacionais e enlevavam os fautores dos acintes, dos ataques
maiores ou menores que lhe eram dirigidos nos “anos da brasa” lusitanos – conforme
ao que lá fora, na Europa ou noutro continente, acontecera e acontecia (e ainda
acontece) aos surrealistas ou a qualquer um dos que não se curvavam nem curvam ante
o “esquerdismo totalitário” a que a vulgata marxista, hoje jungida ao “politicamente
correcto”, dá o mote, o tom e a estrutura na figura de espantalhos letrados.
Cremos pois
que este texto ilumina de igual modo o porquê de em certos círculos (que se têm
caracterizado por epigrafarem e festejarem o denominado “surrealismo de escola”
e, de forma algo precipitada e controversa, cozinharem de maneira peculiar o chamado
“abjeccionismo luso”) se buscar envolver numa típica legenda o perfil solenizante
de Luiz Pacheco – liofilizado et pour cause e seguidamente colocado num certo Olimpo
– que a realidade da História feita com pundonor e verdade objectiva reconduz sem
partis pris à sua real dimensão). [Nicolau Saião]
Nasceu este ano na URSS um ciclo de heróis
Leio, do escritor Máximo Gorky,
estas breves linhas extraídas de um artigo de jornal publicado em Moscovo em Novembro
de 1917. Repito: em Novembro de 1917:
Lénin, Trotsky e os que os seguem já estão
contaminados pela embriaguez do Poder e é um exemplo disso a sua escandalosa atitude
em relação à liberdade de palavra, às liberdades individuais e a tudo aquilo por
que a democracia se bateu. Fanáticos delirantes e aventureiros sem escrúpulos lançam-se
de olhos cegos numa pseudo “revolução-social” que mais não será do que a estrada
da anarquia, da ruína do proletariado e da ruina da revolução.
Empenhados nesta
via, Lénin e os seus companheiros de luta permitem-se todos os crimes: uma carnificina
nos arredores de Petersburgo, a destruição de Moscovo, a supressão da liberdade
de palavra, prisões insensatas, enfim, todos os horrores perpetrados por Plehve
e Stolypine. Mas Plehve e Stolypine agiam contra a democracia, empenhados na destruição
de tudo o que de honesto e vivo existia na Rússia, enquanto Lénin, pelo menos até
agora, é seguido por uma considerável fracção de trabalhadores. Estou, no entanto,
em crer que o bom senso da classe trabalhadora, a consciência que ela possui do
seu papel histórico, depressa abrirão os olhos do proletariado para o aspecto totalmente
quimérico das promessas de Lénin e para a extensão funesta da sua loucura. (…) A
classe operária deve saber que não há milagres e que o que a espera é a fome, a
indústria totalmente desorganizada, a ruína dos meios de transporte e um longo e
sangrento período de anarquia seguido de um sombrio período de reacção não menos
sanguinolenta”.
Estas palavras de Gorky, que
ele sublinhava com o título “À atenção da Democracia”, num jornal que em breve seria
proibido de aparecer, em vão as procuraremos nas centenas de edições, mais tarde
feitas pelo Estado soviético, das Obras Completas do escritor. Foram expurgadas,
como todos os títulos que fez surgir durante um ano nesse jornal. Quanto aos redactores
e colaboradores dele, informa-nos Boris Souvarine que, à excepção de Gorky, pereceram
todos nos subterrâneos da GPU. Entre eles Lozovski, primeiro organizador dos sindicatos
soviéticos e depois ministro-adjunto dos Negócios Estrangeiros, torturado na cadeia
até à morte, e Vassily Bazarov, tradutor russo do “Capital” de Marx.
Vê-se, pois, que o “sombrio período
de reacção” que Gorky previa não tardou em afirmar-se. Vemos mais, infelizmente:
que nunca mais desarmou, de 1917 até hoje. E tal como Gorky acentua, com lucidez
que pode parecer-nos comum mas não o era de facto, tratar-se-ia de um reacionarismo
conduzido em nome dos trabalhadores, em nome da revolução.
Porque ponho entre nós estas
palavras de Gorky, gentil humanista e deficiente escritor que acabou por não resistir
ao canto da sereia stalinista, que lhe pagou com as honras de envenenamento pela
GPU de Yagoda a ambiguidade da sua adesão? [1]
Pois porque, em meu fraco entendimento,
ouvir-se-á sem dúvida, aqui e lá fora, a sinceridade do nosso protesto pelos julgamentos
e encarceramentos fascistas de Yuri Orlov, Anatol Sharansky, Alexandre Ginsburg,
Victor Pyatkus, Vladimiro Slepak e José Begun mas de nada ou de pouco nos servirá
se a todos nos situarmos no quadro de uma Convenção ou Acordo assinado em Helsínquia
sobre Direitos Humanos. Que esse acordo que já se previa desacordado seja uma etapa
da maior importância na luta política entre sistemas sociais diversos, estamos aqui
para confirmá-lo. Mas aos jogos, às conquistas e às cedências da raposice política
havemos de acrescentar uma outra dimensão para que estamos: a observação e denúncia
da inflação pavorosa do linguajar que nos enche o ouvido. Que as piores injustiças,
os actos mais selvagens, os maiores crimes podem chegar à rua em ondas de consagração,
se não de santidade, quando lhes alçam pela carapuça o termo “revolução”, é fenómeno
consagrado pelo uso, que já nem vale a pena discutir. Atentemos apenas neste quadro:
Revolução nacional, do dr. Salazar. Revolução mundial, do dr. Trotsky. Revolução
social nacional, do dr. Stalin. Revolução nacional social, do dr. Hitler. Revolução
pronunciamento militar, do general Franco. É óbvio que em todas estas etiquetas
de desespero o que há de menos é a Revolução. E ousemos agora e sempre muito alegrar
por este final de século não ter sido brindado, como parecia, por mais um nacional-socialismo,
encabeçado pelo luso dr. A. Cunhal. [2]
Este “charivari” de ideias decepadas
pelo uso pirata da sua necessidade, estes discursos que mostram o anverso para expelir
o reverso e que já só funcionam como metáforas, trazem quiçá consigo a boa nova:
a de que nesta época do primado da ideia as ideias estão todas pela hora da morte,
elas todas, as óptimas, as boas as péssimas e as talvez. Já não conseguem falar.
O que, em certo sentido, é um inestimável bem: talvez depois de meio século e mais
de regimes ditatoriais e de Estados totalitários possa começar a descobrir-se, a
evidenciar-se, que as ideias só são aquilo que são, parte do homem – como as partes
sexuais – não o seu todo; e, em consequência, evidenciar-se que sendo as ideias
coisa séria, como as ditas partes, a tentação de pô-las a servir o que não é serviço
delas leva à blenorragia intelectual que estamos apontando.
Ora tem dois géneros, dois pelo
menos e ambos tenebrosos, esta “ditadura da maioria”: um deles, velho da idade do
Mundo, será pressão exercida, qualquer tipo de pressão em qualquer tipo de sociedade
civil, por uma maioria distraída sobre uma minoria atenta – e, neste aspecto, tanto
podemos recordar Rimbaud quando assevera que a poesia não ritma a acção, vai à frente
dela, como podemos referir-nos ao martírio milenário das comunidades judaicas e
à destruição física, ainda nos nossos dias, de expressões e civilizações importantes,
e até talvez mais importantes, como a dos índios norte e centro-americanos. Mas
não era decerto nesta desgraça que pensava o espontâneo do Rossio de Costa Gomes.
Era numa desgraça ainda maior, mais sofisticada, codificada, filosofada, desvirtuada
e propagandeada pela actual retoiça materialista histórica e dialéctica do Estado
totalitário, também de vários nomes antitéticos: democracia popular, ditadura do
proletariado, etc. E dizer-se ou ouvir-se dizer que Karl Marx não é o marxismo,
que Descartes não é o cartesianismo, ou que Cristo não é cristão já cai na pilhéria
aquela da “normalidade na anormalidade”,
quando fugiram os presos. [4] Ou, um
pouco mais grave, no projecto de lei fascista contra o fascismo. É a aplicação universalmente
descontracta do binómio de Newton: fomos perseguidos por minorias infames e exploradoras?
Passemos a perseguidores implacáveis, delegados que somos de maiorias sublimes.
Porém, estes delegados do maior não conseguem mais do que aumentar desmesuradamente
o número de cárceres. E, no melhor dos casos, numa União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas onde não há socialismo nem sovietes, um almoço sem carne e raramente
com peixe substitui o vinho antigo, que cintilava nas imagens de liberdade.
Vi há pouco um filme de péssima
extracção estética e casuística, As sandálias
do Pescador [5] em que o dissidente
soviético Anthony Quinn, presuto, perseguido e arrecadado bispo de Kirov, é libertado
de um Gulag e exilado na Cidade do Vaticano. Esta fita USA tem um final a arrebentar
de feliz: Quinn vira Papa e, na cerimónia da coroação, Rei dos Reis, anuncia que
venderá ao desbarato todos os bens materiais da Igreja, terras, mosteiros, pedrarias,
tapetes, os frescos de Miguel Ângelo, os óleos, os anéis, o ouro dos altares e o
de trazer por casa, as acções da Companhia de Jesus, etc, etc, etc, para que enfim
se acabe a fome no Mundo. Não vi o nome do realizador mas se acaso é um tonto é
um tonto que se excede, porque te põe em frente do nariz a última tentação do marxismo
antes de definitivamente desaparecer: a nostalgia de uma Igreja, a necessidade de
um sagrado para que nunca apelou porque não lhe achou nome. [6] A catacumba itifálica marxista obrigatoriamente
dispensa a respiração indivíduo finito/ universo infinito, para se ater aos Estados-Deus
dos romanos. À quantidade imensurável de mártires produzidos não correspondeu uma
gesta específica de heróis, porque o herói pertence ao mundo da esperança, alheio
à vocação de quantos infelizes continuam a tender, na modernidade, para a emulação
dos cristãos pelo toiro, pelo fogo e pelo leão.
Mas a estes Cristos Ateus, paródia
nova, e creio eu que última, da catacumba marxista, falta-lhes a imolação pela pomba,
segredo que a Católica, ela também em convulsão intestina, não pode vender a ninguém.
Não quero terminar sem dizer-vos
que a única coisa realmente importante que vejo nestas minhas palavras é o acto
de as estar pronunciando aqui, entre vós.
Quero ainda chamar a vossa atenção
para o importantíssimo conteúdo das palavras pronunciadas por Anatol Sharanski ao
despedir-se dos seus depois de condenado. Ele não invocou a Jerusalém celeste nem
atirou para a consumação dos séculos o velho sentido hebraico da redenção. Ele disse
algo que é transformação formidável, é transformação qualitativa na luta do povo russo pela obtenção dos direitos humanos.
Disse: “Até para o ano, em Jerusalém!”.
Estas palavras significam que
nasceu este ano, na União Soviética, um ciclo de heróis.
Mário Cesariny (30/07/1978)
NOTAS
(1) Conforme se veio a saber depois da queda do Muro
da Vergonha e concomitante abertura de arquivos secretos da URSS, Máximo Gorky morreu
após envenenamento perpetrado por agentes da polícia política. Coisa que se suspeitava
mas se tinha medo de conferir, embora circulasse à boca pequena nos “mentideros”
do regime. Com a sua típica e hábil velhacaria e magnífico cinismo, Stalin mandou
no entanto fazer-lhe funerais de Estado.
(2) Político luso, inteiramente devotado ao comunismo
russo, viveu vários anos na URSS e noutros países de Leste, frequentemente sob incógnita
para usufruir de maior desenvoltura militante. Autor de várias publicações teóricas
tornou proverbial a expressão “amplas liberdades”, que a seu ver caracterizaria
a doação ao povo quando o PC chegasse ao Poder. Curiosamente lançou-a em público
no período em que o seu partido mais tentava cercear a liberdade possibilitada pelos
militares revoltosos…
(3) Francisco da Costa Gomes, general depois elevado
ao marechalato pelo Governo no fim da sua vida. Crismado com o anexim de “Chico
Rolha”, devido à sua capacidade de sobreviver flutuando mediante um oportunismo
habilíssimo, foi um aliado forte e objectivo da URSS, nomeadamente como figura cimeira
das consabidas associações para a paz, entidades de que este país se servia profundamente
ao recheá-las de “idiotas úteis”.
(4) MC alude a um caso que se tornou célebre durante
o PREC (Processo Revolucionário em Curso): a fuga, que teve contornos enigmáticos
e ridículos, em vista do que a rodeou, de 89 (!) agentes da PIDE, todos no mesmo
dia e à mesma hora, das cadeias em que a cena abrilina os encafuara. A frase que
ele cita foi proferida por um prócere governamental…visando justificar o tragicómico
sucesso.
(5) Filme do realizador britânico Michael Anderson,
baseado na obra homónima de Morris West, escritor católico especializado em romances
girando no universo fideísta. Anderson, que se notabilizara através de bons filmes
como “A fuga de Logan” (science-fiction), “O Memorando Quiller” (espionagem) ou
“A casa da Flecha” (mistério & suspense), encenou aquela obra (por razões comestíveis?)
para a Metro Goldwyn Mayer, que presumivelmente recebera essa encomenda dos meios
vaticanistas mais “avançados.
(6) Actualmente, o protagonista da paródia aludida é,
claramente, o inefável Papa Francisco, figura mediática que conseguiu ultrapassar
o dinâmico Woytila e o melífluo Ratzinger na sua piscadela de olho aos credos politicamente
correctos “new stile”, ao racionalismo crente “nouvelle vague” e ao “marxismo cultural”
de diversos matizes obnóxios – os que acham possível uma espécie de Tratado de Tordesilhas
islamo-cristão, com recorrências ora fradescas ora ideológicas…e em que o inimigo
a crestar é o ateísmo libertário ou mesmo o agnosticismo de cepa progressista não-marxista.
1.2
Duas cartas (inéditas) e um relato
Estas cartas que aqui se dão a lume fazem luz sobre
circunstâncias que aconteciam aquando da Exposição Internacional surrealista “O
fantástico e o maravilhoso”, realizada em 1984 no Teatro Ibérico e seguidamente,
pela mão do crítico Rui Mário Gonçalves, posta na SNBA. Na Nota final se dão mais
elementos que, cremos, se necessário iluminarão o que nelas é abordado. O relato,
à guisa de “reportagem”, que na parte final do bloco se insere, descreve – como
é patente - um certo ambiente que por essa época envolvia a panorâmica lusitana,
mormente nas suas relações com os escritores e pintores surrealistas e outros autores
independentes, não contaminados pelo realismo orgânico.
a.
De Mário Cesariny a NS (manuscrito)
Out. 84
Meu Caro Francisco Nicolau
Depois de muitos picos e oxalá
não venham ainda outros mais agudos, o Catálogo da Exposição ficou ontem entregue
e agora eles que dêem ao dedo atrasado. Se puder abrir no meio de Novembro já seria
muito bom.
Concordo firme com o que na tua
última carta dizes do “anarquismo” do e dos Rosemont e o que eu gostava bem é que
lho dissesses a ele directamente. Apreciei tanto a tua carta que pensei publicá-la
no catálogo, mas parei, porque: teria de ser revista, com vista à publicação; b)
levava os textos inseridos para um terreno de que, no geral, estão alheios.
Assim, do que lá vem, e como
“responsabilidade” minha no ter posto, penso que será bastante publicar, juntamente
com o texto do Rosemont “Para o II Incêndio de Chicago” (que é quanto a mim um belo
texto de furor poético) o texto do John Lyle de que fiz um Bureau (chata palavra
esta) Surrealista ainda este ano, texto que é contradita formal aos apelos ó Marx
ó Freud ó Trotsky ou Lenine; e ainda o texto do Jean-Jacques Dauben/Timoty R. Johnson,
que é ultrapassagem serena da questão.
Repito-te que era muito bom (sobretudo
para ele) que, e agora que v/ estão em contacto directo, lhe escrevesses dizendo.
Mas teria de ser em inglês ou francês porque lá o português não se ouve. Julgo que
em espanhol também poderia ser. Ou chinês.
O Carlos Martins tem sido um
amigo e um colaborador admirável, e não ponho um pêlo de dúvida de que se esta Exposição
se faz ou fez muito mais de metade da força necessária a tal loucura é dele. Mas
é também um emotivo, uma emoção a andar, como de criança. Boa, que é a diferença
entre ele e o Cruzeiro Seixas, que sempre fez, ou gostou de fazer, de criancinha
má.
O que dizes dos “amigos” de aí,
quanto a ajudas (transporte do quadro do Mourato), está um pouco contrabalançado
pelo que a mesma gente tem feito aqui para desembaraçar obstáculos inenarráveis
e seculares. Assuntos alfandegários medonhos e outros medos mais.
Hoje o Teatro Ibérico estreia
a Celestina. Vou ver.
O Nicolas Calas refere-se a montras no texto que traduziste. E ainda
que isso esteja enterrado lá no 1940, eu ainda me lembro de ter visto, pelo menos
duas delas.
Velho, ã?
O Arpad Szenes caíu não sei como
e está com um osso para pegar. Com a idade dele isso é pior do que mau. Escrevi-lhe
e enviei-lhe o poema que lhe dedicas e vai sair no catálogo.
A ideia é incitar o osso.
Escreve ao Rosemont, mesmo em
chinez. Ou encontra aí quem te verta em inglês ou francês. Eu, a ele, já disse o
que tinha a dizer há pares de anos.
Parece que o Robert Green, a
Debra Taub, o John Graham, o Ludwig Zeller, a Susana Wald e o Granell vêm cá ver
a Exposição. E há um Australiano muito muito bom que diz que já não pode com tantos
cangurus e quer vir para a Europa. Arranjas-lhe vida de artista aí em Portalegre?
O Mourato deve vir ver a Exposição!
Trá-lo contigo.
Grande abraço
Mário
b.
De NS a MC (a carta a que este se refere na
sua)
26 Set. 84
Mário:
Apresso-me a escrever-te para
te dizer que, com efeito, o papel do Rosemont
é de facto de mais. É, pelo menos, um bom serviço prestado aos KGB e companhia,
sob a sua capa anarcaqueirante.
Não alinho nisso; seria bom compreender-se
que, também eu, não concordo com a sua inclusão no Catálogo; o fantástico e o maravilhoso,
sendo a inteligência e a poesia em funcionamento prático, não se compadecem com
a vizinhança de pistolinhas de Chicago. Aquilo não é revolucionarismo, é politiquice
às três matracadas.
Creio que é urgente mandares
dizer a Rosemont que a Exposição nada tem a ver com anarquistas federados ou só
de chapelinho; para que tudo não se complique e comece a ficar macacal. E dê merda.
Por outro lado, importa dizer
de uma vez por todas: eu não sou anarquista, explicando: sou libertário porque surrealista. A minha estadia junto dos anarquistas
ibéricos foi um equívoco provocado pelo
facto de eu julgar que as pessoas que se dizem livres têm poesia na cabeça e no
corpo; trocando: que são a própria poesia.
Quem são a própria poesia são os poetas: tu, eu,
o Martins, assim. Os outros podem sê-lo eventualmente, mas não se tem notado nada.
São anarquistas de aviário ou “pistoleiros” puros e simples. A Anarquia, para mim,
teria de ser a poesia em movimento. Mas aqui (ou em todo o lado? Espero que não)
é só a politiquice duma dada extrema. Que vão para a pôrra, definitivamente. O único
anarquista verdadeiro é o homem criativo, o Poeta, que não se curva a cores e traquitanas.
E disse, caraças!
Concordo pois contigo e Carlos que importa levar
a Rosemont as “actas de Niceia” (passe a piada!). O texto dele parece-me menos surrealista
que exaltado. E a exaltação assim é meia-mantença de um outro conformismo. Prefiro
os índios e os esquimós, mais que os americanos em (pseudo?) rebeldia. Tenho a ver
com os Dogons (assim como com Basile Valentim) nada tenho a ver com Marx e Lenine.
E pronto, caneco!
Cago tanto na LSD como nos manifestos eleitoralistas.
Tanto me urino nas bombas de compra ou de fabrico próprio como nos artefactos dos
cabrões dos militares e estados-maiores. E acabei.
Amanhã te mandarei o resto da
tradução do Calas. Acredito no valor do livro dele se o dizes. Aliás estes textos
dele não são maus, são só horrivelmente ingénuos (embora necessários, e além disso
a intelligentsia orgânica de cá é tão
estúpida que não irá dar por nada). Depois, um dia, falaremos disso.
Os meus textos que apontas não estão publicados
em nada a não ser as cópias fotocopiadas que te mandei – com excepção do Picasso.
Agrada-me que tenhas colocado esses para publicação
no catálogo.
Talvez dentro deste tempo eu tenha dinheiro para
editar um livro (que dizes a “Objectos inquietantes” ou outro? [1] Fala disto. Procura por favor uma tipografia
que faça BARATO, PÁ. Davas capinha? Então vê lá isto. Estou um bocado melhor, com
as alergias de verão a desvanecer-se, depois falaremos de viva voz.
E viva a Poesia, a revolta e a beleza sem amarras
nenhumas.
E vejam lá isso sobre o Rosemont. Se não, qualquer
dia estão a fabricar bombas atómicas de bolso. O que é tão mau como o resto.
Abraço grande do
Francisco (nome civil de NS, também manuscrito)
NOTAS
Coincidindo com os prolegómenos da Exposição “O fantástico
e o maravilhoso”, o diretor do quinzenário Voz
anarquista (Francisco Quintal) aceitara a minha sugestão de ali ser dada a lume
uma "página surrealista" organizada por nós (eu e Mário); assim sendo,
juntámos colaboração de surrealistas nacionais e estrangeiros; Franklin Rosemont
(EUA), para além de um bom texto sobre o surrealismo destinado ao Livro-Catálogo
da Exposição mandava um outro destinado eventualmente à dita página no qual, visto o anarquismo – conforme à tradição… – ser de esquerda, se debruçava com extrema
“militância esquerdista” sobre o momento português - manifestamente devido ao desconhecimento
do que de facto sucedia em Portugal, onde os surrealistas eram marginalizados e
fortemente hostilizados (bem como muita outra gente) pelo partido político que ali
representava o império soviético social-fascista e liderava as operações de conquista
do poder em conformidade.
1. O dactiloscrito
do livro aludido recebeu mais tarde o prémio “Revelação Poesia” 1990 e foi dado
a lume na Editorial Caminho.
1.3 O relato-“reportagem”: “Pela porta do cavalo”
No decorrer da turbulenta sessão surrealista aqui referida
e durante a qual se esboçaram entre alguns assistentes amoráveis pequenas cenas
de pugilato e outras danças a carácter propiciadas por espectadores fãs dos situacionistas
de Leste, além de um poema (já publicado em diversos órgãos e espaços informativos)
Mário Botas – que ali nos fora acompanhar como espectador – teve a gentileza de
me oferecer um desenho aguarelado de excelente feitura. Perdido sem apelo nem agravo
entre os eflúvios da zaragata ficou ele, creio que capturado por um desembaraçado
anónimo admirador do pintor – o que a ninguém dói mais que a mim, seu feliz proprietário
durante o melhor de aí uns vinte minutos… ou duas horas.
Sei, por tradição escrita e oral, que há uns senhores
(ensaístas ou biógrafos, lhes chamam) que têm por mester traçar a vida e os cometimentos
dos que em esta vida pintaram ou poetaram com algum destaque. Dedicado a esses bons
espíritos, poupando-lhes assim trabalho moroso de investigação, é que segue este
resquício de texto, enviesado porque os tempos não dão para mais.
Ora foi que no passado dia 1
de Novembro dei comigo, de juntura com o Mário Cesariny, num salão de Alcântara
a falar de surrealismo. A sessão foi algo
picaresca. No meio de gente atenta e interessada houve (e ainda bem, ou mal)
uns fulanos que não aguentaram o Artaud, os negros Nauba em livro que lhes dei a
ver, os poemas do Mário e os meus próprios. No meio da conversa deram de si, o que foi curioso de contemplar.
Já toda a gente sabe que no Movimento político luso (digamos assim por comodidade)
há, discreta e séria, uma doce corrente meio fascista/meio estalinista, expressa
ou camuflada. Tão camuflada que por vezes nem os próprios dela se reconhecem. Bem
certo é que o estampido das suas cabeças por dentro lhes dificulta às vezes o conhecimento
intrínseco de si mesmos, mas o que não está bonito é que deixemos os vindouros sem
isto lhes assinalarmos.
A palestra sucedeu no âmbito
da Semana de Presença Libertária. Antes de nós tinha actuado o Grupo Mandrágora
com uma peça em um acto de Jorge de Lima Alves, “Jau”, que está a preparar-se para
enfrentar o público. Bons moços, os de “Jau” precisam, fundamentalmente, de dinheiro.
Como não lhes sairá, seguramente, a Taluda por estes meses mais chegados, talvez
outra entidade abone.
Depois de Cesariny lhe ter dito
que, ao contrário dele, não acreditava no progresso ocidental, que era o que repassava
a sua intervenção, pouco na história e ainda menos no futuro da literatura, afirmei-lhe
por minha vez que me parecia que Artaud, pondo de parte o interesse evidente do
seu relato, todo percorrido por uma aragem de paixão e imaginação, não estava morto.
“Neófito, não há morte”, como dizia o Fernando Pessoa. Além disso, era de
nos interrogarmos se não estariam mais mortos os laboriosos mentores da cultura
cristã inventora da corrida em frente (para o abismo). Quanto ao surrealismo, vai
indo relativamente bem e de saúde: a poesia sob todas as formas é o que interessa
aos operativos, os totalitarismos o que não lhe quadra. Disse alguns textos do Cesariny
e meus, espalhando revoada de diabos. Recompostas as coisas, tracei um panorama
do que se pode entender por acção poética: prospecção do humor negro, da imaginação
descomprometida e da alta Aventura, da ligação ao não-autoritarismo, à Beleza e
ao repúdio do que por detrás dela se esconde como um rinoceronte: o horrível do
Belo, exemplificado entre nós por sarcófagos altifalantes como José Augusto França,
E. Prado Coelho, universitários cabotinos e outra gente de fraque. Expliquei mais
ou menos em tempo porque é que aderimos à chamada Utopia dos Grandes Transparentes,
porque negamos a religião clerical e o Poder, seja ele de Estado ou de sector. Foi
a seguir, quando coloquei o Dada retardado Vaneigen no lugar que lhe compete (estraga-albardas
mascarado de sacristão, exemplificado pela repugnante frase “A Esperança é a
trela da submissão”) que alguns rapazes ficaram um pouco ourados. Após dar a
minha opinião sobre o que eles pretendem destruindo a Poesia e a Arte (a arte lúcida
e viva) e que é simplesmente destruir a forma mais eficaz de criatividade, dei a
altura e a água ao Mário que mostrou sem margem para confusão a razão de serem os
adeptos de Vaneigen iguaizinhos aos moços de Brejnev: adesão a um comportamento
rígido e totalizador, sequelas sexuais não resolvidas, ódio à Vida no mais alto
grau, adesão a esquemas maniqueístas. Depois de me referir ao exemplo que Bradbury
equacionou no seu magnífico “Fahrenheit 451”, uma sociedade crestadora dos livros,
das pinturas, mergulhada na masturbação, no comer-dormir-trabalhar e na delação,
foi aí que tive oportunidade de ver saltar do canto um indivíduo espumando de fúria
que, parecendo conhecer-me, achou “que tinha de acabar-se com a Arte e os artistas”.
Retorqui-lhe que só havia um meio para isso – prender em campos de concentração
os ditos, queimar os quadros e instaurar a polícia total do pensamento e do corpo.
Pelo que me dizia respeito garantia-lhe que, mesmo numa cela, mesmo retalhado, continuaria
a fazer versos, se não escritos pelo menos pensados. O indivíduo em causa, persistindo,
afirmou-me que o que lhe interessava era “destruir o surrealismo”, programa
aliás digo eu já no mapa de certos sujeitos como Hitler, Mussolini e Salazar. O
que o indivíduo queria significar era sem dúvida “destruir a poesia” que para ele
ao que percebi é apenas alibi e truque.
Censurado por alguns assistentes,
com quem chegou a envolver-se em disputa física logo apartada por outros, a pessoa
exprimiu desejar continuar comigo a conversa lá fora, referiu corajosamente
não sem antes me tentar aplacar dizendo-se magoado por eu o ter comparado ao Brejnev.
Para não o frustrar e porque ficara com aprumos de efectuar uma contradança a caracter,
sugeri-lhe (enquanto o Mário ria feito maroto) que fossemos então já para a rua
trocar umas amáveis congeminações para não ficar muito tarde. Depois de meditar
uns momentos, o moço para minha surpresa declinou a simpática oferta, o que algumas
vozes mais brejeiras não deixaram de comentar com virtuoso sarcasmo…para seu encabulado
posicionamento.
E de facto comparei-o mal: parecia-se
mais com um jovem e desaparecido membro da “Jugendgroup” que vi num filme sobre
a Segunda Guerra Mundial.
A sessão, ao que percebi, iria
acabar como nos bailes de província relatados pelo Antunes da Silva se um interveniente
não tivesse vindo pôr termo ao potencial espectáculo (passe a ironia) falando
na hora tardia.
E foi só.
Resta-me garantir aos jovens
assistentes interessados que continuarei a poetar. Isto serve também para os não
interessados. Agradeço também a atenção expressa pelos outros assistentes: mulheres
e homens. E até sempre…
NOTA
Este bloco foi publicado na página cultural do semanário
alentejano A Rabeca, órgão de informação
onde na altura colaborava.
2. Sobre Cruzeiro Seixas
É preciso ver a poesia e a pintura muito ao longe. Ou
antes: é necessário, por vezes, vê-las como se estivéssemos muito longe, do lado
de cá dos montes com desertos misteriosos pelo meio. Muito longe do poeta/pintor,
das suas palavras, das suas razões ou desrazões, muito distantes da sua figura,
dos seus secretos motivos, dos seus motivos quotidianos e reais – das suas quimeras
ou das realidades que lhe crestam a face, dos segredos todavia muito próprios, dos
seus pavores e dos seus encantamentos. Como se, magoadamente, serenamente, o encarássemos
como o aventureiro legítimo, cuja imaginação clara e concreta nos vai talvez salvar,
nos vai talvez fornecer a pista inquestionável para a viagem mais rara. Para a viagem
que iremos fazer, cruzando as lonjuras que frente aos nossos olhos se patenteiam.
Mas será isto possível? Será
mesmo efectivável, por maioria de razão se com ele convivemos durante décadas, se
lhe conhecemos muitos dos mitos e dos quotidianos em que se envolveu ou se deixou
envolver, dos sonhos que lhe permeiam o espírito, daquilo que viu e que o suscita
para que se permita escrever e pintar sem desdouro e sem desfalecimento? Se o estimamos,
se vemos nele um companheiro de jornada, um confrade na rota que é própria de quem
vive, que é única mas também nos seduziu?
Pode, pelo menos, tentar-se.
Efectuar essa distanciação que é como uma boa regra vital, que é assim como que
um olhar lançado na direcção de algo que já vimos mas não esgotámos, como acontece
nos grandes passeios que não planeamos ao pormenor mas que ficam em nós para sempre
tal qual as memórias de ritmos imarcescíveis.
E, afinal, não pode esquecer-se
que há no artista, como em qualquer outra pessoa, sempre uma parte velada, uma espécie
de continente desconhecido que nunca chegaremos a descriptar perfeitamente.
Perene regra que deverá ser observada,
mesmo escutada quando iniciamos
uma demanda. Para além dos horizontes, em pleno território da escrita e da pintura
que doravante não nos será alheia.
2.1
O sabor africano dos dias
Mesmo estando em Lisboa, no continente divisado
seja em Loulé, Caminha ou Alpalhão, ou no Norte onde ele agora vive, há qualquer
coisa na poesia de Cruzeiro Seixas – incomplacente, inventiva e com um perceptível
halo de mistério (não de exotismo!) – que me comunica um cheiro, um sabor, uma ambiência
que me faz sentir a presença da África onde residiu e viveu durante anos que, se
foram decerto de encantamento, também foram de inquietação e mesmo de amargura devido
a condições muito próprias.
Creio que qualquer um que ali tenha vivido ou excursionado
por um considerável lapso de tempo sente esta sensação ao defrontar-se com o acervo
de poemas de sua lavra. Com efeito, se o seu percurso nos mostra um autor absolutamente
lusitano e surrealista de várias têmperas, não é menos verdade que, tal como me
sucede por exemplo na leitura de Leal de Zêzere, sinto o poderoso apelo de África
disseminado no que escreve, ora aqui ora ali, expressa ou impressamente: o cheiro
da terra e o sabor dos frutos e dos produtos de quitanda, o ritmo das emoções e
dos pensamentos que rodeiam os que, estando em África, tendo conhecido nela como
num encantamento jornadas e vilegiaturas, acabam por se ligar a esse continente
da forma muito pessoal e peculiar que cifra o seu discurso literário e artístico.
E, com efeito, Cruzeiro
Seixas põe em equação, diria em confrontação, figuras originárias - mitológicas
umas, intensamente realistas ou fazendo parte dum imaginário retintamente europeu
outras – do continente “lugar de partida”
como lhe chamava G.A.Henty e onde cristalizaram muitos ritmos que depois se iriam
difundir, mercê dos fados da História, pelas terras de Mashona, ou de Chiqwelembo,
de Shaka ou de Barotse… Ou dos plainos desérticos de Namanga.
Ou seja:
por todos os locais onde se cimentou a imagem que, com alguma dose de magoada ironia,
Aimé Césaire, Frantz Fanon ou Fred Blanchod qualificaram de “negritude greco-latina”.
Numa determinada demanda, de cariz muito próprio,
complexo mas conseguido e inteiramente fundacional.
Colho, de um espaço interactivo, estas palavras:
De acordo com Isabel Meyrelles acerca da poesia,
Seixas encontrou em África o espaço que, ‘homem esponja’, sonhava, estando sempre
pronto a absorver o que o cerca, e a transformá-lo. Já Alfredo Margarido considera
que [a] África foi um continente que nunca nos deu sistemas filosóficos e nunca
conheceu as peias de um cartesianismo mal entendido. Daí que sintamos estar Cruzeiro
Seixas no continente que é realmente o seu, com uma imaginação elástica e lançando
cabos em direcção a todos os seres e todas as coisas.
E é, foi e continua
a ser em África – como noutros lugares “primitivos do mundo – que um dado (que a
pintura deste pesquisador de Universos, tão visionado (de vidente) na sua pintura
que se plasma em figurações quase reconhecíveis mas que vivem noutra dimensão) se
consubstancia: refiro-me à máscara, às máscaras, que os seus personagens incorporam.
Escrevi eu algures:
Sendo uma clara face de substituição, mesmo
de transfiguração como ficou sugerido, a máscara é igualmente uma projecção dos
nossos continentes submersos, das partes demasiado sugestivas e reveladoras do duplo
que se acoita nos nossos compartimentos mais recônditos e que através dela é acordado
para as actuações que doutra forma não teriam ensejo de se manifestar. Através da
máscara que nos vela e nos esconde, paradoxalmente mostramos então a parte oculta
da nossa Lua pessoal. Ao mesmo tempo que nos disfarça, a máscara revela/desvela:
o que somos intimamente ou, dizendo doutro modo, o que sem máscara nunca patentearíamos
à realidade circundante e colectiva. E é precisamente mediante esses corpos
contorcidos de manequins, de mascarados
compósitos que apontam para uma humanidade sofrendo as agruras de algo que as deforma,
que a pintura e os desenhos de Cruzeiro Seixas constroíem um mundo que grita o seu
desespero mas que, contudo, aponta para um desejado permanecer de esperança e de
redenção, não mística mas realizável num continente, em continentes, deste lado
da vida.
Dum lado a África, doutro lado o mundo, todos os
mundos que o pintor-poeta percorreu, cifrando-se finalmente no país que foi o do
seu começo, esse início que, presumimo-lo, será o do final da sua viagem bem real
e concreta de homem entre os homens.
2.2
A história se faz assim
Cruzeiro Seixas-pintor, dobrado de poeta,
é um organismo mais que vivo. Criador, mas que cria a partir do “objecto obscuro dos philosophos”, do elemento
primordial desorganizado e portanto que carece de um trabalho de limpeza, de decantação,
de desconstrução das matérias desordenadas que só nos são oferecidas porque necessitam,
para brilharem, que a mão – mesmo inábil ou gauche
– as projecte, se projecte, num cenário de contínuo esforço ao longo do tempo. Contra
os monstros, mas também contra as seduções de um reino aparentemente acolhedor e
luminoso que, no entanto, traz em si os alçapões
da falsa tranquilidade para nos amordaçar, para nos retirar de nós mesmos com
os pretextos de uma razão que não é mais que estreiteza de vistas e de tentar exaurir
o conhecimento transgressor contra fábulas velhacas.
A arte, antes de ser um conceito é sempre um impulso. Nenhum
artista de qualidade faz arte reflectindo simplesmente sobre o que a arte é. Isso
sucede a posteriori. Só os pintores medíocres
– como se lhes chama na gíria do meio, pintamonos – é que para se darem ares
ou porque são de facto mentecaptos afivelam um certo ar empafiado e bolsam por vezes
frases empoladas sobre a intenção, o trabalho, como dizia Borges “el acto de
hacer”. O verdadeiro artista é mais modesto e, por isso, faz arte para aprender
sobre o mistério da existência e do mundo. Assim sendo, a arte (seja ela qual
for) é sempre uma negação da morte, do vazio, do desaparecimento. Só os filisteus,
os de duvidosa mentalidade, propõem a arte como uma coisa bela, algo que
serve para tornar os dias e as horas do vulgo ou dos poderosos um pouco mais suportável
ou luxuosa.
Pelo contrário, a arte autêntica é sempre desinquietante,
transtorna e só depois é que nos apazigua.
Antes de transmitir, mediante as suas realizações materiais,
algo ao público, o verdadeiro artista procura esclarecer-se a si mesmo. Se um artista
tentar fazer arte para transmitir uma mensagem ou um conteúdo, provavelmente não
é um artista mas um propagandista. (Há propagandistas, em geral ligados a partidos
políticos ou áreas “religiosas”, que sem pudor se atribuem - ou deixam que lhes
atribuam - o nome de artistas. Mas são apenas falsários, como muito bem disse
André Gide, por muita habilidade técnica que tenham. Podem enganar pessoas ignorantes
ou tão desonestas como eles, mas não enganam o tempo, que é como se sabe o maior
dos críticos). Indo agora à
verdadeira questão, o artista propõe – para empregar a expressão de André
Malraux – ao público as suas concepções e sonhos particulares. No caso da pintura,
através dos quadros. O que ele deseja é partilhar com os outros as suas descobertas,
uma vez que como o referiu João Garção num ensaio sobre a estrutura da arte, esta
é a respiração da mente.
2.3
Mais um capítulo
Dizia Péret, com a autoridade moral que
lhe assistia por ter sido, nos sítios onde deu o corpo ao manifesto, um dos protagonistas
do bom combate:
“O poeta luta contra toda a espécie de opressão: em primeiro lugar a do homem pelo
homem e a opressão do seu pensamento pelos dogmas religiosos, filosóficos ou sociais.
Ele luta para que o homem atinja definitivamente um conhecimento perfectível de
si próprio e do Universo. Não se conclua disto que o poeta deseja pôr a sua poesia
ao serviço de uma acção política, mesmo revolucionária. Mas a sua qualidade de poeta
faz dele um revolucionário que deve combater em todos os terrenos: no da poesia
pelos meios que a esta são idóneos e no terreno da acção social sem jamais confundir
os dois campos de acção, sob pena de estabelecer a confusão que importa dissipar
e, por conseguinte, de deixar de ser poeta, isto é, revolucionário”.
Nesta
conformidade, é necessário que - sem nos deixarmos intimidar pelos que tentam utilizar
o Surrealismo como excipiente para engolirmos melhor a pílula do totalitarismo -
seja na Europa das pátrias, no oriente ou nas américas, do norte, do sul ou da central,
e que hoje compreendem e apoiam, impressa ou expressamente, delinquentes políticos
como Lula, Maduro, turiferários cubanos ou chineses tal como dantes o faziam com
os fidéis, os maos ou os stalins – é necessário, dizia, que os mostremos como de
facto são: “surrealistas de aviário”,
entes apostados em nos jungirem ao domínio espúrio de partidões ou, mais ainda,
de comités centrais que todo lo mandam,
sem ética e sem vergonha e que, cúmulo dos cúmulos, chegam a entender capciosamente as alegadas razões de grupos islâmicos criminais.
É preciso,
pois, erguermo-nos com dignidade surreal e libertária ante essa gente e dizermos
sem medo e sem sombreados que não existe “marxismo
libertário”, assim como não há tigres vegetarianos…
A vida
de Cruzeiro Seixas, tal como a de Mário Cesariny ou de António Maria Lisboa, antecessores
de outros que continuam a viver o surrealismo com a sua aura mágica e libertadora,
foi a afirmação sincera e criadora de que a liberdade
é da cor do Homem, como um dia afirmou Breton já despojado de falsas virtualidades
que durante certo tempo o feriram, pois se não podemos esquecer a altura em que
ele punha a Poesia com tudo o que lhe era inerente, não podemos pôr de lado, por
conveniência ou cinismo, as fases em que se deixou enredar pelo aparente brilho
da estrela falsa a que os alquimistas
bem aludiram!
Finalmente,
é imprescindível referir que, hoje como ontem, certas gentes deliberadamente orientadas
- por incapacidade, cegeira ou mesmo imbecilidade ideológica, tentam fazer crer
ao geral das gentes e ao particular de escritores sem grandes rasgos que o surrealismo
já foi, apesar das muitas dezenas que
continuam a vivenciá-lo e frequentemente com grande qualidade. Como exemplo mínimo,
verifiquei na Net que um mestre-escola de más mestranças (e num trabalho destinado
a alunos!) caracterizava Cruzeiro Seixas como “o último surrealista”. Isto sem a
face lhe corar, por pudor mínimo ou vergonha intelectual… Não, o poeta-pintor que
vai em breve cumprir 100 anos não é o último
surrealista. Será o último duma dada geração, pois nem se acantonava em grupos.
Mas o Surrealismo existiu sempre (tendo sido posto a correr duma forma acentuada
– na Europa e, a seguir ou paralelamente, no resto do mundo - dando de barato que
o instinto surreal claramente se manifestara nos tempos imediatamente anteriores
em povos primitivos ou desenquadrados
da chamada civilização) e sempre existirá
– enquanto no Homem permanecer o desejo infrene e imparável de mais luz.
2.4 Em
diálogo
Em 2018 Cruzeiro Seixas enviou-me duas cartas.
Uma delas agradecendo
com fraternal pormenor o envio que lhe fizera de livros meus. A outra, que carreava
a oferta de um seu catálogo-livro, era mais extensa e nela se alongava em reflexões
de índole pessoal norteadas por uma comovente humildade de verdadeiro fabro, de hacedor sem jaça, sem prosápia (como a que enroupa certos cavalheiros
de mão romba que se crêem irmãos de predestinados pelas deusas da paleta) – ele
que é indiscutivelmente entre nós um dos melhores desenhadores deste tempo, senhor
de uma imaginação transbordante e fecunda que lhe permitiu navegar, como diria Péret,
“sem norte e sem estrela através das tempestades,
rumo aos areais rumorejantes de ágatas onde brilha o olhar provocante das opalas”.
Elas trouxeram-me de pronto à recordação uma certa
tarde, cerca de 50 anos antes, em que o conheci, nos conhecêmos, numa galeria de
pintura, no decorrer da inauguração de uma mostra de um autor que já não lembro
quem teria sido. O que não esqueci, ao ser-me apresentado por um colega de veraneio,
foi a sua figura de fino recorte: um senhor esbelto de indumentária em cinzento
claro, camisa azul marinho, cabelo grisalho acentuando uma delicadeza bem espalhada
nuns olhos perscrutadores e abertos numa espécie de sonhadora atenção.
Conversámos seu bocado e, sem me lembrar de muitos
pormenores, apenas guardei que faláramos de surrealismo, de pintura e de como e
porque razão me encontrava eu ali.
E estivémos algumas décadas sem contactarmos de
novo. Embora eu fôsse tendo, como ele decerto em relação a mim, notícias do seu
trajecto, da sua demanda, ele que com Mário Cesariny e António Maria Lisboa – Pedro
Oom era de uma outra dimensão, ainda que paralela – constituíam a trilogia que,
no surrealismo em português, sentia que estava mais perto da minha própria caminhada.
Notícias essas dadas ora por um filho meu, ora
por um comum amigo, ora pelos periódicos que até mim chegavam.
Ora bem: tempos atrás escrevi eu que o Surrealismo
tem, nos últimos anos, estado a ser objecto de uma nova e forte atenção de ensaístas,
de críticos e investigadores da escrita e da arte em geral. Isso é claramente perceptível
e, diga-se mesmo, perfeitamente entendível, uma vez que ele nunca se propôs – fosse
nos seus reais praticantes fosse nas suas obras vivas – ser um elemento passageiro
ou um modo particular dependente de características momentâneas de moda ou de enfoque.
Cruzeiro Seixas e
Isabel Meyrelles, dois dos primeiros cultores do surrealismo entre nós e felizmente
ainda vivos, são duas figuras fundamentais dele e nele presentes.
Eu colocaria em Cruzeiro
Seixas, assim e aqui, a sua limpidez como num espelho policromo e encantado: dum
lado a magnificente pintura, do outro a poesia suscitadora, ática e muito rica a
um tempo, deste poeta, autor que pela escrita forma e dá imagem em réplica, a seu
modo, ao universo de criação originalíssima que é o do pintor que sempre soube excursionar
de maneira muito pessoal pelo mito, altamente legítimo e inteiramente salubre.
No que lhe diz parte,
a sua viagem pessoal dentro do surrealismo tem sempre sido uma heterodoxa maneira
de encarar o mundo e os seus prestígios ou apoquentações dum ponto de vista filho
da curiosidade, da indagação visando as possíveis descobertas, da ligação aos segredos
da existência a que podemos ter algum acesso se mantivermos a mente aberta e atenta
ao que se vai passando e que vem a seguir ao que se passou em anos de que a nossa
vida esteve repleta – não só os factos da história social, quotidiana, mas tudo
o que se pôde imaginar de fecundo ou mesmo possível: a magia que parte da escrita
ou a ela conduz, a pintura no mundo próprio ou alheio – e tudo o resto que nestas
duas se consubstanciam.
2.5 As cartas de Cruzeiro
Seixas
a.
Amigo
Nicolau Saião
Não são nada satisfatórias
as notícias daqui.
O que vai sendo noticiado
não é de forma alguma o que verdadeiramente tem a ver comigo e com o Surrealismo.
Vivemos em sociedade e
nela, quer queiramos quer não, uma enormíssima parte de nós está integrada. Gritamos
liberdade, liberdade, liberdade do fundo de uma prisão. Além disso tenho 97 anos
e a minha vista não me permite que leia uma linha. Os seus livros deram-me enorme
satisfação mas tenho que esperar por alguém disposto a ler-me algumas páginas.
Mesmo nestas circunstâncias
é sempre um prazer encontrar um velho amigo como o é o Nicolau Saião. Destes últimos
acontecimentos envio-lhe um catálogo onde pode ler alguns desaforismos da minha
autoria.
Felicitando-me pela receção
dos seus livros, felicito-o pela constância da sua visão.
Infelizmente já não me
vai ser possível, naturalmente, voltar a Portalegre, à casa do Régio e às manufacturas
de tapeçarias, mas no entanto espero ainda o rever.
Por hoje fica a gratidão
comovida, o velho abraço e os melhores votos, do
“Com a admiração e a amizade do Cruzeiro Seixas”
Artur (escrito pelo seu punho)
28 Março 2018
b.
Amigo
Saião
Não é para mim nem para si satisfatória a resposta que posso
dar a uma longa carta. Os meus 97 anos tornam o dia-a-dia muito difícil…É uma série
infinita de impossibilidades, como a de ler e desenhar.
Passei despercebido mas
fui “amado” por gente como o Cesariny, o Herberto Hélder; e sobre o que fiz, escreveram
críticos, como Edouard Jaguer, José Pierre, Franklin Rosemont, etc.
Meus pais não tinham meios
para me possibilitar a frequência de um curso e assim, durante toda a minha vida,
vivi em empregos desenhando dentro da gaveta da minha secretária, isto desde 1948.
Evidentemente que nunca
tive um “atelier”… Essas gavetas e a minha homossexualidade foram a grande família
da minha liberdade.
Envio-lhe fotocópias de
um texto de Cesariny e outro de Ernesto Sampaio.
Hoje estou numa instituição
que dá pelo nome de “Casa do Artista”, onde falta espaço, alimentação, etc. etc.
A “minha obra” parece-me
a mim ter sido mais em quantidade do que em qualidade.
A maior parte dos artistas
que conheço são grandes comerciantes; eu, pelo contrário, dei, perdi, deixei roubar
a maior parte daquilo que fiz.
Disso me envaideço imenso.
E tudo isto me dá um acréscimo de consciência e responsabilidade, que muito prezo.
Acresce a estas dificuldades,
que são jovens que fazem o grande favor de escrever estas cartas e ler uma página
aqui e ali dos livros que recebo.
O seu nome é uma garantia
de honestidade intelectual e é uma das companhias possíveis neste acanhado espaço
geográfico.
Comovidamente lhe agradeço
que se tenha lembrado de mim.
O abraço forte e os melhores
votos do…
Artur 17/06/2018
(O papel destas duas
cartas tem, ao cimo, impresso um desenho – uma espécie de ex-libris – constituído
por um cavalo cuja cabeça é uma mão empunhando uma caneta de aparo, das que se usavam
na escola)
3.
[Adenda] Uma carta a Rui
Sousa, de Nicolau Saião
Percebo o que me quer dizer. No que respeita
ao abjeccionismo, repare que eu refiro expressamente e tão-só os manguelas que se
servem desse conceito apenas para camuflarem, ou justificarem, os cinismos oportunistas
– as esguelhas de caracter – em que se enroscam e que tentam fazer passar por aquele
termo. Noutro plano, o que se convencionou – ou convencionaram – firmar como abjeccionismo,
nada tem a ver com surrealismo; como o Mário bem disse apenas se encontraram nos
cagarrões onde ambos estiveram presos. Para além disso, no que eu pude observar
- e conheci-os bem - os abjeccionistas que fui achar no grupo do Monte Carlo eram
operativos que andavam nas bordas do surrealismo e que tinham a hombridade de não
se dizerem membros dele. Apenas 3 deles (o Forte, o Oom e o Prof. Picó (era assim
conhecido com chiste o E.Sampaio), não iludiam essa designação (o Sampaio tinha
um curioso surrealismo, digamos; um dia ficou embatucado porque eu, com certa dose
de maldade, lhe perguntei como é que ele conciliava a existência do surrealismo
com a da KGB que vigorava na URSS. (O Sampaio, que não era trotskista, era um profundo
adepto do Leste, onde ele via ou pensava existir um forte leninismo (num dos seus
livros, não recordo agora qual, ele sem rebuços garante que o comunismo puro e duro
ainda irá voltar, mais rebentador e ainda mais de comer criancinhas (cito exactamente
o que ele escreveu). Ou seja, o abjeccionismo cá era o de membros do PC que não
comiam do neo-realismo e estavam revoltados com a apagada e vil tristeza salazarenta.
O Pacheco era um caso específico, ele não era abjeccionista mas a abjecção ela mesma,
com a sua total indiferença para com a ética fosse ela qual fosse. (Leia do Mário
o “Jornal do Gato, resposta a um cão”) e ficará bem esclarecido. Este nem seria
comunista (a não ser quando se serviu dele para seus jogos malabares, ele foi sempre
e só o Pacheco capaz de uma facada nas costas se isso lhe fosse curial para o seu
estatuto de libertino de meio-tostão e “abjeccionismo pandilha”, como eu lhe disse
um dia referindo-lhe que tinha acabado de vir dum verdadeiro inferno (a guerra na
Guiné) e que portanto não me impressionava com o seu alfacinhismo (e ele percebeu
e não insistiu nas suas brincadeiras, porque eu não lhe dava cavalaria).
O seu livro Do Libertino é uma obra bem feita, mas o
Pacheco que ali aparece é um Pacheco virtual, digamos. O Pacheco real, muito inteligente
e com um par de textos giros (mas não mais que isso, ele é apenas um bom escritor
de cartas, era um absoluto egoísta, no fundo estava-se cagando para os filhos e
demais traquitana) e se a princípio sinceramente apreciava o Cesariny e o Lisboa
(que muito exactamente o apelidara de o editor
hipócrita) sendo capaz de reconhecer o talento ou a grandeza de qualquer operador
de merecimento, como poeta era um zero – e ele sabia-o – tendo, como eu pude conferir,
uma enorme inveja do Mário (ele tinha a perfeita consciência da genialidade do Poeta
de Nobilíssima Visão e dos outros buques),
o que contrastava absolutamente com a estatura dele. Os seus últimos tempos revelam-no
como um dos maiores inimigos do surrealismo cá, e no que respeita ao Mário vivia
a ofendê-lo e a amesquinhá-lo quotidianamente. O Mário, porque sempre foi e o reconheci
sempre como um ser de lealdade e até como possuidor de uma comovente ingenuidade
(o que só lhe ficava bem e não o apouca) custava-lhe muito a atitude do antigo amigo
- que no fundo sempre fora, mas a princípio não extravasava, um perfeito sacana.
(No último número do & ETC do Jornal do
Fundão, onde foram publicados os poemas da minha colaboração ali, vem lá um
texto pachecal onde esplende uma insídia dele a achincalhar o Mário, essa exarada
porque, aqui fica o detalhe, o seu autor também invejava profundamente o Pintor
por ele ter granjeado forte notoriedade como plástico e, devido a isso, ter uma
bolsa bem recheada...!).
Mas bom, caro Rui, esta
já vai longa e então por aqui me fico. O abraqson do
n.
NICOLAU SAIÃO (Portugal, 1949). Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha etc. Em 1990 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro Os objectos inquietantes (1992). Autor ainda de Assembleia geral (1990), Passagem de nível (1992), Flauta de Pan (1998), Os olhares perdidos (2001), O desejo dança na poeira do tempo (2008), Olhares perdidos (2007), O armário de Midas (2008), As vozes ausentes (2011). Fez para a Black Sun Editores a primeira tradução mundial integral de Os fungos de Yuggoth, de H. P. Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana, Bichos (2005). Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional Poetas na surrealidade em Estremoz (2007) e co-organizou/prefaciou Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril. Com Mário Cesariny e Carlos Martins, colaborou na efectuação da exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, levou a efeito a mostra de mail art “O futebol” (1995). Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões).
JULIA OTXOA (Espanha, 1953). Poeta, narradora y artista gráfica Entre sus últimas exposiciones : “Llocs de Pas” Espectáculo colectivo audiovisual-MACBA-Barcelona 2006, “Absinthe Review” Nueva York 2007; “New Sleepingfis Review”, Nueva York 2007; “Certamen Internacional de Fotografía Surrealista”, Eibar 2007; “Fragmentos de Entusiasmo”-Catálogo de la exposición Antología de la Poesía Visual española 1964-2006”-“Poesía Visual Española” (Antología) Editorial Calambur,Madrid,2007; “La Fira Mágica”, Exposición colectiva de Poesía Visual Ayuntamiento de Santa Susana Barcelona, 2007; “Homenaje a Manuel Altolaguirre”, Exposición Poesía Visual – Instituto Cervantes en Fez (Marruecos, 2007 ); “Miguel Hernández – Muestra de Poesía Visual” (Universidad Miguel Hernández-Elche, 2008); “Exposición libros de artista”, Museo de San Telmo San Sebastián, 2023; “Tres senderos que convergen”, Centro cultural Oquendo, San Sebastián. Julia Otxoa es la artista invitada de esta edición de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 254 | agosto de 2024
Artista convidada: Julia Otxoa (España, 1953)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2024
∞ contatos
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FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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