quinta-feira, 15 de agosto de 2024

NICOLAU SAIÃO | Evocação surrealista de Portugal

 


1. Sobre Cesariny

Creio que, neste caso, fará sentido começar esta evocação pelo fim. Em jeito de flashback cinematográfico, uma vez que o protagonista – para empregarmos esta expressão adequada ou conveniente, como se preferir - era um esclarecido apreciador de cinema.

Foi pois isto que eu escrevi em fins de Novembro de dois mil e seis e aqui se insere, a abrir, antes de passarmos adiante.

Morrer sim, mas devagar… No falecimento de Mário Cesariny

No triste jet set das letras (melhor seria dizer trocaletras) da nossa praça, para além daqueles que o estimaram e o souberam ler e ver havia dois grupos de fabianos sempre de goela aberta para melhor devorarem (tentar devorar) o universo conceptual que o norteara, de que se reivindicava e onde se inventava mesmo velho e doente: o surrealismo.

Esses dois grupos, pequenos jogadores das escritas e das pinturações, eram ou são: os que lhe exaltavam a pintura para melhor lhe rebaixarem a poesia e os que lhe elevavam a escrita para mais eficazmente lhe escaqueirarem o mundo plástico. Mas – e o truque nefando consiste nisto – no fundo não era a ele que visavam, tanto mais que a manobra já não colhia por ele lhes ter escapado para outros olimpos mais específicos. O que essa gente tentava e tenta era impedir que companheiros mais novos e com outras soluções de continuidade não ficassem sem voz, tão submersos como nos tempos da ditadura que ele detestava, como detestou todas as outras.

Essa gente, permitindo-lhe agora existir sem peias depois de durante os princípios da sua vida o buscarem liquidar e emudecer, queriam que ele se tornasse um refém dos que em Portugal põem e dispõem através da mentira cultural que vê a escrita e a literatura como aparelhagens para fazer “fins de meses” ou carreiras que eles mesmos controlam…

Hoje como ontem, num país onde a realidade já está mais que apodrecida, o surrealismo continua a perturbar porque não é um álibi para mercadores de carne assassinada. Por isso o acatitavam, fingindo que o amavam, visando transformá-lo numa espécie de faraó que caucionasse melhor as tentativas de extinção de um pensamento que é existência em todas as direcções e que ele sempre perfilhou.

 Durou 83 anos. Fez o que pôde e como pôde para exemplificar que as palavras que de facto contam passam pelos continentes da liberdade, do amor humano e do espírito sem algemas.

E, apesar dos zoilos e dos medíocres continuarem a tentar queimar o “castelo encantado”, que para eles tem a forma de literatice ou de convenção imagética – seja neste país, seja nos outros onde vivem e actuam muitos companheiros de sonho e de vigília a busca da maravilha continua.

“(…) Depois de vir da Guiné, tive contactos durante alguns anos com vários dos autores que haviam feito sair o número único da revista “Grifo”, a seguir apreendida pela polícia política (Pide). O chamado Grupo do Monte Carlo.

No Verão de 77, creio que em Junho, aquando duma viagem a Lisboa para que o meu filho mais velho, na altura um miúdo, tivesse consulta num ortopedista, conheci então o Cesariny: depois de termos ido aos alfarrabistas estava com o João ao pé da estação do Rossio esperando o autocarro para a Ajuda e ele pedira-me para ir experimentar as escadas rolantes. Enquanto esperava, ouvi uma voz que me pareceu reconhecer, perguntando à ardina: Tem um que traga notícias boas? Olhando em volta, eis que vi o Mário a comprar o jornal ali mesmo ao pé.

Dirigi-me logo a ele, identifiquei-me e ele, com bom humor, disse-me isto de imediato: “E eu que pensava que como bom alentejano eras baixo e moreno e, afinal, és alto e louro…”(cabelo castanho claro, na verdade). Na senda do bom humor, respondi-lhe: “E eu pensava que usavas chapelão e, afinal, usas boné!”. Espontaneamente demos um abraço, ele fez uma festa na cabeça do João e convidou-nos logo a irmos ao seu “atelier” tomar qualquer coisa e, principalmente, conversar. E enquanto o meu filho, depois de ter comido umas bolachas – nós bebíamos um chá – dormitava num dos sofás e depois dormia a sono solto, conversámos a valer até lá pelas 4 da manhã.

A seguir, num gesto muito usual nele (era um grande utilizador de táxis…) levou-nos até perto da casa dos meus parentes e, ao despedir-se, deu-me dois livros dele e uma História do cerco de Lisboa para o João.

Durante vários anos contactámos regularmente, nomeadamente efectuando textos para colaborações aqui e lá fora. Por 3 anos seguidos, num trecho das férias, eu e o João ficávamos no “atelier” e, com ele como cicerone em regime de pensão completa (almoçávamos e jantávamos e não nos deixava pagar fosse o que fosse…), passeávamos pela cidade: íamos a museus, à Feira Popular, a ver o rio…

 Recordo-me que uma vez o meu filho ficara a olhar encantado para um desses brinquedos que se vendiam na rua: um paraquedista de um palmo ou assim, que o homem embrulhava no pequeno paraquedas de plástico e atirava ao ar e lá vinha ele descendo, descendo… Não se atrevera a pedir que o comprasse. O Mário nada disse mas notei que reparara. Uns dias depois recebemos em Portalegre uma encomenda – e lá dentro vinha o boneco e, para mim, várias folhas de fotocópias (tenho-as aqui) tiradas por ele: Altaçor ou a Viagem em paraquedas, do Vicente Huidobro…! O Màrio tinha gestos destes, simultaneamente discretos e sensíveis.

 Quando eu uns anos depois sofri duma negregada nefrite que me obrigou a ser operado em Santa Cruz, o Mário ia esperar-me a Santa Apolónia, levava-me a almoçar ou a jantar (algumas vezes na sua casa da Basílio Teles), acompanhava-me pacientemente às consultas ou às análises e depois, para me acalentar nas dores frequentemente bastante marcadas, íamos ao cinema, ao teatro, aos livros de preço simpático na Feira Popular, pelo menos uma vez ao circo… E abancávamos com confrades nos cafés. Eu ia a Lisboa geralmente de 15 em quinze dias, se havia razão para isso semanalmente – nos fins de semana. (…) Alguns dos companheiros recorrentes eram o arqtº Mário de Oliveira, o Edgardo Xavier, o Relógio e, principalmente, o Manuel Hermínio Monteiro, umas vezes levado por mim o José do Carmo Francisco e, na última fase, também o Carlos Martins com quem se organizou a exposição “Surrealismo & Arte Fantástica” (…). Esta surgiu da maneira mais espontânea e informal que possa pensar-se, quase que por acaso: tanto o Mário como o Carlos partilhavam comigo o deslumbramento pelas coisas do Lovecraft, do Georges du Maurier, do “Monk Lewis”, do Bulgakov, dos antigos e modernos cultores do humor negro, do maravilhoso e do fantástico e falávamos muito a seu propósito. Como nessa altura o Carlos e a Ana estavam no Teatro de Xabregas, ela como atriz e ele como encarregado do sector cultural, pensamos em artilhar a mostra. Eu conhecia o Miranda Calha, que estava secretário de Estado do Desporto e ele falou com o Coimbra Martins, ministro da Cultura de então. Ultrapassadas algumas dificuldades que nessa época ocorriam – o Cesariny por seu turno falara com a secretária do Mário Soares –, articulou-se a exposição com o apoio do movimento Phases e de autores ingleses, brasileiros, belgas, angolanos, moçambicanos, holandeses etc.

 Conseguimos também, por intervenção do Mário Soares junto de certas embaixadas, a participação de alguns autores do leste…

 Os portugueses (Mário Botas, Paula Rego, Eurico, Armanda Andrade, António Quadros, Relógio, Garizo do Carmo, Areal, Júlio Reis Pereira, Escada, Isabel Meyrelles, entre muitos mais) quando vivos eram contatados por conhecimento próprio de uns e de outros ou disponibilizavam-se ao saber da coisa. Se falecidos, falava-se com os herdeiros.

 A minha contribuição de maior vulto – além de traduzir textos e publicar poemas no catálogo-livro e expor dois quadros – foi descobrir um surrealista ínsito, meu companheiro de adolescência. De sua profissão carpinteiro, meio-surdo e com dificuldades na fala, mas muito atento e inteligente, o Manuel Mourato nos dias em que tivera de ficar em repouso por haver partido uma perna pintara um enorme quadro com as tintas da profissão: O bosque encantado, título de minha lavra e que foi uma das revelações da Mostra. O Mário ficara entusiasmado, era a demonstração de que o surrealismo, no caso em Portugal, para brotar não carecia de cultura livresca ou entonações intelectuais.

 Mal recebida pela crítica au pair (estava-se em plena época da reação pura e dura aos que não aceitassem os ditames culturais dum certo setor, o marxiano) a mostra foi depois levada para a Sociedade Nacional de Belas Artes pela mão competente e esclarecida do crítico democrata Rui Mário Gonçalves.

 (…) Vi sempre o Mário como um ser de poesia e singeleza. Certa gente referia ser ele uma pessoa distante ou, por vezes e pelo contrário, agudamente frontal e sem papas na língua, querendo com isso significar provavelmente que não guardava a voz numa gaveta para lhes retorquir com acentuações adversas se necessário. Quanto a este ponto, sim; vi-o sempre como pessoa frontal mas nunca despejada, usava antes uma elegância imaginativa até quando era preciso contrariar ou infirmar o “interlocutor” oponente, digamos assim com suavidade. Era irónico, mas sempre com uma feição imaginativa…Para mim foi sempre cordial, extremamente fraterno e respeitador das minhas opiniões, que por vezes buscava de facto inflectir mas sempre com urbanidade e humor.

 E até quando se referia a gente de que não gostava (ou francamente detestava) – como um certo poetarrão e grande intelectual novelista e ensaísta sempre ressentido com a colectividade e com os colegas, que a seu ver o festejariam escassamente; ou outro, um pensador das pechas nacionais mas que a seu ver nunca verdadeiramente acertara uma e quis ensinar Pessoa a pensar (não digo os nomes mas creio que se infere quem eram os cavalheiros) – tinha uma maneira de o fazer que mostrava como se pode ser agudamente crítico sem descer a um nível rasteiro. (…)

 (…) Muitos confrades estrangeiros, alguns deles ainda meus contactos regulares, chegaram-me por seu intermédio. Nomeadamente da América do Sul, da França e Espanha e da Europa Central.

Um dia fomos a casa de um confrade e amigo que ele me queria apresentar, pois achava que faria sentido eu traduzir-lhe um livro. Chegámos e abriu-nos a porta um senhor com um ar muito delicado e com umas maneiras de grande navegador dos espaços poéticos. O Mário disse-me o nome para que eu lhe apertasse a mão: Emílio Adolpho Westphalen, o excelente poeta peruano que, nessa altura, era adido cultural da embaixada do país dos Incas…

E traduzi-lhe de facto vários poemas, muito embora por razões diversas não tivesse saído em livro nessa altura. Já não tenho bem presente porquê, mas aconteceu.

 Mais tarde, anos depois, as voltas da vida fizeram-nos, principalmente a mim, seguir outro rumo sem que contudo nos perdêssemos de vista”.

Nicolau Saião

 


1.1 Comunicação de Mário Cesariny na conferência internacional “Pelos Direitos Humanos contra os julgamentos de Moscovo”, 1978

 

Este texto de MC, cuja cópia me foi oferecida por ele em Setembro de 78, para além da sua importância como documento revelador duma consciência livre, activa e ética, dá-nos pistas de relevo para entender na sua verdadeira dimensão os ataques que o seu autor sofreu, a partir de determinada altura, por parte de antigos companheiros de rota, nomeadamente Luiz Pacheco, Vergílio Martinho e alguns outros membros colaços inscritos no Partido Comunista luso.

Para além, é claro, do que os poderia separar ao conceberem e praticarem da maneira própria de cada um a vivência quotidiana na efectivação do surrealismo e/ou abjeccionismo e das suas proximidades durante a época salazarista e da que imediatamente lhe sucedeu, o chamado PREC, eivado de contradições e movimentações as mais estranhas e afastadas de uma liberdade autentica que o golpe do 25 de Abril se propusera levar a efeito, incrementar e permitir consolidar.

Sei, porque eu estava lá e o ouvi por diversas vezes – na “tertúlia” do Café Monte Carlo, onde passei a estacionar durante razoável período de tempo após a minha ida, com Carlos Martins, ao contacto com os surreal-abjecionistas do chamado “Grupo do Grifo” – que as críticas, por vezes muito acerbas, que lhe eram dirigidas assentavam em duas características do nobre autor de Pena Capital: ter feito nome na pintura, o que lhe granjeava proventos consideráveis e legítimos e, principalmente, estar contra as posições afixadas por aquela formação política que jamais esteve liberta do autoritarismo estalinista ou do cunho dependente das directrizes que a URSS estabelecia para a desejada sovietização a seu modo das chamadas democracias ocidentais ou ocidentalizadas. Martinho, pessoa aliás cordata no seu cômputo pessoal de relacionamento, era um ferrenho adepto do cunhalismo, tendo-me uma vez afirmado que considerava Álvaro Cunhal o maior político da Europa.

Quanto a Pacheco, para entendermos o seu ímpeto verrinoso em relação a Cesariny basta conhecermos as peripécias, pouco abonatórias, da sua adesão “militante” e conceptual (aquando da sua inscrição no PC) já no que sucedeu – e insistira expressamente para que sucedesse – na sequência do seu falecimento (caixão coberto pela bandeira deste partido e discurso fúnebre proferido por um importante quadro comunista, a exemplo do que fôra feito na cerimónia de Ary dos Santos). O qual objectivou, sem razão para dúvidas, a rendição absoluta do falecido às posturas que eram o corpus concreto e a feição mais estreme da acção cunhalista na sua caminhada totalitária em Portugal e no mundo.

Cesariny, libertário e surrealista, espírito livre e voz alta e clara, não podia claramente compaginar-se com os vezos de antigos companheiros que nunca tiveram uma frase de crítica para verberar ou infirmar o totalitarismo em que se mergulhavam os próceres comunistas nacionais e internacionais e enlevavam os fautores dos acintes, dos ataques maiores ou menores que lhe eram dirigidos nos “anos da brasa” lusitanos – conforme ao que lá fora, na Europa ou noutro continente, acontecera e acontecia (e ainda acontece) aos surrealistas ou a qualquer um dos que não se curvavam nem curvam ante o “esquerdismo totalitário” a que a vulgata marxista, hoje jungida ao “politicamente correcto”, dá o mote, o tom e a estrutura na figura de espantalhos letrados.

Cremos pois que este texto ilumina de igual modo o porquê de em certos círculos (que se têm caracterizado por epigrafarem e festejarem o denominado “surrealismo de escola” e, de forma algo precipitada e controversa, cozinharem de maneira peculiar o chamado “abjeccionismo luso”) se buscar envolver numa típica legenda o perfil solenizante de Luiz Pacheco – liofilizado et pour cause e seguidamente colocado num certo Olimpo – que a realidade da História feita com pundonor e verdade objectiva reconduz sem partis pris à sua real dimensão). [Nicolau Saião]

 

Nasceu este ano na URSS um ciclo de heróis

Leio, do escritor Máximo Gorky, estas breves linhas extraídas de um artigo de jornal publicado em Moscovo em Novembro de 1917. Repito: em Novembro de 1917:

 

Lénin, Trotsky e os que os seguem já estão contaminados pela embriaguez do Poder e é um exemplo disso a sua escandalosa atitude em relação à liberdade de palavra, às liberdades individuais e a tudo aquilo por que a democracia se bateu. Fanáticos delirantes e aventureiros sem escrúpulos lançam-se de olhos cegos numa pseudo “revolução-social” que mais não será do que a estrada da anarquia, da ruína do proletariado e da ruina da revolução.

 

Empenhados nesta via, Lénin e os seus companheiros de luta permitem-se todos os crimes: uma carnificina nos arredores de Petersburgo, a destruição de Moscovo, a supressão da liberdade de palavra, prisões insensatas, enfim, todos os horrores perpetrados por Plehve e Stolypine. Mas Plehve e Stolypine agiam contra a democracia, empenhados na destruição de tudo o que de honesto e vivo existia na Rússia, enquanto Lénin, pelo menos até agora, é seguido por uma considerável fracção de trabalhadores. Estou, no entanto, em crer que o bom senso da classe trabalhadora, a consciência que ela possui do seu papel histórico, depressa abrirão os olhos do proletariado para o aspecto totalmente quimérico das promessas de Lénin e para a extensão funesta da sua loucura. (…) A classe operária deve saber que não há milagres e que o que a espera é a fome, a indústria totalmente desorganizada, a ruína dos meios de transporte e um longo e sangrento período de anarquia seguido de um sombrio período de reacção não menos sanguinolenta”.

Estas palavras de Gorky, que ele sublinhava com o título “À atenção da Democracia”, num jornal que em breve seria proibido de aparecer, em vão as procuraremos nas centenas de edições, mais tarde feitas pelo Estado soviético, das Obras Completas do escritor. Foram expurgadas, como todos os títulos que fez surgir durante um ano nesse jornal. Quanto aos redactores e colaboradores dele, informa-nos Boris Souvarine que, à excepção de Gorky, pereceram todos nos subterrâneos da GPU. Entre eles Lozovski, primeiro organizador dos sindicatos soviéticos e depois ministro-adjunto dos Negócios Estrangeiros, torturado na cadeia até à morte, e Vassily Bazarov, tradutor russo do “Capital” de Marx.

Vê-se, pois, que o “sombrio período de reacção” que Gorky previa não tardou em afirmar-se. Vemos mais, infelizmente: que nunca mais desarmou, de 1917 até hoje. E tal como Gorky acentua, com lucidez que pode parecer-nos comum mas não o era de facto, tratar-se-ia de um reacionarismo conduzido em nome dos trabalhadores, em nome da revolução.

Porque ponho entre nós estas palavras de Gorky, gentil humanista e deficiente escritor que acabou por não resistir ao canto da sereia stalinista, que lhe pagou com as honras de envenenamento pela GPU de Yagoda a ambiguidade da sua adesão? [1]

Pois porque, em meu fraco entendimento, ouvir-se-á sem dúvida, aqui e lá fora, a sinceridade do nosso protesto pelos julgamentos e encarceramentos fascistas de Yuri Orlov, Anatol Sharansky, Alexandre Ginsburg, Victor Pyatkus, Vladimiro Slepak e José Begun mas de nada ou de pouco nos servirá se a todos nos situarmos no quadro de uma Convenção ou Acordo assinado em Helsínquia sobre Direitos Humanos. Que esse acordo que já se previa desacordado seja uma etapa da maior importância na luta política entre sistemas sociais diversos, estamos aqui para confirmá-lo. Mas aos jogos, às conquistas e às cedências da raposice política havemos de acrescentar uma outra dimensão para que estamos: a observação e denúncia da inflação pavorosa do linguajar que nos enche o ouvido. Que as piores injustiças, os actos mais selvagens, os maiores crimes podem chegar à rua em ondas de consagração, se não de santidade, quando lhes alçam pela carapuça o termo “revolução”, é fenómeno consagrado pelo uso, que já nem vale a pena discutir. Atentemos apenas neste quadro: Revolução nacional, do dr. Salazar. Revolução mundial, do dr. Trotsky. Revolução social nacional, do dr. Stalin. Revolução nacional social, do dr. Hitler. Revolução pronunciamento militar, do general Franco. É óbvio que em todas estas etiquetas de desespero o que há de menos é a Revolução. E ousemos agora e sempre muito alegrar por este final de século não ter sido brindado, como parecia, por mais um nacional-socialismo, encabeçado pelo luso dr. A. Cunhal. [2]

Este “charivari” de ideias decepadas pelo uso pirata da sua necessidade, estes discursos que mostram o anverso para expelir o reverso e que já só funcionam como metáforas, trazem quiçá consigo a boa nova: a de que nesta época do primado da ideia as ideias estão todas pela hora da morte, elas todas, as óptimas, as boas as péssimas e as talvez. Já não conseguem falar. O que, em certo sentido, é um inestimável bem: talvez depois de meio século e mais de regimes ditatoriais e de Estados totalitários possa começar a descobrir-se, a evidenciar-se, que as ideias só são aquilo que são, parte do homem – como as partes sexuais – não o seu todo; e, em consequência, evidenciar-se que sendo as ideias coisa séria, como as ditas partes, a tentação de pô-las a servir o que não é serviço delas leva à blenorragia intelectual que estamos apontando.


Julgo que é chegado o tempo de uma nova enciclopédia, de poucas mas claras páginas politicas. Há uns três anos, em pleno consulado de Costa Gomes, [3] ouvia-se no Rossio de Lisboa um espontâneo que, vestido à civil, enfileirava no entanto ostensivamente entre militares munidos de G-3 em posição de disparo, e gritava estentórico: “Abaixo a social-democracia!”. Cheguei-me a ele e disse-lhe: “Abaixo a ditadura!”. Pareceu surpreender-se com aquela minha audácia e olhou por cima dos ombros, à direita e à esquerda, como a assegurar-se do apoio dos soldados entre os quais se postara. Para meu eterno descanso, os soldados nem buliram. Apercebendo-se disso, o homem encarou-me e gritou: “Viva a ditadura da maioria!”. Retorqui-lhe: “Não sei o que é!”. O homem não mo explicou.

Ora tem dois géneros, dois pelo menos e ambos tenebrosos, esta “ditadura da maioria”: um deles, velho da idade do Mundo, será pressão exercida, qualquer tipo de pressão em qualquer tipo de sociedade civil, por uma maioria distraída sobre uma minoria atenta – e, neste aspecto, tanto podemos recordar Rimbaud quando assevera que a poesia não ritma a acção, vai à frente dela, como podemos referir-nos ao martírio milenário das comunidades judaicas e à destruição física, ainda nos nossos dias, de expressões e civilizações importantes, e até talvez mais importantes, como a dos índios norte e centro-americanos. Mas não era decerto nesta desgraça que pensava o espontâneo do Rossio de Costa Gomes. Era numa desgraça ainda maior, mais sofisticada, codificada, filosofada, desvirtuada e propagandeada pela actual retoiça materialista histórica e dialéctica do Estado totalitário, também de vários nomes antitéticos: democracia popular, ditadura do proletariado, etc. E dizer-se ou ouvir-se dizer que Karl Marx não é o marxismo, que Descartes não é o cartesianismo, ou que Cristo não é cristão já cai na pilhéria aquela da “normalidade na anormalidade”, quando fugiram os presos. [4] Ou, um pouco mais grave, no projecto de lei fascista contra o fascismo. É a aplicação universalmente descontracta do binómio de Newton: fomos perseguidos por minorias infames e exploradoras? Passemos a perseguidores implacáveis, delegados que somos de maiorias sublimes. Porém, estes delegados do maior não conseguem mais do que aumentar desmesuradamente o número de cárceres. E, no melhor dos casos, numa União das Repúblicas Socialistas Soviéticas onde não há socialismo nem sovietes, um almoço sem carne e raramente com peixe substitui o vinho antigo, que cintilava nas imagens de liberdade.

Vi há pouco um filme de péssima extracção estética e casuística, As sandálias do Pescador [5] em que o dissidente soviético Anthony Quinn, presuto, perseguido e arrecadado bispo de Kirov, é libertado de um Gulag e exilado na Cidade do Vaticano. Esta fita USA tem um final a arrebentar de feliz: Quinn vira Papa e, na cerimónia da coroação, Rei dos Reis, anuncia que venderá ao desbarato todos os bens materiais da Igreja, terras, mosteiros, pedrarias, tapetes, os frescos de Miguel Ângelo, os óleos, os anéis, o ouro dos altares e o de trazer por casa, as acções da Companhia de Jesus, etc, etc, etc, para que enfim se acabe a fome no Mundo. Não vi o nome do realizador mas se acaso é um tonto é um tonto que se excede, porque te põe em frente do nariz a última tentação do marxismo antes de definitivamente desaparecer: a nostalgia de uma Igreja, a necessidade de um sagrado para que nunca apelou porque não lhe achou nome. [6] A catacumba itifálica marxista obrigatoriamente dispensa a respiração indivíduo finito/ universo infinito, para se ater aos Estados-Deus dos romanos. À quantidade imensurável de mártires produzidos não correspondeu uma gesta específica de heróis, porque o herói pertence ao mundo da esperança, alheio à vocação de quantos infelizes continuam a tender, na modernidade, para a emulação dos cristãos pelo toiro, pelo fogo e pelo leão.

Mas a estes Cristos Ateus, paródia nova, e creio eu que última, da catacumba marxista, falta-lhes a imolação pela pomba, segredo que a Católica, ela também em convulsão intestina, não pode vender a ninguém.

Não quero terminar sem dizer-vos que a única coisa realmente importante que vejo nestas minhas palavras é o acto de as estar pronunciando aqui, entre vós.

Quero ainda chamar a vossa atenção para o importantíssimo conteúdo das palavras pronunciadas por Anatol Sharanski ao despedir-se dos seus depois de condenado. Ele não invocou a Jerusalém celeste nem atirou para a consumação dos séculos o velho sentido hebraico da redenção. Ele disse algo que é transformação formidável, é transformação qualitativa na luta do povo russo pela obtenção dos direitos humanos. Disse: “Até para o ano, em Jerusalém!”.

Estas palavras significam que nasceu este ano, na União Soviética, um ciclo de heróis.

Mário Cesariny (30/07/1978)

 

NOTAS

(1) Conforme se veio a saber depois da queda do Muro da Vergonha e concomitante abertura de arquivos secretos da URSS, Máximo Gorky morreu após envenenamento perpetrado por agentes da polícia política. Coisa que se suspeitava mas se tinha medo de conferir, embora circulasse à boca pequena nos “mentideros” do regime. Com a sua típica e hábil velhacaria e magnífico cinismo, Stalin mandou no entanto fazer-lhe funerais de Estado.

(2) Político luso, inteiramente devotado ao comunismo russo, viveu vários anos na URSS e noutros países de Leste, frequentemente sob incógnita para usufruir de maior desenvoltura militante. Autor de várias publicações teóricas tornou proverbial a expressão “amplas liberdades”, que a seu ver caracterizaria a doação ao povo quando o PC chegasse ao Poder. Curiosamente lançou-a em público no período em que o seu partido mais tentava cercear a liberdade possibilitada pelos militares revoltosos…

(3) Francisco da Costa Gomes, general depois elevado ao marechalato pelo Governo no fim da sua vida. Crismado com o anexim de “Chico Rolha”, devido à sua capacidade de sobreviver flutuando mediante um oportunismo habilíssimo, foi um aliado forte e objectivo da URSS, nomeadamente como figura cimeira das consabidas associações para a paz, entidades de que este país se servia profundamente ao recheá-las de “idiotas úteis”.

(4) MC alude a um caso que se tornou célebre durante o PREC (Processo Revolucionário em Curso): a fuga, que teve contornos enigmáticos e ridículos, em vista do que a rodeou, de 89 (!) agentes da PIDE, todos no mesmo dia e à mesma hora, das cadeias em que a cena abrilina os encafuara. A frase que ele cita foi proferida por um prócere governamental…visando justificar o tragicómico sucesso.

(5) Filme do realizador britânico Michael Anderson, baseado na obra homónima de Morris West, escritor católico especializado em romances girando no universo fideísta. Anderson, que se notabilizara através de bons filmes como “A fuga de Logan” (science-fiction), “O Memorando Quiller” (espionagem) ou “A casa da Flecha” (mistério & suspense), encenou aquela obra (por razões comestíveis?) para a Metro Goldwyn Mayer, que presumivelmente recebera essa encomenda dos meios vaticanistas mais “avançados.

(6) Actualmente, o protagonista da paródia aludida é, claramente, o inefável Papa Francisco, figura mediática que conseguiu ultrapassar o dinâmico Woytila e o melífluo Ratzinger na sua piscadela de olho aos credos politicamente correctos “new stile”, ao racionalismo crente “nouvelle vague” e ao “marxismo cultural” de diversos matizes obnóxios – os que acham possível uma espécie de Tratado de Tordesilhas islamo-cristão, com recorrências ora fradescas ora ideológicas…e em que o inimigo a crestar é o ateísmo libertário ou mesmo o agnosticismo de cepa progressista não-marxista.

 

1.2 Duas cartas (inéditas) e um relato

 

Estas cartas que aqui se dão a lume fazem luz sobre circunstâncias que aconteciam aquando da Exposição Internacional surrealista “O fantástico e o maravilhoso”, realizada em 1984 no Teatro Ibérico e seguidamente, pela mão do crítico Rui Mário Gonçalves, posta na SNBA. Na Nota final se dão mais elementos que, cremos, se necessário iluminarão o que nelas é abordado. O relato, à guisa de “reportagem”, que na parte final do bloco se insere, descreve – como é patente - um certo ambiente que por essa época envolvia a panorâmica lusitana, mormente nas suas relações com os escritores e pintores surrealistas e outros autores independentes, não contaminados pelo realismo orgânico.

 

a. De Mário Cesariny a NS (manuscrito)

 

Out. 84

Meu Caro Francisco Nicolau

Depois de muitos picos e oxalá não venham ainda outros mais agudos, o Catálogo da Exposição ficou ontem entregue e agora eles que dêem ao dedo atrasado. Se puder abrir no meio de Novembro já seria muito bom.

Concordo firme com o que na tua última carta dizes do “anarquismo” do e dos Rosemont e o que eu gostava bem é que lho dissesses a ele directamente. Apreciei tanto a tua carta que pensei publicá-la no catálogo, mas parei, porque: teria de ser revista, com vista à publicação; b) levava os textos inseridos para um terreno de que, no geral, estão alheios.

Assim, do que lá vem, e como “responsabilidade” minha no ter posto, penso que será bastante publicar, juntamente com o texto do Rosemont “Para o II Incêndio de Chicago” (que é quanto a mim um belo texto de furor poético) o texto do John Lyle de que fiz um Bureau (chata palavra esta) Surrealista ainda este ano, texto que é contradita formal aos apelos ó Marx ó Freud ó Trotsky ou Lenine; e ainda o texto do Jean-Jacques Dauben/Timoty R. Johnson, que é ultrapassagem serena da questão.

Repito-te que era muito bom (sobretudo para ele) que, e agora que v/ estão em contacto directo, lhe escrevesses dizendo. Mas teria de ser em inglês ou francês porque lá o português não se ouve. Julgo que em espanhol também poderia ser. Ou chinês.


O quadro do Mourato tem que vir. O mesmo problema há em relação às esculturas da Silvia Westphalen e do Pedro Fazenda, que são material pesado e estão em Lagos.

O Carlos Martins tem sido um amigo e um colaborador admirável, e não ponho um pêlo de dúvida de que se esta Exposição se faz ou fez muito mais de metade da força necessária a tal loucura é dele. Mas é também um emotivo, uma emoção a andar, como de criança. Boa, que é a diferença entre ele e o Cruzeiro Seixas, que sempre fez, ou gostou de fazer, de criancinha má.

O que dizes dos “amigos” de aí, quanto a ajudas (transporte do quadro do Mourato), está um pouco contrabalançado pelo que a mesma gente tem feito aqui para desembaraçar obstáculos inenarráveis e seculares. Assuntos alfandegários medonhos e outros medos mais.

Hoje o Teatro Ibérico estreia a Celestina. Vou ver.

O Nicolas Calas refere-se a montras no texto que traduziste. E ainda que isso esteja enterrado lá no 1940, eu ainda me lembro de ter visto, pelo menos duas delas.

Velho, ã?

O Arpad Szenes caíu não sei como e está com um osso para pegar. Com a idade dele isso é pior do que mau. Escrevi-lhe e enviei-lhe o poema que lhe dedicas e vai sair no catálogo.

A ideia é incitar o osso.

Escreve ao Rosemont, mesmo em chinez. Ou encontra aí quem te verta em inglês ou francês. Eu, a ele, já disse o que tinha a dizer há pares de anos.

Parece que o Robert Green, a Debra Taub, o John Graham, o Ludwig Zeller, a Susana Wald e o Granell vêm cá ver a Exposição. E há um Australiano muito muito bom que diz que já não pode com tantos cangurus e quer vir para a Europa. Arranjas-lhe vida de artista aí em Portalegre?

O Mourato deve vir ver a Exposição! Trá-lo contigo.

Grande abraço

Mário

 

b. De NS a MC (a carta a que este se refere na sua)

 

26 Set. 84

Mário:

Apresso-me a escrever-te para te dizer que, com efeito, o papel do Rosemont é de facto de mais. É, pelo menos, um bom serviço prestado aos KGB e companhia, sob a sua capa anarcaqueirante.

Não alinho nisso; seria bom compreender-se que, também eu, não concordo com a sua inclusão no Catálogo; o fantástico e o maravilhoso, sendo a inteligência e a poesia em funcionamento prático, não se compadecem com a vizinhança de pistolinhas de Chicago. Aquilo não é revolucionarismo, é politiquice às três matracadas.

Creio que é urgente mandares dizer a Rosemont que a Exposição nada tem a ver com anarquistas federados ou só de chapelinho; para que tudo não se complique e comece a ficar macacal. E dê merda.

Por outro lado, importa dizer de uma vez por todas: eu não sou anarquista, explicando: sou libertário porque surrealista. A minha estadia junto dos anarquistas ibéricos foi um equívoco provocado pelo facto de eu julgar que as pessoas que se dizem livres têm poesia na cabeça e no corpo; trocando: que são a própria poesia.

 Quem são a própria poesia são os poetas: tu, eu, o Martins, assim. Os outros podem sê-lo eventualmente, mas não se tem notado nada. São anarquistas de aviário ou “pistoleiros” puros e simples. A Anarquia, para mim, teria de ser a poesia em movimento. Mas aqui (ou em todo o lado? Espero que não) é só a politiquice duma dada extrema. Que vão para a pôrra, definitivamente. O único anarquista verdadeiro é o homem criativo, o Poeta, que não se curva a cores e traquitanas. E disse, caraças!

 Concordo pois contigo e Carlos que importa levar a Rosemont as “actas de Niceia” (passe a piada!). O texto dele parece-me menos surrealista que exaltado. E a exaltação assim é meia-mantença de um outro conformismo. Prefiro os índios e os esquimós, mais que os americanos em (pseudo?) rebeldia. Tenho a ver com os Dogons (assim como com Basile Valentim) nada tenho a ver com Marx e Lenine. E pronto, caneco!

 Cago tanto na LSD como nos manifestos eleitoralistas. Tanto me urino nas bombas de compra ou de fabrico próprio como nos artefactos dos cabrões dos militares e estados-maiores. E acabei.

Amanhã te mandarei o resto da tradução do Calas. Acredito no valor do livro dele se o dizes. Aliás estes textos dele não são maus, são só horrivelmente ingénuos (embora necessários, e além disso a intelligentsia orgânica de cá é tão estúpida que não irá dar por nada). Depois, um dia, falaremos disso.

 Os meus textos que apontas não estão publicados em nada a não ser as cópias fotocopiadas que te mandei – com excepção do Picasso.

 Agrada-me que tenhas colocado esses para publicação no catálogo.

 Talvez dentro deste tempo eu tenha dinheiro para editar um livro (que dizes a “Objectos inquietantes” ou outro? [1] Fala disto. Procura por favor uma tipografia que faça BARATO, PÁ. Davas capinha? Então vê lá isto. Estou um bocado melhor, com as alergias de verão a desvanecer-se, depois falaremos de viva voz.

 E viva a Poesia, a revolta e a beleza sem amarras nenhumas.

 E vejam lá isso sobre o Rosemont. Se não, qualquer dia estão a fabricar bombas atómicas de bolso. O que é tão mau como o resto.

Abraço grande do

Francisco (nome civil de NS, também manuscrito)

 

NOTAS

Coincidindo com os prolegómenos da Exposição “O fantástico e o maravilhoso”, o diretor do quinzenário Voz anarquista (Francisco Quintal) aceitara a minha sugestão de ali ser dada a lume uma "página surrealista" organizada por nós (eu e Mário); assim sendo, juntámos colaboração de surrealistas nacionais e estrangeiros; Franklin Rosemont (EUA), para além de um bom texto sobre o surrealismo destinado ao Livro-Catálogo da Exposição mandava um outro destinado eventualmente à dita página no qual, visto o anarquismo – conforme à tradição…ser de esquerda, se debruçava com extrema “militância esquerdista” sobre o momento português - manifestamente devido ao desconhecimento do que de facto sucedia em Portugal, onde os surrealistas eram marginalizados e fortemente hostilizados (bem como muita outra gente) pelo partido político que ali representava o império soviético social-fascista e liderava as operações de conquista do poder em conformidade.

1. O dactiloscrito do livro aludido recebeu mais tarde o prémio “Revelação Poesia” 1990 e foi dado a lume na Editorial Caminho.

 

1.3 O relato-“reportagem”: “Pela porta do cavalo”

 

No decorrer da turbulenta sessão surrealista aqui referida e durante a qual se esboçaram entre alguns assistentes amoráveis pequenas cenas de pugilato e outras danças a carácter propiciadas por espectadores fãs dos situacionistas de Leste, além de um poema (já publicado em diversos órgãos e espaços informativos) Mário Botas – que ali nos fora acompanhar como espectador – teve a gentileza de me oferecer um desenho aguarelado de excelente feitura. Perdido sem apelo nem agravo entre os eflúvios da zaragata ficou ele, creio que capturado por um desembaraçado anónimo admirador do pintor – o que a ninguém dói mais que a mim, seu feliz proprietário durante o melhor de aí uns vinte minutos… ou duas horas.

 

Sei, por tradição escrita e oral, que há uns senhores (ensaístas ou biógrafos, lhes chamam) que têm por mester traçar a vida e os cometimentos dos que em esta vida pintaram ou poetaram com algum destaque. Dedicado a esses bons espíritos, poupando-lhes assim trabalho moroso de investigação, é que segue este resquício de texto, enviesado porque os tempos não dão para mais.

Ora foi que no passado dia 1 de Novembro dei comigo, de juntura com o Mário Cesariny, num salão de Alcântara a falar de surrealismo. A sessão foi algo picaresca. No meio de gente atenta e interessada houve (e ainda bem, ou mal) uns fulanos que não aguentaram o Artaud, os negros Nauba em livro que lhes dei a ver, os poemas do Mário e os meus próprios. No meio da conversa deram de si, o que foi curioso de contemplar. Já toda a gente sabe que no Movimento político luso (digamos assim por comodidade) há, discreta e séria, uma doce corrente meio fascista/meio estalinista, expressa ou camuflada. Tão camuflada que por vezes nem os próprios dela se reconhecem. Bem certo é que o estampido das suas cabeças por dentro lhes dificulta às vezes o conhecimento intrínseco de si mesmos, mas o que não está bonito é que deixemos os vindouros sem isto lhes assinalarmos.

A palestra sucedeu no âmbito da Semana de Presença Libertária. Antes de nós tinha actuado o Grupo Mandrágora com uma peça em um acto de Jorge de Lima Alves, “Jau”, que está a preparar-se para enfrentar o público. Bons moços, os de “Jau” precisam, fundamentalmente, de dinheiro. Como não lhes sairá, seguramente, a Taluda por estes meses mais chegados, talvez outra entidade abone.


Depois de eu ter apresentado uma breve resenha dos prolegómenos dadaístas e surrealistas, Mário Cesariny “para lançar uma ponte entre todos e que permitisse intervenções e perguntas”, começou a ler umas linhas de Artaud, do seu livro “Viagem à terra dos Tarahumaras”. Foi quase a seguir que começou a bagunça (peço desculpa aos futuros biógrafos mas não posso utilizar outro termo menos vernáculo): um senhor de barbas, atingido pela voz do autor de “A cidade queimada” e pelos ecos de Artaud, increpou logo o ledor, perguntando-lhe com laivos que pensou irónicos se “aquilo era uma lição de antropologia”. O que ele queria, viu-se depois, era que os surrealistas dissessem ao que vinham, como os pajens de antanho. Qual era o seu presente e, eventualmente, o seu futuro. Antes de lhe responder, o que fiz seguidamente com algum desenfado, uma senhora do sector interessado desfechou-lhe com vivacidade o que ele estava a pedir: “que aquilo não era um comício e, se não estava interessado na voz dos poetas, podia sair e arejar o ambiente”. O rapaz de barbas, que devia ser um tímido, calou-se prudentemente.

Depois de Cesariny lhe ter dito que, ao contrário dele, não acreditava no progresso ocidental, que era o que repassava a sua intervenção, pouco na história e ainda menos no futuro da literatura, afirmei-lhe por minha vez que me parecia que Artaud, pondo de parte o interesse evidente do seu relato, todo percorrido por uma aragem de paixão e imaginação, não estava morto. “Neófito, não há morte”, como dizia o Fernando Pessoa. Além disso, era de nos interrogarmos se não estariam mais mortos os laboriosos mentores da cultura cristã inventora da corrida em frente (para o abismo). Quanto ao surrealismo, vai indo relativamente bem e de saúde: a poesia sob todas as formas é o que interessa aos operativos, os totalitarismos o que não lhe quadra. Disse alguns textos do Cesariny e meus, espalhando revoada de diabos. Recompostas as coisas, tracei um panorama do que se pode entender por acção poética: prospecção do humor negro, da imaginação descomprometida e da alta Aventura, da ligação ao não-autoritarismo, à Beleza e ao repúdio do que por detrás dela se esconde como um rinoceronte: o horrível do Belo, exemplificado entre nós por sarcófagos altifalantes como José Augusto França, E. Prado Coelho, universitários cabotinos e outra gente de fraque. Expliquei mais ou menos em tempo porque é que aderimos à chamada Utopia dos Grandes Transparentes, porque negamos a religião clerical e o Poder, seja ele de Estado ou de sector. Foi a seguir, quando coloquei o Dada retardado Vaneigen no lugar que lhe compete (estraga-albardas mascarado de sacristão, exemplificado pela repugnante frase “A Esperança é a trela da submissão”) que alguns rapazes ficaram um pouco ourados. Após dar a minha opinião sobre o que eles pretendem destruindo a Poesia e a Arte (a arte lúcida e viva) e que é simplesmente destruir a forma mais eficaz de criatividade, dei a altura e a água ao Mário que mostrou sem margem para confusão a razão de serem os adeptos de Vaneigen iguaizinhos aos moços de Brejnev: adesão a um comportamento rígido e totalizador, sequelas sexuais não resolvidas, ódio à Vida no mais alto grau, adesão a esquemas maniqueístas. Depois de me referir ao exemplo que Bradbury equacionou no seu magnífico “Fahrenheit 451”, uma sociedade crestadora dos livros, das pinturas, mergulhada na masturbação, no comer-dormir-trabalhar e na delação, foi aí que tive oportunidade de ver saltar do canto um indivíduo espumando de fúria que, parecendo conhecer-me, achou “que tinha de acabar-se com a Arte e os artistas”. Retorqui-lhe que só havia um meio para isso – prender em campos de concentração os ditos, queimar os quadros e instaurar a polícia total do pensamento e do corpo. Pelo que me dizia respeito garantia-lhe que, mesmo numa cela, mesmo retalhado, continuaria a fazer versos, se não escritos pelo menos pensados. O indivíduo em causa, persistindo, afirmou-me que o que lhe interessava era “destruir o surrealismo”, programa aliás digo eu já no mapa de certos sujeitos como Hitler, Mussolini e Salazar. O que o indivíduo queria significar era sem dúvida “destruir a poesia” que para ele ao que percebi é apenas alibi e truque.

Censurado por alguns assistentes, com quem chegou a envolver-se em disputa física logo apartada por outros, a pessoa exprimiu desejar continuar comigo a conversa lá fora, referiu corajosamente não sem antes me tentar aplacar dizendo-se magoado por eu o ter comparado ao Brejnev. Para não o frustrar e porque ficara com aprumos de efectuar uma contradança a caracter, sugeri-lhe (enquanto o Mário ria feito maroto) que fossemos então já para a rua trocar umas amáveis congeminações para não ficar muito tarde. Depois de meditar uns momentos, o moço para minha surpresa declinou a simpática oferta, o que algumas vozes mais brejeiras não deixaram de comentar com virtuoso sarcasmo…para seu encabulado posicionamento.

E de facto comparei-o mal: parecia-se mais com um jovem e desaparecido membro da “Jugendgroup” que vi num filme sobre a Segunda Guerra Mundial.

A sessão, ao que percebi, iria acabar como nos bailes de província relatados pelo Antunes da Silva se um interveniente não tivesse vindo pôr termo ao potencial espectáculo (passe a ironia) falando na hora tardia.

E foi só.

Resta-me garantir aos jovens assistentes interessados que continuarei a poetar. Isto serve também para os não interessados. Agradeço também a atenção expressa pelos outros assistentes: mulheres e homens. E até sempre…

 

NOTA

Este bloco foi publicado na página cultural do semanário alentejano A Rabeca, órgão de informação onde na altura colaborava.

 

2. Sobre Cruzeiro Seixas

 

É preciso ver a poesia e a pintura muito ao longe. Ou antes: é necessário, por vezes, vê-las como se estivéssemos muito longe, do lado de cá dos montes com desertos misteriosos pelo meio. Muito longe do poeta/pintor, das suas palavras, das suas razões ou desrazões, muito distantes da sua figura, dos seus secretos motivos, dos seus motivos quotidianos e reais – das suas quimeras ou das realidades que lhe crestam a face, dos segredos todavia muito próprios, dos seus pavores e dos seus encantamentos. Como se, magoadamente, serenamente, o encarássemos como o aventureiro legítimo, cuja imaginação clara e concreta nos vai talvez salvar, nos vai talvez fornecer a pista inquestionável para a viagem mais rara. Para a viagem que iremos fazer, cruzando as lonjuras que frente aos nossos olhos se patenteiam.

Mas será isto possível? Será mesmo efectivável, por maioria de razão se com ele convivemos durante décadas, se lhe conhecemos muitos dos mitos e dos quotidianos em que se envolveu ou se deixou envolver, dos sonhos que lhe permeiam o espírito, daquilo que viu e que o suscita para que se permita escrever e pintar sem desdouro e sem desfalecimento? Se o estimamos, se vemos nele um companheiro de jornada, um confrade na rota que é própria de quem vive, que é única mas também nos seduziu?

Pode, pelo menos, tentar-se. Efectuar essa distanciação que é como uma boa regra vital, que é assim como que um olhar lançado na direcção de algo que já vimos mas não esgotámos, como acontece nos grandes passeios que não planeamos ao pormenor mas que ficam em nós para sempre tal qual as memórias de ritmos imarcescíveis.

E, afinal, não pode esquecer-se que há no artista, como em qualquer outra pessoa, sempre uma parte velada, uma espécie de continente desconhecido que nunca chegaremos a descriptar perfeitamente.

Perene regra que deverá ser observada, mesmo escutada quando iniciamos uma demanda. Para além dos horizontes, em pleno território da escrita e da pintura que doravante não nos será alheia.

 

2.1 O sabor africano dos dias

Mesmo estando em Lisboa, no continente divisado seja em Loulé, Caminha ou Alpalhão, ou no Norte onde ele agora vive, há qualquer coisa na poesia de Cruzeiro Seixas – incomplacente, inventiva e com um perceptível halo de mistério (não de exotismo!) – que me comunica um cheiro, um sabor, uma ambiência que me faz sentir a presença da África onde residiu e viveu durante anos que, se foram decerto de encantamento, também foram de inquietação e mesmo de amargura devido a condições muito próprias.

 Creio que qualquer um que ali tenha vivido ou excursionado por um considerável lapso de tempo sente esta sensação ao defrontar-se com o acervo de poemas de sua lavra. Com efeito, se o seu percurso nos mostra um autor absolutamente lusitano e surrealista de várias têmperas, não é menos verdade que, tal como me sucede por exemplo na leitura de Leal de Zêzere, sinto o poderoso apelo de África disseminado no que escreve, ora aqui ora ali, expressa ou impressamente: o cheiro da terra e o sabor dos frutos e dos produtos de quitanda, o ritmo das emoções e dos pensamentos que rodeiam os que, estando em África, tendo conhecido nela como num encantamento jornadas e vilegiaturas, acabam por se ligar a esse continente da forma muito pessoal e peculiar que cifra o seu discurso literário e artístico.

 E, com efeito, Cruzeiro Seixas põe em equação, diria em confrontação, figuras originárias - mitológicas umas, intensamente realistas ou fazendo parte dum imaginário retintamente europeu outras – do continente “lugar de partida” como lhe chamava G.A.Henty e onde cristalizaram muitos ritmos que depois se iriam difundir, mercê dos fados da História, pelas terras de Mashona, ou de Chiqwelembo, de Shaka ou de Barotse… Ou dos plainos desérticos de Namanga.

Ou seja: por todos os locais onde se cimentou a imagem que, com alguma dose de magoada ironia, Aimé Césaire, Frantz Fanon ou Fred Blanchod qualificaram de “negritude greco-latina”.


O apelo da terra, europeia ou africana, é contudo certificado pelo apelo da escrita: dono de uma límpida erudição a que prefiro chamar conhecimento, cultura viva e profundamente humanizada, Artur do Cruzeiro Seixas faz reflectir nos seus poemas uma qualidade de discurso poético absolutamente salubre, cortada por um humor e agilidade de estilo que só aos zoilos aparecerá como agilidade extrínseca. Discretamente dramática, quando não mesmo trágica, na sua poesia percebe-se uma fundura de pensamento que toca os grandes temas universais e a forma que eles tomam ao organizarem-se num determinado espírito, num determinado autor.

 Numa determinada demanda, de cariz muito próprio, complexo mas conseguido e inteiramente fundacional.

 Colho, de um espaço interactivo, estas palavras: De acordo com Isabel Meyrelles acerca da poesia, Seixas encontrou em África o espaço que, ‘homem esponja’, sonhava, estando sempre pronto a absorver o que o cerca, e a transformá-lo. Já Alfredo Margarido considera que [a] África foi um continente que nunca nos deu sistemas filosóficos e nunca conheceu as peias de um cartesianismo mal entendido. Daí que sintamos estar Cruzeiro Seixas no continente que é realmente o seu, com uma imaginação elástica e lançando cabos em direcção a todos os seres e todas as coisas.

E é, foi e continua a ser em África – como noutros lugares “primitivos do mundo – que um dado (que a pintura deste pesquisador de Universos, tão visionado (de vidente) na sua pintura que se plasma em figurações quase reconhecíveis mas que vivem noutra dimensão) se consubstancia: refiro-me à máscara, às máscaras, que os seus personagens incorporam.

Escrevi eu algures: Sendo uma clara face de substituição, mesmo de transfiguração como ficou sugerido, a máscara é igualmente uma projecção dos nossos continentes submersos, das partes demasiado sugestivas e reveladoras do duplo que se acoita nos nossos compartimentos mais recônditos e que através dela é acordado para as actuações que doutra forma não teriam ensejo de se manifestar. Através da máscara que nos vela e nos esconde, paradoxalmente mostramos então a parte oculta da nossa Lua pessoal. Ao mesmo tempo que nos disfarça, a máscara revela/desvela: o que somos intimamente ou, dizendo doutro modo, o que sem máscara nunca patentearíamos à realidade circundante e colectiva. E é precisamente mediante esses corpos contorcidos de manequins, de mascarados compósitos que apontam para uma humanidade sofrendo as agruras de algo que as deforma, que a pintura e os desenhos de Cruzeiro Seixas constroíem um mundo que grita o seu desespero mas que, contudo, aponta para um desejado permanecer de esperança e de redenção, não mística mas realizável num continente, em continentes, deste lado da vida.

 Dum lado a África, doutro lado o mundo, todos os mundos que o pintor-poeta percorreu, cifrando-se finalmente no país que foi o do seu começo, esse início que, presumimo-lo, será o do final da sua viagem bem real e concreta de homem entre os homens.

 

2.2 A história se faz assim

Cruzeiro Seixas-pintor, dobrado de poeta, é um organismo mais que vivo. Criador, mas que cria a partir do “objecto obscuro dos philosophos”, do elemento primordial desorganizado e portanto que carece de um trabalho de limpeza, de decantação, de desconstrução das matérias desordenadas que só nos são oferecidas porque necessitam, para brilharem, que a mão – mesmo inábil ou gauche – as projecte, se projecte, num cenário de contínuo esforço ao longo do tempo. Contra os monstros, mas também contra as seduções de um reino aparentemente acolhedor e luminoso que, no entanto, traz em si os alçapões da falsa tranquilidade para nos amordaçar, para nos retirar de nós mesmos com os pretextos de uma razão que não é mais que estreiteza de vistas e de tentar exaurir o conhecimento transgressor contra fábulas velhacas.

A arte, antes de ser um conceito é sempre um impulso. Nenhum artista de qualidade faz arte reflectindo simplesmente sobre o que a arte é. Isso sucede a posteriori. Só os pintores medíocres – como se lhes chama na gíria do meio, pintamonos – é que para se darem ares ou porque são de facto mentecaptos afivelam um certo ar empafiado e bolsam por vezes frases empoladas sobre a intenção, o trabalho, como dizia Borges “el acto de hacer”. O verdadeiro artista é mais modesto e, por isso, faz arte para aprender sobre o mistério da existência e do mundo. Assim sendo, a arte (seja ela qual for) é sempre uma negação da morte, do vazio, do desaparecimento. Só os filisteus, os de duvidosa mentalidade, propõem a arte como uma coisa bela, algo que serve para tornar os dias e as horas do vulgo ou dos poderosos um pouco mais suportável ou luxuosa.

Pelo contrário, a arte autêntica é sempre desinquietante, transtorna e só depois é que nos apazigua.

Antes de transmitir, mediante as suas realizações materiais, algo ao público, o verdadeiro artista procura esclarecer-se a si mesmo. Se um artista tentar fazer arte para transmitir uma mensagem ou um conteúdo, provavelmente não é um artista mas um propagandista. (Há propagandistas, em geral ligados a partidos políticos ou áreas “religiosas”, que sem pudor se atribuem - ou deixam que lhes atribuam - o nome de artistas. Mas são apenas falsários, como muito bem disse André Gide, por muita habilidade técnica que tenham. Podem enganar pessoas ignorantes ou tão desonestas como eles, mas não enganam o tempo, que é como se sabe o maior dos críticos). Indo agora à verdadeira questão, o artista propõe – para empregar a expressão de André Malraux – ao público as suas concepções e sonhos particulares. No caso da pintura, através dos quadros. O que ele deseja é partilhar com os outros as suas descobertas, uma vez que como o referiu João Garção num ensaio sobre a estrutura da arte, esta é a respiração da mente.

 

2.3 Mais um capítulo

Dizia Péret, com a autoridade moral que lhe assistia por ter sido, nos sítios onde deu o corpo ao manifesto, um dos protagonistas do bom combate: “O poeta luta contra toda a espécie de opressão: em primeiro lugar a do homem pelo homem e a opressão do seu pensamento pelos dogmas religiosos, filosóficos ou sociais. Ele luta para que o homem atinja definitivamente um conhecimento perfectível de si próprio e do Universo. Não se conclua disto que o poeta deseja pôr a sua poesia ao serviço de uma acção política, mesmo revolucionária. Mas a sua qualidade de poeta faz dele um revolucionário que deve combater em todos os terrenos: no da poesia pelos meios que a esta são idóneos e no terreno da acção social sem jamais confundir os dois campos de acção, sob pena de estabelecer a confusão que importa dissipar e, por conseguinte, de deixar de ser poeta, isto é, revolucionário”.

Nesta conformidade, é necessário que - sem nos deixarmos intimidar pelos que tentam utilizar o Surrealismo como excipiente para engolirmos melhor a pílula do totalitarismo - seja na Europa das pátrias, no oriente ou nas américas, do norte, do sul ou da central, e que hoje compreendem e apoiam, impressa ou expressamente, delinquentes políticos como Lula, Maduro, turiferários cubanos ou chineses tal como dantes o faziam com os fidéis, os maos ou os stalins – é necessário, dizia, que os mostremos como de facto são: “surrealistas de aviário”, entes apostados em nos jungirem ao domínio espúrio de partidões ou, mais ainda, de comités centrais que todo lo mandam, sem ética e sem vergonha e que, cúmulo dos cúmulos, chegam a entender capciosamente as alegadas razões de grupos islâmicos criminais.

É preciso, pois, erguermo-nos com dignidade surreal e libertária ante essa gente e dizermos sem medo e sem sombreados que não existe “marxismo libertário”, assim como não há tigres vegetarianos…

A vida de Cruzeiro Seixas, tal como a de Mário Cesariny ou de António Maria Lisboa, antecessores de outros que continuam a viver o surrealismo com a sua aura mágica e libertadora, foi a afirmação sincera e criadora de que a liberdade é da cor do Homem, como um dia afirmou Breton já despojado de falsas virtualidades que durante certo tempo o feriram, pois se não podemos esquecer a altura em que ele punha a Poesia com tudo o que lhe era inerente, não podemos pôr de lado, por conveniência ou cinismo, as fases em que se deixou enredar pelo aparente brilho da estrela falsa a que os alquimistas bem aludiram!

Finalmente, é imprescindível referir que, hoje como ontem, certas gentes deliberadamente orientadas - por incapacidade, cegeira ou mesmo imbecilidade ideológica, tentam fazer crer ao geral das gentes e ao particular de escritores sem grandes rasgos que o surrealismo já foi, apesar das muitas dezenas que continuam a vivenciá-lo e frequentemente com grande qualidade. Como exemplo mínimo, verifiquei na Net que um mestre-escola de más mestranças (e num trabalho destinado a alunos!) caracterizava Cruzeiro Seixas como “o último surrealista”. Isto sem a face lhe corar, por pudor mínimo ou vergonha intelectual… Não, o poeta-pintor que vai em breve cumprir 100 anos não é o último surrealista. Será o último duma dada geração, pois nem se acantonava em grupos. Mas o Surrealismo existiu sempre (tendo sido posto a correr duma forma acentuada – na Europa e, a seguir ou paralelamente, no resto do mundo - dando de barato que o instinto surreal claramente se manifestara nos tempos imediatamente anteriores em povos primitivos ou desenquadrados da chamada civilização) e sempre existirá – enquanto no Homem permanecer o desejo infrene e imparável de mais luz.

 

2.4 Em diálogo

Em 2018 Cruzeiro Seixas enviou-me duas cartas.

Uma delas agradecendo com fraternal pormenor o envio que lhe fizera de livros meus. A outra, que carreava a oferta de um seu catálogo-livro, era mais extensa e nela se alongava em reflexões de índole pessoal norteadas por uma comovente humildade de verdadeiro fabro, de hacedor sem jaça, sem prosápia (como a que enroupa certos cavalheiros de mão romba que se crêem irmãos de predestinados pelas deusas da paleta) – ele que é indiscutivelmente entre nós um dos melhores desenhadores deste tempo, senhor de uma imaginação transbordante e fecunda que lhe permitiu navegar, como diria Péret, “sem norte e sem estrela através das tempestades, rumo aos areais rumorejantes de ágatas onde brilha o olhar provocante das opalas”.

 Elas trouxeram-me de pronto à recordação uma certa tarde, cerca de 50 anos antes, em que o conheci, nos conhecêmos, numa galeria de pintura, no decorrer da inauguração de uma mostra de um autor que já não lembro quem teria sido. O que não esqueci, ao ser-me apresentado por um colega de veraneio, foi a sua figura de fino recorte: um senhor esbelto de indumentária em cinzento claro, camisa azul marinho, cabelo grisalho acentuando uma delicadeza bem espalhada nuns olhos perscrutadores e abertos numa espécie de sonhadora atenção.

 Conversámos seu bocado e, sem me lembrar de muitos pormenores, apenas guardei que faláramos de surrealismo, de pintura e de como e porque razão me encontrava eu ali.

 E estivémos algumas décadas sem contactarmos de novo. Embora eu fôsse tendo, como ele decerto em relação a mim, notícias do seu trajecto, da sua demanda, ele que com Mário Cesariny e António Maria Lisboa – Pedro Oom era de uma outra dimensão, ainda que paralela – constituíam a trilogia que, no surrealismo em português, sentia que estava mais perto da minha própria caminhada.

 Notícias essas dadas ora por um filho meu, ora por um comum amigo, ora pelos periódicos que até mim chegavam.

 Ora bem: tempos atrás escrevi eu que o Surrealismo tem, nos últimos anos, estado a ser objecto de uma nova e forte atenção de ensaístas, de críticos e investigadores da escrita e da arte em geral. Isso é claramente perceptível e, diga-se mesmo, perfeitamente entendível, uma vez que ele nunca se propôs – fosse nos seus reais praticantes fosse nas suas obras vivas – ser um elemento passageiro ou um modo particular dependente de características momentâneas de moda ou de enfoque.

Cruzeiro Seixas e Isabel Meyrelles, dois dos primeiros cultores do surrealismo entre nós e felizmente ainda vivos, são duas figuras fundamentais dele e nele presentes.

Eu colocaria em Cruzeiro Seixas, assim e aqui, a sua limpidez como num espelho policromo e encantado: dum lado a magnificente pintura, do outro a poesia suscitadora, ática e muito rica a um tempo, deste poeta, autor que pela escrita forma e dá imagem em réplica, a seu modo, ao universo de criação originalíssima que é o do pintor que sempre soube excursionar de maneira muito pessoal pelo mito, altamente legítimo e inteiramente salubre.

No que lhe diz parte, a sua viagem pessoal dentro do surrealismo tem sempre sido uma heterodoxa maneira de encarar o mundo e os seus prestígios ou apoquentações dum ponto de vista filho da curiosidade, da indagação visando as possíveis descobertas, da ligação aos segredos da existência a que podemos ter algum acesso se mantivermos a mente aberta e atenta ao que se vai passando e que vem a seguir ao que se passou em anos de que a nossa vida esteve repleta – não só os factos da história social, quotidiana, mas tudo o que se pôde imaginar de fecundo ou mesmo possível: a magia que parte da escrita ou a ela conduz, a pintura no mundo próprio ou alheio – e tudo o resto que nestas duas se consubstanciam.

 

2.5 As cartas de Cruzeiro Seixas

a.

Amigo Nicolau Saião

 

 Não são nada satisfatórias as notícias daqui.

 O que vai sendo noticiado não é de forma alguma o que verdadeiramente tem a ver comigo e com o Surrealismo.

 Vivemos em sociedade e nela, quer queiramos quer não, uma enormíssima parte de nós está integrada. Gritamos liberdade, liberdade, liberdade do fundo de uma prisão. Além disso tenho 97 anos e a minha vista não me permite que leia uma linha. Os seus livros deram-me enorme satisfação mas tenho que esperar por alguém disposto a ler-me algumas páginas.

 Mesmo nestas circunstâncias é sempre um prazer encontrar um velho amigo como o é o Nicolau Saião. Destes últimos acontecimentos envio-lhe um catálogo onde pode ler alguns desaforismos da minha autoria.

 Felicitando-me pela receção dos seus livros, felicito-o pela constância da sua visão.

 Infelizmente já não me vai ser possível, naturalmente, voltar a Portalegre, à casa do Régio e às manufacturas de tapeçarias, mas no entanto espero ainda o rever.

 Por hoje fica a gratidão comovida, o velho abraço e os melhores votos, do

“Com a admiração e a amizade do Cruzeiro Seixas”

Artur (escrito pelo seu punho)

28 Março 2018

 

b.

Amigo Saião

Não é para mim nem para si satisfatória a resposta que posso dar a uma longa carta. Os meus 97 anos tornam o dia-a-dia muito difícil…É uma série infinita de impossibilidades, como a de ler e desenhar.

 Passei despercebido mas fui “amado” por gente como o Cesariny, o Herberto Hélder; e sobre o que fiz, escreveram críticos, como Edouard Jaguer, José Pierre, Franklin Rosemont, etc.

 Meus pais não tinham meios para me possibilitar a frequência de um curso e assim, durante toda a minha vida, vivi em empregos desenhando dentro da gaveta da minha secretária, isto desde 1948.

 Evidentemente que nunca tive um “atelier”… Essas gavetas e a minha homossexualidade foram a grande família da minha liberdade.

 Envio-lhe fotocópias de um texto de Cesariny e outro de Ernesto Sampaio.

 Hoje estou numa instituição que dá pelo nome de “Casa do Artista”, onde falta espaço, alimentação, etc. etc.

 A “minha obra” parece-me a mim ter sido mais em quantidade do que em qualidade.

 A maior parte dos artistas que conheço são grandes comerciantes; eu, pelo contrário, dei, perdi, deixei roubar a maior parte daquilo que fiz.

 Disso me envaideço imenso. E tudo isto me dá um acréscimo de consciência e responsabilidade, que muito prezo.

 Acresce a estas dificuldades, que são jovens que fazem o grande favor de escrever estas cartas e ler uma página aqui e ali dos livros que recebo.

 O seu nome é uma garantia de honestidade intelectual e é uma das companhias possíveis neste acanhado espaço geográfico.

 Comovidamente lhe agradeço que se tenha lembrado de mim.

 O abraço forte e os melhores votos do…

Artur 17/06/2018

(O papel destas duas cartas tem, ao cimo, impresso um desenho – uma espécie de ex-libris – constituído por um cavalo cuja cabeça é uma mão empunhando uma caneta de aparo, das que se usavam na escola)

 

3. [Adenda] Uma carta a Rui Sousa, de Nicolau Saião

Percebo o que me quer dizer. No que respeita ao abjeccionismo, repare que eu refiro expressamente e tão-só os manguelas que se servem desse conceito apenas para camuflarem, ou justificarem, os cinismos oportunistas – as esguelhas de caracter – em que se enroscam e que tentam fazer passar por aquele termo. Noutro plano, o que se convencionou – ou convencionaram – firmar como abjeccionismo, nada tem a ver com surrealismo; como o Mário bem disse apenas se encontraram nos cagarrões onde ambos estiveram presos. Para além disso, no que eu pude observar - e conheci-os bem - os abjeccionistas que fui achar no grupo do Monte Carlo eram operativos que andavam nas bordas do surrealismo e que tinham a hombridade de não se dizerem membros dele. Apenas 3 deles (o Forte, o Oom e o Prof. Picó (era assim conhecido com chiste o E.Sampaio), não iludiam essa designação (o Sampaio tinha um curioso surrealismo, digamos; um dia ficou embatucado porque eu, com certa dose de maldade, lhe perguntei como é que ele conciliava a existência do surrealismo com a da KGB que vigorava na URSS. (O Sampaio, que não era trotskista, era um profundo adepto do Leste, onde ele via ou pensava existir um forte leninismo (num dos seus livros, não recordo agora qual, ele sem rebuços garante que o comunismo puro e duro ainda irá voltar, mais rebentador e ainda mais de comer criancinhas (cito exactamente o que ele escreveu). Ou seja, o abjeccionismo cá era o de membros do PC que não comiam do neo-realismo e estavam revoltados com a apagada e vil tristeza salazarenta. O Pacheco era um caso específico, ele não era abjeccionista mas a abjecção ela mesma, com a sua total indiferença para com a ética fosse ela qual fosse. (Leia do Mário o “Jornal do Gato, resposta a um cão”) e ficará bem esclarecido. Este nem seria comunista (a não ser quando se serviu dele para seus jogos malabares, ele foi sempre e só o Pacheco capaz de uma facada nas costas se isso lhe fosse curial para o seu estatuto de libertino de meio-tostão e “abjeccionismo pandilha”, como eu lhe disse um dia referindo-lhe que tinha acabado de vir dum verdadeiro inferno (a guerra na Guiné) e que portanto não me impressionava com o seu alfacinhismo (e ele percebeu e não insistiu nas suas brincadeiras, porque eu não lhe dava cavalaria).

O seu livro Do Libertino é uma obra bem feita, mas o Pacheco que ali aparece é um Pacheco virtual, digamos. O Pacheco real, muito inteligente e com um par de textos giros (mas não mais que isso, ele é apenas um bom escritor de cartas, era um absoluto egoísta, no fundo estava-se cagando para os filhos e demais traquitana) e se a princípio sinceramente apreciava o Cesariny e o Lisboa (que muito exactamente o apelidara de o editor hipócrita) sendo capaz de reconhecer o talento ou a grandeza de qualquer operador de merecimento, como poeta era um zero – e ele sabia-o – tendo, como eu pude conferir, uma enorme inveja do Mário (ele tinha a perfeita consciência da genialidade do Poeta de Nobilíssima Visão e dos outros buques), o que contrastava absolutamente com a estatura dele. Os seus últimos tempos revelam-no como um dos maiores inimigos do surrealismo cá, e no que respeita ao Mário vivia a ofendê-lo e a amesquinhá-lo quotidianamente. O Mário, porque sempre foi e o reconheci sempre como um ser de lealdade e até como possuidor de uma comovente ingenuidade (o que só lhe ficava bem e não o apouca) custava-lhe muito a atitude do antigo amigo - que no fundo sempre fora, mas a princípio não extravasava, um perfeito sacana. (No último número do & ETC do Jornal do Fundão, onde foram publicados os poemas da minha colaboração ali, vem lá um texto pachecal onde esplende uma insídia dele a achincalhar o Mário, essa exarada porque, aqui fica o detalhe, o seu autor também invejava profundamente o Pintor por ele ter granjeado forte notoriedade como plástico e, devido a isso, ter uma bolsa bem recheada...!).

Mas bom, caro Rui, esta já vai longa e então por aqui me fico. O abraqson do

n.

 


NICOLAU SAIÃO (Portugal, 1949). Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha etc.  Em 1990 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro Os objectos inquietantes (1992). Autor ainda de Assembleia geral (1990), Passagem de nível (1992), Flauta de Pan (1998), Os olhares perdidos (2001), O desejo dança na poeira do tempo (2008), Olhares perdidos (2007), O armário de Midas (2008), As vozes ausentes (2011). Fez para a Black Sun Editores a primeira tradução mundial integral de Os fungos de Yuggoth, de H. P. Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana, Bichos (2005). Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional Poetas na surrealidade em Estremoz (2007) e co-organizou/prefaciou Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril. Com Mário Cesariny e Carlos Martins, colaborou na efectuação da exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, levou a efeito a mostra de mail art “O futebol” (1995).  Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões).




JULIA OTXOA (Espanha, 1953). Poeta, narradora y artista gráfica Entre sus últimas exposiciones : “Llocs de Pas” Espectáculo colectivo audiovisual-MACBA-Barcelona 2006, “Absinthe Review” Nueva York 2007; “New Sleepingfis Review”, Nueva York 2007; “Certamen Internacional de Fotografía Surrealista”, Eibar 2007; “Fragmentos de Entusiasmo”-Catálogo de la exposición Antología de la Poesía Visual española 1964-2006”-“Poesía Visual Española” (Antología) Editorial Calambur,Madrid,2007; “La Fira Mágica”, Exposición colectiva de Poesía Visual Ayuntamiento de Santa Susana Barcelona, 2007; “Homenaje a Manuel Altolaguirre”, Exposición Poesía Visual – Instituto Cervantes en Fez (Marruecos, 2007 ); “Miguel Hernández – Muestra de Poesía Visual” (Universidad Miguel Hernández-Elche, 2008); “Exposición libros de artista”, Museo de San Telmo San Sebastián, 2023; “Tres senderos que convergen”, Centro cultural Oquendo, San Sebastián. Julia Otxoa es la artista invitada de esta edición de Agulha Revista de Cultura.


 


Agulha Revista de Cultura

Número 254 | agosto de 2024

Artista convidada: Julia Otxoa (España, 1953)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2024


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