Em
meados de 1926, o artista japonês Katsue Kitasono (1902-1978) vivia então uma realidade
precária, miserável e de autossubsistência, o tipo de experiência vivida pelos jovens
poetas e pintores da época, como ele mesmo dizia: o auge da arte, o ponto mais baixo da vida. (1) Morava em uma área abarcada
pela paisagem suburbana deserta, com algumas casas espalhadas entre os campos de
trigo e batata ao longo da estrada estreita que levava ao distrito de Sangenjaya,
na prefeitura de Tóquio.
Desde
1924, Kitasono vinha contribuindo com ações textuais em revistas dadaístas como DamuDamu e Ge.Gjmgjgam.Prrr.Gjmgem, junto de Shinkichi Takahashi (1901-1987), Hokuto
Tamamura (1893-1951), Jun Tsuji (1884-1944), entre outros, mas os anos duros do
imperialismo japonês o haviam levado a uma empreitada solitária. (2) Isso até meados
de 1926, quando recebeu um convite dos poetas Seiichi Fujiwara (1908-1944) e Kazuhiko
Yamada (1907-1944) para participar de uma nova frente editorial, desta vez, assumidamente
surrealista. (3)
Surgiu
assim, em 1927, o grupo Rosa Magia Teoria
(Bara Majutsu Gakusetsu), fazendo frente
ao grupo mais antigo, fundado dez anos antes, Oh, aromático foguista (Fukuiku
Taru Kafū Yo) em torno do poeta Junzaburō Nishiwaki (1894-1982),
professor de literatura e linguística na Universidade Keio. Nishiwaki atuou
como uma incubadora de jovens artistas ávidos por experimentações
oníricas à
base de poesia. (4) Entre ambos os grupos, os foguistas aromáticos encontravam-se
consideravelmente alinhados à doutrina de André Breton (1896-1966) e dos franceses,
enquanto os rosáceos mágicos estavam mais interessados em desenvolver uma alternativa
artística plenamente japonesa para os dilemas civilizatórios nos quais estavam inseridos.
Nesse momento, estamos falando de um Japão ainda vívido de sua saída da Primeira
Guerra Mundial que, por ter estado ao lado dos vencedores, esbanjava da militarização
que prenunciou sua invasão aos demais países asiáticos do Extremo Oriente. Uma ofensiva
colonialista pan-asiática.
Eis
que, em dezembro de 1927, foi publicado no segundo número da revista do grupo Rosa Magia Teoria um pequeno texto em japonês
intitulado Uma nota (A note), considerado o primeiro manifesto
surrealista nipônico, escrito por Katsue Kitasono e os irmãos Tamotsu Ueda (1906-1986)
e Toshio Ueda (1900-1973), egressos dos foguistas aromáticos. Segue a nota:
O
batismo chegou para nós que glorificamos o desenvolvimento de nossas habilidades
perceptivas e o avanço de nosso desejo artístico em relação ao Surrealismo. Recebemos
a técnica de trazer os materiais através da percepção sem estar sujeito à limitação
da própria percepção. Em um estado de separação dos humanos, concebemos a Operação
Poética decorrente da providência divina. Tal condição nos conduz a uma sensação
de indiferença análoga ao da técnica. Ao definir o limite da nossa objetividade,
sentimos uma semelhança com o estado de Cientista Poético. Não somos acabrunhados
nem entusiasmados. A sensibilidade humana escusa da existência humana é austera
e serena. Nós sentimos a emoção que nos convém ao erigirmos nossa Operação Poética.
Prosseguiremos com o Surrealismo. Nós louvamos a virtude da saturação. (5)
À
exemplo, a pequena nota foi uma resposta japonesa à postura dos artistas surrealistas
parisienses, postura essa que foi posteriormente sintetizada no Segundo Manifesto Surrealista (Second Manifeste du surréalisme) de Breton,
em 1929. O Surrealismo japonês reivindicou o desejo de combinar a técnica recebida dos bretonianos com seus
próprios elementos nativistas. O manifesto nipônico questionou a ideologização da
vanguarda na França no que tange à segregação entre surrealistas comunistas e não
comunistas e censurou a rigidez em detrimento de uma força independente de ideário
político. Os japoneses compreenderam que o Surrealismo não deveria ser controlado
por uma única autoridade e que poderia funcionar com ou sem associação à militância.
(6)
O
breve entusiasmo partidário pelos surrealistas franceses, que durou apenas seis
anos, foi visto pelo pintor japonês Ichirō Fukuzawa (1898-1992) como implacável e que a aversão
de Breton à propaganda e à
ação direta [...] indicou os limites de seu
envolvimento com o comunismo.
(7) Além disso, as exigências de Breton em relação à entrega urgente de relatórios
sobre as posições intelectuais, artísticas, morais e políticas do Surrealismo japonês
não supriram o desconhecimento dos franceses sobre as vertentes nipônicas, resultando,
em 1929, na exclusão do Japão no catálogo O
mundo no tempo dos surrealistas (Le monde
au temps des surréalistes). Mais hilário ainda era o fato de o fascínio europeu
para com os ideogramas – kanjis e kanas – suplantar a apreensão de seu conteúdo
poético. Por muito tempo, as inquietações japonesas, mesmo quando enviadas em verso
e carta à Breton, Paul Éluard, Joan Miró (1893-1983) ou René Char (1907-1988), sequer
foram transliteradas décadas depois. Os japoneses, por outro lado, desde o princípio
puseram-se a estudar o idioma francês e a traduzir obras surrealistas e dadaístas,
na medida em que o vocabulário permitia.
Pouco
após a publicação do manifesto nipônico, foguistas aromáticos e rosáceos mágicos
interromperam momentaneamente suas atividades independentes e uniram-se para formar
um novo coletivo que, em novembro de 1928, publicou seu primeiro periódico intitulado
Sol fantasiado: a evolução surrealista
(Ishō no Taiyō: L'Evolution Surréaliste). Outras grandes exposições organizadas
na década de 1930 por nomes como Chirū Yamanaka (1905-1977) e Shūzō
Takiguchi (1903-1979) instigaram novos coletivos e tendências
surrealistas regionais. Mesmo diante da opressão
estatal via Lei da Preservação de Paz contra a subversão popular, que
perseguiu e censurou muitos artistas surrealistas no Japão entre 1925 e 1945, o
movimento, ou melhor, os movimentos tiraram proveito de sua falta de centralidade
e estratégias simbólicas para continuar resistindo, seja nas ações plásticas, corpóreas
ou gráficas.
É
certo que tal variedade justifica a maiúscula Operação Poética presente em Uma
nota. Sendo impossível, mas também não sendo o objetivo, decodificar ou emular
o surrealismo, restou a eles reinventá-lo, considerando o contexto cultural. Em
termos de tradução, não quer dizer apenas buscar significados dicionarizados para
as palavras, mas transcriar sonoridades, percepções e movimentos. O mesmo parece
valer para quaisquer experiências artísticas. De
Breton: O olho existe em estado selvagem,
(9) Takiguchi entende que o olhar consegue captar o que é visível em primeira instância,
mas necessita de um exercício dos sentidos que o liberte do mundo externo como única
fonte de saber. Nesse ínterim, o olhar é instrumento de base sígnica a ser realinhado
a partir do nosso lugar no mundo.
O
manifesto nipônico de 1928 me faz acreditar que há uma urgência em fabular e construir
cosmovisão através da alteridade. Que a destruição não é intento do confronto, mas
o voto pelo direito de se estar no mundo. Peço licença para passar, mas faço meu
caminho eu. A transcriação é espelho infinito de intertextualidades, parte de um
raio de luz que atinge e reflete entre duas placas paralelas de vidro translúcido,
indiferenciado origem e destino. Aliás, não teria a cartografia já nos elucidado
a genealogia como alternativa às cronologias e territórios pétreos da arte? Somam-se
as impressões dos indivíduos e, em determinado momento, o monolito da matriz perde
sua importância e o horizonte não denota fim outro senão a perpetuação da metamorfose.
Para
aqueles que creem sabem que Allāh usou de instrumento o estudioso persa
Sibawayh (760-796) para parir o primeiro tratado gramatical árabe, pois as ciências
da linguagem só poderiam ser pensadas por pessoas para as quais as línguas eram
adquiridas e que, portanto, precisavam pensar sobre elas. Os cristãos siríacos foram
quem traduziram as obras filosóficas gregas para que estudiosos como al-Kindī
(801-873), al-Fārābī (870-950) e Ibn Sīnā (980-1037) pudessem se debruçar
por sobre cosmogonias outras e fortificar o próprio
pensamento muçulmano. Pierre Verger (1902-1996) partiu
da França com uma máquina
fotográfica e percorreu o mundo por quatorze anos, foi iniciado na religião dos
povos iorubás como babalaô e recebeu o nome de Fatumbi, nascido de novo graças ao Ifá, desenvolvendo uma vasta pesquisa comparativa
entre o culto dos orixás em África e na Bahia. Do mesmo modo foi com Benjamin Péret
(1899-1959), que realizou a leitura revolucionária sobre o passado do Brasil a partir
da Revolta da Chibata e da República negra dos Palmares. Foi também Antonin Artaud
(1896-1948) quem almejou o brilho sinestésico do teatro de Bali e acabou encontrando
o seu Oriente no México. Quem diria que o pai do teatro mexicano, apto a transmitir
aos latino-americanos os métodos soviéticos mesclados de Stanislavsky (1863-1938)
e Meyerhold (1874-1940), seria Seki Sano (1905-1966), um diretor japonês? Quem uniu
indumentária jesuítica, danças sacerdotais e apelo popular não foi outra senão a
dançarina Okuni (1572-1613).
Em
verdade, quando os artistas japoneses viajavam para a Europa, precisavam abraçar
sua etnicidade para serem reconhecidos, mas em seu próprio país, eram identificados
com a cultura europeia. Dessa forma, a adoção de identidades opostas foi crucial
para que suas obras fossem consideradas autênticas tanto no Oriente quanto no Ocidente.
O que os nacionalistas mais fervorosos acusavam como traição ou duplo endosso, outros
consideravam como uma estratégia de sobrevivência artística. Além disso, um Surrealismo
normativo não estava articulado até então. Para a pesquisadora Majella Munro, o
posicionamento acadêmico hiper focado no grupo parisiense como centro do movimento
é problemático, pois atribui aos exemplos não franceses que recebem as ideias francesas
de uma forma crítica e inovadora como mal
informados, enquanto aqueles que assimilam de perto os princípios da França são
rejeitados como derivativos, deixando pouco espaço para discuti-los como movimentos
dinâmicos por direito próprio. Em suma, não é justo descrever o Surrealismo
japonês como sendo recebido como uma influência emulada, pois ainda estava em processo
de formação ao longo da década de 1930. Os
desvios do precedente francês não são, portanto, distorções do surrealismo, mas
antes contribuições para o seu desenvolvimento. (10)
Do
exemplo japonês, os surrealismos não apenas nativistas ou regionalistas, mas também
cerne da particularidade de cada artista, desnortearam a unicidade conceitual europeia
sem desconsiderar seus contextos contrastantes de luta e perfazendo a fabulação
dos seus próprios desafios. Singularidades sempre perpassam pelos processos de criação,
agências e atravessamentos. Uma contracultura efervescente se fortaleceu nos anos
que se seguiram, dos 1960 aos 1980. Os artistas pré-guerra e pós-guerra demarcaram
duas gerações que se mobilizaram para aceitar a Surrealidade, não sem trocar críticas
inflamadas ao esteticismo de si. Como resultado, temos um movimento autêntico e
multifacetado como um prisma.
NOTAS
(1) Kitasono, Katsue. Bara Majutsu Gakusetsu no kaisō.
In: Kitasono, Katsue; Ueda, Toshio; Tamotsu, Ueda (org). Bara Majutsu Gakusetsu.
Tokyo: Meicho kankō-kai, 1927-1928.
(2) MUNRO, Majella. Communicating Vessels: the Surrealist Movement
in Japan 1925-70. Cambridge: Enzo Arts and Publishing Limited, l. 3865, 2013 (Paginação
irregular – Kindle)
(3) Kitasono, Katsue. Bara Majutsu Gakusetsu no kaisō. In: Kitasono,
Katsue; Ueda, Toshio; Tamotsu, Ueda (org). Bara Majutsu Gakusetsu. Tokyo: Meicho
kankō-kai, 1927-1928.
(4) Kitasono, Katsue. Bara Majutsu Gakusetsu no kaisō. In: Kitasono,
Katsue; Ueda, Toshio; Tamotsu, Ueda (org). Bara Majutsu Gakusetsu. Tokyo: Meicho
kankō-kai, 1927-1928.
(5) Kitasono, Katsue. Bara Majutsu Gakusetsu no kaisō. In: Kitasono,
Katsue; Ueda, Toshio; Tamotsu, Ueda (org). Bara Majutsu Gakusetsu. Tokyo: Meicho
kankō-kai, 1927-1928. (Manifesto
A note traduzido do japonês para o português
por Daniel Aleixo e Michiko Okano).
(6) MUNRO, Majella. Communicating Vessels: the Surrealist
Movement in Japan 1925-70. Cambridge: Enzo Arts and Publishing Limited, l. 1588,
2013 (Paginação irregular – Kindle)
(7) MUNRO, Majella. Dada and Surrealism in Japan. In: HOPKINS,
David (org). 1° ed. A Companion to Dada and Surrealism. New Jersey: Wiley-Blackwell,
2022.
(8) MUNRO, Majella. Communicating Vessels: the Surrealist
Movement in Japan 1925-70. Cambridge: Enzo Arts and Publishing Limited, l. 2675-5476,
2013 (Paginação irregular – Kindle)
(9) BRETON, André. El Surrealismo y la pintura. In: GARCÍA, A. G.;
SERRALLER, F. C.; FIZ, S. M. (org). 1° ed. Escritos de arte de vanguarda 1900/1945.
Madrid: Istmo, p. 495, 2003.
(10) MUNRO, Majella. Communicating Vessels: the Surrealist
Movement in Japan 1925-70. Cambridge: Enzo Arts and Publishing Limited, l. 327,
2013 (Paginação irregular – Kindle)
DANIEL ALEIXO (Brasil, 1997). Ator, dançarino e pesquisador. Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Língua, Literatura e Cultura Japonesa da Universidade de São Paulo (USP). Realizou intercâmbio universitário em Estudos Globais pela Universidade de Estudos Estrangeiros de Tóquio (TUFS) e em Estudos de Documentos Não Escritos pela Universidade de Kanagawa (KU). É dançarino e pesquisador do Núcleo Experimental de Butô e da Fujima Ryu Escola de Dança Kabuki. Além disso, integra o Grupo de Estudos Arte Ásia (GEAA) e o grupo Kinyokai. Dentre as principais ações performáticas das quais já participou envolvendo a dança butô, estão: Transmarginais (2017), Vento Daruma (2018), Encanteria (2021-2022), Domina et Homunculus (2023) e Breu (2023). Em seu repertório de coreografias clássicas de kabuki buyō, estão: Yari Yakko (2018), Tomo Yakko (2019), Echigo Jishi (2020), Urashima Tarō (2022), Matsu (2023) e Kanda Matsuri (2024).
ANTONIA EIRIZ (Cuba, 1929-1995). Se graduó de la Escuela de Bellas Artes de San Alejandro en 1957. Participó en la II Bienal Interamericana de México en 1960 y en la VI Bienal de Sao Paulo en 1961, donde su obra recibió una mención honorífica. De 1962 a 1969 impartió clases en la Escuela de Instructores de Arte y en la Escuela Nacional de Arte, ambas en La Habana. En 1963 ganó el Primer Premio en la Exposición de La Habana, organizada por la Casa de las Américas. Al año siguiente, la Galería Habana presentó su importante exposición “Pintura/Ensamblajes”. En 1966 expuso su obra junto a Raúl Martínez en la Casa del Lago de la Universidad Nacional Autónoma de México, y un año después en el 23 Salón de Mayo en París, Francia. Eiriz tenía una forma muy particular de captar su entorno, optando por retratar las situaciones más dramáticas y grotescas de la condición humana, lo que provocó que su obra fuera incomprendida por el gobierno revolucionario, lo que la llevó a jubilarse anticipadamente. A finales de los años sesenta abandonó la pintura y se dedicó a la promoción de formas de arte popular, transformando su casa en un taller donde enseñaba técnicas como el papel maché y los trabajos textiles a la comunidad local. En 1989 recibió la Orden Félix Varela del Consejo de Estado de Cuba, la más alta distinción del país en el ámbito cultural. En 1991 se realizó una exposición de su obra titulada “Reencuentro” en la Galería Galiano de La Habana y en 1994 recibió una beca de la Fundación John Simon Guggenheim. Después de su muerte en 1995, el Museo de Arte de Fort Lauderdale organizó una retrospectiva de su obra: “Antonia Eiriz: Tributo a una leyenda”. Ahora ella es nuestra artista invitada, en esta edición de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 255 | setembro de 2024
Artista convidada: Antonia Eiriz (Cuba, 1929-1995)
Editores:
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