segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

FLORIANO MARTINS | Surrealismo nas Ilhas Canárias

 


As viagens foram uma das grandes fortunas do Surrealismo. Curiosamente as guerras foram um dos elementos constitutivos desse fortuito mapa de deslocamentos. De outro modo André Breton não teria chegado a muitos lugares. No caso de Tenerife, o poeta francês se beneficiou de algo defendido por ele mesmo, a poesia como um bem comum, a vida compartilhada, o que levou os tinerfeños Eduardo Westerdahl, Domingo Pérez Minik e Agustín Espinosa, que então dirigiam a revista gaceta de arte – desde o princípio a publicação grafava seu título em minúsculas –, ao lado de outros amigos de aventura surrealista, a custearem as despesas de viagem e hospedagem de Breton, sua esposa e Benjamin Péret. Em maio de 1935 o vapor norueguês São Carlos aporta em Tenerife. O trio europeu era acompanhado de Paul Éluard, que não teve permissão para desembarcar por questões de saúde. Pérez Minik certa vez lembrou que as despesas com o navio foram pagas ao longo de dez anos. O grupo ficou nas Ilhas Canárias de 4 a 27 de maio. O período teve uma agenda que incluiu a realização da 2ª Exposição Internacional do Surrealismo e uma série de conferências, das quais também participaram Pedro García Cabrera e Agustín Espinosa. Igualmente havia sido programada a projeção de L’age d’or, que não foi possível graças à intervenção de um grupo católico que convenceu as autoridades de que se tratava de um filme anticlerical e pornográfico. Dois outros aspectos foram relevantes nesse momento, a redação de um manifesto assinado por Breton, Péret e os poetas da gaceta de arte; e a descoberta do vulcão Teide por Breton, presente em célebre passagem do livro L’amour fou. Em L’air de l’eau (1934), o poeta havia evocado a ilha de Tenerife, em livro acompanhado por desenhos de Giacometti que desenha o Teide na palma de sua mão. Quando Breton se foi – para mim persistirá uma mínima estranheza de como terá se comportado em uma ilha de língua espanhola alguém que se recusava a falar este idioma – os integrantes da gaceta de arte foram confrontados pela brutal violência do golpe de estado franquista que destinou a cada um deles um futuro distinto e sofrido, da prisão de Pérez Minik ao desemprego de Espinosa; do assassinato de Domingo López Torres ao inferno em que se transformou a vida de García Cabrera – encarcerado em um navio-prisão, juntamente com outros políticos republicanos acusados de socialistas, posteriormente seria enviado para o campo de prisioneiros da Villa Cisneros, no Sahara espanhol, onde, em março de 1937, conseguiu escapar e seguiu para Dakar, permanecendo escondido por sete meses; no entanto, ao tentar retornar à Espanha, sofreu um acidente de carro, que lhe queimou as pernas, e foi novamente detido em Granada, desta vez ficando preso até 1946; mesmo após libertado, com o fim da guerra, permaneceu em prisão domiciliar, na cidade de Santa Cruz de Tenerife, onde ocupou um cargo burocrático inexpressivo.

No caso do referido manifesto, intitulado Manifesto surrealista de Tenerife e assinado por Breton, Péret e todo o grupo da gaceta de arte, vale ressaltar como tônica central o último parágrafo do mesmo, em que seus signatários se declaravam contra a indiferença política e a inércia social dos escritores que contribuem para escravizar o homem, sem tomar posições pela sua libertação. A posição estava naturalmente tomada e inclusive posteriormente se publica, na gaceta de arte, um documento que tem por título justamente “Posición de gaceta de arte”. No entanto, o manifesto praticamente se restringe a seguir concordantemente as palavras de Breton proferidas em sua conferência em Tenerife. Mesmo observando a pertinência de uma indagação lançada logo em suas primeiras linhas, o que se segue é a opinião do poeta francês a respeito. Eis a questão: Não será que a humanidade vive momentos psicológicos de verdadeiro contágio coletivo em que se apagam as aquisições individuais, momentos em que o inconsciente social é colocado em primeiro plano? O próprio Breton observa que a arte não deve, sob hipótese alguma, perder de vista seu objetivo central, de revelar à consciência os poderes da vida espiritual. E, um pouco adiante, lemos: O surrealismo fornece o sistema pelo qual é possível a libertação espiritual do homem de todos os preconceitos. E, ainda nas palavras de Breton: A imaginação artística deve permanecer livre, A obra de arte, sob pena de perder o seu próprio ser, deve ser desligada de qualquer tipo de fim prático.

Este é um aspecto primordial já pressentido naquela ocasião pelos surrealistas e que permanece ainda hoje a mesma espécie de símbolo desfigurado da realidade. Se em um primeiro momento o homem, e não apenas o intelectual e o artista, foi levado à perda de contato mais íntimo com os poderes da vida espiritual, com o tempo o que na época parecia uma fonte de resistência, a criação de um mito coletivo, teve essa posição apropriada por uma sociedade de consumo, ao ponto de se verificar uma desmitologização completa, mergulhando o homem em um vazio, ao deixar de presumir importância mínima a qualquer caracterização de sua presença no mundo. A rigor, se trata de uma antevisão de Breton, de que as sociedades humanas seriam vilipendiadas pela coisificação imposta pelas leis de mercado.


No texto “Posición de gaceta de arte”, mediante uma série de afirmações, encontramos algumas sugestões que poderiam ter sido postas em prática, a exemplo de estimular todos os campos de experimentação plástica e literária, consequência do reconhecimento do atual estado de crise e corrupção, para abrir o caminho que conduzirá a um novo mundo de valores culturais. Ao mesmo tempo em que, parágrafos à frente, se observa a necessidade de conciliar todas as tendências que lutam para destruir um sistema atrofiado de expressões artísticas e tentar trabalhar no estabelecimento de novas formas, positivas para uma nova ordem. É preciso dizer que a redação do manifesto não foi um ato de todo tranquilo e encontrou alguns choques de opinião, embora após a sua escritura os integrantes da gaceta de arte tenham assinado também um documento que logo seria publicado na revista Cahiers d’Art, em Paris, onde lemos:

 

Entre os principais grupos que merecem a nossa mais determinada atenção está o movimento surrealista, no qual vimos desde o início um dos instrumentos mais interessantes à disposição de uma cultura viva abrir caminho no meio das constantes ameaças sofridas pela independência do espírito e da coerção e das falsas obras de engenharia com que o capital, o Estado, a religião, a moral, a pátria, a família etc., canalizaram e ergueram edifícios convencionais ao serviço dos seus interesses unilaterais, com preciosos materiais subconscientes em cuja energia eles descansaram.

 

 

Agustín Espinosa (1897-1939) foi o senhor de um castelo de cartas eróticas, o mestre de andanças erráticas pelas ruas de uma cidade imaginária repleta de artifícios sexuais que buscavam a todo custo – um custo mesclado de sátira arruaceira e fina ironia – dessacralizar a realidade de seu tempo. Ele mesmo diria: O que procurei alcançar, acima de tudo, foi isto: um mundo poético; uma mitologia motriz. A minha tentativa é criar uma nova Lanzarote. Uma Lanzarote inventado por mim. Seguindo a mais ampla tradição da literatura universal. Lanzarote é a ilha mais oriental do arquipélago das Canárias, uma região repleta de vulcões adormecidos, onde foi morar Espinosa em 1928. A ilha é o cenário imaginário de Lancelot, 28°-7°, guía integral de una isla atlántica (1929), mas sobretudo da novela Crimen, este livro fascinante, novela maldita, provocativa, com que Espinosa inaugura o gênero no surrealismo em língua espanhola. Publicada originalmente em 1929, teve sua tiragem ocultada, em grande parte destruída pelo Franquismo, foi recuperada em 1974, mas somente em 2019 alcançaria uma edição definitiva.

 

Pedro García Cabrera (1905-1981) tinha por seu arquipélago natal uma paixão entranhável que o levava a considerar essas ilhas como mães de mitos com anjos tatuados e tambores, e praticamente a essa paixão dedicou sua vida, sua obra, forças mescladas em uma única fonte de vitalidade. Essa integridade incondicional acabou sendo ameaçada pela virulência do franquismo. Jamais lemos, no entanto, uma linha de rancor em seus escritos, em momento algum se desfez da força mágica da palavra. Ao escrever sobre Apollinaire, referiu-se ao surrealismo destacando sua capacidade de iluminação de um verdadeiro mundo de conquistas ilimitadas. E ele próprio foi igualmente um inovador, de que é exemplo a prosa poética de Los senos de tinta, escrito em 1934, porém tendo permanecido inédito até que fosse incluído em sua obra completa publicada postumamente em 1987. Livro de descaminhos sinuosos e transfigurações da linguagem, a começar pela própria prestidigitação que cria ao deslocar o protagonista de seu relato, de uma suposta amante para o corpo da escritura, criando uma atmosfera mítica de naufrágio amoroso, onde as tintas se confundem com o sangue, os rios com as veias em suas viagens pelo interior da escrita, uma voluptuosa geografia do desejo e sua atração pelo mistério. Livro fundamental não apenas na bibliografia de García Cabrera, mas sim de todo um espectro estético da tradição espanhola. Livro tão envolto pela atmosfera surrealista que até mesmo a sua existência foi entrecortada pelo que se poderia chamar de acaso objetivo, lembrando que os originais, quando foram resgatados, se encontravam sem alguns parágrafos iniciais e as folhas finais.

 

Na revista surrealista Minotaure # 3-4, editada em 1933, em uma enquete sobre o encontro capital que marcou a vida de vários entrevistados encontramos esta resposta dada por Domingo López Torres (1907-1937): Meu primeiro encontro capital ocorreu por volta dos nove anos: um livro técnico sobre casamento e higiene foi, para o meu temperamento da época, o primeiro livro que exacerbou meus desejos, o primeiro livro pornográfico que chegou às minhas mãos. Esse livro me ensinou a hipocrisia do preconceito e o mistério imponderável das grandes pessoas. Senti então a vergonha das minhas partes sexuais dentro de minha bermuda. Além de sua poesia, onde cabe destacar a importância de Lo imprevisto, livro que situa seu autor entre os poetas mais notáveis da geração, López Torres também deixou inúmeros ensaios, que pretendia publicar sob o título de Surrealismo, o que acabou não sendo possível. Em um desses escritos, situou o artista surrealista como alguém que deixa livre passagem à expressão espontânea do subconsciente, agindo como meio para si mesmo, captando das janelas mais altas as paisagens mais baixas do espírito. Em 1937 seu corpo foi lançado ao mar dentro de um saco, como resultado de um dos momentos mais abjetos do regime de Franco.

Ao escrever sobre López Torres, o crítico Roberto García de Mesa, que o situa como uma das mais relevantes personalidades da literatura das vanguardas históricas nas Ilhas Canárias, sintetiza seu vínculo com o surrealismo de um modo que exige a sua presente reprodução:

 

Domingo López Torres voltou a sua poesia para um surrealismo comprometido com a revolução proletária e os conflitos do seu tempo. Neste sentido, a sua poesia evolui a partir de uma visão da paisagem meridional, selvagem, humanista, em Diario de un sol de verano (1929) – em linha com o que afirmava Pedro García Cabrera no seu ensaio “O Homem em função da paisagem” (1930), texto ideológico do espírito da revista Cartones (1930) –, até se preocupar com uma estética intimamente ligada ao surrealismo, que, sem desconsiderar a imaginação e o grotesco, não deixou de apontar problemas sociais, como a invasão de pragas de gafanhotos, o uso da liberdade individual, a subversão dos costumes burgueses através da libertação sexual etc.

 

O artigo de García de Mesa foi escrito por ocasião da localização de um poema inédito de López Torres, que julgo relevante copiar:

 

ESCÂNDALO

 

Perdidos na noite daquele cinema,

para lá dos últimos assentos,

bem perto das alegrias e fortunas,

tu e eu, pelas calçadas da multidão,

em um filme que não termina e sempre começa.

Lembro que Anny Ondra eram teus seios,

teus olhos e teus lábios,

que foram deslocados

por todos os meus corredores interiores.

Que alegria e que gritos!

É assim que entramos no mundo dos véus

que inventou a tela e os suspiros.

 

*

 

Ontem, dois namorados foram surpreendidos em um cinema desta cidade, atropelando a moral burguesa, num tal estado de limbo e descaramento que a força pública teve que intervir. Outros casais aplaudiram nos últimos assentos.

 


Domingo Pérez Minik (1903-1989) foi outro notável companheiro de armas do grupo à frente da gaceta de arte. Um de seus fundadores, dedicou sua vida aos estudos críticos, tendo sido responsável por volumes fundamentais sobre a tradição do teatro, tanto na Espanha como mais amplamente na Europa, o mesmo em relação ao romance. No que diz respeito ao surrealismo, é um imperativo apontar inicialmente seus livros mais abrangentes: Antología de la poesía canaria e Isla y literatura, respectivamente de 1952 e 1988. Neste último, que se revela como um tratado sobre poética, em certa passagem lemos: La poesía es esa actitud del hombre más cerca de lo universal y, al mismo tiempo, la que con más fácil movimiento se concreta en voz y canto personalísimos. La poesía es una alquimia que lo atasca todo, pero asimismo es la más firme realidad del alma de los hijos de un archipiélago como el nuestro. Mais especificamente sobre o surrealismo, Pérez Minik publicou Facción surrealista de Tenerife (1975), onde se encontra toda a gênese e desdobramentos deste que foi o ambiente mais rico e renovador das letras no arquipélago.

 

O artista Eduardo Westerdahl (1902-1983) foi destacado pintor surrealista, assim como crítico e escritor. Foi o organizador da 2ª Exposição Internacional do Surrealismo – uma sugestão de Óscar Domínguez, que também se encarregou de reunir em Paris as 76 obras que integravam a mostra –, e um dos fundadores da gaceta de arte. Westerdahl foi um dos principais promotores da vanguarda, tendo disseminado o surrealismo e a abstração na Espanha e, em sua Tenerife natal, estabeleceu vínculos com várias associações espanholas. Graças à sua constante atividade como agitador cultural, que abrangia fotografia, arquitetura, cinema e teatro, publicações e, claro, arte, ele manteve relações estreitas com muitos artistas, em especial com Óscar Domínguez – este artista na época já integrava o grupo surrealista de Paris –, tendo também trabalhado como crítico de arte para uma grande variedade de catálogos e monografias, além de organizar todos os tipos de exposições e eventos de arte, entre eles a Escuela de Altamira. É possível dizer que sem a sua presença a gaceta de arte não teria alcançado a vida e a circulação relativamente longas que teve. Cabia a ele redigir e dar a forma definitiva aos manifestos que a revista publicou ao longo da sua existência. Além disso, foi Westerdahl quem inicialmente desenhou a tipografia do cabeçalho, assinando ainda notas de leitura, ensaios, resenhas e crônicas. De qualquer modo, cuidando de não ofuscar a ampla visão de Westerdahl, atento à multiplicidade de oferendas estéticas de seu tempo, destaca Belén Castro Morales, que seu relativo interesse pelo surrealismo foi o resultado de um processo de análise diante da encruzilhada política e estética em que muitos intelectuais de esquerda tiveram que definir os termos de seu compromisso, sem se curvarem para obedecer aos preceitos estéticos do realismo socialista do stalinismo.

 

Recordo que quando estive em Tenerife um amigo me levou para conhecer a milenar árvore do dragão, Dracaena draco, e ali à sua volta conversamos sobre o fato de que André Breton havia apelidado o pintor Óscar Domínguez (1906-1957) de Dragonnier des Canaries, em homenagem à conjunção espiritual da planta e do artista. Domínguez passou a viajar com frequência a Paris a partir de 1926, tendo ali se estabelecido 10 anos depois. Da Europa ele passou a colaborar intensamente com a revista gaceta de arte, e também assinou a capa de vários livros, dentre eles Crimen, de Agustín Espinosa. A seu respeito disse um de seus companheiros no grupo surrealista, Georges Hugnet, que Domínguez interpreta a realidade com tenacidade que se pode dizer dele, mais do que de qualquer outro, que pinta como sonha, mais adiante destacando que nele encontramos a todo momento a preocupação de construir um mundo novo, de pegar o que é para extrair o que deveria ser, o que será, concluindo que Óscar Domínguez mescla realidade e ficção do consciente e inconsciente, de artesanato e automatismo. O artista deixou um único livro de poemas publicado, Los dos que se cruzan, em 1947. Em 1952, a morte de seu amigo Paul Éluard teve um impacto devastador em Domínguez, que desenvolveu uma obsessão pelo tema da morte. Posteriormente, diante do fracasso de sua última exposição, este imenso artista suicidou-se em seu ateliê em Montparnasse.

 

 

Outro papel preponderante, no sentido de incontestável inovação, quando nos referimos à vida da revista gaceta de arte e sua marca fascinante de 38 números publicados regularmente, de fevereiro de 1932 a junho de 1936, diz respeito ao projeto gráfico em si. Belén Castro Morales, em um importante estudo sobre o periódico, observa:

 

O desenho nítido da gaceta de arte já propunha o estilo de um novo tempo. A revista irrompeu no cenário gráfico espanhol com um layout inédito pela composição refinada e pelo equilíbrio entre as colunas de texto, as fotogravuras e os espaços em branco da página. Um ponto negro de espessura variável substituiu as linhas e caixas usuais para separar o conteúdo. Mas o que mais chamou a atenção nessa ordem arquitetônica e mondrianesca de suas páginas (Westerdahl) foi o conceito radicalmente moderno da tipografia: desde o cabeçalho, desenhado pelo próprio Westerdahl, até os tipos inspirados na Bauhaus, adotaram o uso sistemático da minúscula como indício da desmistificação de valores antigos; prática que abandonaram a partir do número 23 (1934) para regressar ao sistema burguês e assim facilitar a penetração social das suas mensagens, embora tenham mantido as letras minúsculas nos cabeçalhos e manchetes até ao final.

 


Se por um lado a geração de gaceta de arte foi violentamente fracionada, em grande parte pela guerra civil espanhola, esse processo brutal não evitou o surgimento de algumas obras de aperfeiçoamento e renovação das artes – em especial a poesia e a pintura – em terras canárias. Obras inconclusas, muitas delas, mas nem por isto sofreram uma derrota na concepção de sua estrutura – algumas intuitivamente cresceram na forma de diários, como se em seu íntimo soubessem dos riscos de alguma inesperada interrupção. Hoje a celebração dessas obras visionárias – Dársena con despertadores (Pedro García Cabrera), Crimen (Agustín Espinosa), Lo imprevisto (Domingo López Torres), ou mesmo os textos críticos, como a série de ensaios de López Torres dedicada ao surrealismo ou a Facción surrealista de Tenerife de Domingo Pérez Minik, dentre alguns outros – espelha com clarividência a riqueza estética de uma época de intensa agitação para o fortalecimento cultural espanhol. Particularidades encontradas em todas elas dão as cartas de uma vitalidade que foi mais além dos recursos estritamente insulares, superando o contexto regional e até mesmo nacional. López Torres, por exemplo, chama a atenção para a estrutura de uma novela singular como a de Espinosa: Com as suas obscenidades e cenas macabras, Crimen contrariou a perspectiva dos setores mais conservadores da crítica literária e dos poderes dominantes, razão pela qual foi tantas vezes vilipendiado. Ele próprio, como recorda José Ismael Gutiérrez, escreveu que a pintura de Óscar Domínguez conseguia um equilíbrio entre a variedade excessiva e onírica da técnica de Dalí e a delicada simplicidade das obras de Joan Miró. Fragmentação de linguagens, automatismo psíquico, vislumbres embrionários da realidade antecipados na paisagem onírica, transgressões morais, anotações de sentido ambíguo, truques de toda ordem que fizeram desses jovens poetas de gaceta de arte uns feiticeiros demasiado humanos que deram ao arquipélago uma carta de princípios que foram buscar na profunda intimidade de seu espírito, uma vertente de milagres poéticos que fez das Ilhas Canárias um dos ninhos mais refulgentes do Surrealismo em todos os tempos.

 

 

As casas por onde as ilhas foram paginando sua iniciação. Lugares recônditos que só a alma alcança. As ilhas são o centro espiritual do voo. O tanque invisível onde a ave prepara a excelência de suas asas. Mais do que agitação de um mundo ulterior ou o templo submerso onde os vulcões procriam suas caudas de destruição, as ilhas estão sob o cuidado dos deuses que ofertam seu corpo como refúgio amoroso ou sedutora fortaleza de luzes. As ilhas visionárias de Agustín Espinosa e Domingo López Torres. A lavoura estelar que resplende das páginas de Domingo Pérez Minik e Pedro García Cabrera. O santuário que tem início nas tintas de Eduardo Westerdahl e Óscar Domínguez. Da metáfora transcendente dessas ilhas que todos levavam em seu íntimo surgirá de modo incessante uma multidão de luzes que se espalham por toda a terra. Como uma insólita safira que nos liberta de todos os grilhões da miséria humana. As ilhas são o vaso da criação. A taça hermética onde nascemos mil vezes.

 

 

 


FLORIANO MARTINS (Fortaleza, 1957). Poeta, editor, dramaturgo, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo). Curador do projeto “Atlas Lírico da América Hispânica”, da revista Acrobata. Esteve presente em festivais de poesia realizados em países como Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), foi professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro, Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo Antonio Cuadra. Entre seus livros mais recentes se destacam Un poco más de surrealismo no hará ningún daño a la realidad (ensaio, México, 2015), O iluminismo é uma baleia (teatro, Brasil, em parceria com Zuca Sardan, 2016), Antes que a árvore se feche (poesia completa, Brasil, 2020), Naufrágios do tempo (novela, com Berta Lucía Estrada, 2020), Las mujeres desaparecidas (poesia, Chile, 2022), Sombras no jardim (prosa poética, Brasil, 2023), e A bússola do acaso – Trilogia do Surrealismo (ensaio, tres tomos, 2024)




DAVIDE GALBIATI (Itália, 1976). Para el artista, el tema de la conexión Cuerpo-Espíritu existe desde el principio de los tiempos y probablemente continuará indefinidamente. En esta dirección, Davide Galbiati busca un lenguaje plástico con formas simples y singulares que evoquen tanto a pueblos ancestrales como a civilizaciones de un futuro sideral. Sublima el aura humana en materia para hacer visible lo invisible. Se inspira en el trabajo de escultores antiguos, como Tutmosis (escultor del faraón Akenatón) y en las esculturas griegas arcaicas. El artista alimenta el ardiente deseo de oponer el ruido del mundo al silencio vibrante del quieto. Huye, pues, de las contorsiones dinámicas de las esculturas barrocas o neoclásicas para pensar en la calma telúrica de los antiguos faraones. Galbiati nos lleva a la escultura por el camino del silencio. Gracias al cariño inagotable de nuestra colaboradora Berta Lucía Estrada, Davide Galbiati es el artista invitado de esta edición de Agulha Revista de Cultura.



Agulha Revista de Cultura

Número 258 | dezembro de 2024

Artista convidado: Davide Galbiati (Itália, 1976)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2024


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