No caso do referido manifesto, intitulado
Manifesto surrealista de Tenerife e assinado por Breton, Péret e todo o grupo da
gaceta de arte, vale ressaltar como tônica central
o último parágrafo do mesmo, em que seus signatários se declaravam contra a indiferença política e a inércia social
dos escritores que contribuem para escravizar o homem, sem tomar posições pela sua
libertação. A posição estava naturalmente
tomada e inclusive posteriormente se publica, na gaceta de arte, um documento que tem por
título justamente “Posición de gaceta
de arte”. No entanto, o manifesto praticamente se restringe
a seguir concordantemente as palavras de Breton proferidas em sua conferência em
Tenerife. Mesmo observando a pertinência de uma indagação lançada logo em suas primeiras
linhas, o que se segue é a opinião do poeta francês a respeito. Eis a questão: Não será que a humanidade vive momentos psicológicos
de verdadeiro contágio coletivo em que se apagam as aquisições individuais, momentos
em que o inconsciente social é colocado em primeiro plano? O próprio Breton
observa que a arte não deve, sob hipótese alguma, perder de vista seu objetivo central,
de revelar à consciência os poderes da vida
espiritual. E, um pouco adiante, lemos: O
surrealismo fornece o sistema pelo qual é possível a libertação espiritual do homem
de todos os preconceitos. E, ainda nas palavras de Breton: A imaginação artística deve permanecer livre,
A obra de arte, sob pena de perder o seu próprio
ser, deve ser desligada de qualquer tipo de fim prático.
Este é um aspecto primordial já pressentido naquela ocasião
pelos surrealistas e que permanece ainda hoje a mesma espécie de símbolo desfigurado
da realidade. Se em um primeiro momento o homem, e não apenas o intelectual e o
artista, foi levado à perda de contato mais íntimo com os poderes da vida espiritual, com o tempo o que na época parecia uma
fonte de resistência, a criação de um mito coletivo, teve essa posição apropriada
por uma sociedade de consumo, ao ponto de se verificar uma desmitologização completa,
mergulhando o homem em um vazio, ao deixar de presumir importância mínima a qualquer
caracterização de sua presença no mundo. A rigor, se trata de uma antevisão de Breton,
de que as sociedades humanas seriam vilipendiadas pela coisificação imposta pelas
leis de mercado.
Entre os principais grupos
que merecem a nossa mais determinada atenção está o movimento surrealista, no qual
vimos desde o início um dos instrumentos mais interessantes à disposição de uma
cultura viva abrir caminho no meio das constantes ameaças sofridas pela independência
do espírito e da coerção e das falsas obras de engenharia com que o capital, o Estado,
a religião, a moral, a pátria, a família etc., canalizaram e ergueram edifícios
convencionais ao serviço dos seus interesses unilaterais, com preciosos materiais
subconscientes em cuja energia eles descansaram.
Agustín
Espinosa (1897-1939) foi o senhor de um castelo de cartas eróticas, o mestre de
andanças erráticas pelas ruas de uma cidade imaginária repleta de artifícios sexuais
que buscavam a todo custo – um custo mesclado de sátira arruaceira e fina ironia
– dessacralizar a realidade de seu tempo. Ele mesmo diria: O que procurei alcançar, acima de tudo, foi isto: um mundo poético; uma
mitologia motriz. A minha tentativa é criar uma nova Lanzarote. Uma Lanzarote inventado
por mim. Seguindo a mais ampla tradição da literatura universal. Lanzarote é
a ilha mais oriental do arquipélago das Canárias, uma região repleta de vulcões
adormecidos, onde foi morar Espinosa em 1928. A ilha é o cenário imaginário de Lancelot, 28°-7°, guía integral de una isla atlántica
(1929), mas sobretudo da novela Crimen,
este livro fascinante, novela maldita, provocativa, com que Espinosa inaugura o
gênero no surrealismo em língua espanhola. Publicada originalmente em 1929, teve
sua tiragem ocultada, em grande parte destruída pelo Franquismo, foi recuperada
em 1974, mas somente em 2019 alcançaria uma edição definitiva.
Pedro
García Cabrera (1905-1981) tinha por seu arquipélago natal uma paixão entranhável
que o levava a considerar essas ilhas como mães de mitos com anjos
tatuados e tambores, e praticamente a essa paixão dedicou sua vida, sua obra, forças mescladas
em uma única fonte de vitalidade. Essa integridade incondicional acabou sendo ameaçada
pela virulência do franquismo. Jamais lemos, no entanto, uma linha de rancor em
seus escritos, em momento algum se desfez da força mágica da palavra. Ao escrever
sobre Apollinaire, referiu-se ao surrealismo destacando sua capacidade de iluminação
de um verdadeiro mundo de conquistas ilimitadas.
E ele próprio foi igualmente um inovador, de que é exemplo a prosa poética de Los senos de tinta, escrito em 1934, porém
tendo permanecido inédito até que fosse incluído em sua obra completa publicada
postumamente em 1987. Livro de descaminhos sinuosos e transfigurações da linguagem,
a começar pela própria prestidigitação que cria ao deslocar o protagonista de seu
relato, de uma suposta amante para o corpo da escritura, criando uma atmosfera mítica
de naufrágio amoroso, onde as tintas se confundem com o sangue, os rios com as veias
em suas viagens pelo interior da escrita, uma voluptuosa geografia do desejo e sua
atração pelo mistério. Livro fundamental não apenas na bibliografia de García Cabrera,
mas sim de todo um espectro estético da tradição espanhola. Livro tão envolto pela
atmosfera surrealista que até mesmo a sua existência foi entrecortada pelo que se
poderia chamar de acaso objetivo, lembrando que os originais, quando foram resgatados,
se encontravam sem alguns parágrafos iniciais e as folhas finais.
Na revista surrealista Minotaure
# 3-4, editada em 1933, em uma enquete sobre o encontro capital que marcou a vida
de vários entrevistados encontramos esta resposta dada por Domingo López Torres
(1907-1937): Meu primeiro encontro capital
ocorreu por volta dos nove anos: um livro técnico sobre casamento e higiene foi,
para o meu temperamento da época, o primeiro livro que exacerbou meus desejos, o
primeiro livro pornográfico que chegou às minhas mãos. Esse livro me ensinou a hipocrisia
do preconceito e o mistério imponderável das grandes pessoas. Senti então a vergonha
das minhas partes sexuais dentro de minha bermuda. Além de sua poesia, onde cabe destacar a importância
de Lo imprevisto, livro que situa seu
autor entre os poetas mais notáveis da geração, López Torres também deixou inúmeros
ensaios, que pretendia publicar sob o título de Surrealismo, o que acabou não sendo possível. Em um desses escritos,
situou o artista surrealista como alguém que deixa livre passagem à expressão espontânea do subconsciente, agindo como
meio para si mesmo, captando das janelas mais altas as paisagens mais baixas do
espírito. Em 1937 seu corpo foi lançado ao mar dentro de um saco, como resultado
de um dos momentos mais abjetos do regime de Franco.
Ao escrever sobre López Torres, o crítico Roberto García
de Mesa, que o situa como uma das mais relevantes
personalidades da literatura das vanguardas históricas nas Ilhas Canárias, sintetiza
seu vínculo com o surrealismo de um modo que exige a sua presente reprodução:
Domingo López Torres voltou
a sua poesia para um surrealismo comprometido com a revolução proletária e os conflitos
do seu tempo. Neste sentido, a sua poesia evolui a partir de uma visão da paisagem
meridional, selvagem, humanista, em Diario
de un sol de verano (1929) – em linha com
o que afirmava Pedro García Cabrera no seu ensaio “O Homem em função da paisagem”
(1930), texto ideológico do espírito da revista Cartones (1930) –, até se preocupar com uma estética
intimamente ligada ao surrealismo, que, sem desconsiderar a imaginação e o grotesco,
não deixou de apontar problemas sociais, como a invasão de pragas de gafanhotos,
o uso da liberdade individual, a subversão dos costumes burgueses através da libertação
sexual etc.
O artigo de García de Mesa foi escrito por ocasião da
localização de um poema inédito de López Torres, que julgo relevante copiar:
ESCÂNDALO
Perdidos na noite daquele
cinema,
para lá dos últimos assentos,
bem perto das alegrias e fortunas,
tu e eu, pelas calçadas da
multidão,
em um filme que não termina
e sempre começa.
Lembro que Anny Ondra eram
teus seios,
teus olhos e teus lábios,
que foram deslocados
por todos os meus corredores
interiores.
Que alegria e que gritos!
É assim que entramos no mundo
dos véus
que inventou a tela e os suspiros.
*
Ontem, dois namorados foram
surpreendidos em um cinema desta cidade, atropelando a moral burguesa, num tal estado
de limbo e descaramento que a força pública teve que intervir. Outros casais aplaudiram
nos últimos assentos.
O
artista Eduardo Westerdahl (1902-1983) foi destacado pintor surrealista, assim como
crítico e escritor. Foi o organizador da 2ª Exposição Internacional do Surrealismo
– uma sugestão de Óscar Domínguez, que também se encarregou de reunir em Paris as
76 obras que integravam a mostra –, e um dos fundadores da gaceta de arte. Westerdahl
foi um dos principais promotores da vanguarda, tendo disseminado o surrealismo e
a abstração na Espanha e, em sua Tenerife natal, estabeleceu vínculos com várias
associações espanholas. Graças à sua constante atividade como agitador cultural,
que abrangia fotografia, arquitetura, cinema e teatro, publicações e, claro, arte,
ele manteve relações estreitas com muitos artistas, em especial com Óscar Domínguez
– este artista na época já integrava o grupo surrealista de Paris –, tendo também
trabalhado como crítico de arte para uma grande variedade de catálogos e monografias,
além de organizar todos os tipos de exposições e eventos de arte, entre eles a Escuela
de Altamira. É possível dizer que sem a sua presença a gaceta de arte não teria alcançado a vida e a circulação relativamente longas que
teve. Cabia a ele redigir e dar a forma definitiva aos manifestos que a revista
publicou ao longo da sua existência. Além disso, foi Westerdahl quem inicialmente
desenhou a tipografia do cabeçalho, assinando ainda notas de leitura, ensaios, resenhas
e crônicas. De qualquer modo, cuidando de não ofuscar a ampla visão de Westerdahl,
atento à multiplicidade de oferendas estéticas de seu tempo, destaca Belén Castro
Morales, que seu relativo interesse pelo surrealismo
foi o resultado de um processo de análise diante da encruzilhada política e estética
em que muitos intelectuais de esquerda tiveram que definir os termos de seu compromisso,
sem se curvarem para obedecer aos preceitos estéticos do realismo socialista do
stalinismo.
Recordo
que quando estive em Tenerife um amigo me levou para conhecer a milenar árvore do
dragão, Dracaena draco, e
ali à sua volta conversamos sobre o fato de que André Breton havia apelidado o pintor
Óscar Domínguez (1906-1957) de Dragonnier des Canaries, em homenagem à conjunção espiritual da planta e do artista.
Domínguez passou a viajar com frequência a Paris a partir de 1926, tendo ali se
estabelecido 10 anos depois. Da Europa ele passou a colaborar intensamente com a
revista gaceta de arte, e também assinou a capa de vários livros, dentre eles Crimen, de Agustín Espinosa. A seu respeito
disse um de seus companheiros no grupo surrealista, Georges Hugnet, que Domínguez
interpreta a realidade com tenacidade que
se pode dizer dele, mais do que de qualquer outro, que pinta como sonha, mais
adiante destacando que nele encontramos a
todo momento a preocupação de construir um mundo novo, de pegar o que é para extrair
o que deveria ser, o que será, concluindo que Óscar Domínguez mescla realidade e ficção do consciente e inconsciente,
de artesanato e automatismo. O artista deixou um único livro de poemas publicado,
Los dos que se cruzan, em 1947. Em 1952,
a morte de seu amigo Paul Éluard teve um impacto devastador em Domínguez, que desenvolveu uma obsessão pelo tema
da morte. Posteriormente, diante do fracasso de sua última exposição, este imenso
artista suicidou-se em seu ateliê em Montparnasse.
Outro papel preponderante, no sentido
de incontestável inovação, quando nos referimos à vida da revista gaceta de arte e sua marca fascinante de
38 números publicados regularmente, de fevereiro de 1932 a junho de 1936, diz respeito
ao projeto gráfico em si. Belén Castro Morales, em um importante estudo sobre o
periódico, observa:
O desenho nítido da gaceta de arte já propunha o estilo
de um novo tempo. A revista irrompeu no cenário gráfico espanhol com um layout inédito
pela composição refinada e pelo equilíbrio entre as colunas de texto, as fotogravuras
e os espaços em branco da página. Um ponto negro de espessura variável substituiu
as linhas e caixas usuais para separar o conteúdo. Mas o que mais chamou a atenção
nessa ordem
arquitetônica e mondrianesca de suas páginas
(Westerdahl) foi o conceito radicalmente moderno da tipografia: desde o cabeçalho,
desenhado pelo próprio Westerdahl, até os tipos inspirados na Bauhaus, adotaram
o uso sistemático da minúscula como indício da desmistificação de valores antigos;
prática que abandonaram a partir do número 23 (1934) para regressar ao sistema burguês
e assim facilitar a penetração social das suas mensagens, embora tenham mantido
as letras minúsculas nos cabeçalhos e manchetes até ao final.
As casas por onde as ilhas foram paginando
sua iniciação. Lugares recônditos que só a alma alcança. As ilhas são o centro espiritual
do voo. O tanque invisível onde a ave prepara a excelência de suas asas. Mais do
que agitação de um mundo ulterior ou o templo submerso onde os vulcões procriam
suas caudas de destruição, as ilhas estão sob o cuidado dos deuses que ofertam seu
corpo como refúgio amoroso ou sedutora fortaleza de luzes. As ilhas visionárias
de Agustín Espinosa e Domingo
López Torres. A lavoura estelar que resplende das páginas de Domingo Pérez Minik
e Pedro García Cabrera. O santuário que tem início nas tintas de Eduardo Westerdahl e Óscar Domínguez. Da metáfora transcendente
dessas ilhas que todos levavam em seu íntimo surgirá de modo incessante uma multidão
de luzes que se espalham por toda a terra. Como uma insólita safira que nos liberta
de todos os grilhões da miséria humana. As ilhas são o vaso da criação. A taça hermética
onde nascemos mil vezes.
FLORIANO MARTINS (Fortaleza, 1957). Poeta, editor, dramaturgo, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo). Curador do projeto “Atlas Lírico da América Hispânica”, da revista Acrobata. Esteve presente em festivais de poesia realizados em países como Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), foi professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro, Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo Antonio Cuadra. Entre seus livros mais recentes se destacam Un poco más de surrealismo no hará ningún daño a la realidad (ensaio, México, 2015), O iluminismo é uma baleia (teatro, Brasil, em parceria com Zuca Sardan, 2016), Antes que a árvore se feche (poesia completa, Brasil, 2020), Naufrágios do tempo (novela, com Berta Lucía Estrada, 2020), Las mujeres desaparecidas (poesia, Chile, 2022), Sombras no jardim (prosa poética, Brasil, 2023), e A bússola do acaso – Trilogia do Surrealismo (ensaio, tres tomos, 2024)
DAVIDE GALBIATI (Itália, 1976). Para el artista, el tema de la conexión Cuerpo-Espíritu existe desde el principio de los tiempos y probablemente continuará indefinidamente. En esta dirección, Davide Galbiati busca un lenguaje plástico con formas simples y singulares que evoquen tanto a pueblos ancestrales como a civilizaciones de un futuro sideral. Sublima el aura humana en materia para hacer visible lo invisible. Se inspira en el trabajo de escultores antiguos, como Tutmosis (escultor del faraón Akenatón) y en las esculturas griegas arcaicas. El artista alimenta el ardiente deseo de oponer el ruido del mundo al silencio vibrante del quieto. Huye, pues, de las contorsiones dinámicas de las esculturas barrocas o neoclásicas para pensar en la calma telúrica de los antiguos faraones. Galbiati nos lleva a la escultura por el camino del silencio. Gracias al cariño inagotable de nuestra colaboradora Berta Lucía Estrada, Davide Galbiati es el artista invitado de esta edición de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 258 | dezembro de 2024
Artista convidado: Davide Galbiati (Itália, 1976)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
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∞ contatos
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