Árvores somos quando
verdadeiramente somos. E, se não somos
ou fomos, deveríamos ser. Se um dia já fomos, deveríamos reconhecer nossa parte
arbórea nessa existência. Deveríamos chamá-la a manifestar-se. É isso que as colagens
de Silvio Alvarez nos conclamam a ver e a ser.
Temos algo de arborescente.
Nossos olhos são como folhas que observam tudo ao seu redor, talvez as folhas sejam
mesmo olhos, assim como galhos e ramos são análogas às artérias do pulmão, à uma
rede neuronal que se ergue para o alto. Basta olhar a capilaridade de nossos vasos
sanguíneos. Somos todos árvores com raízes e tudo. E ninguém sobrevive sem raízes.
Pergunte-se: por que,
então, não somos considerados todos árvores?
Mas, algumas pessoas
já são árvores, outras ainda não, e outras nunca serão. Árvores são esses seres
calados que convivem em cada um de nós dentro e fora, e que estão sempre escutando
sem nada a dizer, sem nenhuma expressão visível de nosso solilóquio.
Há pessoas que se
assemelham a elas, sentem-se magnificamente como uma árvore, e nos mostram que também
somos árvores. Silvio Alvarez é um exemplo disso por meio de sua arte nos mostra
a ser árvore. Silvio não é nenhum Buda, mas quiçá encarne o espirito da Figueira
de Bodhi.
Silvio já é uma árvore,
talvez um baobá que acolhe muita gente em seu interior oco.
Tem outros do outro lado, gente que odeia árvores:
os arboricidas, os que matam árvores por ganância, e ou por inveja. Mas, há também
os que plantam, semeiam e gestam árvores: esses são os si-entes. Esses foto-Sintetizam.
Algumas pessoas são
radicalmente árvores. Há uma raiz árvore em cada um de nós, mesmo nos errantes,
ainda que muitas vezes árvores solitárias ou dormentes, mas sempre a espera do despertar.
A pior forma de expressar negativamente uma árvore é referir-se a uma pessoa que
leva uma vida vegetativa ou que está em processo vegetativo.
Temos parte vegetal,
nossos cabelos são como grama, vegetação rasteira, quando morremos, seguem crescendo.
O lado vegetal, ainda que metafórico é mais forte e continua vivendo, e vivente.
Se um dia fomos todos árvores, então, por que não permitimos que nossas árvores
aflorem e floresçam para nos libertarmos de nossa condição humana existencial dentro
desse infernal processo civilizatório.
Silvio Alvarez é um
ser arborescente, um curador, um cuidador, uma árvore solitária, robusta, acolhedora,
que frutifica e espalha suas sementes ao mundo através de suas próprias collages,
produz uma folhagem diferente de amorosidade com as pessoas. Hermann Hesse uma vez
definiu as árvores mais ou menos assim: Elas
são como pessoas solitárias. Não como eremitas, que se perderam por alguma fraqueza,
mas como grandes homens solitários, como Beethoven e Nietzsche. Em seus galhos mais
altos o mundo sussurra. Suas raízes descansam nas entranhas escuras da terra. Mas
elas não se perdem lá; elas lutam com toda a força de suas vidas para uma única
coisa: a realizar-se de acordo com suas próprias leis, para construir a sua própria
forma, para representar a si mesmo.
Infelizmente, os dias
passam, os anos passam e cada vez mais nos afastamos de sermos árvores, de descobrir
a árvore e a semente que portamos, já não florimos, e ser árvore dói em vez de ser
prazer. Inventaram coisas malucas e maldosas, enquanto crianças nos fizeram acreditar
ao dividir e separar, fragmentar o mundo em mineral, vegetal e animal; numa hierarquia
onde o homem é o topo da pirâmide. Somos constituídos de árvores, e somos também
pedras, a química explica muito bem. Para quem vive no mundo collage, mundo desorbitadamente
lúcido e coeso onde as analogias extrapola o pensamento racional, essa separação
não existe. Alguns que fazem collage, com o tempo conseguem perceber que somos todos
um, um no Um. Árvores e animais, tudo, está irremediavelmente colado, atado, como
condenados pelo fio que costura todas as coisas. Numa coisa só, sem hierarquias,
apenas vidas diferentes, um caos. Todos numa casa, as árvores que vivem muito conseguem
ver, sentir as gerações que se sucedem ao longo do tempo, e o sentido de lar.
Quem faz collage pode
juntar árvores e gente numa coisa só, coloca um no outro, o outro no um. Que maravilha.
Transfiguram a visão deformada e medíocre do mundo para nos mostrar outra realidade,
uma ‘mais realidade (surreal) que se esconde atrás das aparências. Quem faz collage
mostra a substancia e a propriedade de cada coisa no mundo. Faz ver. Torna árvores
gente, e gente em inteligência arborescente.
Por acaso quando estamos deitados, ou numa varanda
sentados olhando ao infinito, imóveis, silenciosos não estamos alimentando nosso
serárvore?
Talvez, poderíamos
pensar algo mais contundente e estarrecedor. Talvez começar a pensar que somos partes
desgarradas das árvores, árvores inquietas que pelo desejo resolveram sair pelo
mundo afora para caminhar. São elas que nos alimentam antes de nada com o ar da
existência. por isso são Árvores. Nosso pulmão é uma árvore, ainda que formalmente
não se assemelhe, Dependemos dele, dela, somos quase parasitas de sua respiração,
de seu alento. Talvez, elas nos tenham criado, tal qual alguns mitos indígenas,
e quando morremos passaríamos a morar nelas, diriam elas se falassem: já somos todos
humanos, condição inferior. Consegue perceber?
Silvio Alvarez consegue
a cada collage de árvores resignificar nossa existência, suas collages nos mostram
o algo de humano que cada árvore pode ter, olhos, mãos, cabeças, braços; ai então,
paramos e temos que pensar mais sobre essa questão das árvores. Por que desde pequeno
nos mostram uma árvore especifica (uma figueira, um cajueiro, uma paineira) como
uma generalização ordinária de árvore? Uma árvore é mesmo uma árvore? Comecei a
desconfiar das árvores e de sua aparência quando certa vez comecei a colar figuras
de mãos em árvores, transfigurando seus galhos em mãos, fazendo das mãos galhos,
mãos nas pontas de cada dedo, e assim sucessivamente até o infinito; mãos de todos
os tamanhos constituindo uma divisão arterial, de dobras sobre dobras como um fractal.
Nossas artérias são como galhos, como artérias por onde seiva a vida.
Como me ensinou o
colega Rufino Becker, outro ser arborescente iluminado, num quase poema:
O Universo está agitado, impermanente.
A mente percorre todas as direções.
Sem descanso, busca um caminho.
E o coração, o sentido.
Ao lado, está uma árvore.
Em seu silêncio, ela nos diz:
Quietude...
Eu estou sempre aqui.
Contempla-me agora.
Minhas raízes estão presas ao Mundo.
Meu tronco é meu caminho, minha história.
Minha copa sussurra ao Infinito.
Nada penso. Apenas sigo às leis básicas da Vida.
Vivo até o fim, os segredos da minha semente.
Minha força é a esperança.
Meu sentido, espalhar sementes.
Sou só.
Só Amor.
Silvio
nos mostrou pela primeira vez nosso lado arborescente quando elaborou a gigantesca
collage A árvore, para Editora Abril, em 2009, a pedido do departamento de
sustentabilidade da Editora. Demandaram uma árvore que tivesse a ver com a logomarca
da editora e falasse também de sustentabilidade. O trabalho inauguraria o acervo
do Museu da Sustentabilidade da Praça Victor Civita, em São Paulo. Silvio só tinha
dois dias para apresentar o layout. Devido ao gigantismo do painel a primeira ideia
do Silvio foi pintar o fundo com tinta. Mas ele já tinha em mente a ideia da árvore
cheinha de olhos, cada folha seria um olho, cada olho uma folha, mas não sabia o
que fazer no fundo. Então dormiu sonhando com árvores. Acordou com a resposta: as
páginas amarelas da Veja rasgadas comporiam a textura de fundo, e trariam
o pensamento de personalidades de todo o mundo, além de serem uma das marcas do
cliente. Vejam que ideia. A editora enviou revistas Veja de 10, 20 anos atrás, algumas até mais velhas. Foram cerca de três
meses para recortar olhos e mãos, ficou com os dedos mais calejados que tronco de
árvore velha. Levou tudo recortadinho de casa para fazer nascer e crescer a árvore
Civita.
Segundo
o Silvio, a empresa solicitou para que a produção ocorresse durante a Semana da
Sustentabilidade no hall do edifício da editora na Av. Nações Unidas, e assim os
funcionários poderiam acompanhar e interagir. Pura demagogia empresarial. Hospedado
em um hotel próximo ele trabalhava das 8 às 21 horas, e seguia recortando olhos
no hotel; e ao fim, achou ainda que faltavam olhares.
O
robusto tronco da árvore ele fez todo com mãos recortadas que se retorcem, se sobrepõem
uma as outras formando um entrelaçamento estrutural fantástico, e ao mesmo tempo
sugerindo uma textura de casca, Mãos e braços sobem, e passam a serem pequenos troncos
galhos em meio a profusão de olhos como folhas. Tudo nessa árvore é demasiado humano.
Mãos que recortam olhos, olhos que recortam mãos. Mãos e olhos como sabemos fazem
parte do mesmo ato de perceber o mundo, vemos com as mãos, tocamos o mundo com nossos
olhos, ambos são parte do tocar, um para além da mera visão. Silvio tem a panciência de uma árvore, em recortar detalhadamente
todas essas imagens.
O
que conta uma árvore? O que conta uma árvore,
o que conta uma árvore? Kopenawa nos mostra
em uma breve frase a condição simbólica e real que permite os brancos se apropriarem
da natureza, e da floresta. Para isso, vão
derrubar todas as suas árvores e, uma vez desnudada, será deles! Sem derrubar, matar,
eles os brancos não se sentem proprietários, e esse e segue sendo o princípio da
colonização. [1] Adiante Kopenawa faz a crítica a questão
da narrativa escrita versus oralidade. Omama
não nos deu nenhum livro mostrando os desenhos das palavras de Teosi, como os dos
brancos. Fixou suas palavras dentro de nós. Mas, para que os brancos as possam escutar,
é preciso que sejam desenhadas como as suas. Se não for assim, seu pensamento permanece
oco. Quando essas antigas palavras apenas saem de nossas bocas, eles não as entendem
direito e as esquecem logo. Uma vez coladas no papel, permanecerão tão presentes
para eles quanto os desenhos das palavras de Teosi, que não param de olhar. [2]
Eu
não tenho velhos livros como eles, nos quais estão desenhadas as histórias dos meus
antepassados protegendo a floresta e seus habitantes. Agora é minha vez de possuí-las.
Mais tarde, elas entrarão na mente de meus filhos e genros, e depois, na dos filhos
e genros deles. Então será a vez deles de fazê-las novas. Isso vai continuar pelos
tempos afora, para sempre. Dessa forma, elas jamais desaparecerão. Ficarão sempre
no nosso pensamento, mesmo que os brancos joguem fora as peles de papel deste livro
em que elas estão agora desenhadas; mesmo que os missionários, que nós chamamos de gente de Teosi não parem de dizer que são mentiras. Não poderão ser destruídas pela água
ou pelo fogo. Não envelhecerão como as que ficam coladas em peles de imagens tiradas
de árvores mortas. Muito tempo depois de eu já ter deixado de existir, elas continuarão
tão novas e fortes como agora. [3]
Árvores produzem ar.
Ar-vore. Quem faz collage trabalha com árvores mortas, mas também sua matéria é
essencialmente AR, inspiração e expiração, busca resignificar soprar inalar não
somente o sentido das revistas e das imagens impressas, mas o valor do papel enquanto
coisa viva pele, película de uma árvore. Quem faz collage de árvores tem o dever,
se é consciente, de revelar de onde vem o material, assim como Silvio o faz em seus
cursos explicando a questão ambiental do papel do papel. Quem faz collage de árvores
é devoto ás árvores, sabe quanto significa, e o que conta cada retalho de papel.
A matéria prima da
collage no fundo não é a revista, mas sim a árvore, o papel que é produzido de seu
corpo seu tronco, o corpo que transformado em pele branca foi impressa.
A árvore não está
aqui nem lá; ou a árvore está dentro de você, ou a árvore não está em lugar algum.
E se não está, aí então se pode continuar matando-as, triturando-as, e nos sufocando.
E, como em todo processo predatório civilizador, civitas; não podia ser diferente; esse painel foi descartado pela empresa
três anos depois da produção, em sua mais profunda representação inconsciente do
terrível processo civilizador.
NOTAS
1. Kopenawa, Davi; Albert, Bruce. A queda do céu. Palavras
de um xamã Yanomami
(tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
2.
Op. cit.
3. Op.
cit.
4. www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=183792.
FERNANDO FREITAS FUÃO (Brasil, 1956). Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Pelotas (1980), Doutor em Projetos de Arquitetura Texto e Contexto pela Escuela Tecnica Superior de Arquitectura de Barcelona-UPC (!987- 92) com a tese Arquitectura como Collage, Pós-Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia-UERJ sob a supervisão da Filosofa Dra. Dirce Solis (2011-12). Professor Titular da Faculdade de Arquitetura. (UFRGS). Ministro na graduação desde 1992, a disciplina: Projeto Arquitetônico, e no Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura. PROPAR, a disciplina: Textos Fundamentais da Arquitetura Moderna. Atua principalmente nos seguintes temas: arquitetura e inclusão social, galpões de reciclagem, filosofia da desconstrução, ética na arquitetura, processo de criação, collage e representação. Foi editor-chefe do periódico ARQtexto durante 2005 e 2006. Autor dos livros: Derrida e Arquitetura (Solis & Fuão), Manual Construir e Reformar um Galpão de Reciclagem (CNPQ. Prorext. Propesq. UFRGS. 2014), A collage como trajetória amorosa (2011); Galpões de reciclagem e a Universidade, org. (2008), Canyons, av Borges de Medeiros e o Itaimbezinho (2000), Arquiteturas fantásticas, org. (1998) e de diversos ensaios como: “A hospitalidade na arquitetura”, “As bordas do Tempo”, “Viagem ao fim do mundo”, “O sentido do espaço, em que sentido, em que sentido?” entre outros. Atualmente desenvolve ações de extensão relacionadas a catadores, recicladores e moradores de rua. Visite: https://fernandofuao.blogspot.com/.
DAVIDE GALBIATI (Itália, 1976). Para el artista, el tema de la conexión Cuerpo-Espíritu existe desde el principio de los tiempos y probablemente continuará indefinidamente. En esta dirección, Davide Galbiati busca un lenguaje plástico con formas simples y singulares que evoquen tanto a pueblos ancestrales como a civilizaciones de un futuro sideral. Sublima el aura humana en materia para hacer visible lo invisible. Se inspira en el trabajo de escultores antiguos, como Tutmosis (escultor del faraón Akenatón) y en las esculturas griegas arcaicas. El artista alimenta el ardiente deseo de oponer el ruido del mundo al silencio vibrante del quieto. Huye, pues, de las contorsiones dinámicas de las esculturas barrocas o neoclásicas para pensar en la calma telúrica de los antiguos faraones. Galbiati nos lleva a la escultura por el camino del silencio. Gracias al cariño inagotable de nuestra colaboradora Berta Lucía Estrada, Davide Galbiati es el artista invitado de esta edición de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 258 | dezembro de 2024
Artista convidado: Davide Galbiati (Itália, 1976)
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