FM | Eu queria começar este nosso diálogo
indagando como a Amália percebe a si mesma quando minutos antes adentra o palco
para representar um outro personagem. Insisto nessa ideia do outro, porque
de algum modo ela poderia estar representando a si mesma. Quem é a Amália, quando
entra em cena?
AP | Sei quem eu sou enquanto ser humano,
mulher, inserida em uma sociedade que tem uma série de desafios a ser encarados,
sobretudo, por uma atriz e mulher, enfrentando todas as questões sociais, políticas
e poéticas que carrego em meu ser. Porém, ao entrar em cena, me coloco a serviço
das questões da personagem e empresto meu corpo, minha voz e minhas emoções para
viver aquelas tantas vidas, também cheia de significados e que, por vezes, nada
tem a ver comigo, mas, que na cena procuro ser e estar inteira para dar conta de
representar aquelas histórias. Quando entro em cena procuro esquecer a Amália e
dar vida, corpo e voz aos personagens que estiver representando.
FM | Este assunto nos leva às origens da
Amália como atriz, talvez na infância, talvez na adolescência, não vem ao caso.
O que me dá curiosidade é saber o momento em que descobriste que há inúmeras maneiras
de representar o outro. E que esta representação é um modo de expressão do pensamento.
O outro é o que somos ou é apenas parte de nosso ser? O que essa compreensão do
outro pode vir a se converter em arte?
AP | Poder emprestar-me para a construção
de histórias de vidas de personagens fictícios, fabulando ou não, dentro das histórias,
é um exercício de amor ao ser humano e as tantas lutas travadas pela sobrevivência.
Ao me colocar no lugar do outro me reconheço e reconheço um tanto da sociedade na
qual estou inserida. O teatro nos permite, de alguma forma, rever a vida a cada
nova empreitada.
FM | Quando pensamos na criação de Kaus
– Teatro da América Latina, eu observo alguns aspectos: a ideia de construção
de um espaço cênico que torne possível o investimento em uma dramaturgia de exceção;
a busca de um diálogo com outros palcos, o que pode vir a definir um ambiente internacional
para a companhia; a compreensão estética de que o teatro em toda a América Latina
possui singularidades que podem ser não apenas exploradas como também redimensionas
a parir de novos textos criativos. Poderias me dizer de cada um desses momentos?
O
livro Teatro Kaus – Da América Latina à Espanha – Dez anos de dramaturgia hispânica, é um registro documental
de todas as ações do Projeto, de mesmo nome, que foi contemplado pela 30ª edição
do Programa Municipal de Fomento ao Teatro
para a Cidade de São Paulo, em 2017, para manutenção da pesquisa da
Cia. O livro apresenta a trajetória do grupo com dramaturgias de língua hispânica,
iniciada em 2006, com montagens de dramaturgos de países latino americanos, do Chile,
Argentina e Venezuela, e depois com dramaturgias espanholas, com Fernando Arrabal
e Angélica Liddell. A publicação traz também quatro textos inéditos do autor espanhol
Esteve Soler, que era objeto de pesquisa e montagem do grupo na ocasião. Essa é
a terceira publicação dos Cadernos do Kaus
sobre as nossas pesquisas e montagens com dramaturgias de língua hispânica. Sempre
que ganhamos um edital, procuramos publicar e distribuir gratuitamente, como contrapartida
do projeto, as nossas pesquisas e dramaturgias encenadas, como forma de socializar
o material.
FM | Certamente conhecem também as experiências da dramaturgia
no Uruguai, é um verdadeiro espanto que somente em Montevidéu existam pelo menos
30 salas teatrais – ao que me consta são 70 em todo o país. Há o trabalho renovador
de Ivan Worstain, em Indecentes, além
da presença marcante de nomes como Sandra Massera, Mariana Percovich, Carlos Rehermann,
Margarita Musto, Sebastián Bednarik, dentre outros. Igualmente antiga e consistente
é a tradição dramatúrgica no Paraguai. Temos aí autores fundamentais como Julio
Correa, Raquel Rojas e Mario Santander, para citar apenas alguns. De que maneira
vocês têm conseguido estabelecer uma relação interativa com esses países todos?
AP | Estamos atentos ao que é produzido no
Uruguai, como a trajetória do grupo El Galpón, o trabalho de Atahualpa del Cioppo,
a dramaturgia de Sergio Blanco, Dino Armas, Estela Golovchenko, Ricardo Prieto,
entre outros tantos. Também lançamos olhares para a dramaturgia do Paraguai, com
seus inúmeros criadores, porém nossa pesquisa com dramaturgias da América Latina
ainda não alcançou todos os países como gostaríamos. Nesse sentido, acessamos as
dramaturgias, catalogamos textos, traduzimos algumas obras e estabelecemos contatos
com muitos dramaturgos, mais especificamente da Argentina, Chile, Venezuela, México,
Cuba, Peru, entre outros. Seguimos na busca para atravessar novas fronteiras e alcançar
novas obras em nosso processo de pesquisa, para consequente encenação.
FM | Vamos lá ao princípio. Quando nasce
uma atriz chamada Amália Pereira, sua infância, as primeiras descobertas de palco,
o instinto de representação, enfim, como de onde exatamente vens?
AP | Quando criança gostava de criar personagens
com objetos que tinha em mãos, botões, bolinhas de gude, isso ainda muito pequena,
com 3, 4 anos. Na medida em que fui crescendo, descobri que poderia também ser esses
personagens que imaginava. Então, as brincadeiras foram se ampliando, com uso de
roupas e fantasia, que sempre me fascinavam.
AP | A escolha dos trabalhos no Teatro
Kaus sempre parte primeiro pelos textos. A partir da escolha do texto, me adequo
ao personagem que vou fazer e procuro uma identificação, não comigo, mas, com o
que posso oferecer com as minhas ferramentas, corpo e voz, para compô-lo da melhor
maneira possível. Por vezes, os ideais defendidos pela personagem compactuam com
meu pensamento como atriz e mulher, outras vezes não, e eu apenas me coloco a serviço
da obra, e mesmo que discorde do discurso, busco o aprofundamento necessário para
defender aquela ideia. Isso porque é nesse encontro, nas contradições entre o que
eu penso e a vida da personagem em questão, é que vou forjando meu trabalho e aguçando
meu olhar sobre a vida.
FM | O corpo se
expande na representação. Assume formas distintas. Um espaço amplo inclusive
de divergências. Como desenhas teu corpo, não apenas a sua forma, naquele momento
em que estás dialogando com as possibilidades de um novo papel?
AP | O corpo se expande na representação,
mas, às vezes, o corpo também se contrai, se retrai, fecha-se em um minúsculo templo,
onde nada dialoga com meu próprio corpo. A expansão está em me descobrir naquele
corpo, descobrir os mecanismos que possam me colocar no jogo e em diálogo com a
vida da personagem. Busco na partitura dos gestos, da ação, encontrar possibilidades
técnicas, poéticas e físicas para expandir minhas possibilidades corpóreas e então
iniciar a aventura de emprestar-me aquela nova vida. Sempre que vou fazer um personagem
novo, uma das primeiras coisas que tento achar é a voz da personagem, o tom, o jeito
de falar. O texto, propriamente dito, é a primeira coisa que tento me apropriar.
FM | O que te parece representar na cena
do teatro brasileiro a presença do Kaus?
AP | Assim como muitos coletivos, que praticam
teatro de grupo no Brasil, o Kaus é um sobrevivente que tenta existir e resistir
há mais de 25 anos nessa prática. O grupo representa uma parcela de outros tantos
que, como nós, teimam em resistir fazendo teatro de grupo, mesmo diante de todas
as dificuldades financeiras, de espaços e difusão de nossos processos. Realidade
a que estamos submetidos todos nós que escolhemos transitar com a práxis do teatro
de grupo.
FM | Como vocês definem o mapeamento das
obras a serem encenadas?
AP | Tudo aquilo que fala da vida, do humano,
das lutas e angústias, das alegrias que, por vezes, nunca chegam, e os sonhos de
homens e mulheres submetidos as mais diversas formas de luta, resistindo e existindo
na adversidade nos interessa. É da vida que extraímos motivações para seguir pensando
e fazendo teatro. O Teatro Kaus transitou, desde sua criação, com as dramaturgias
brasileira, latino-americana e espanhola, sempre com o olhar voltado as questões
políticas, poéticas, históricas e sociais que possam revelar as vidas de personagens
a partir das realidades onde as dramaturgias estão sendo escritas, buscando paralelos
com a nossa própria realidade. Então, estamos sempre em busca de autores e autores
desses países, seguindo uma linha de pesquisa contínua com essas dramaturgias.
AP | Fazer teatro em qualquer cidade, seja
no interior ou nas capitais, em qualquer região do Brasil, sempre será uma luta
pela existência e para ultrapassar as expectativas, resistindo ante as dificuldades
da área. Fazer teatro já é, por si só, uma luta diária, porém, ao deslocarmos a
sede do grupo para uma das maiores capitais do país, nos colocamos o desafio de
sobreviver e existir em consonância com todos os outros grupos que aqui se estabeleceram,
nascidos em São Paulo ou vindos de outras regiões do país. Ao chegarmos a 26 anos
de resistência, acreditamos que estamos dia pós dia vencendo a expectativa da existência,
e nos fortalecendo a cada novo ciclo, sem perder de vista nossas origens e, sobretudo,
nossa insistência em permanecermos na ativa como um coletivo ligado as práticas
do teatro de grupo. Vir para São Paulo foi uma forma de ampliar o nosso trabalho
e o desejo de poder acessar espaços, lugares e pessoas que não alcançávamos no interior.
FM | O que estão planejando?
AP | Em 2025, vamos estrear a peça As Três Velhas, do dramaturgo chileno
Alejandro Jodorowsky, que foi contemplada o pelo Prêmio Zé Renato de Teatro. Antes,
pretendo estrear um espetáculo solo que estou ensaiando já há algum tempo, Como expressar uma dor, do dramaturgo
brasileiro Aimar Labaki.
FM | Queria
indagar algo delicado, mas que espero seja um bom espelho de nossa realidade e de
tua reflexão a seu respeito: Como acreditas que deveria ser o comportamento de uma
mulher no poder?
AP | Independente do gênero, mulheres e homens, ao estarem
em lugares de poder, deveriam sempre partir do pressuposto que estão ali para servir
ao povo, contribuir para a evolução da sociedade, possibilitar melhores condições
econômicas e sociais para todos e todas, buscando o bem-estar e uma vida digna para
as populações. A mulher, por sua sensibilidade diante da vida, me parece estar sempre
mais disposta a somar pelo bem do todo.
FM | Há entendimentos sobre o teatro, em Antonin Artaud,
que me parece irretocáveis. Mas gostaria de saber a tua opinião a respeito. Diz
ele: O teatro
deveria ser um momento de confronto que colocasse em xeque a existência. | O teatro deveria ser um espaço
que mobilizasse a sensibilidade, o espírito e a vida. | O teatro deveria refazer a vida, não imitá-la.
Peço que comentes a tua opinião.
AP | Artaud deixou, com suas reflexões acerca da vida
e do teatro, um legado de importância imensa para aqueles que desejam se enveredar
pela arte teatral. Seguimos tentando refazer a vida ao invés de imitá-la, buscando
caminhos para construir um uma poética da cena que possa mobilizar sensibilidades.
Aguçar um espírito de vida que seja pulsante e possa reverberar na nossa própria
existência enquanto artistas, seres humanos, vivendo em um mundo de constantes transformações.
FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957). Poeta, ensaísta, tradutor e editor da Agulha Revista de Cultura. Seus estudos sobre Surrealismo lhe levaram à publicação, dentre outros livros, de três volumes intitulados A bússola do acaso – trilogia do surrealismo (2024). Tradutor de poetas como Pablo Antonio Cuadra, Enrique Molina, César Moro, dentre outros, está por publicar uma antologia história, intitulada Esfinge insone – 100 poetas surrealistas, sendo também autor de uma vasta obra poética, cujo título mais recente é Detrás de las puertas que todavía no encontramos (2024).
TARŌ OKAMOTO (Japão, 1911-1996). Filho do cartunista Ippei Okamoto e da escritora Kanoko Okamoto. Estudou na Sorbonne nos anos 1930 e criou muitas obras de arte, após a II Guerra Mundial. Foi um artista e escritor prolífico até sua morte. Entre os artistas com os quais Okamoto se associou durante a sua estadia em Paris estiveram André Breton e Kurt Seligmann, este último uma autoridade surrealista em magia e que conheceu os pais de Okamoto durante uma viagem ao Japão, em 1936. Okamoto também se associou com Pablo Picasso, Man Ray, Robert Capa e sua parceira, Gerda Tarō, que adotou o primeiro nome de Okamoto como seu próprio sobrenome. Em 1964, Tarō Okamoto publicou um livro intitulado Shinpi Nihon (Mistérios no Japão). Seu interesse em mistérios japoneses foi provocado por uma visita feita ao Museu Nacional de Tóquio. Depois de ficar intrigado com a cerâmica Jōmon que encontrou lá, ele viajou por todo o Japão para investigar o que entendia como o mistério que se encontra sob a cultura japonesa e, em seguida, publicou Nihon Sai hakken – Geijutsu Fudoki (Redescoberta do Japão – Topografia de Arte). Tarō Okamoto é o artista convidado desta edição de Agulha Revista de Cultura, e sua presença entre nós se deu graças à generosidade do bailarino e tradutor Daniel Aleixo. Sugerimos visitar o Museu de Arte Tarō Okamoto: https://taro-okamoto.or.jp.
Agulha Revista de Cultura
Número 259 | janeiro de 2025
Artista convidado: Tarō Okamoto (Japão, 1911-1996)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2025
∞ contatos
https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário